SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.22 issue1Parental expectations in contemporaneous temporalityThe clinical demand of the child: a possible psychoanalysis author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.22 no.1 São Paulo Apr. 2017

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v22i1p45-63 

ARTIGO

 

A clínica infantil e o processo criativo: considerações estéticas sobre a brincadeira do fort-da

 

The children's clinic and the creative process: aesthetic considerations about the fort-da game

 

La clínica infantil y el proceso creativo: consideraciones estéticas a partir del juego fort-da

 

 

Isabela Vieira de Almeida CardosoI; Angela Maria Resende VorcaroII

IMestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil
IIProfessora Adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem a intenção de elaborar a práxis psicanalítica com crianças submetidas a experiências de forte impressão devido à condição precária de simbolização, a partir de uma interlocução entre psicanálise e arte. Para compreender melhor a importância desse diálogo, foi utilizado o filme O menino e o mundo, de forma a relacionar tal objeto de arte com o conceito central do trabalho, a saber, a repetição e sua relação com a constituição psíquica atravessada pela cultura. Abordaremos possibilidades de atualização e tratamento da cena traumática pelo sujeito através da performance.

Descritores: psicanálise; tratamento de crianças; repetição; performance.


ABSTRACT

Departing from a dialogue between psychoanalysis and art, this article intends to develop psychoanalytic praxis with children exposed to traumatic situations or highly intense experiences due to a precarious condition of symbolization. The film O menino e o mundo was used in order to better understand the importance of this dialogue and so that we could relate the art object to the central concept of the work, that is, repetition and its relation to psychic constitution mediated by culture. We will discuss possibilities of re-enactment and treatment of the traumatic scene by the subject through art performance.

Index terms: psychoanalysis; treatment of children; repetition; performance.


RESUMEN

En este texto se propone desarrollar la práctica psicoanalítica con niños sometidos a situaciones traumáticas o experiencias fuertes a causa de condiciones precarias de simbolización, a partir de un diálogo entre el psicoanálisis y el arte. Para entender mejor la importancia de este diálogo se utilizó la película O menino e o mundo, con el reto de relacionar este objeto de arte al concepto central de este trabajo, es decir, la repetición y su relación con la constitución psíquica atravesada por la cultura. Se discuten las posibilidades de mejora y la gestión de la escena traumática por el sujeto mediante el arte.

Palabras clave: psicoanálisis; tratamiento de los niños; repetición; performance.


 

 

Introdução

É possível concluir a partir da leitura dos textos freudianos, bem como da prática clínica, que toda análise retorna ao infantil. A infância é um período fundamental, não só porque oferece os alicerces da constituição psíquica, mas porque é o berço das experiências de forte impressão, uma vez que o aparelho psíquico se esforça por trabalhar nos moldes de um psiquismo precário de simbolização pela linguagem. Freud e os analistas infantis sucessores a ele há muito nos atentaram para isso. Todavia, como todo saber psicanalítico, a releitura teórica se faz necessária frente a cada época, uma vez que a subjetividade se dá por intermédio da cultura.

Para compreender melhor a posição do infantil ante a atualidade, recorremos ao filme O menino e o mundo (2013), de Alê Abreu. Na abertura do filme somos apresentados a elementos fundamentais da narrativa e passíveis de interpretação. Cores e imagens vão se intercalando de forma a nascerem umas das outras, convidando-nos a mergulhar em várias dimensões da tela do cinema. Esses desenhos fazem menção a elementos de conexão da narrativa, como a pedra pigmentada sob a qual o menino guarda uma latinha, a touca presenteada pela mãe, o poncho colorido e o girar do cata-vento. Tais objetos possuem a mesma acentuação de cores, o que lhes atribui um traço em comum. Ademais, eles representam os laços de afetos mais íntimos e particulares da história do personagem. Quando uma cena é conectada à outra, apoiada na transmutação desses objetos, somos convidados a viajar entre passado e presente, costurando as experiências do menino. Essa dinâmica de sobreposição de cenas e imagens é acompanhada de uma música encorpada de batuques que cria uma atmosfera estimulante e vibrante, como sons de comunidades primitivas ou tribais. Esse som tão marcante no filme permite a conexão das imagens a certo caráter de origem, de primitivismo, por meio da possibilidade de circunscrever a ideia do que causa um começo, a partir da percepção sonora. Nosso olhar sobre a película associa a descrição de seus elementos primordiais ao conceito de repetição, processo utilizado pelo aparelho psíquico para elaborar experiências originárias – e, por isso, traumáticas – e responsáveis pela diferenciação subjetiva. Justamente por essas experiências serem datadas de um período de precariedade simbólica, elas precisam ser repetidas para serem atualizadas e parcialmente elaboradas. A passagem de uma cena à outra ao longo da narrativa, através de um objeto que representa o traço comum e originário da subjetividade, porta a marca fundamental da constituição psíquica que alinha, do ponto de vista psicanalítico, uma série de episódios da vida do sujeito. Assim, é possível elaborar parte do material recalcado da experiência traumática ou de forte impressão.

Na película, tal elaboração parece ser decorrente da capacidade de criação que se inicia a partir da atividade imaginativa da criança, da mesma maneira que Freud (1920/2006) nos propõe ao analisar a brincadeira do fort-da, quando a criança joga/brinca para dar tratamento à angústia de separação do objeto primordial. Ainda em sua obra, localizamos a atividade do escritor criativo próxima a esse recurso fantasioso do universo infantil, mas já reconhecida na vida adulta como os qualitativos do artista. Propomos, então, não só alinhavar as relações da fantasia infantil com as artes literárias, mas com as artes em geral.

De antemão, Freud (1920/2006) anuncia que a experiência do fort-da possui um viés estético, por remeter ao efeito catártico das tragédias gregas. Esse efeito é oriundo das emoções de terror e compaixão do espectador perante a situação do herói trágico, conjugando num só momento prazer e desprazer. Muito próxima disso é a experiência da criança diante da ausência e presença do objeto primordial. Segundo Freud (1920/2006), "as crianças repetem no jogo tudo quanto lhes fez grande impressão na vida; desse modo, ab-reagem à intensidade da impressão e se assenhoram da situação" (p. 13), sendo que "o caráter desprazeiroso de uma vivência nem sempre a faz inutilizável para o jogo. . . pois existem suficientes meios e vias para converter em objeto de recordação e elaboração anímica o que em si mesmo é desprazeiroso" (p. 17). Assim, o psicanalista esclarece que tanto o fort-da quanto as tragédias incidem sobre a economia do aparelho psíquico.

Mesmo após a fase característica do fort-da, a criança sustenta o recurso criativo como forma de elaboração de suas vivências. Trata-se de tomar a "atividade enigmática" da criança, em que se opera "a conversão da vivência em jogo", como ciframento do traço impresso na experiência pela atividade do jogo, em que a criança o lê, repetindo, em outro registro, a experiência transformada. Tal processo pode ocorrer pelas mais variadas formas criativas inventadas pela criança.

Para compreender essa operação, elegemos a performance como objeto artístico privilegiado no diálogo das artes com a análise infantil, devido à precariedade de simbolização pela linguagem nas experiências de forte impressão, características da infância. A maneira de ser e de elaborar da criança é muito próxima da experiência do artista na realização de sua performance, uma vez que ambos atualizam a experiência de trauma, marcada pelos enigmas do Real, na repetição de uma encenação de si mesmo. Ao "interpretar" a si mesma, a criança abre vias para que as experiências idiossincráticas mobilizem recursos para elaborá-las, na medida em que franqueia seu deslocamento. Nossa aposta é de que a cena recriada na brincadeira performática da criança possa oferecer meios de atualização da experiência perturbadora como modo de tratamento para si.

Além da afinidade da performance com o infantil, destacamos também sua função denunciadora do sintoma de uma época. Um dos efeitos do declínio das instituições e de todo arsenal ético e moral que elas poderiam referenciar é a precariedade simbólica incidindo nos modos de subjetivação. O performer se serve do real do corpo, do concreto, para expressar sua subjetividade, como se os recursos linguísticos também os faltasse, ou simplesmente não alcançasse certas experiências.

Assim, este artigo serve-se do filme O menino e o mundo para elucidar o caráter criativo do aparelho psíquico e seu esforço contínuo em elaborar as experiências de forte impressão diante da precariedade psíquica do infans. A proposta de tratamento aqui realçada passa pelo recurso à atividade de criação, como nos fora proposto por Freud e seus sucessores. Todavia, ela almeja ir além dos moldes de interpretação linguísticos por incluir em sua prática terapêutica aquilo que é impossível de dizer, mas que encontra vias de expressão através de uma atuação ou "mostração" de si mesmo.

 

Desenvolvimento

Comecemos pelo prólogo do filme em questão. A história diz respeito ao garoto que sofre com a ausência do pai – que foi para a cidade à procura de emprego – e parte pelo mundo a sua procura. Ele vê a sombra dos pais se despedindo próximo à parada do trem e, quando compreende o que irá suceder, agarra-se à perna do pai como se pudesse fixá-lo ali. O pai toca flauta para ele e o som se desenha em forma de bolinhas coloridas. O pai se vai, e o título se configura na tela branca a partir de dois pontos, um de menor proporção e outro de maior. À medida que o título se escreve, compreendemos que esses pontos se referem respectivamente ao pingo da letra I da palavra "menino" e à letra O da palavra "mundo", de forma a evidenciar as associações da subjetividade do menino com o mundo, ou com o grande Outro que incide fatalmente na formação do psiquismo. Faremos uso desse jogo estético com intuito de descrever, ao longo de nossa interpretação, como o pai do tempo freudiano pode ser relido e compreendido em nossa época, de forma a não desqualificar a figura desse Outro na constituição psíquica, mas de revalidá-la na cultura.

Ao iniciar sua travessia pelo mundo, o menino encontra um ancião que sai para o serviço que ainda lhe parece possível: catar algodão como matéria-prima para uma fábrica de tecidos. O menino o acompanha e, no fim da colheita, o patrão avalia a capacidade de produção de seus funcionários: o ancião termina entre aqueles que "não servem mais". Compreendemos tal cena como o paradoxo do sistema econômico atual: ao mesmo tempo que a tecnologia vislumbra a existência do outro, ela o aniquila.

Em seguida, o menino pressente a presença do pai no caminhão de funcionários que iam para a fábrica de tecidos e segue com eles. Chegando à fábrica, ele vê um vulto que se assemelha ao pai, mas, ao se aproximar, percebe que está diante de um monte de sucatas que desmoronam à sua frente. Em meio ao modelo fordista de produção, o menino depara-se com um rapaz de touca colorida que também o enxerga. Ele segue com esse rapaz no ônibus lotado até a cidade. Fios, guindastes, letreiros e propagandas fazem parte da representação dessa metrópole. Não poderia faltar a favela, a pornografia e outros caracteres do submundo, local em que o rapaz habita. Ele resiste em levar consigo o menino da trama, mas acaba por carregá-lo até sua casa, onde ele permanece, como moribundo, diante da televisão, após comer sozinho comida enlatada.

Ao acompanhar um dia de trabalho extra do rapaz na praia lotada do fim de semana, o menino-personagem se perde pela cidade enquanto se diverte com uma luneta. Sem enxergar seus arredores, ele é levado pelos andaimes até o porto de exportação de mercadorias. As imagens reconstroem a transformação do tecido em produto, que leva uma marca, que vira mercadoria e que vai para as vitrines das lojas. O menino se vê em um manequim de vitrine de mãos dadas com os pais. Na orientação pelo lucro da atualidade, tudo se torna mercadoria, até mesmo o desejo.

Em sequência, o filme ainda retrata dois outros efeitos da economia: a dispensa dos funcionários, devido à tecnologia avançada que substitui a mão de obra, e as crianças e os adultos catadores de lixo, único espaço de inclusão que literalmente lhes resta. Nesse momento, cenas reais de queimadas e desmatamentos se mesclam com os desenhos da película, denunciando que essa temática infantil vai além dos preceitos hollywoodianos que avaliam essa categoria.

Compreendemos, com essa descrição do filme, o equívoco das ofertas sociais na busca pelo pai. Ele nem é uma figura real, que precisa estar de corpo presente para existir, nem se localiza nos direcionamentos e nas regulações das produções econômicas de massa. Esse menino, que procura o pai no emprego como forma de prover-se nas ilusórias oportunidades da metrópole como meio de pluralidade de escolhas subjetivas, nada mais acha que um fantasma sucateado de parafernálias falsas, assim como diversos discursos oferecidos na atualidade.

A função paterna deve ser compreendida a partir de um trato mais refinado, calcado em sutilezas e detalhes da experiência subjetiva. Para isso, faremos um breve recorte teórico sobre a constituição psíquica e a incidência dessa função, antes de retornarmos à análise do filme e de discorrermos sobre seus elementos que evocam essa questão na psicanálise.

No desenvolvimento da constituição psíquica, a primeira incidência da função paterna pode ser compreendida como o traço unário. As primeiras experiências do sujeito são da ordem das percepções e, justamente pela incapacidade de serem traduzidas, funcionam como marcas no psiquismo. Portanto, o resto dessa relação com o Outro, que não pode ser decodificado pela linguagem, traça marcas indeléveis no psiquismo do sujeito, uma vez que estabelece o regime de circulação de trocas. É daí que o objeto pulsional é extraído e passa a operar como causa de desejo. Isso significa dizer que as primeiras identificações são anteriores ao investimento de objeto e tratariam, então, de uma inclinação sem escolhas. A identificação do traço remete àquilo que o bebê toma emprestado do objeto primordial em apenas um único traço, eleito por contingência, uma vez que o neonato é exposto ao campo simbólico daquele que o circunda. Essa identificação implica na fixação do ponto de desejo e tem como efeito a distinção do sujeito.

A rasura do traço introduz uma perda que garante o lugar da alteridade ao inscrever essa perda como representação. O traço, ao mesmo tempo que apaga algo do sujeito – que renuncia a algo de si mesmo ao identificar-se com um atributo do outro –, o inclui na linguagem e na cultura. Por isso ele tem caráter evanescente, possuindo uma relação íntima com a negação – observando que na negação não se trata do zero, mas do não um. O traço unário marca uma distintividade por ser ausência que suporta qualquer presença. Assim, implica em uma operação de apagamento, mas não de desaparecimento, e estabelece o paradoxo da presentificação da ausência. O sujeito, portanto, é compreendido como real negativado, uma vez que o traço diz respeito ao real do ser em contraposição ao simbólico do Outro. Aí está a relação do traço com a função paterna, por que ele trata da identificação mais primitiva com os sinais de presença do outro, fazendo menção às insígnias do pai. Essa leitura da função paterna extrapola o modelo edipiano cunhado por Freud, pois legitima a castração numa operação de linguagem.

Voltemos ao filme para ilustrar o raciocínio exposto, de forma a retomar e complementar cenas já descritas a partir do olhar psicanalítico. No prólogo do filme somos capturados por cores e imagens correlacionáveis e reincidentes no decorrer do longa-metragem. Desde o início, o ponto colorido que se transforma em imagens variadas durante o filme e os tambores que compõem a trilha marcante da película, como referências ao traço, já estão disponíveis para nossa apreciação. É interessante a observação do menino-personagem sobre as sombras dos pais na cena da despedida. Isso evidencia que a função paterna está além de uma presença concreta e pode ser localizada em representações diversas, assim como a sombra é uma das representações de um objeto. Durante toda a película nos havemos com representantes do casal parental. Após a partida do pai, o menino alucina sua presença e guarda as bolinhas do som de sua flauta em uma latinha. Em seguida, ele pega a bolinha produzida pelo som da mãe cozinhando, coloca-a na mesma latinha e a enterra debaixo de uma pedra colorida, como se quisesse guardar um pedaço dos pais para si. Destacamos aqui a importância do som como primeira experiência de ausência e de presença que a criança experimenta: o som é capturado da flauta do pai, da comida da mãe, e compõe a notável trilha sonora do longa. Esse traço dos pais que o garoto enterra em forma de som, só acessível por sua representação na forma de uma pedra colorida, é compreendido em nossa interpretação como a marca do traço e, por isso, acompanha o desenvolvimento de toda a narrativa.

Depois de imaginariamente abraçar o pai na hora do jantar, o menino se lembra do dia em que o pai disse à mãe que eles deveriam plantar juntos uma semente, que se transformaria em uma árvore. A cena não se conclui e ficamos ansiosos pelo seu desfecho, revelado apenas no final do longa. O menino do filme parte a procura do pai com a foto da família e cai num turbilhão de imagens que o leva a acordar na casa do ancião. Bolinhas pairam sobre ele na rede e borbulham em seu estômago após tomar um chá quente. Durante a colheita na companhia do ancião que será demitido, o menino brinca com bolinhas de algodão até ver novas bolinhas de som e ir atrás delas, na expectativa de encontrar a flauta do pai. As bolinhas estão sempre norteando a narrativa, conectando uma cena à outra e desenhando as experiências subjetivas do menino.

Já enquanto o menino acompanha o rapaz que mora na favela, identificamos a touca que ele usa, bem como o poncho colorido que ele tece de madrugada na fábrica de tecidos. Ambos remetem à imagem da pedra que ele colocou em cima da latinha enterrada, retomando suas cores e seus traços. Portanto, compreendemos esses elementos como as marcas que o traço unário faz perpetuar na vida do sujeito, assumindo formas variadas, mas sustentando um atributo indelével e muito peculiar.

Essa marca indelével não é desconexa das funções da repetição. Isso que se repete é oriundo de alguma experiência tão primitiva quanto o traço e, por isso, não foi circundado por recursos de elaboração. Essa operação psíquica tem como intuito, portanto, capturar e fixar a impressão traumática que não pôde ser elaborada, uma vez que a função do recalque falhou. Sendo assim, a repetição é ao mesmo tempo um fracasso do recalque e uma medida de defesa perante ele. Ela pode ser considerada tanto enquanto série simbólica estruturada a partir de uma perda – uma vez que o elemento repetido inscreve-se em um novo lugar, atualizando a experiência através da repetição que o demarca – como causa real, no sentido daquilo que instiga a operação simbólica justamente por haver uma perda. Assim, a série simbólica se constitui devido à impossibilidade do encontro entre a perda e sua representação.

Toda lembrança registrada na memória já é distorcida do fato em si, pois sofreu a ação do recalque. Este interdita o representante pulsional de sua representação mental, fixando a experiência. Assim, é como se o sujeito fosse coagido à repetição, uma vez que alguns elementos da memória psíquica são incapacitados de vigerem no processo secundário, de forma a terem acesso à consciência ou à pré-consciência. Portanto, eles só podem ser tratados pela via enigmática da repetição.

Existe, por conseguinte, uma relação entre a repetição e o traço. As experiências recalcadas, que só se manifestam pela via da repetição – uma vez que foram submetidas à falha na tradução dos signos característica do recalque –, não são registradas de forma a reprisarem suas exatas características. Assim, repetir é o mecanismo que permite a esse traço primitivo alcançar uma ordem possível, reinserindo-o não como significante, mas pelo menos como uma ordem lógica de contagem.

Também podemos destacar elementos do filme que fazem menção ao conceito de repetição. O objeto que pode ser interpretado portando a marca da repetição na película é o cata-vento. Em alguns momentos de clímax na experiência subjetiva do menino-personagem, as imagens giram e misturam o espaço ao redor dos seus pensamentos, como se ele mesmo estivesse dentro de um cata-vento desorientado, que desorganiza a linha limítrofe entre a criança e o espaço. Quando ele compreende que o abraço dado ao pai sentado na mesa de jantar nada mais é que fruto de sua imaginação, ele corre para sua cama, que gira junto com sua mente angustiada pelas memórias de família. A criança, então, decide partir carregando consigo a foto dos três juntos e é arrastada pelo turbilhão de imagens que a levam até a casa do ancião.

É aguardando o trem que nunca vem que o menino acaba sendo levado pelo turbilhão de vento. Nesse momento, os trilhos da estrada e suas memórias familiares se misturam na tela, denotando mais uma vez a ideia do ciclo, do rodar, da repetição e sua relação com o casal parental. Quando o menino chega à fábrica de tecidos e vê o "fantasma" do pai travestido de sucata, ele é orientado pelo giro de uma espécie de ventilador que, ao rodar, gira também a criança por dentro. E, para finalizar, destacamos a cena em que o menino é levado para o porto de exportação sem perceber, por estar entretido com uma luneta, na qual pode ver imagens que o divertem. Essas imagens são mandalas em giro, cujo movimento leva à transformação de uma a outra da mesma forma que a marca da repetição orienta os processos inconscientes do sujeito por sua via cíclica e imensurável.

A questão teórica motivadora do ponto de vista aqui tratado em relação às análises de crianças está vinculada ao conceito de repetição. Se a repetição diz respeito a uma experiência não simbolizada, ela sempre terá alguma relação com o não dito do casal parental como matéria-prima para a eleição do traço unário. Por isso, é importante compreender as relações de troca do sujeito com o Outro desde os tempos mais primórdios da constituição psíquica, como a experiência de separação com o objeto primordial.

O brincar ganha cena no tratamento da separação, tal como apontado por Freud (1920/2006) nas considerações sobre o fort-da. A brincadeira que marca a entrada na cultura é vista por Freud como a conversão da vivência traumática em jogo, justamente pela função determinada da repetição. No francês, a palavra jouer tem a mesma aplicação tanto para brincar quanto para encenar teatralmente, assim como play no inglês. Em algumas línguas, portanto, o teatro é compreendido como jogar ou brincar, uma vez que a encenação muito se aproxima da brincadeira ou do jogo da repetição. Sendo assim, desde o psiquismo mais precário, podemos relacionar as possibilidades de elaboração psíquica a uma experiência estética.

Segundo Freud (1908/2006), "a antítese do brincar não é o que é sério, mas o que é real" (p. 135). Podemos pensar, então, que a brincadeira infantil é uma forma de lidar com a angústia que o inominável do real acarreta, ou daquilo que tenha causado forte impressão, e que, por isso, não cessa de ser repetido na cena lúdica. A brincadeira infantil é o esforço de tratar o irreconciliável que passa pela angústia de separação, pelo enigma do corpo e da sexualidade ou pelas experiências traumáticas. Sendo assim, a experiência de perda – ou melhor, de perda de sentido – acaba por se tornar material incomparável na construção das brincadeiras.

Freud (1920/2006) elucida esse fenômeno ao anunciar que o fort-da é a brincadeira inventada pela criança com o objetivo do deleite da sensação gerada pelo jogo repetitivo do desaparecimento seguido do retorno. Apesar de colocar em questão a angústia de separação, o psicanalista reconhece o prazer desse jogo para a criança – mesmo que ele esteja para além do princípio de prazer. Segundo o autor, essa contradição passa pelo papel ativo que a criança assume diante de sua angústia, ao fantasiar ser ela mesma a causadora dos fatos, atribuindo à brincadeira uma elaboração psíquica de conteúdo estético. Em suas palavras:

Finalmente, em acréscimo, pode-se lembrar que a representação e a imitação artísticas efetuadas por adultos, as quais diferentemente daquelas das crianças, se dirigem à uma audiência, não poupam aos espectadores (como na tragédia, por exemplo) as mais penosas experiências, e, no entanto, podem ser por eles sentidas como altamente prazerosas. Isso constitui prova convincente de que, mesmo sob a dominância do princípio de prazer, há maneiras e meios suficientes para tornar o que em si mesmo é desagradável num tema a ser elaborado na mente. A consideração desses casos e situações, que têm a produção de prazer como seu resultado final, deve ser empreendida por algum sistema de estética com uma abordagem econômica ao seu tema geral (Freud, 1920/2006, p. 28).

Alguns autores que permeiam o universo infantil se esforçam por construir essa relação sugerida por Freud. Roza (1993), por exemplo, afirma, ao analisar o fort-da no tocante à relação entre o brincar e a catarse, que "o jogo é situado como um movimento de passagem do trágico ao prazeroso, de Thanatos a Eros, da pulsão de morte ao sexual, campo das representações" (p. 51). Para a autora, o jogo, portanto, pertence ao campo da estética, pois, assim como algumas criações artísticas, necessita submeter a liberdade de criação à métrica. Mesmo que o traumático remeta ao indizível, a cada repetição de sua cena, ele pode se atualizar em algum espaço entre os significantes.

Lacan (2008) compreende o jogo como articulador de duas etapas fundamentais da constituição psíquica. A primeira, denominada alienação, inaugura a entrada na linguagem humanizando o desejo, pois a criança penetra na linguagem que a antecede. Todavia, o passo seguinte dessa empreitada consiste em separar-se. O papel ativo que a criança assume nessa brincadeira a permite deixar a mãe ir embora, inaugurando a precariedade da separação eu e Outro, oriunda do funcionamento simbólico. O fort-da, ao balizar a alternância ausência/presença, lidando com a ausência sem desaparecer com o Outro, é o paradigma da lógica simbólica. Através dele, a criança compreende a noção de permanência, denunciando que já tomou certa distância do Outro. Segundo Vorcaro (1999),

a alienação e a separação são os operadores derivados da lógica formal, que foram destacados por Jacques Lacan, por serem capazes de nos permitir deduzir as duas operações constituintes do sujeito, ou seja, operações que classificam o sujeito em sua dependência significante ao lugar do Outro (p. 23).

A repetição do jogo do fort-da permite cifrar em outro registro, que não apenas o do real, a condição de sujeito desejante. Apoia-se aí a indissociabilidade sujeito/Outro.

Pensamos essa encenação como um recurso favorável para as análises infantis, afinal, a representação diz respeito a fazer sempre de novo, pois se refere à retroação ao traumático. O brincar, nesse sentido, aproxima-se de um discurso no qual a criança imita e repete sem ser de fato um imitador, pois repete aquilo que lhe foi impresso na experiência. Assim, o efeito do brincar vai além da reprodução do vivido, pois transpõe do registro da experiência para o registro da encenação aquilo que lhe causou forte impressão. Falamos, portanto, de um ciframento da experiência ou de uma reinvenção.

A brincadeira, vista dessa forma, aproxima-se da experiência de teatro pós-moderna, na qual as fronteiras entre teatro, dança, poesia, literatura e contação de histórias são enfraquecidas – ao contrário do teatro tradicional. Essa nova forma de fazer teatro apresenta certa bagunça entre começo, meio e fim, uma vez que a ruptura, a repetição e o nonsense são suas características.

O infantil, por tratar-se do período marcado pelo corpo vivido, é rico em uma teatralidade que não se reduz a uma interpretação como a do ator, pois a criança não finge ser o que não é. Isto é, ela não representa um outro que não lhe diga respeito, já que a criança se apresenta de forma inconsciente na "mostração" da cena. Ela utiliza da teatralidade para expressar uma experiência realmente vivida e sentida com rigor e intensidade. Em termos artísticos, essa seria a atuação correspondente à arte da performance. Essa modalidade da arte contemporânea é marcada por uma ação que presentifica algo do artista, que assume aberta e funcionalmente a responsabilidade de seu ato, ao se propor a reorganizar certa experiência que, de acordo com Glusberg (2005), está vinculada "com o princípio básico de transformar o artista na sua própria obra, ou, melhor ainda, em sujeito e objeto de sua arte" (p. 43). A performance refere-se ao exercício de viver o corpo numa situação de liberdade de criação, de evocação da experiência para sua atualização, a partir, também, de sua repetição. O tempo e o esgotamento são marcas características da performance, assim como a criança que solicita que a brincadeira aconteça sempre de novo. As palavras e letras mais bem empregadas não são capazes de traduzir o evento performático, pois o corpo, como instrumento de discussão entre o eu e o Outro, é a medida da performance. A arte performática abarca uma subjetividade que vai além do sentido e inscreve-se em uma linguagem que preserva a opacidade do objeto e apresenta o sujeito às voltas com sua faceta pulsional.

É aí que a psicanálise pode se servir da relação com a performance. Nesta, o acontecimento é a verdadeira diretriz cuja conceituação trata a experiência estética como espaço da vida. O uso do corpo para colocar em cena algo da subjetividade do performer é presente na performance e tem como efeito a atualização do material irrepresentável. Sendo assim, é possível se servir da prática dessa modalidade artística como suporte de elaboração para o sujeito, em especial para as crianças, em sua precariedade simbólica.

Machado (2010) se pergunta se seriam as crianças a imitarem os performers ou os performers a se proporem retornar ao infantil. Para ela, a maneira de brincar e de jogar com o corpo que a criança estabelece é performática. A partir de seu trabalho com teatro para crianças pequenas, Machado (2010) percebe os dizeres intensos pelo corpo e no corpo que as crianças produzem como atos performáticos. Afinal, a criança já opta por executar as atividades de sua vida cotidiana – por exemplo, chorar, lavar-se e fazer pirraça – como uma performance. Machado desenvolve a noção de criança performer a partir dessa relação entre o brincar infantil e o teatro contemporâneo, considerando as seguintes observações:

Em meu percurso, como professora de teatro para crianças, percebi que muito da estética nomeada pós-dramática fazia sentido diante da maneira de ser dos meus alunos pequenos: a criança que cria seu faz de conta e que o organiza durante uma aula de teatro não exige de si nem do companheiro uma lógica formal; seja em termos de tempo, seja em termos de espaço, a criança modifica, quase o tempo todo, seus roteiros de improviso, e aproxima, recorrentemente, suas narrativas teatrais da sua vida cotidiana – este, outro marco da cena contemporânea: a aproximação entre a arte teatral e a vida, entre criação cênica e Antropologia. A capacidade para a transformação, para a incorporação da cultura compartilhada, o dom para ler a vida cotidiana de modo imaginativo, tudo isso aproxima fortemente o modo de ser da criança pequena das maneiras de encenação contemporâneas (Machado, 2010, p. 118).

A brincadeira vista como o ciframento do traço impresso na vivência, assim como compreendemos o jogo do fort-da, está para além da encenação com o brincar, porque se articula com características específicas da performance. Fort e da só ganham sentido ao acompanharem o movimento de ação do carretel. Nesses termos, entendemos que o psiquismo, em sua precariedade, precisa escorar-se na concretude da ação e do corpo para fisgar algo do simbólico.

Assim, a performance se torna uma ferramenta de elaboração singular, não só pelas características do psiquismo do infans, mas pelos efeitos da derrocada da cultura nos modos de subjetivação. A performance denuncia o sintoma de uma época fomentada pela ilusão da completude, que toca o cerne da constituição psíquica. É justamente por renunciar a algo que o sujeito ascende à cultura e faz uso do pai como vetor do desejo. O substrato dessa operação é tema recorrente das performances que operam constantemente com o dentro/fora do corpo do artista. Assim, a vivacidade e a intensidade das experiências de separação, como desdobramentos do fort-da, qualificam tanto as experiências do performer como as da criança. A repetição da encenação infantil permite que esse ciframento ocorra em um novo registro, atualizando a cena do trauma, assim como os modos de subjetivação da performance, sem necessariamente passar pela elaboração via linguagem. Ao contrário da interpretação em análise, o uso da noção de performance para orientar a clínica infantil viabiliza um tratamento que se interessa pela "mostração" do objeto a, resguardando sua imprecisão.

A arte seria, assim, o lugar onde vem se mostrar o impossível de dizer e o impossível de se ver – especialmente a arte do século XX que, não por acaso, aproxima-se da produção de Lacan em sua invenção do objeto a. Segundo Leite (2006), o objeto a se articula com a arte contemporânea porque é o "resto da operação significante, invenção que circunscreve um gesto inédito, pois faz entrar o impenetrável no campo do pensamento, o irrepresentável no campo da representação" (p. 118). Portanto, a forma de a arte se relacionar com o vazio não é na tentativa de traduzi-lo, mas de sustentá-lo.

 

Conclusões

Eis o momento de concluir nossas ideias, bem como comentar o desfecho da película. Afinal, esse menino reencontra seu pai? O que vemos nas últimas cenas do filme é o ancião com a mesma mala que o menino-personagem usou quando partiu, olhando para a casa em que o garoto vivia quando criança. Ao entrar na casa e olhar pela janela o ponto do trem, lembra-se do dia em que se despediu da mãe ao seguir para a cidade. Ele, rapaz, entra no trem e coloca a touca colorida que sua mãe lhe deu. De volta à cena real – já não mais retratando suas memórias –, o ancião coloca essa mesma touca e recoloca a foto da família na parede da casa. Em seguida, ele veste o poncho colorido.

Nesse momento, compreendemos que a narrativa trata de vários episódios da vida do mesmo personagem, mas que em momento algum fica "livre" de sua criança ou de seus fantasmas infantis. Revendo a história após essa revelação, percebemos que nas situações de maior angústia para o personagem, o menino o reanima com as insígnias dos pais: seja pelo uso da fotografia da família, seja pela memória dos momentos acolhedores da infância. Pensamos que a peculiaridade dessa cronologia remete ao raciocínio psicanalítico aqui exposto. Existe sempre um direcionamento subjetivo que remonta às primeiras experiências infantis vividas em torno do casal parental. Essa experiência deixa uma cicatriz no sujeito e ele precisará se haver com isso em toda sua trajetória.

Ainda no infantil, localizamos ferramentas possíveis na lida com o resto pouco acessível dessas experiências. O processo de criação, associado aos efeitos psíquicos do brincar, pode ser uma saída apropriada para a questão. Observamos que tanto a criança quanto o artista se servem do estético para lidarem com a experiência do real. Localizamos essa saída também na película. Em momentos de surpresa, horror ou muita ansiedade – ou, em outras palavras, em situações de forte impressão –, a criança depara-se com uma manifestação popular regada à música, cores, laços sociais, rituais e muitas bolinhas coloridas. Em algumas dessas manifestações, o rapaz de poncho está presente. Além disso, o trabalho extra do rapaz na praia diz respeito a uma apresentação artística na qual ele constrói uma parafernália com alguns objetos cotidianos e faz música. Não há metáfora melhor para traduzir nossa proposta. Esses mesmos objetos que podem ser transformados em simples mercadorias podem também ser desdobrados em objetos de arte e terem efeito de uma produção particular do sujeito.

Por isso, o diálogo com a arte performática pode enriquecer o trabalho desenvolvido nesse processo de criação. A experiência do trauma é sempre da dimensão do real, e essa modalidade artística tem, por excelência, estreitas relações com essa esfera. Como mencionado, na performance o tempo real do acontecimento é a verdadeira diretriz, cuja conceituação trata a experiência estética como espaço da vida. O uso do corpo e do tempo para colocar em cena algo da subjetividade do performer é presente na performance e tem como efeito a atualização da origem traumática. Sendo assim, é possível se servir do referencial teórico dessa prática artística como forma de localizar o brincar da criança, tanto na esfera da elaboração quanto da opacidade do objeto. Esse viés se afina com as particularidades do psiquismo infantil e pode se tornar uma rica ferramenta de trabalho na orientação da clínica com crianças, afinal, a performance vai ao encontro de um dos recursos mais primitivos de elaboração psíquica. A lógica de simbolização do fort-da é vivida não apenas no momento inicial de sua experiência, pois é reevocada e readaptada a várias outras experiências de separação fundamentais à constituição.

Foster (2014) também reflete sobre o diálogo entre a arte contemporânea e a obra lacaniana, chamando, porém, atenção para os riscos que a experiência com o real pode oferecer. A arte contemporânea tem como intuito dessimbolizar o objeto e denunciar a ilusão da representação ou do simulacro, o que vai ao encontro do que Lacan descreve como o inalcançável e intraduzível do objeto a. Esse movimento artístico tem função de crítica social e política, uma vez que seria uma resposta à subjetividade marginalizada e degradada que o sistema ocasiona. Todavia, o autor denuncia os efeitos que essa exibição do real pode acarretar: "Antes, a repetição serve para proteger do real, compreendido como traumático. Mas exatamente essa necessidade também aponta para o real, e nesse ponto o real rompe o anteparo proveniente da repetição" (p. 166). A fascinação pelo real revela a ilusão da representação e a vulnerabilidade subjetiva diante dessa ruína. Por isso a relevância de que o uso da performance na orientação da análise de crianças seja mediado pelo analista, que, através da sensibilidade de sua escuta, pode temperar os efeitos dessas manifestações no psiquismo infantil, acolhendo e direcionando o curso das brincadeiras propostas pelas crianças.

A modalidade de arte que tem como objeto o real, ou o trauma, responde à crise simbólica utilizando a mimese como recurso defensivo. A arte reproduz e produz o real através de uma série de expressões e efeitos contraditórios. A confusão entre o dentro e o fora ganha cena, e o real como irrepresentável passa a ser, então, repetido. Se por um lado a cultura contemporânea vive um êxtase diante das ruínas do simbólico, por outro, ela precisa se haver com o horror a que isso remete.

Dentre os efeitos das particularidades da ruína subjetiva dessa geração – escancarada ao real sem funções que sirvam de anteparo a ele, como a função paterna –, destacamos a condição de muitas crianças da nossa época. Elas se encontram desguarnecidas da proteção familiar ou institucional que lhes permitiria a mediação do tempo de construir identificações e ideais comuns à sua tradição. O sistema econômico que visa o lucro como único fim torna escasso os espaços e modos de subjetivação disponíveis na cultura. As relações de troca calcadas nos valores de mercadoria, que prometem completar o que se falta, caminham na contramão da ascendência do sujeito. Assim, as etapas da constituição psíquica são atropeladas, convocando as crianças a entrarem na falsa lógica da completude e tornando-as, imaginariamente, autossuficientes. Elas assumem essa autossuficiência de modo consoante ao discurso que viola essa mesma autossuficiência na perversão da cultura. Alçada à posição de adulta-miniatura encantadora, a criança é vítima de um tipo de incesto que nem os animais irracionais praticam: o desrespeito à insuficiência do corpo infantil para exercer sua responsabilidade social e sexual. Dessa maneira, elas são desprotegidas de uma Lei que interdite o incesto social.

A resposta dos sujeitos parece, nessa conjuntura, aproximar-se não mais do Édipo, mas de um tipo de complexo de Isaac, se é que é possível assim formulá-lo. As crianças respondem a um Outro gozador, que os subjuga em nome de um capricho, que por vezes exige o sacrifício da autoridade e da proteção parental dos próprios filhos em nome de universais do sistema econômico, como a ciência e a religião. Esse Outro gozador parece próximo àquele Deus que exigiu de Abraão, por capricho, o sacrifício de seu filho.

Pelo exposto, pensamos o processo de criação como uma via possível para tratar o sofrimento da subjetividade infantil acometida pelas transformações da cultura. Assim como a função paterna, a arte, vista estreitamente relacionada ao fort-da – como a arte performática – tem como efeito mediar a relação com o Outro e, consequentemente, com seu gozo. Dessa forma, a herança cultural dos modos de relação pulsional com o objeto – transmitida a partir das relações de afeto do casal parental e atravessada por suas experiências inconscientes – pode ser extraída da ideia de um destino do infans e, assim, tratada a partir da concepção do conceito de repetição. Para isso, nossa proposta, ao recorrer à performance, busca enriquecer o arsenal técnico e teórico que a psicanálise dispõe sobre a repetição, de modo a recolocá-la na cena da contemporaneidade e de seus efeitos sobre a subjetividade. A performance, assim como o fort-da, utiliza a via da repetição com o intuito de permitir ao sujeito o ciframento das experiências de forte impressão em um outro registro, descolando-o das trilhas pulsionais enrijecidas pelo trauma e permitindo novos escoamentos.

O personagem de nossa película, em suas últimas cenas, vai até a pedra colorida e desenterra a latinha. A cena da proposta do pai em plantarem uma semente é reevocada e o propósito se cumpre. Essa semente se transformou em uma árvore, local que ele elege para escutar o som que naquela mesma terra fora guardado. Esse som parece penetrar seus ouvidos e atingir as memórias mais íntimas. Assim, ele dorme aconchegado no colo da mãe, protegido pelo pai, mesmo não os tendo mais por perto, reinventando os fins da procura que motiva sua partida e fazendo um uso próprio do traço em sua origem.

 

REFERÊNCIAS

Abreu, A. (Diretor), & Tessler, T., Carvalho, F. (Produtoras). (2013). O menino e o mundo [Filme]. São Paulo, SP: Filme de Papel.         [ Links ]

Foster, H. (2014). O retorno do real (C. Euvaldo, trad.). São Paulo, SP: Cosac Naify.         [ Links ]

Freud, S. (2006). Além do princípio de prazer. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 18, pp. 13-75). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1920)        [ Links ]

Freud, S. (2006). Escritores criativos e devaneios. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 9, pp. 133-146). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1908)        [ Links ]

Glusberg, J. (2005). A arte da performance (R. Cohen, trad.). São Paulo, SP: Perspectiva.         [ Links ]

Lacan, J. (2008). O seminário, livro 11: os quatros conceitos fundamentais da psicanálise, 1964 (M. D. Magno, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.         [ Links ]

Leite, N. V. A. (2006). Da obra ao ato: quando o simbólico fracassa? In N. V. A. Leite (Org.), Corpolinguagem: angústia: o afeto que não engana (pp. 117-124). Campinas, SP: Mercado de Letras.         [ Links ]

Machado, M. M. (2010). A criança é performer. Revista Educação & Realidade, 35(2), 115-137.         [ Links ]

Roza, E. S. (1993). Quando brincar é dizer: a experiência psicanalítica na infância. Rio de Janeiro, RJ: Relume-Dumará         [ Links ].

Vorcaro, A. (1999). Crianças na psicanálise: clínica, instituição, laço social. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Narciso Junior, 460/501
36400-000 – Conselheiro Lafaiete – MG – Brasil.
iva2012@ufmg.br

Rua Paul Bouthilier, 353
30315-010 – Belo Horizonte – MG – Brasil.
angelavorcaro@uol.com.br

Recebido em julho/2016.
Aceito em janeiro/2017.

Creative Commons License