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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.21 no.3 São Paulo dez. 2016

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v21i3p599-617 

DOI: http//dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v21i3p599-617

ARTIGO

 

A amarração sinthomática nas vias de um autismo

 

The sinthomatic thread in autism process

 

El amarre sinthomático en el proceso de un autismo

 

 

Cirlana Rodrigues de Souza

Psicóloga e psicanalista. Doutora em Estudos Linguísticos pelo Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Com base na teoria psicanalítica de Jacques Lacan, este artigo aborda os impasses subjetivos instaurados no percurso de constituição subjetiva de uma criança em tratamento psicanalítico em vias de uma resolução autista e de suas tentativas de saber-fazer com a língua nesse percurso. Parto da seguinte pergunta: qual a função da língua insistente da criança em uma fala que não servia para ela se comunicar? Como hipótese, considero a tomada da língua, pela criança, como tentativa de saber-fazer com seu sintoma conferindo-lhe um estatuto de sinthoma, de uma amarração sinthomática como o modo de resposta do sujeito em constituição perante o imperativo do real. Discuto a questão do psicodiagnóstico e sua relação com a constituição do sujeito e a estrutura psíquica não definida na infância. Enfatizo a dupla causação do sujeito e exploro a lógica borromeana no autismo, a partir da fala e da língua dessa criança.

Descritores: autismo; sujeito; constituição; psicanálise; sinthoma.


ABSTRACT

Based on Jacques Lacan's psychoanalytic theory, this article addresses the subjective impasses established in the process of subjective constitution of a child in psychoanalytical treatment in process of an autistic resolution and their attempts to know-how to do with language in that process. I start from the following question: what is the function of the child's insistent language in a speech not suitable for their communication? My hypothesis is that the child takes language as an attempt to know-how with their symptom giving it a status of sinthome; a sinthomatic thread as a way in which the subject in constitution answers the imperative of the real. I discuss the issue of psychological diagnosis and its relation to the constitution of the subject and the psychic structure not set in childhood. I emphasize the double causation of the subject and explore the Borromean logic in autism from this child's speech and language.

Index terms: autism; subject; constitution; psychoanalysis; sinthome.


RESUMEN

Basado en la teoría psicoanalítica de Jacques Lacan, en este texto se discuten los impasses subjetivos de la constitución subjetiva de un niño en tratamiento psicoanalítico en el proceso de una resolución de autista y sus intentos de saber hacer con la lengua. ¿Qué función tiene la lengua insistente del niño en un discurso que no sirve para que él se comunique? Considero que el niño utiliza la lengua en un intento de saber hacer con su síntoma dándole un estatuto de sinthome, un amarre sinthomático como el modo de respuesta del sujeto en constitución frente al real imperativo. Discuto la cuestión de diagnóstico psicológico y su relación con la constitución del sujeto y la estructura psíquica que no se establece en la infancia. Enfatizo la doble causación del sujeto y exploro la lógica de borromeo en el autismo, del habla y la lengua de este niño.

Palabras clave: autismo; sujeto; constitución; psicoanálisis; sinthome.


 

 

Introdução

Neste artigo acompanho o percurso de constituição do sujeito de uma criança nas vias de um autismo. Para tanto, parto da noção de impasse subjetivo, pensado por Souza e Paravidini (2013), como o sofrimento psíquico ante a possibilidade de psicose fundamentado nas operações de alienação e separação construídas por Lacan para pensar a constituição do sujeito, estabelecida pela convergência entre real, simbólico e imaginário, conforme Vorcaro (2004). Assim, considero o impasse subjetivo dentro das questões estruturais tendo como base o fato de que no processo de constituição do sujeito não há ainda um "fechamento" da estrutura psíquica que comporta as operações subjetivas. Com isso, tomar o impasse subjetivo dentro da lógica de uma estrutura psíquica ainda não definida possibilita também o não fechamento de uma direção de tratamento, na medida em que esta é marcada pela própria direção subjetiva na infância.

Para abordar essa questão, trabalho com um caso clínico específico no qual a problemática do impasse subjetivo se faz mais evidente. No tratamento de uma criança, iniciado por volta dos três anos de idade, constataram-se fenômenos clínicos que apontavam na direção de uma estruturação de um sujeito psicótico, naquele momento inicial. Esses fenômenos eram as manifestações de fala dessa criança como a ecolalia, a entonação e a insistência sintática, a agitação psíquica, o limite no brincar, fobias extremas e a dificuldade de enlaçamento social, entre outros.

Essa criança, que chamarei aqui de Cadu1, chegou à clínica a partir do eco sintomático da queixa escolar que dizia "ele não se comunica" em contraste com a insistência dele em repetir palavras e frases.

Para formalizar esse caso, optei por discutir sobre a constituição do sujeito e seus impasses subjetivos fundamentados na psicanálise de Jacques Lacan, enfatizando a lógica borromeana.

Desse modo, retomo a discussão, sempre necessária, sobre o psicodiagnóstico na infância, tendo como base esse caso clínico e o singular percurso desse menino que, ao se constituir sujeito do inconsciente, enfrentou sua escolha subjetiva em que a possibilidade de uma psicose se apresentou como uma saída do isolamentodo autismo, inscrevendo-se como não de todo solitário. Considero, para tanto, a dupla causação do sujeito do inconsciente como um passo além da ênfase que se tende a dar ao imaginário na problemática do autismo, explorando a lógica borromeana na constituição subjetiva e propondo que a criança, nesse percurso e ante seu impasse subjetivo, lançaria mão de um quarto elemento em função estruturante: a fala sintomática, que no caso de Cadu ganhou estatuto de uma tentativa de sinthoma, de amarração sinthomática [doravante ASth]2.

 

O menino crescido

Cadu, aos quase oito anos, foi morar em outro país. Sua escolha subjetiva em ser autista foi inserida em seu estilo: a seu modo, ele sempre falou. É preciso sustentar no autismo a possibilidade de constituição do sujeito do desejo e que é justamente naquilo que falha no (des)encontro com o outro que ele se apresentaria em falta: o imaginário maciço comporta mínimas distinções com o semelhante, fazendo ver uma potência de alteridade. Pensar no autismo como uma estrutura subjetiva [na lógica de neurose, psicose e perversão] não significa perder de vista seu aspecto particular de instituição do eu [moi] enganado na unidade perpetuada pelo olhar recusado do semelhante e, ao mesmo tempo, de modo para além de um simples paradoxo, também não perder de vista que a submissão ao Outro [alienação fundamental nas outras estruturas] também é recusada. Como questionamento, perante o tamanho da discussão, em uma estrutura autista estariam em jogo o eu e o Outro destituído de seu lugar primordial: de onde vem a falta constitutiva de um sujeito autista, pois não há sujeito sem falta? Seria essa condição faltosa de uma espécie de anterioridade às primeiras inscrições de um sujeito especular, anterior aos mínimos traços distintivos e fonetizáveis da língua?

A fala de Cadu continua ecolálica, insistente, sendo preciso que outro aí se situe como invocado: esse outro, na subversão desse pequeno sujeito, foi capturado por essa estrutura insistente. Ele atua e se direciona ao outro social: ao acordar, pela manhã, com o barulho na casa vizinha, não grita pelo silêncio, joga os brinquedos, os mesmos brinquedos que no começo de nosso percurso não tinham função nem imaginária e nem simbólica, brinquedos que recebia de presente da mãe passaram a ter função de ponto de basta, pois em vez de recusar o barulho a seu redor, atua sobre seu incômodo, se desloca. Fosse ele de todo solitário, não se permitiria ser invadido pelo barulho como uma língua indistinta que vem de alhures. Essa resposta direcionada e agressiva faz ver que não é apenas uma questão de "excesso" de estimulação sensorial do meio.

Na sequência, passo às elaborações sobre o caso em que a escrita tem função de letra, de fazer borda à condição de que há falta, há um micelium no percurso estrutural de um sujeito em constituição e que se apresenta como seu impasse subjetivo, cerne de sua constituição como sujeito do inconsciente.

 

O psicodiagnóstico na infância

No encontro com Cadu em um Centro de Atenção Psicossocial Infantil (Caps), por meio de um encaminhamento da rede de atenção básica do serviço público de saúde, ele estava saindo da primeiríssima infância. Em relação ao tempo lógico de sua constituição subjetiva, havia ali um impasse subjetivo que o atava a uma condição de angústia, de sofrimento psíquico cujos sintomas eram paradoxais: existia uma possibilidade de psicose diante da suposta condição de alienação ao Outro ou tratava-se de algo inscrito nos primórdios desse psiquismo, como uma espécie de não resposta à invocação direcionada pelo outro? A angústia o colocava em giros, em ritornelos sobre si e sobre nós e que ia de uma impossibilidade de se "comunicar" a uma colagem no corpo do outro, sem possibilidade de efeitos de sentidos.

A clínica mostrou que sua ascensão estrutural à possibilidade de psicose correspondia ao enfrentamento de sua condição de sujeito em vias estruturais de um autismo e teve como efeito uma criança cujo isolamento fundamental do autismo foi cindido.

Sobre isso, destaco o lugar do autismo nas ditas psicopatologias infantis tratando-se, em termos de psicanálise, de estabelecer seu lugar estrutural, supondo um sujeito do inconsciente. Sobre a função do diagnóstico, sustento que um signo como Transtorno do Espectro do Autismo3 (TEA) encobre essa condição de sujeito por meio de uma espécie de redução ao modo possível em ser autista. A lógica de um espectro, além de aumentar o número de diagnósticos de autismo com base em padrões e variantes de comportamentos e funcionalidades, é a de segregar essas crianças dentro de um campo discursivo que estabelece esse modo possível de ser autista cujo núcleo é ter um transtorno, portanto aniquila a singularidade e o estilo do sujeito, retirando a expectativa do particular do vir-a-ser-desejante: prevalecem autistas indistintos e indiscriminados.

De modo geral, para a abordagem neurobiológica o autismo é uma condição mental com uma teoria da mente e do neurodesenvolvimento para explicá-la4 como uma deficiência. Contudo, mesmo dentro da psicanálise freudolacaniana, algumas posições distintas podem ser elencadas. Há aqueles para quem o autista é um ser fora da linguagem e que não se poderia se falar em uma estrutura e, com isso, o autismo seria da ordem de uma não estrutura subjetiva, em uma lógica naturalizante do real e não haveria mesmo um sujeito do desejo, somente um organismo: tanto para a abordagem neurobiológica como para essa parte da psicanálise, um organismo sem inscrição de linguagem. Lógicas antagônicas que acabam por se tocar perante o apagamento do ser de linguagem. Ainda, dentro do campo psicanalítico, há aqueles que sustentam o autismo como uma psicose, quando investigam a possibilidade de estrutura. Todavia, minha posição é a de que pensar em corpo impõe que a linguagem afete o organismo, havendo possibilidade de uma estrutura subjetiva no autismo, de sujeito do desejo diferente da psicose, conforme outros autores dentro da psicanálise.

Ainda, nesse campo polêmico, a psicanálise precisa enfrentar e provocar tensão no que se estabelece ao dizer "deficiência" (debilidade mental) diante da determinação social e política de a pessoa com autismo ser uma pessoa com deficiência. À guisa de interrogação, por acaso uma pessoa com deficiência estaria fora da linguagem e, assim, não seria um sujeito do inconsciente, não sofreria em seus afetos e afetamentos, em seu laço com os outros e com o Outro? Uma criança autista não sofreria do mal-estar da vida?

No autismo, a clínica mostra que a estratificação psíquica se estabelece até por volta dos 3 anos de idade, tempo de fixação dos sinais de risco que se apresentaram nos primeiríssimos anos de uma criança nas vias de um autismo. Com isso, é possível dizer que não haveria um adulto autista que não tenha sido uma criança autista, em termos de eclosão de sintomas – ao contrário de uma estrutura psicótica em que uma eclosão dos sintomas pode não se manifestar na infância. Sobre isso, é interessante considerar que estaria nesse fato estrutural a lógica de uma amarração sinthomática que operaria no percurso estrutural de modo a possibilitar uma constituição subjetiva mesmo diante dessa eclosão precoce de sintomas, no autismo. Nas outras estruturas isso se justificaria pela entrada do simbólico em cena, atuando na não eclosão sintomática precoce. Em todas as situações é preciso destacar que "eclosão sintomática precoce" não concerne aos conhecidos sinais de risco para essa ou aquela condição psicopatológica, pois esses sinais se inscrevem em uma estrutura psíquica sem direção de determinação, enquanto essa eclosão apontaria para hipóteses estruturais, dentro do percurso longitudinal de constituição de uma criança.

Em relação ao psicodiagnóstico na infância como uma nomeação idealista e moralista que encobre essa condição não definida da estruturação psíquica, o que se tem é seu efeito nocivo sobre a condição subjetiva da criança: um diagnóstico, modalidade de signo generalizada de segregar um sujeito em categorias descritivas e classificatórias, encobre toda a possibilidade de enfrentamento singular ante um impasse subjetivo, seus movimentos ante a angústia constitutiva.

Na direção de um autismo, Cadu mostrou haver sempre a inscrição paradoxal que precisa ser considerada como a dialética do sujeito em constituição, seus movimentos subversivos ante qualquer ameaça de encobrimento dessa condição, uma negativa desse encobrimento. Dois aspectos se destacam: sua fala ecolálica, que se apresentou como sintoma do autismo e, em vez de tomá-la como uma disfuncionalidade, reconheci nela um estatuto estrutural, pois ele falava (como ainda fala) a seu modo; e, ainda, o movimento de alienação ao Outro como possibilidade de psicose, esta como enfrentamento da condição de isolamento radical de seu autismo – mantendo, ao mesmo tempo, a distância e a aproximação necessária do outro/Outro.

Nessas condições, é preciso esclarecer que recusar um diagnóstico fechado a uma criança pequena não é deixar de nomear seu sofrimento: o que se faz é ir nomeando os passos dessa criança em seu percurso de constituição subjetiva, sua angústia, os restos que vai deixando, os emaranhados de nós de seus impasses afetivos e de enlace com o outro. Nomeia-se, desse modo, a singularidade e não se promove seu apagamento por meio de diagnósticos homogêneos, generalistas e segregadores. Assim, o psicodiagnóstico tem como contraponto a hipótese diagnóstica que nomeia um sofrimento e inaugura, na transferência, a direção de tratamento, na medida em que fazer uma hipótese para a psicanálise é questionar-se quanto ao sujeito em constituição.

 

Da dupla causação do sujeito do inconsciente à lógica borromeana: ASth nas vias de um autismo

Enfatizar a dupla causação do sujeito do inconsciente como direcionador do tratamento psicanalítico com uma criança nas vias de autismo, como um passo além da ênfase que se tende a dar ao imaginário, é partir da aposta de que o pequeno ser está na linguagem e não de todo fora dela. Sobre isso, vale lembrar que o imaginário, antes mesmo do estabelecimento da topologia borromeana por Jacques Lacan (1985; 1974/1975; 2007) não estava reduzido a um registro de imagem ideal em que prevalece o engodo da unidade do corpo: já nesse tempo, esse imaginário é atravessado pelo real, fazendo aí furo no eu ideal (1949/1998). Sobre autismo, tende-se a situá-lo como uma paralização ante essa angústia inscrita na falácia de uma corporalidade maciça, não caminhando, portanto, para a matriz simbólica. Melhor dizendo, o simbólico não teria efeito nesse encontro entre real e imaginário do autismo: tem-se, então, um lapso nesse percurso, no ponto em que real e imaginário convergem.

Essas operações fundamentais da constituição do sujeito estabelecidas por Lacan (2008) mostram a posição do sujeito em seu percurso constitutivo. Como discutido em Souza e Paravidini (2013), a ascendência de Cadu à posição de alienação ao Outro (função inscrita na figura da avó materna) permitiu-lhe o movimento de um sujeito ante a angústia de se paralisar em uma imagem, ascender a uma posição na linguagem e manter-se na direção de uma estruturação autista. Desse modo, o que poderia ser uma possibilidade de estruturação pelas vias da psicose mostrou-se como funcionamento dentro desse processo constitutivo, e não uma estrutura: foi o modo como entrou na linguagem, rompendo com o de todo isolado e ajudando a compreender que um impasse subjetivo não é um tempo de paralisação subjetiva, mas que o sujeito em constituição enfrentará esses impasses lançando mão de tentativas de ASth. Esse Outro fez, então, função alienante, e foi justamente essa alienação que inscreveu Cadu na linguagem, de modo paradoxal.

A fala ecolálica de Cadu é imaginária: seus signos ocupam os devidos lugares na frase, mas, de início, não desencadeavam sentidos, apenas o significado concreto de um termo. Esse imaginário maciço foi tocado pelo real, fazendo nele furo – lugares nessa cadeia de fala – em que a repetição por automaton era atravessada por um vazio sonoro, em que as palavras repetidas passavam a bordejar esse furo na cadeia e, dessas bordas, se estendiam chiados vindos de alhures, vindo de lalangue [não fonetizável]. Essa borda imaginária não dava conta da angústia, do transbordamento do real. Foi justamente a escuta desse silêncio não reproduzido que tornou possível a inscrição, como resposta a essa ecolalia, de elementos da língua distintos. O que se inscreveu nele? Traços que lhe permitiram passar a outras repetições, à repetição por tyché, pois repetir é uma questão estrutural para esse menino e, por isso, não deve ser tomado como um comportamento a ser modificado por impossibilitar a comunicação trivial: Cadu não fala como nós falamos, ele brinca com a língua, como faz todo menino com a língua de brincar (Barros, 2007). Essa língua foi cerzindo a estrutura subjetiva de Cadu, fazendo nó e arremedos de nó, atando o caminho desse sujeito em seu percurso constitutivo e evitando, assim, que ele se paralisasse ante a angústia avassaladora instaurada pelo real ao tocar o imaginário.

Dessa língua, trata-se da distinção que ela inscreve pelas vias do significante, naquilo que a psicanálise tira proveito da língua de Saussure (1916/1995). Para a criança nas vias de um autismo, é um significante que deixará o traço distintivo entre um organismo e a imagem, fazendo corpo. Para Cadu, o vazio que insistia na cadeia ecolálica de sua fala foi marcado por algo não sonorizável. Dessa marca que não se escuta, no lugar do vazio se inscreveu seu nome próprio vindo da boca da analista, ao se referir ao corpo que (se) caía, sempre5: "Caiu. Caiu. Ele caiu. Cadu caiu". O lugar da indeterminação de seu enunciado foi justamente o lugar de advento da suposição de haver um sujeito do inconsciente em constituição, pois a enunciação permitiu escutar de alhures essa voz que ali, nos primeiros tempos, se enunciava pelo vazio na cadeia de fala, vazio onde deveria haver um [eu]: algo se enunciava pela negatividade. Esse [eu] enunciador se fez presente quando ele, correndo pela sala, se jogou no divã que havia ali e disse "Eu caí": primeiras identificações com esse corpo que (se) cai.

Cadu, subvertendo sua captura maciça pela língua, deu a esta estatuto de sinthoma: um quarto elemento com função de nó amarrando real, simbólico e imaginário ante os impasses do sujeito nas primeiras operações de construção de seu psiquismo. Diante disso, seu paradoxo constitutivo se ratificou no fato de que para as crianças em vias de autismo a linguagem e suas manifestações – como a fala – não teriam função simbólica, assim como a estrutura da língua não teria função constitutiva. Em contraposição, a hipótese é a de que a língua de Cadu tem função de sinthoma pelas vias estruturais de sua língua ecolálica. Vale ressaltar, contudo, que não é sinthoma, mas sempre função de sinthoma instituída pelo funcionamento distintivo da articulação significante. O destino dessa função? Somente será sabido por esse sujeito, em sua resolução estrutural.

Cadu, na amarração sinthomática de sua constituição de sujeito, vai se recusando ao Um solitário e se enodando na língua cuja insistência estrutural tem essa função de quarto elemento, função de fazer furo na queixa escolar imaginária "ele não se comunica", mas que também insiste em ser sujeito do inconsciente por meio de uma língua ecolálica constituída por signos que ecoavam e de onde se destacavam propriedades mínimas ascendendo do território de lalíngua, na cadeia em falha.

Freud (1911/2004, p. 65) formula o início do acontecimento psíquico como submetido às "exigências imperiosas oriundas de necessidades internas do organismo que perturbavam o estado de repouso psíquico", e, nessas condições, a alucinação não daria conta das exigências pulsionais, entrando em cena o princípio da realidade: instaura-se o circuito pulsional da constituição do sujeito, tempo em que o sujeito poderá recusar o outro ou foracluir a ordem simbólica advinda do Outro, situando-se, desse modo, em uma definição autista ou em uma definição psicótica, respectivamente. Cadu sempre foi o "bebê apavorado", no discurso da avó materna, esta na função daquele que tornou demanda esse apelo de pavor de um bebê sozinho em seu berço. Inscritos esses primeiros traços de significação, nos primórdios de seu psiquismo, há a possibilidade do desencontro, de desequilíbrio: lugar da falta a ser bordeada pela ecolalia desse sujeito que caminha com pavor em seu percurso constitutivo, pois depara com a angústia que vai, pela vida, insistir em paralisá-lo na linguagem: seu princípio da realidade é gerido pela angústia.

No ponto de haver falta, na cena do circuito pulsional, entram gozo e sinthoma, este como o saber-fazer (savoir-faire) do sujeito com sua falta, tentativas de saber-fazer-se em falta como recusa sua condição de [gozador] ecolálico. Esse gozo se encarna no significante: sujeito e Outro na alienação, gozo e objeto a na separação, afinal o objeto a é o elemento que, tocado pelo significante, se perde e isso que se perde só se dá a saber no vazio da estrutura de um sujeito que (se) cai e, dele caído, opera a identificação. A consequência é o fato de que tendo a linguagem função constitutiva (e a língua função estruturante) trata-se, de agora em diante, de uma linguagem faltosa e de uma estrutura que comporta o não realizado.

Lacan (1974-1975; 2007) mostra que a lógica que permite pensar os registros do real, simbólico e imaginário cifra a realidade psíquica articulados como um nó borromeano de três e, posteriormente, como um nó de quatro registros que comporta outro elemento com o qual o sujeito identificado responderia por seu gozo: o sinthoma.

A proposta é sustentar essa lógica com esse quarto elemento para o sujeito em constituição como um elemento com o qual ele, identificado, iria articulando a estrutura psíquica em seu percurso de constituição: no autismo, da ordem imaginária, na psicose, do simbólico. Dessa maneira, esse elemento teria a função de sinthoma, mas não se tratando de um sinthoma, porque este remete ao sujeito constituído. O sujeito em constituição não responde por seu gozo, ainda está se definindo estruturalmente, entretanto, tem-se aquilo que o organiza estruturalmente e que articula esses três registros até que ele se defina. Ao funcionamento desse elemento em função de sinthoma nomeei de "amarração sinthomática" (ASth) como aquilo que vai fazer – como tentativa – borda, costura na trançagem dos três outros elementos para que, ao final desse percurso lógico, tenha-se um sujeito constituído, seja qual for a estrutura definida. Com base nisso, suponho que para Cadu esse elemento seja a língua, com seu funcionamento entre significantes insistentes no campo de linguagem se aproximado de sua língua particular, ou seja, de lalíngua, distante da linguagem e lugar do gozo.

Porém, esse para além da linguagem só é possível no que do simbólico falha e é em falta. Para a criança, as consequências são claras: um sujeito não se constitui em torno de seu gozo solitário e os autistas nos mostram justamente isso, bastando escutá-los em suas tentativas dramáticas de sair de suas falas verborrosas ou de fazer furo no corpo por meio das automutilações.

Por meio do uso de cordinhas de barbantes para construir o nó borromeano, Lacan (1985) nos mostra a extensão do percurso do sujeito que vai se enodando até se estruturar, estabelecendo o espaço do devir desse sujeito, em que o correlato ao objeto a é o correlato de uma fala que goza como gozo de fala. A ASth tem a função de amarrar esses gozos no percurso de constituição do sujeito em que os nós se constituem de significantes advindos da língua como estrutura e da lalíngua do sujeito: é o nó de significantes.

Lacan (1974/1975) estabelece que na relação entre os três registros a ênfase é nos furos de cada registro e no fato de que o lugar vazio deixado pela perda do objeto primordial é central na escrita e sobrepõe-se ao não sentido da alienação. Além disso, para Lacan (1974/1975), são os buracos no meio das rodelas de cada dimensão que torna possível aos elos se atarem entre si: na relação dos furos com o não sentido e com o não todo – efeitos de real – é o modo do sujeito, em cada um desses registros, contornar esse incontornável, aquilo de que não se pode desviar e que se suporta por conta da nomeação de castração, com o basta do nome-do-pai. Esse nó e suas possibilidades de entrelaçamento constituirão versões dessa nomeação fundante ou versões da falta dessa nomeação simbólica que organiza o sujeito e seu mito, sob efeito do real impensável que não cessa de não se inscrever como escrita da angústia. Mais adiante, Lacan (2007) esclarece que o que define uma estrutura é a distinção entre os elementos real, simbólico e imaginário e a suposição de um quarto nó, o sinthoma, que vai articular esses registros distintos. Esse sinthoma impende que o nó se dissolva quando um dos elos se solta, em função de suplência.

No tempo lógico da infância essa função de suplência constitutiva de um quarto elemento é o que vai permitir ao sujeito percorrer seu caminho de estruturação: esse quarto elemento viria suprir a ausência ou falhas na castração e permitir a separação, a inscrição do corte deixando entrever a hiância causativa. Dessa forma, ganharia estatuto de sinthoma na definição estrutural, permitindo a relação em pontos de articulação improváveis diante dos impasses da criança em seu percurso de constituição psíquica de modo que na imbricação dos elementos, formando esse nó, ao final da estruturação, esse elemento seria tomado pelo sujeito como seu sinthoma e não mais como uma função de fazer sinthoma (ASth).

A função da ASth na infância é ir atando, enganchando a estrutura do sujeito e, em alguns desses elementos, isso será um impasse causando sofrimento, causando a dor subjetiva em tornar-se sujeito do inconsciente. O movimento dos três elos e seu enodamento a esse quarto elemento mantém o sujeito caminhando, pois seria suficiente lembrar que os três estão soltos entre si e o que os ata é o sinthoma. Esse devir de RSI em torno do sinthoma mantém o sujeito caminhando e não há, desse modo, uma parada, uma petrificação do sujeito nessa ou naquela possibilidade de articulação do nó, em uma dimensão plana (retas paralelas que se tocam), pois não se fecharam ainda e, assim, essa amarração corresponderia aos pontos de convergência entre RSI.

Diante disso, o impasse subjetivo não é mesmo uma parada, mas é justamente o ponto em que o sujeito em constituição está tentando enodar-se, amarrar-se em termos sinthomáticos. O aspecto de insuperável e intransponível na lógica de um impasse, que parece não ter saída, concerne ao fato de que é o sujeito se aproximando do real, por isso ele sofre, e é a partir desse impasse que a clínica psicanalítica deve operar com crianças, pois, de modo paradoxal, é justamente nesse ponto que o pequeno ser pode constatar sua possibilidade de sujeito ante esse quarto elemento e a amarração que ele permite que seria a de costurar a estrutura, de fazer as cerziduras elementares do nó, propostas por Lacan (2007, p. 63): "O nó não constitui a consistência. Apesar disso, é preciso distinguir consistência e nó. O nó ex-siste ao elemento corda, à corda – consistência. Portanto, um nó pode ser feito. Eis porque optei por cerziduras elementares".

Cerzir é unir, juntar aos moldes de uma costura sendo possível "disfarçar" um defeito: é remendar e emendar, o que faz supor que o sujeito vai sempre tropeçar e precisar dessas cerziduras elementares. Sob esse aspecto, o pequeno falasser precisa dessas cerziduras ante seus impasses subjetivos como a tentativa de (saber) saber-fazer na cadeia borromeana, e a ASth permitiria que o sujeito em constituição reparasse os enganos traumáticos em sua constituição, tornando possível a fundamental convergência entre real, simbólico e imaginário.

A clínica com a criança mostra muitas possibilidades dessas amarrações: crianças que usam os mais vários objetos empíricos como parte do corpo, o modo de manuseio de brinquedos, os variados funcionamentos de linguagem, as estereotipias corporais e comportamentais, os jogos imaginativos, as cantigas, as brincadeiras com semelhantes, o estatuto do Outro e do semelhante em suas vidas, psicopatologias variadas como a hiperatividade e o déficit de atenção, os distúrbios de conduta, as fobias, as psicossomatizações, as identificações, a relação com o corpo e com a sexualidade, sua posição nos discursos: é a criança nos dizendo por onde ir.

Contudo, é preciso discernir quando a ASth é em si extremamente traumática, porque toda criança comporta essa amarração pela vida, mas na clínica o que temos é da ordem da angústia e do sofrimento agudo. Por serem tão singulares, sempre estamos, nessa clínica, diante de paradoxos da constituição de sujeito sem a exatidão esperada de quadros clínicos ou estruturas pré-definidas e, por isso, essas amarrações devem ampliar a direção do tratamento, para além da dupla causação. Por outro lado, essa lógica estrutural é universal, é da condição do sujeito do inconsciente. Mas, a psicanálise lida com o modo como cada um sabe fazer com isso, como cada criança tenta (saber) saber-fazer com isso, pois não há sujeito também sem o suporte do sinthoma, sem isso que prevalece e que se repete.

Em Cadu, o singular paradoxal de seu autismo ("Ele não se comunica") é de sua língua cujas insistências de símbolos, estrutura, significantes e fonação constituem sua identidade de sujeito em constituição: identificação pelo que não é, por não servir à comunicação, sua nomeação pelo sinthoma. Também, esse tipo de lapso – não se comunicar – é, de fato, o ponto no entrelaçamento borromeano de Cadu em que se faz possível uma reparação. Nesse sentido, reconhece-se o valor na impossibilidade do sinthoma, não se comunicar é um emaranhado no nó. Lacan (2007, p. 95) esclarece esse lapso: "Que se dê [o curto-circuito] no lugar onde o nó rateia, onde há uma espécie de lapso do próprio nó, é o que atrai nossa atenção". Como é possível que um menininho fale tanto e não se comunique? Por certo, se em possibilidade de autismo um dos pontos de fracasso é o enodamento entre simbólico e imaginário, porque o real está sobreposto ao segundo de modo maciço se opondo à continuidade no percurso, a língua como ASth entraria aí promovendo a ascensão do sujeito para o enodamento, porém essa amarração pode promover outro emaranhado, como uma amarração aos moldes de uma psicose, prevalecendo a sobreposição do imaginário sobre o simbólico, também de modo maciço: é o paradoxo da constituição subjetiva do pequeno Cadu, pois aquilo que é essa ASth foi o que lhe permitiu sair do isolamento.

Considerando o que foi exposto, no percurso de constituição subjetiva o que faz sinthoma seria efeito da operação dos significantes nesse percurso, aquilo que a criança vai alocando em seu corpo como significante (e dele caindo) fazendo disso uma linha planeada, em extensão possível para cerzir-se sujeito do inconsciente, ante seu impasse constitutivo.

Sobre a lógica da amarração sinthomática no percurso de constituição do sujeito, alguns aspectos se seguem (Souza, 2014). Não se trata de garantir ao pequeno ser alcançar esse ou aquele ponto de articulação criando um percurso "saudável e esperado", mas de cifrar o que lhe mantém nesse percurso e que tem o tom de seu impasse.

O primeiro aspecto: na posição zero, da alternância entre tensão e apaziguamento que marca o ritmo do percurso, é preciso delimitar os modos de invocação e reposta de invocação, considerando a incidência do real: é o lugar da entrada das primeiras antecipações e significações imaginárias onde o analista deve ler a letra e o objeto de entrada com a criança – com Cadu, sua fala insistente que não servia para ele se comunicar e que gerava tensão e angústia.

O segundo aspecto: o elemento passível de ganhar estatuto de um quarto elemento constitutivo é aquele que permite uma fissura na linguagem para a inscrição do que concerne ao sujeito, o inesperado, pois o que está em jogo é a função de corte do que tem função significante, possibilitando a inscrição do infans na experiência de linguagem e permitindo-lhe fazer laço social.

O terceiro aspecto: se constitui com a ASth um trançamento em que um elemento opere como significante e, portanto, tenha estatuto pulsional na economia do sujeito, o aliene, estabelecendo sua relação com um Outro e tenha, ainda, função de substituir o elemento perdido na alienação, melhor dizendo, tenha função de objeto parcial da pulsão.

O quarto aspecto: o de ex-sistência desse elemento ao pequeno ser, o que se constata pelo drama angustiado do sujeito em apreendê-lo no simbólico, tendo como consequência que esse tentar saber-fazer da criança só pode ser inaugurado na rede de significantes que o antecede, pelas vias da repetição.

O quinto aspecto: discernir, também, os efeitos da amarração sinthomática no sujeito e para o sujeito, considerando seu sofrimento psíquico.

O sexto aspecto: como está inscrito no campo da linguagem, supomos, então, tratar do efeito [de retorno] do simbólico no real, um efeito do saber no real, como seu contorno pulsional, já que simbólico não toca o real, mas bordeja.

 

Cadu não se comunica, mas tenta com sua língua de cerzir saber-fazer laço

O estilo de Cadu é sua repetição na fala, na estrutura da língua e em sua entonação, por vezes, indistinta entre a afirmação e a interrogação, mas que se pode afirmar quando o tom de uma sílaba final sobe, mantendo um ritmo (pulsional, valendo ressaltar que entra em jogo a dimensão da voz que escapa do imaginário da fala) na cadência de fala como cifras de seu percurso: persistência em estar na linguagem e amarrar-se sujeito do desejo.

Laznik-Penot (1997) chama atenção para o fato de que seria improvável que a tomada verborrosa da linguagem dificilmente não teria efeito na estruturação das crianças autistas. Em seu trabalho rumo à palavra de três crianças autistas, ressalta que enfatizamos o fato de que essas crianças não se comunicam em detrimento da escuta dos tocos de palavras, estribilhos e cançonetas que a criança autista desfia automaticamente. Escutar tudo isso é escutar a amarração sinthomática que permite supor sujeito do inconsciente em constituição.

Em Cadu, sua fala sintomática pela ecolalia foi índice da ASth: a repetição verborrosa que não servia para ele se comunicar insistia, aos moldes da repetição pulsional, voltava sempre a esse ponto de lapso, da impossibilidade de laço pela fala. Nesse movimento automaton, a repetição ganha ares de tyché no ponto em que o outro semelhante é capturado nesse enodamento: em vez de direcionar a fala, seus ecos nos capturam nessa estrutura, rompendo o isolamento desse pequeno sujeito. Essa captura, nas tramas de uma transferência, é afeto, no sentido de que tanto criança como analista são afetados nesse percurso pulsional. Um dos modos de se ver isso, com crianças ecolálicas e autistas, é quando estas ecoam imediatamente nossas palavras sem distinção na entonação e se mantêm a nossa frente: não se desviam de nós pelo movimento do corpo, portanto, não ecoam nossas palavras ao vento, mas de modo especular.

No texto "Além do princípio do prazer", Freud (1920/2004) nos diz da importância da repetição para o psiquismo humano. Segundo ele, ao repetir, o sujeito caminha para a realização. Na consistência imaginária da fala de Cadu, fazendo furo no enunciado "Ele não se comunica", as repetições das perguntas, a repetição da entonação, a repetição de palavras, a repetição da estrutura e a repetição das palavras dos outros não faziam deslocamentos, não passavam a outra coisa. Escutar essa insistência fez compreender haver aí uma função que só foi possível constatar em seu percurso diacrônico: uma cadeia significante tentando manter esse sujeito em seu caminho. Para Cadu, a ecolalia tem essa função de cadeia em torno de sua indeterminação pronominal insistindo em fazer borda, em estancar o real pelo imaginário da fala. Cadu se constitui pela repetição e se constituir sujeito é mesmo da ordem de uma insistência (e persistência). Ver-se-á que da linguagem (simbólico) e da fala (imaginário) é preciso permitir que algo daí se depreenda para uma aproximação à lalíngua do sujeito e ao que nela há de repetição fundamental. Na linguagem de Cadu, trata-se da insistência de significantes em sua fala, de signos; e na voz, aquilo que se presentifica como inaudível ao gravador.

Diante disso, o que a criança repete se não é possível falar de recalque, de um inconsciente estruturado, na infância? Em primeiro lugar, é importante que, ao repetir, a criança mostra ter ocorrido uma primeira inscrição e, ainda, mostra que há um primeiro elemento inscrito e apagado, que ela tenta cifrar em suas insistências. No entanto, tratando-se de uma experiência de satisfação é preciso ver o grau de angústia em jogo nessa experiência. Porém, se repetir está atado ao impasse subjetivo, a angústia dificulta o movimento do sujeito causando impedimento, e se há um tentar-fazer-com, não é ainda do embaraço que antecederia um ato.

Em segundo lugar, repetir não é da ordem de elaborar, mas para o sujeito em constituição repetir tem função estruturante: a perpétua recorrência da mesma coisa é, nesse caso, a perpétua recorrência de um momento inicial, do momento lógico de nascimento do sujeito do inconsciente. Todavia, por impedir o laço idealizado do sujeito em constituição (encoberto no "ele não se comunica") a repetição cifra o impasse da criança em seu percurso constitutivo. Essa busca sem fim que a repetição instaura pelo objeto na divisão do sujeito sustenta a repetição em Cadu? A suposição é uma busca pela perda. Isso ajuda a compreender o paradoxo constitutivo em jogo em sua ASth, em que a experiência da repetição, tendo como suporte o significante, diria justamente de um fracasso da inscrição da falta ao mesmo tempo em que é o imperativo de inscrever a falta.

Isso me remete às palavras da avó materna sobre Cadu: ele era um "bebê apavorado" e que "vivia gritando". Reconstruindo o mito acerca desse momento inicial de sua constituição, esse signo "apavorado" toma função de significante representando esse sujeito: da satisfação como primeira experiência de prazer o que se tem é uma experiência de pavor, em que a alternância entre prazer/pavor se fez por meio de um eterno grito que não tinha significação, não virava apelo e, menos ainda, demanda. Esse desamparo fundamental torna o pequeno ser sofrido e não criativo. Todavia, para ser sujeito, esse enredamento leva Cadu a criar em eco, em uma língua que se perpetua pela repetição: versão sua para o ser de desejo.

Na fala repetitiva de Cadu os signos insistem nesse encontro na direção de uma dimensão de língua que escreve, pela costura, a causa como coisa perdida e que algo dele se destaque, porque repetir é tentar encontrar o faltoso, tem a ver com o que se perde e que é traço (significante apagado) instaurando o corte e que (se) caí em uma espécie de contingência constitutiva. Em cena, a pulsão que dá à repetição seu estatuto de gozo. Isso que vem do inconsciente (Reiz freudiano) tem função de sempre contornar o "lugar" do objeto perdido e o circuito pulsional permite, conforme Lacan (2008), traçar a via do real que está separado do princípio do prazer, permitindo o novo por ser dessexualizado: o que há são objetos pulsionais que fazem esse contorno ao real incontornável e voltam ao sujeito. Essa é a lógica pulsional da repetição em Cadu: a insistência de signos tende, primeiramente, a fazer furo, depois fazer borda a esse furo em um circuito que vai da tyché ao automaton, sem uma sequência estabelecida, sem pé nem cabeça, como uma montagem surrealista, na ASth constituída de nó de significantes e signos em repetição cerzindo a dureza ecolálica do real como causa. Nas palavras do menino, há que fazer cair da/na estrutura, destituir-se de sua rigidez: "Cai, cai balão, cai, cai balão, cai, cai no chão. Cai, cai a tinta, cai, cai palhaço, cai, cai, cai, cai aqui no chão."

 

Considerações finais

Cadu segue seu percurso constitutivo na articulação de significantes que emergem do inaudível ao gravador, de seus primeiros termos de soletração em que a entoação de sílabas concatenadas mostra que estas escaparam da língua do sujeito. Isso diz do pequeno sujeito em constituição frequentando o território de lalíngua, sustentando o Um não todo em sua estruturação autista e, ainda, permitindo supor um sujeito em vias de se constituir. Por isso a língua ecolálica de Cadu ganhou estatuto de ASth em sua possibilidade de fechamento estrutural como sujeito autista. Ser sujeito do inconsciente não é da ordem do "comunicar", mas da fala ao estilo de cada um.

Em sua função de amarrar os gozos no percurso de constituição do sujeito, a ASth possibilita sustentar que a direção de tratamento na clínica psicanalítica com a criança é dada pelo estilo de cada criança e que é preciso reconhecer o que ata a criança, o que dela lhe faz suplência ou lhe mantém caminhando pela vida, enfrentando seus impasses e impactos constitutivos, indo além de uma criança alienada aos discursos que circulam e ao desejo do Outro e, ainda, como o modo dela enfrentar a fantasia parental e recusar-se a ser mantida no lugar de objeto.

Finalizando, em relação ao autismo, é fundamental levar adiante de modo radical a investigação acerca da condição desejante do autista e, ainda, ampliar a investigação sobre o imaginário considerando a função da formação do [moi] na inscrição da matriz simbólica para o autismo.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Rua das Valsas, 682
38415-426 – Uberlândia – MG – Brasil.
cirlanarodrigues@gmail.com

Recebido em julho/2015.
Aceito em dezembro/2016.

 

 

NOTAS

1. Nome de ficção.
2. Antecipo que a expressão "tentativa de sinthoma" coaduna com o fato da não resolução estrutural na primeira infância, porém a aposta é a de que já há a inscrição de um elemento norteador dessa escolha subjetiva.
3. Conforme o Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais - DSM-5 (American Psychiatric Association, 2014).
4. Os três sintomas fundamentais da síndrome estabelecidos por Léo Kranner (1943), em termos funcionais, o isolamento, comunicação e comportamentos repetitivos são determinados por distúrbios no funcionamento neurológico de causa genética: assim, haveria um 'marcador genético' que determinaria, por exemplo, o mal funcionamento da comunicação entre os neurônios e, então, como consequência direta, esse problema na comunicação neuronal se estenderia para todos os aspectos em que a função mental de comunicação deveria ser colocada a trabalhar.
5. São recortes de fala de Cadu em diferentes momentos e que condensei nessa sequência para mostrar como o vazio pronominal, sua indeterminação subjetiva, foi tendo efeito de uma nomeação dele sobre si mesmo, vinda do outro que não resistia em dizer-lhe seu nome.

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