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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.21 no.3 São Paulo dez. 2016

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v21i3p657-670 

DOI: http//dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v21i3p657-670

ARTIGO

 

Ensinamentos dos esquizofrênicos para o tratamento institucional das psicoses

 

Learnings from schizophrenics on the institutional treatment of psychosis

 

Las enseñanzas de los esquizofrénicos para el tratamiento institucional de las psicosis

 

 

Marina Bialer

Psicanalista. Pós-doutoranda no Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo aborda alguns ensinamentos da clínica com esquizofrênicos para o tratamento institucional no que tange à importância da abertura à surpresa, da permeabilidade à diferença e à mudança em contraposição aos mecanismos de fobia institucional de medo do outro, de fechamento da significação e da lógica narcísica-paranoica. O texto se ancora no trabalho institucional desenvolvido por Jean Oury e suas elaborações a respeito da esquizofrenia para debater a importância da circulação discursiva na instituição.

Descritores: esquizofrenia; instituição; surpresa; Oury.


ABSTRACT

This article adresses certain learnings from the clinical work with schizophrenia concerning the institutional treatment of psychosis, in regard to the importance of being open to surprise and permeable to difference and change in opposition to mechanisms of institutional phobia, fear of the other, narrowing of significance and narcisistic/paranoid logic. The text is anchored on the institutional work developed by Jean Oury and on his elaborations regarding schizophrenia in order to debate the importance of discourse dynamics in institutions.

Index terms: schizophrenia; institution; surprise; Oury.


RESUMEN

En este texto se abordarán algunas enseñanzas de la clínica con esquizofrénicos para el tratamiento institucional de la psicosis, en lo que atañe a la importancia de la apertura a la sorpresa, de la permeabilidad a la diferencia y al cambio, en contraste con los mecanismos de fobia institucional del miedo al otro, de cierre a la significación y de la lógica narcisista paranoide. En base al trabajo institucional desarrollado por Jean Oury y en sus razonamientos en torno a la esquizofrenia, el texto discutirá la importancia de la circulación discursiva en la institución.

Palabras clave: esquizofrenia; institución; sorpresa; Oury.


 

 

Introdução: A circulação discursiva e a permeabilidade à diferença

Ancorando-se no trabalho institucional desenvolvido pelo psicanalista Jean Oury e suas elaborações a respeito da esquizofrenia, este artigo aborda alguns ensinamentos da clínica com esquizofrênicos para o tratamento institucional no que tange à importância da abertura à surpresa, da permeabilidade à diferença e à mudança em contraposição aos mecanismos de fobia institucional1 de medo do outro, de fechamento da significação e da lógica narcísica-paranoica.

A permeabilidade ao acaso e ao inesperado são o estofo e o estrato da abertura ao encontro indispensável à clínica da psicose. Ao contrário da preparação intelectual de alguém que espera o outro para aplicar a teoria na prática, a abertura à surpresa evidenciada na clínica da psicose pode esclarecer importantes aspectos dos funcionamentos institucionais nos quais prevalece a "fobia institucional" ao inesperado (Depussé & Oury, 2003, p. 37, tradução nossa) que desemboca frequentemente na posição paranoica de controle de todo o acaso, originando "estruturas coletivas paranoicas" (p. 37). Nesse sentido, Oury opõe o funcionamento institucional com "estrutura de necrópole" (Oury, 2005, p. 180, tradução nossa), repleto de monotonia e repetição, sem abertura para a novidade e para o inesperado, à instituição enriquecida pela diversidade e permeável a conflitos e modificações que abrem para a vida e favorecem "a circulação de uma subjetividade em sofrimento" (p. 183). A disponibilidade para o encontro implica uma abertura para encontrar de fato o outro, sendo enfática na clínica da psicose a importância de se deixar "surpreender pela psicose" (Oury, 1980, p. 157, tradução nossa), sem preparação prévia, sem proteção, deparando-se com o que há no desconhecido, no não saber.

As "paranoias institucionais"2 (Oury, 2005, p. 27, tradução nossa) constituem riscos inerentes a todas as instituições e geralmente se manifestam pela exclusão do diferente em decorrência do "sonho de transparência e de pureza" (p. 78), podendo desembocar em perseguições paranoicas a outros grupos e à expressão da diferença. Oury aproxima o funcionamento institucional normatizado da lógica neurótica à tendência paranoica e ao funcionamento regido pelas contaminações e identificações imaginárias, contrapondo-os a uma instituição pensada a partir dos ensinamentos da clínica da esquizofrenia. Desse modo, ao invés da predominância da estruturação pela alienação imaginária, o impacto da esquizofrenia na prática psicoterápica institucional pode viabilizar uma saída para a tendência a segregações ancoradas na lógica predominantemente narcísica imaginária.

Para essa finalidade, Oury ressalta a importância de um trabalho de desalienação3 da equipe (remetida a uma alienação social e a uma alienação imaginária), salientando que esta é uma precondição para o trabalho cotidiano na clínica permeável ao que os psicóticos têm a nos ensinar. Trata-se de estar aberto a aprender com a clínica da psicose e, a partir desse aprendizado, elaborar uma teorização que favoreça a circulação discursiva e a constituição da instituição enquanto um lugar de vida, evitando um fechamento discursivo deletério e a impermeabilidade à mudança.

No campo imaginário, prevalece uma tendência à resistência institucional e a um movimento de aglomeração em torno de ideais que fazem "barragem à singularidade" (Oury, 1980, p. 83, tradução nossa) manifestando-se na modalidade de grupos de pessoas presas em uma homeostase, resistindo arduamente a mudar. Uma das soluções propostas por Oury é a teorização da práxis como uma forma de ancorar a prática no campo do desejo de cada profissional e de sua singularidade, de modo a enfrentar as resistências e manter a vitalidade e a mutabilidade indispensáveis à vida institucional e ao tratamento da psicose. Sem esta teorização, Oury afirma que, muitas vezes, o psicótico tem que se debater com os "muros ideológicos" (p. 95) da instituição que se congela em ideais e em discursos, impermeável ao que o psicótico traz de mutativo4, sendo incapaz de acolhê-lo.

Oury opõe a padronização tecnocrática homogeneizadora à heterogeneidade inerente à psicose. Nesse contexto, surge uma valorização da mixagem dos grupos institucionais, que resulta em uma coletividade heterogênea para o tratamento da psicose e se contrapõe à "paranoia coletiva" (Oury, 2005, p. 100, tradução nossa) e à constituição de pequenos feudos dentro da instituição. A invenção e o sustento do heterogêneo no bojo da instituição são priorizados justamente como pilares da abertura ao encontro e à circulação do psicótico.

Em contrapartida à rigidez oriunda da excessiva hierarquização e homogeneização, Oury aponta a importância do vazio, daquilo que se origina da "precariedade" (Sivadon & Oury, 2014, p. 181, tradução nossa) para que surjam espaços de liberdade. Enquanto "a organização hierárquica tecnocrática é obsessiva, paranoica, e atualmente é fóbica" (p. 182), buscando tudo controlar, evitar o contato com o diferente e temendo o encontro com esse outro, no tratamento do esquizofrênico é essencial que não haja uma plenitude em demasia, pois o esquizofrênico é aquele que evidencia a importância das "fissuras" (p. 182) para que haja circulação, abertura e movimento.

 

Acolhimento e ambiência como alicerces para o holding institucional

Para que ocorra a circulação discursiva e a permeabilidade às diferenças, um aspecto contextual de destaque é a "ambiência" institucional (Oury, 2005, p. 151, tradução nossa). Na teorização e na clínica do psicanalista Jean Oury, o cuidado com a ambiência é essencial para o esquizofrênico devido à sua extrema sensibilidade ao subjacente. Por serem "hipervigilantes" (Faugeras & Oury, 2012, p. 133, tradução nossa), com antenas muito sensíveis e abrangentes, é preciso que haja sempre um cuidado, que sugiro remetermos à função de um holding psíquico, com algo da ordem do "clima" institucional no manejo do esquizofrênico. Nesse mesmo sentido, Oury enfatiza que diversas invenções institucionais têm a função de criar sistemas de defesa equivalentes a uma paraexcitação capaz de permitir proteção para que o psicótico construa suas próprias soluções subjetivas e invente suas estratégias de compensação.

Na vivência de sua clínica, Oury constatou que as antenas esquizofrênicas possibilitam o acesso direto ao campo do desejo dos outros, inclusive dos membros da equipe, a não ser que estas antenas tenham sido queimadas e destruídas pelos outros, de tal maneira que os esquizofrênicos podem não expressar essa compreensão dos outros, ainda que apreendam o recalcado da equipe, o não-dito. Oury (Sivadon & Oury) postula que no esquizofrênico coexiste "uma sensibilidade extraordinária" (p. 179, tradução nossa) e uma ausência de defesas que o tornam extremamente "poroso" (p. 179) ao que ocorre em sua volta. São precisamente essas antenas gigantes permeáveis ao outro as responsáveis pela sensibilidade à ambiência da instituição; e a escuta do que pacientes esquizofrênicos têm a dizer pode clarificar modalidades muitas vezes encobertas e camufladas do funcionamento institucional.

Essa ambiência é apreendida como um quê subjacente, sentido como um tipo de vitalidade atribuído por Oury à função e aos efeitos do semblante e também ao subjacente que permite a existência de lugares de tranquilidade onde se pode tecer a existência em um espaço de acolhimento e de respeito ao outro. O autor enfatiza que este contexto, embora dificilmente formulável em palavras, pode estar na origem de diversos sintomas e modos reacionais, principalmente aqueles que podem ocorrer com os membros da equipe, como sintomas de depressão. Nesse sentido, é preciso mudar este estrato subjacente para que seja possível a produção de novos significantes e a viabilização da circulação do psicótico que estava estagnado, fora dos trilhos simbólicos. O manejo de uma "textura institucional" (Faugeras & Oury, 2012, p. 58, tradução nossa) à qual os psicóticos, em particular os esquizofrênicos, são extremamente sensíveis, é vital para a reaquisição da liberdade de circulação discursiva e para o estabelecimento dos laços sociais.

Oury formula que o acolhimento institucional é o alicerce preliminar para todo tratamento das psicoses, sendo mais fundamental ainda por viabilizar as condições nas quais será possível o dizer do esquizofrênico. Vale destacarmos a ética dessa aposta na clínica com as psicoses: "Não se deve nunca renunciar à transferência quando se fala de um – ou a um – psicótico. Há uns tacos de transferência, disseminados, uma transferência dissociada que não se deve ignorar" (Oury, 1980, p. 141, tradução nossa). Balizando-se pelas condições que possibilitam a edificação de um lugar de existência para esse dizer, cada instituição constituída por estilos heterogêneos, ancorados no desejo singular que sustenta a prática de cada um, pode manter o potencial de abertura à surpresa e à novidade, pois o conjunto dos estilos singulares da equipe institucional constitui um "bruit de fond" (Oury, 1980, p. 26) essencial para o tratamento dos psicóticos e dos demais pacientes, porque é em torno desta tela de fundo que é tecida a ambiência institucional.

Enquanto a lógica neurótica privilegia a significação, há uma cegueira a esta dimensão subjacente constitutiva das instituições, a qual pode ser elucidada pelos esquizofrênicos. Oury enfatiza a importância de cada membro da equipe se dar conta do seu estilo singular e também de estar atento à coexistência de estilos e de como estes impactam a ambiência institucional, os laços que se estabelecem na instituição, clarificados pelo efeito da ambiência nos psicóticos, principalmente dos ecos nos esquizofrênicos dessa dimensão institucional. Por isso, é valorizada a heterogeneidade da equipe, potencializadora de encontros, surpresas e trocas indispensáveis à circulação dos psicóticos, assim como deve haver a liberdade de circulação dos membros de equipe, que precisam poder se expressar livremente, evitando serem fixados por hierarquias, seja por demasiadas predeterminações administrativas, seja por identificações imaginárias.

Outra importante faceta do holding institucional se localiza no "potencial curativo" dos pares (Sivadon & Oury, 2014, p. 180, tradução nossa), isto é, na capacidade tanto dos designados terapeutas institucionais quanto de outros pacientes ou pessoas da instituição, nos mais variados lugares, desempenharem uma função terapêutica para os outros. Essa modalidade de tratamento horizontal é destacada por Jean Oury, ao enfatizar a não rigidez verticalizada das modalidades do funcionamento institucional. No entanto, para que surja esse potencial terapêutico, é preciso existir o vazio no bojo da instituição.

"A homogeneidade produz o fechamento, porque cada um tem um status, que é homogêneo, que organiza" (p. 181). Diferentemente deste tudo-prever, tudo-controlar e tudo-saber, Oury destaca o lugar do vazio para uma vida institucional mais rica e móvel, principalmente na clínica com esquizofrênicos, pois "é o vazio que se apresenta/se presentifica .... É a precariedade, contra a 'totalização'" (p. 182, tradução nossa).

 

Do tédio insípido à construção do acolhimento do nada na vida institucional

O cotidiano de Jean Oury com os esquizofrênicos também nos ensina sobre a importância da espera e do acolhimento do nada, que se desdobra tanto em termos de uma postura de acolhimento clínico das manifestações desse nada, quanto no desdobramento do surgimento do vazio na instituição e de seus efeitos para a circulação discursiva.

Ancorado em sua prática com a psicose, Oury constatou que o esquizofrênico possui antenas questionadoras da existência em face da destruição do campo do desejo e formulou quanto a clínica da esquizofrenia aporta uma dimensão de "tédio insípido" (Depussé & Oury, 2003, p. 30, tradução nossa) em face do qual a postura mais terapêutica é um compartilhamento por meio de uma posição clínica que não seja contagiada pela impaciência, mas que permita a lenta tecelagem de um tempo/espaço de compartilhamento.

Há uma vivência existencial extremamente densa e pesada na esquizofrenia. Com base em sua experiência clínica, Oury relata que, ainda que suas intervenções/compartilhamentos com vários esquizofrênicos durassem apenas alguns minutos (em certos casos, alguns segundos), feitas todos os dias, durante décadas, estas intervenções/compartilhamentos exerciam uma indispensável função de holding psíquico. A seguir, o autor se refere ao questionamento colocado por alguns clínicos em relação à função daqueles minutos que geram um compartilhamento tão breve e tão denso, tão difícil de ser tolerado, reafirmando a importância do nada e do acolhimento do vazio em contraponto à tendência reativa de tentar fazer qualquer coisa para tamponar sua própria angústia diante daquele tédio.

Vale citarmos um caso clínico, descrito por Oury (1980), de um esquizofrênico com o qual ele se encontrou todos os dias, por cinco a dez minutos, durante cinco anos, e da importância existencial que tinha para o paciente aquele tempo-espaço compartilhado. O psicanalista constatou que, caso parasse durante um mês de ter aqueles minutos de compartilhamento, o paciente piorava significativamente. Também não era possível que outra pessoa ocupasse seu lugar, tinha que ser ele na relação de transferência que sustentasse aquele compartilhamento de "um tédio um pouco insípido" (Oury, 1980, p. 183, tradução nossa). Em oposição a esse denso tédio compartilhado, na maior parte do tempo esse esquizofrênico permanecia em lugar nenhum, em tempo algum.

Diante dessa vivência extremamente pesada do compartilhamento de um tédio que toca o seu drama existencial, surge a necessidade ética de respeito ao outro e da "paciência no tédio" (Oury, 1980, p. 183, tradução nossa), sem procurar compreender algo. Oury enfatiza a importância de não se ter pressa e de não buscar provas de que o compartilhamento do tédio esteja funcionando para algo. Na clínica da esquizofrenia, segundo ele, existe a necessidade de uma construção lenta que não deve ser apressada pela angústia do clínico. A tendência a atribuir logo uma compreensão ao que o outro diz, ou a de fornecer uma visão global unificadora é aproximada à tendência neurótica e à defesa de ordem narcísica, ao contrário da suspensão da existência que ocorre na vertente esquizofrênica.

No tempo de espera sem finalidade pragmática, é preciso construir pequenos "pontos de esperar" (Oury, 1980, p. 184, tradução nossa) sem se deixar cair na impaciência. Não se trata de esperar algo, mas de adquirir a arte da paciência, do esperar, verbo intransitivo, ao invés de estar em nenhum tempo. Oury cria a metáfora do esquizofrênico como uma carta ou uma encomenda que está na agência do correio sem nunca ser entregue ou requisitada, o que exige a criação ininterrupta de um ponto de espera, de uma linha de demarcação que viabilize a construção de um ponto de entrada no espaço-tempo.

Oury enfatiza que os psicóticos são "guardiões de um saber" próximo do saber dos "arqueólogos sagrados" (1980, p. 74, tradução nossa) sobre a existência humana. Disto decorre sua própria disponibilidade e prazer inesgotável no contato com os psicóticos, indo cotidianamente ao encontro do "peso insistente e repetitivo do Real" (Oury, 1980, p. 75, tradução nossa), como uma posição existencial que reverbera tanto em sua clínica, quanto em todos os aspectos da sua vida pessoal. É a partir desse modo de se relacionar com o Real que Oury aproxima a função transferencial daquela de um escriba que viabilize um primeiro nível de escrita, anterior a qualquer interpretação possível, mas alicerçado na presença do clínico, tocando seu estofo – sua presença desejante e seu corpo marcado pelo objeto de seu desejo.

Não se trata, portanto, de se ter uma equipe uniformizada em padrões únicos, mas justamente o contrário, para evitar identificações imaginárias na vertente paranoica ou histérica, ao se abrir para uma multiplicidade de dialetos pessoais, viabilizando que cada psicótico possa escolher diferentes pessoas com quem estabelecer transferências diversas, ancorando-se no desejo e nas suas paixões singulares, destacando que "é a paixão que se transmite, não é somente o saber" (Sivadon & Oury, 2014, p. 184, tradução nossa).

Além disso, não se trata de um desejo etéreo, destacado da historicidade e do contexto social. Ao contrário. Oury (2007) justamente realça a importância da vivência histórico social na maneira de clinicar, citando como exemplos os efeitos de se combater em uma guerra, de se viver em um campo de concentração, de participar de movimentos populares, assim como vivências menos extremas, como a participação em associações culturais e em albergues. Experiências singulares que marcam cada pessoa, e é o recurso a essas "experiências 'íntimas' que dá um certo estilo de acolhimento" (Oury, 2007, p. 111, tradução nossa). Por isso, o autor reitera a importância da heterogeneidade em contraposição à formatação que elimina as diferenças ao se pautar por lógicas totalizantes centradas na dominação do outro e no impedimento do surgimento do singular e inovador. "Um estabelecimento, com seus sistemas hierárquicos rígidos, seus 'fechamentos', suas justificativas racionalizantes, apresenta-se frequentemente como uma somatória de defesas organizadas coletivamente de um modo obsessivo: nada mudar, tudo prever" (Oury, 2007, p. 120, tradução nossa). Alega, então, a partir dos ensinamentos dos psicóticos acerca do heterogêneo, que só pode advir de uma "lógica da indeterminação parcial" (Oury, 2007, p. 120, tradução nossa) singularizada.

 

A ambiência institucional elucidada a partir da relação do esquizofrênico com a linguagem

A relação do esquizofrênico com a linguagem é particularmente elucidativa da relevância dos modos de estruturação não ancorados na significação, o que remete ao surgimento de aberturas linguísticas e de permeabilidade ao inesperado. Para isso, Oury salienta a necessidade do estabelecimento de condições nas quais o dizer do esquizofrênico é possível, o que não implica que ele tenha algo a dizer ou que diga algo, uma vez que o esquizofrênico pode se situar em um "curto-circuito entre as linhas" (Depussé & Oury, 2003, p. 62, tradução nossa), em que haveria o sentido da linguagem, pois conforme o psicanalista sublinha, o esquizofrênico não confunde sentido e significação, sendo que para que haja sentido, é preciso que haja um movimento, a passagem de um lugar ao outro, a passagem de um discurso para o outro.

Se por um lado o "esquizofrênico sabe melhor do qualquer outro, o valor das palavras" (Oury 1980, p. 24, tradução nossa), por outro ele permanece estancado, mudo diante da "questão impossível do referente" (p. 24) diante do questionamento da "trama da existência" (p. 23). Nesse sentido, Oury se refere às lesões da tecelagem do dizer na psicose que podem ser compensadas pela construção de espaços de dizer. Diante da dimensão de suspensão de existência, é preciso se criar condições preliminares para uma tecelagem possível, o que em se tratando do esquizofrênico "pode ser um gesto, um sorriso que pode ter consequências fantásticas" (Sivadon & Oury, 2014, p. 179, tradução nossa). Nisto reside a importância do clínico se situar na mesma "paisagem" (Oury, 1980, p. 87, tradução nossa) que o psicótico, encontrando um modo de estar junto, um parceiro que o auxilia a sustentar esse trabalho subjetivo de reconstrução ainda muito frágil.

Em oposição à "tirania da significação" (Oury, 1980, p. 24, tradução nossa) premente na lógica impregnada pelo imaginário, Oury enfatiza a riqueza de uma diacronização que toca ao sens na psicose no lugar do "sofrimento do dizer" (p. 24). Vale notar que Oury não enfoca isso como uma manifestação deficitária, mas como a possibilidade da emergência original e autêntica de algo que escapa da prisão da significação, porque, no caso do esquizofrênico, não somente há uma ruptura da significação, do fechamento da cadeia significante, mas um colapso estrutural que toca a possibilidade de usar as palavras.

Sendo assim, em relação ao cotidiano institucional, o autor ressalta a importância de uma "lógico-poética" (Oury, 2005, p. 166, tradução nossa) que permite transpor "o abismo entre o dizer e o dito" (Faugeras & Oury, 2012, p. 156, tradução nossa), algo que ressoa no intervalo entre as palavras – e nessa ressonância traz algo da ordem do sentido, distinto de significação. Pela lógica poética do que ressoa entre as linhas, podem surgir "transplantes de passagens" (p. 158) que permitem a criação de "ilhas de existência" (p. 158), mesmo sem haver o fechamento pela significação. Esse lugar poético, que escapa à lógica representativa, é o lugar onde algo poderá emergir do precário, onde algo mutativo poderá se inscrever na relação discursiva.

É interessante frisar que a ambiência é remetida por Oury (1980) ao discurso, porque, segundo ele, se o discurso se fixa na instituição – se fixa em qualquer um dos quatro discursos (universitário, analítico, do mestre ou da histérica) – há uma "degenerescência da ambiência" (p. 332), que se opõe à abertura discursiva pelo viés do não fechamento pela significação e à dialética da passagem de um estilo a outro, o que é favorecido pelo deslocamento em torno do que causa o desejo singular de cada membro da equipe, portanto, ao singular heterogêneo.

 

A importância da arte da conversa na ambiência institucional

Outro aspecto terapêutico determinante na clínica da esquizofrenia diz respeito à maneira singular de estar na presença do outro. Há um manejo clínico do esquizofrênico, que deve ser alicerçado na "arte de conversação/conversa" (Oury, 1980, p. 58, tradução nossa) singular para cada pessoa e diferencial em relação às outras estruturas clínicas. Para isso, Oury enfatiza a importância de o clínico ter se deparado com uma variedade grande de pessoas, as mais diversas possíveis, para estar mais preparado para estabelecer modos singulares de conversa com os outros. A aquisição dessa arte é decorrente de abrir mão de "resistências e atitudes contra fóbicas" (Oury, 1980, p. 59, tradução nossa), para se tornar receptivo ao outro e ao encontro com a diferença. Além disso, o desenvolvimento dessa arte de conversa com o psicótico não é sem consequências para a vida para além da instituição, implicando ter interrogada sua relação com a loucura e exigindo o despertar da "capacidade inventiva" (Oury, 1980, p. 172, tradução nossa) singular de cada sujeito em sua relação com o Real.

Vale notar que a arte de conversação implica primordialmente a diagnóstica estrutural, uma vez que Oury enfatiza que o encontro com o psicótico deve ser tecido dessa dimensão diagnóstica de modo a viabilizar encontros, de poder se deparar com a diferença do outro. No caso de vários psicóticos, o manejo da arte da conversa implica se deparar com a perda do sentido das palavras e a impossibilidade de atribuição de significação na cadeia significante. Na tecelagem cotidiana que viabilize um "transplante de transferência" (Oury, 2005, p. 89, tradução nossa) que delimita um espaço do dizer, podia-se viabilizar um espaço sem nada dizer ou intervindo de modo a assegurar que esse espaço possa emergir e se sustentar, pois esse "transplante de um pequeno teco de transferência" (p. 208) precisa ocorrer em um número tal de pequenos transplantes de modo que seja possível a construção do lugar do dizer.

Vale destacarmos que Oury enfatiza também o risco de uma posição interpretativa na clínica da psicose, que pode ter efeitos desastrosos, e propõe a cura da "interpretatite crônica" (Faugeras & Oury, 2012, p. 131, tradução nossa) como condição preliminar a todo psi responsável pelo tratamento de psicóticos. Principalmente no caso da esquizofrenia, realça a importância do lugar do vazio e a necessidade de o clínico abrir mão da onipotência do lugar do mestre, do lugar do saber para se dedicar ao cotidiano tecelão, artesão do esquizofrênico. Para esse manejo, é preciso haver uma "serenidade", a capacidade do "silêncio", da "paciência" (Oury, 1980, p. 74, tradução nossa) e do respeito pelo saber do psicótico. É interessante salientar o fato de que Oury desdobra a importância de um outro não todo-saber na relação com o psicótico, enfatizando o lugar de uma falta, de um não saber, de modo a se abrir para o que ele considera uma função indispensável para o tratamento da psicose: o acolhimento. A possibilidade de acolher o outro se ancora no respeito ao outro, na ética da diversidade, o que desemboca em uma "gentileza" no sentido de uma "atenção" (Oury, 2005, p. 15, tradução nossa) disponível para estar ao lado do outro que está diante do vazio. Além disto, Oury aponta a importância da surpresa, do poder se deixar surpreender pelo outro, de estar aberto ao acaso e ao encontro, como uma condição preliminar a todo tratamento do psicótico.

 

Considerações finais

Ancorando-se na clínica da esquizofrenia, a partir das formulações teórico-clínicas do psicanalista Jean Oury, este artigo enfocou, como empecilho à movimentação do psicótico e à construção de suas soluções subjetivas de (auto)tratamento, o fechamento imaginário – fruto da paranoia institucional –, de modo que a abertura institucional e a permeabilidade à diferença sejam formulados enquanto essenciais ao tratamento da psicose e à possibilidade dos membros da instituição poderem circular discursivamente. Cabe ressaltar que Oury sempre enfatizou sua paixão pelos esquizofrênicos enquanto uma modalidade de existência que pode enriquecer toda a humanidade e oferecer novas balizas para se pensar a sociedade como um todo e, particularmente, o trabalho institucional no campo das psicoses. Em contraponto ao fechamento identitário imaginário e ao feudalismo narcísico, a clínica da esquizofrenia nos ensina o holding institucional e sobre a prevalência de uma ambiência preliminar e subjacente ao tratamento das psicoses.

Podemos reiterar a afirmação de Oury: "Glória/Viva a heterogeneidade! No entanto, é justamente o contrário que ocorre atualmente" (Sivadon & Oury, 2014, p. 183, tradução nossa): no medo da diferença, na tentativa de tudo controlar e prever, na paranoização feudal, na busca de formatação totalizante, que impedem a circulação discursiva, a abertura ao inesperado e a inovação. Uma de suas anedotas espelha com nitidez seu alerta a partir de ensinamentos fornecidos pela clínica da esquizofrenia:

Aqui conto uma pequena anedota, e depois eu concluo: me haviam considerado, há alguns anos, um "dinossauro melancólico" – é um elogio – e bom, nesse lugar, dois administradores vieram acompanhar as jornadas científicas ... Quando comecei a falar assim, improvisando, sentia que eles pensavam: "Ah, o que é que aquele louco tá falando. Não tem nenhum interesse". No fim, eu abri um livro de Giorgio Agamben, não o Que reste-t-il d'Auschwitz, mas Homo sacer, e eu disse: "Eu vou ler para vocês textos de legislação". Eu li alguns textos sobre leis da organização da saúde. Então, aqueles caras se sentiram melhor: "Ah, enfim! Ainda bem, agora está claro". Eu disse: "Vocês sabem, o que eu acabei de ler data de 1938 e é assinado por Hitler". (Oury, 2004, p. 29, tradução nossa)

Em tempos contemporâneos nos quais há uma ênfase cega na produtividade e na busca do controle total dos fatores de eficiência na terapêutica, o psicanalista Oury (2004) realça a importância da ambiência, da conversa a partir do diagnóstico estrutural, do tempo de espera e do nada, enfatizando a impossibilidade de esses fatores serem traduzidos em parâmetros padronizados quantitativamente e a necessidade de se criticar políticas totalizantes que desconsiderem um saber oriundo da clínica, com especial destaque para os ensinamentos dos esquizofrênicos.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Rua João Ramalho, 257/24
05006-001 – São Paulo – SP – Brasil.
mbialer@hotmail.com

Recebido em fevereiro/2016.
Aceito em dezembro/2016.

 

 

NOTAS

1. O termo fobia institucional é utilizado pelo psicanalista Jean Oury para retratar comportamentos de medo do outro, de evitação do encontro de fato com a alteridade e a diferença.
2. Em entrevista dada à revista Percurso, Oury afirma que "Não é possível tratar, analisar o hospital se não tempos posições como essa, por exemplo, no que diz respeito à hierarquia e à estrutura do estabelecimento, se continuarmos a ser um escritório burocratizado. O burocratismo é anterior a Napoleão, é o que podemos chamar de doença do hospital e está pior do que nunca! É o que Tosquelles já sublinhava como o enclausuramento hierárquico. Cada um fechado dentro de seu consultório e se acusando mutuamente de idiota, é uma situação que gera conflitos... Foi o que, mais tarde, chamei de paranoia institucional".
3. Ao contrário da normatização e da alienação imaginária e social, o esquizofrênico desmonta a estrutura social e a base da linguagem na articulação do sujeito com o outro.
4. Por exemplo, Oury enfatiza que em relação à questão do valor de troca e valor de uso, o esquizofrênico demonstra muitas vezes uma anarquia que obriga o outro a se deparar com um questionamento político-social decorrente do "modo de existência negativo do esquizofrênico" (1980, p. 110, tradução nossa) cujos objetos não entram na circulação social.

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