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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.22 no.2 São Paulo Aug. 2017

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v22i2p268-282 

ARTIGO

 

A voz no autismo: uma análise baseada em autobiografias

 

Voice in autism: an analysis based on autobiographies

 

La voz en el autismo: un análisis basado en autobiografías

 

 

Marina Bialer

Psicanalista. Pós-doutoranda do Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (Ipusp), São Paulo, SP, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, abordamos a voz no autismo a partir da análise de autobiografias de autistas e de seus pais. Para esta finalidade, enfocamos manifestações como o mutismo, o grito gutural, o monólogo, a expressão irruptiva de palavras esporádicas, a ecolalia, uma língua privada não compartilhada, o recurso a intermediários como o gravador, a mimetização de voz de animais, o recurso a scripts de personagens Disney ou livros. Após descrevermos e sinalizarmos alguns aspectos importantes evidenciados nessa maneira singular de se relacionar com a voz, apontaremos algumas nuanças do funcionamento psíquico do autista.

Descritores: autismo; voz; psicanálise.


ABSTRACT

In this paper, we analyse voice in autism based on the analysis of autobiographies written by autistics and their parents. For this purpose, we focus on manifestations such as mutism, guttural scream, monologue, the irruptive expression of sporadic words, echolalia, a private non-shared language, the use of intermediaries such as tape recorders, animal voice mimicry, Disney characters or books. After describing and signaling some importante aspects evidencied in this unique way of relating to the voice, we will point out some nuances of the psychic functioning of the autistic.

Index terms: autism; voice; psychoanalysis.


RESUMEN

En este artículo trataremos de la voz en el autismo a partir del análisis de autobiografías de autistas y de sus padres. Para tal finalidad, abordamos manifestaciones como el mutismo, el grito gutural, el monólogo, la irrupción de palabras esporádicas, la ecolalia, una lengua privada no compartida, el recurso a intermediarios como el grabador, la mimetización de la voz de animales, el recurso a guiones de personajes de Disney o a libros. Tras describir e indicar algunos aspectos importantes puestos de manifiesto en esta manera singular de relacionarse con la voz, señalaremos algunos matices del funcionamiento psíquico del autista.

Palabras clave: autismo; voz; psicoanálisis.


 

 

Introdução

O objetivo deste artigo é elucidar a maneira singular com que o autista pode se apropriar da voz, enfocando as manifestações enquanto tentativas criadas por ele para se autorizar a falar, para poder sair de um quadro de retraimento e fechamento autístico e se relacionar com o mundo, com os outros. Após descrevermos e sinalizarmos alguns aspectos importantes evidenciados nessa maneira singular de se relacionar com a voz, apontaremos algumas nuanças do funcionamento psíquico do autista, a partir de elaborações teóricas do psicanalista Maleval a respeito da voz no autismo.

 

O mutismo, as ecolalias e as episódicas expressões explosivas da voz

Nos quadros de retraimento autístico, é frequente a coexistência de um mutismo autístico quase absoluto, interrompido eventualmente por episódicas expressões explosivas da voz – sob forma de gritos guturais ou expressões verbais marcadas por angústia.

A autista não falante Lucy Blackman descreve que no seu mutismo, quando sentia vontade de falar, precisava combater a assustadora vivência de ter que deixar um vazio ou vácuo originado pela expulsão da voz. Esporadicamente, ela manifestava sons explosivos e gemidos, fora do seu controle. Quando tentava forçar a falar para o outro algo mais próximo da linguagem com fim comunicacional, sua mente se tornava "literalmente-blank" (Blackman, 2005, p. 160), pois ao expressar algo, deparava-se com a demanda daquilo que o outro "quer extrair dos meus lábios" (p. 162, tradução nossa), ao que respondia ecoando o que havia escutado ou dizendo algo que não correspondia ao que havia pensado dizer. Embora realizasse alguns sons, principalmente para cantarolar e realizar um manuseio sonoro solitário em monólogos, se alguém tentasse acompanhá-la quando cantarolava, ela parava de vocalizar, sentindo não mais poder ouvir a própria voz, não sabendo aonde sua voz tinha ido, pensando que ela tinha "se perdido" (Blackman, 2001, p. 23, tradução nossa).

Na vida adulta, podia repetir alguns sons dos outros como um papagaio e emitir ecolalias, mas não podia expressar as mesmas frases para uma finalidade mais diretamente comunicativa, sendo que o motivo de as pessoas emitirem sons em resposta aos outros permanecia-lhe um mistério. Além disso, algumas de suas expressões verbais eram ecolálicas, principalmente ecolalia retardada, que remetiam a "memória-palavras" (Blackman, 2013, p. 126, tradução nossa) de algo vivenciado anteriormente e que aparecia no presente de modo automático. Em algumas situações, Lucy pensava em falar uma palavra e emitia um som, achando que havia expressado aquela palavra que pensara, quando, de fato, o que ela pensou somente pôde "sair" na sua mente e não da sua garganta; o ruído que ela emitia não saia formando uma palavra, mas saia como algo "sem forma" (p. 148, tradução nossa). Sintetiza, no entanto, que mesmo quando utiliza "sons falados" (p. 126, tradução nossa), estes "não [eram] necessariamente um caminho para o que a maior parte de vocês usa como linguagem – uma conexão com a vida real" (p. 126, tradução nossa). A apreensão da voz das outras pessoas também era impossibilitada, sendo registrada de uma forma indiscriminada de outros ruídos, o que dificultava a escuta da dimensão significante da linguagem.

Em uma das raras enunciações realizadas por Lucy ao longo de toda a sua vida, ela chamou espontaneamente e enfaticamente sua mãe por "mummy-iy" (Blackman, 2001, p. 39), mas essa expressão da voz foi tão violentadora que, logo antes de soltar a voz, surgiu um lugar de "silêncio morto" (p. 39) na sua mente. Lucy ressalta ter desenvolvido uma linguagem privada que não conseguia passar pela "barreira" (p. 42) da fala, de modo que sem ser obrigada a soltar a voz, o que equivaleria a perder (uma parte de) si mesma, ela podia articular melhor linguagem e pensamento, ao contrário da experiência mutilatória que era tentar se comunicar ou expressar a voz marcada por fortes emoções. Quando falava, vivenciava sua fala sendo expulsa da sua boca como uma protuberância na forma de uma "bexiga" (Blackman, 2013, p. 50, tradução nossa) que, embora relacionada, saia em uma direção/linha diferente daquela dos seus pensamentos. E quanto mais a bexiga inchava, menos fazia sentido, até que ela explodia, deixando então seus "pensamentos dispersos" (p. 50, tradução nossa) concomitante a uma crise de nervosismo, "raiva e vergonha" (p. 50, tradução nossa). Relata que durante um período, tinha uma "reação mental" (p. 129, tradução nossa) ao pensar algo, o que desencadeava uma "reação interna que em uma pessoa normal teria resultado em uma afirmação ou questão" (p. 129, tradução nossa), mas ela somente sentia uma pressão na sua garganta que "grunhia" (p. 129): "eu estava quase no ponto de falar, mas isto não ia de fato acontecer" (p. 129, tradução nossa). Sua mãe via a filha abrindo a boca com "um breve grunhido na garganta" (p. 130) e olhava intensamente para ela, demonstrando uma intensa avidez para falar, mas não conseguia efetivamente falar. Depois desta situação, outras vezes surgiram alguns ímpetos para a fala, mas sempre muito discretos. Quando posteriormente pode aceder ao mecanismo de conversação, em 2013, salienta que não havia mais esse impulso, somente havia descoberto "o mecanismo de conversão básica" (p. 130, tradução nossa) que foi ativado, apesar de algumas "engrenagens" (p. 130) faltantes ou não operacionais.

Nesse contexto, ela distingue três modalidades de uso da voz: a primeira é caracterizada por vocalizações típicas de um autista com quadro severo; na segunda, ela usava até no máximo três sílabas consecutivas com sentido, mas muitas vezes ininteligíveis para o outro; e a terceira eram as vocalizações desencadeadas em crises de gritos em ataques de cólera.

Já o autista não falante Tito Mukhopadhyay (2011) manifestava crises de grito nas quais sua voz "podia gritar, mas não falar" (p. 42, tradução nossa) e ele perdia todo o controle da sua voz e se perguntava quando o grito ia parar. Havia gritos tão intensos que a sua existência se restringia àquele grito, cujo som dissolvia o seu ambiente e o seu corpo. Ao contrário dessa voz, que emergia no grito gutural, Tito relata a existência de uma voz silenciosa, que constituía uma linguagem privada íntima, que ele acessava quando estava em mutismo, e que podia ser expressa pela escrita e não pela fala.

Quando começa a se expressar pela escrita, o autista não falante Birger Sellin salienta que "falar é muito precioso" (Klonovsky, 1995, p. 24, tradução nossa), mas afirma ser incapaz de falar porque só falaria "nonsense" (p. 24). Ele distingue essa incapacidade com o que seria uma deficiência intelectual, afirmando que "falta de fala não é o mesmo que falta de inteligência" (Sellin, 1995, p. 199, tradução nossa). Realça ter a habilidade de pensar algo na sua mente, sendo capaz de conceber ideias interessantes, lúcidas e originais, o que contrapõe a impossibilidade de expressá-las. Ele sugere que sua capacidade de falar está "obstruída/bloqueada em algum lugar" (p. 223) em decorrência de etiologias psíquicas. Em contraposto ao premente mutismo, nas suas crises de nervosismo, sua voz se expressava como gritos guturais; além disso, em duas situações ele expressa nitidamente a expressão "bloody murder" (Klonovsky, 1995, p. 8). O primeiro episódio remete ao início das suas manifestações autísticas, quando está na creche por volta de dois anos de idade; o segundo ocorre quando está no centro para jovens autistas que ainda frequenta, interrompendo impacientemente suas professoras. Outro dia, quando seu pai lhe retira um de seus objetos autísticos – uma das suas bolinhas –, ele pronunciou uma das únicas frases que disse na vida: "Me devolva aquela bola!" (p. 12, tradução nossa) e, então, retornou para seu mutismo autístico.

 

Saída do mutismo pelas canções e murmúrios; receptividade aos sussurros, às músicas e às falas cantadas

Clara Park, em suas autobiografias (1995, 2002), descreve a importância de canções para a aquisição e desenvolvimento da linguagem de sua filha autista Jessy. Quando ela tinha por volta de quatro anos de idade, ficava muda quase todo o tempo, mas ocasionalmente dizia palavras isoladas. Se por um lado as palavras vocalizadas eram raras, por outro, Jessy expressava o tempo todo músicas e rimas infantis. Ela parecia não saber para que a linguagem funciona e tão logo se apropriava de uma palavra. Clara tinha impressão que para Jessy essa palavra deixava de poder pertencer às outras pessoas, nunca podendo ser usada para se comunicar. Clara tentava traçar um histórico da origem e desenvolvimento de cada palavra, mas geralmente não conseguia identificar de onde tinha se originado quando ela havia começado a falá-la e nem porque havia parado de usá-la. No entanto, aos cinco anos, melodias musicais se tornaram palavras para Jessy.

As músicas eram selecionadas especificamente em relação a alguns objetos, de modo que "a música estava servindo como uma avenida para as palavras" (p. 84). Imediatamente, identificaram a relação da maior parte das músicas escolhidas com os objetos ou situações a que se referiam. Por exemplo, a música "Allouette" era cantada quando seu cabelo era penteado após o banho, o que remete, posteriormente, ao fato de que sempre lhe era dito que seu cabelo estava todo molhado (all wet) nessa situação.

A despeito da aquisição da linguagem (funcional) utilizada para se comunicar, com a saída do quadro de isolamento e retraimento autísticos, Jessy manifestou uma linguagem que era privada e não partilhável, que se manifestava nas situações nas quais estava tranquila, realizando sozinha alguma atividade, mas ocasionalmente podia perder o controle desses sons e ruídos que escalavam em intensidade.

Além disso, murmúrios surgiram de modo mais evidente na adolescência, mas somente quando já é adulta que ela explica retroativamente como surgiu cada frase murmurada. A frase murmurada "we go on" (p. 59) teria sido extraída de uma música de Led Zeppelin; outra frase, "she got a tree" (p. 59), teria surgido após um strike (referindo-se provavelmente ao jogo de beisebol). Aos oito anos de idade, pela primeira vez na vida, Clara escuta a voz de Jessy falando seu nome, enquanto cantarolava "cla-ra!" (Park, 1995, p. 217), mas ela faz de tal modo que não parece estar chamando a mãe, que tem a impressão que ela estava falando isto como se nem estivesse presente na sala ao seu lado. Geralmente, quando procurava por Clara, ela fica vagueando pela casa, dizendo "oi?" (p. 217) e nunca dizia o seu nome ou designando-a por mamãe. Em relação à capacidade de compreender a fala, tinha-se a impressão que sua compreensão ainda era mínima como se estivesse "cercada por uma língua estrangeira" (p. 225) em um país no qual houvesse chegado há apenas algumas semanas.

A importância do cantarolar na clínica do autismo também é evidenciada no livro autobiográfico escrito por Anne Idoux-Thivet (2009), que descreve como até os quatro anos de idade seu filho Matthieu não verbalizava e era tomado frequentemente por intensas crises de angústia, nas quais tampava as orelhas, os olhos e a boca. Para tranquilizá-lo, ela começou a cantar uma música quando ele estava nervoso, sempre retomando essas canções e melodias, procurando sempre escolher canções ritmadas, percebendo que o próprio ritmo da música era tranquilizador. Uma vez que ele tinha muito medo de qualquer mudança, eles introduziram quadros de horários diários e semanais, além de vinhetas preparatórias com tudo o que ocorreria no seu dia, sendo que, na véspera, ela cantava o que ocorreria no dia seguinte, detectando que ele era muito mais suscetível de escutá-la e compreendê-la quando usava a voz cantada.

O livro escrito pelo jornalista James Copeland (1973), baseado no diário de Jack Hodges, relata o cotidiano familiar da família Hodges com a criança autista Ann (filha de Jack). Por volta de oito anos de idade, ela disse sua primeira palavra, em um dia que seus irmãos estavam brincando, falando em sussurro. Os pais estavam desatentos assistindo TV quando escutaram uma voz, até então desconhecida, sussurrando as respostas para a brincadeira dos outros irmãos. Seus irmãos começam a nomear objetos com a voz sussurrada e, a seguir, Ann sussurrava o nome do objeto. Constatam que a condição essencial para que ela se comunicasse com os outros era que suas vozes fossem sussurradas, em contraposição às vozes em tom normal às quais nunca respondia, mantendo a face aparentemente alheia. De maneira similar, um dia perguntam-lhe, de uma maneira como "papagaio" (p. 43), "onde está seu nariz" (p. 43) e Ann espontaneamente aponta para o próprio nariz. Na semana seguinte, ela se tornou capaz de apontar todas as partes do corpo próprio, desde que endereçada com a voz sussurrada ou como se não fosse aparentemente dirigido a ela. A partir de então, adotaram a voz sussurrada, progressivamente aumentando o tom do que falavam até chegarem ao tom usual.

 

A presença apagada do sujeito da enunciação: o recurso a gravadores e similares

Em seu relato autobiográfico, Mary Callaham (1993) descreve como na primeira infância seu filho autista Tony ficava a maior parte do tempo fixado nas luzes e nas sombras, não parecendo ligar para a presença ou ausência dos outros, de modo que "falar com Tony é como falar sozinho" (p. 39). Uma importante descoberta ocorre quando seu pai, Rich, comenta com Mary que as crianças sentem falta dela no fim de semana que ficam sozinhas com ele e sugere que ela registre sua voz em uma fita cassete para que eles a escutem no gravador. A irmã de Tony grava uma música e, em seguida, pede para as crianças que registrem sua própria voz e tenta perguntar para elas algumas coisas, por exemplo, perguntando se Tony pode dizer mamãe para o gravador. Sua irmã fala diversas coisas, e no fim, Tony pronuncia o apelido da irmã. No dia seguinte, quando as crianças estavam na casa de Rich, ele toca a fita, e no trecho no qual Mary pedia para Tony responder, ao ouvir a voz da mãe no gravador, Tony diz "mamãe" (p. 96). No trecho seguinte, no qual Mary se direciona ao filho e pergunta se ele pode dizer "coucou" (p. 96), novamente Tony responde à voz da mãe registrada no gravador. Constatando que ao ouvir a voz no gravador, ele podia manter um diálogo, seus pais utilizam o gravador para se comunicar com Tony. Inicialmente, ele responde às questões colocadas pelos pais e diz algumas frases simples, e progressivamente sua linguagem se desenvolve. Quando Mary tenta chamá-lo sem o intermédio do gravador, ele não responde; ela continua tentando até berrar seu nome incessantemente, mas não há qualquer reação de Tony. Ele somente aceitava interagir oralmente com o recurso ao gravador.

A importância de uma intermediação para o acesso à voz também é evidente na autobiografia de Nuala Gardner (2008), na qual ela descreve como seu filho autista Dale necessitou do intermédio de um cachorro, chamado Henry, para sair do quadro de retraimento autístico e poder se expressar com fluência. Na primeira infância, Dale começou a manifestar medos intensos e crises de nervosismo e se tranquilizava ao ouvir a repetição sistemática de algumas rimas de música ou ao se deparar com um movimento repetitivo. Ele ficava o tempo inteiro fixado em alguns objetos, alheio aos outros. Quando Dale já tinha quase seis anos de idade, estabelece um vínculo mutativo com Henry. Logo no primeiro dia do cachorro na casa, ele lhe dá seu cobertor ilustrado com uma máquina a vapor e exclama uma frase para se comunicar: "Hora de ir para a cama, Henry" (p. 45). Nessa noite, pela primeira vez na vida, Dale canta uma música parecendo brincar. Então, seu pais aproveitavam os momentos nos quais Dale estava falando com Henry para introduzir gentilmente novas palavras, de modo a ampliar seu repertório de vocabulários, constatando que ele não se sentia invadido, ao contrário da sua recusa de algumas palavras em situações prévias, que desencadeavam crises intensas.

Ao utilizarem a voz de Henry, seus pais descobriram que Dale podia "encontrar sua voz" (p. 72) e se mostra muito mais suscetível a atender qualquer demanda intermediada pela personificação da voz de Henry. No decorrer do tempo, eles diminuíram a ênfase que aplicavam à voz personificando Henry e, no decorrer de uma conversa, retomavam o próprio tom humano de voz. A partir do vínculo com Henry, Dale se abriu progressivamente para o mundo e para os outros, ancorado em uma mudança na sua relação com a linguagem e com o pensamento, e progressivamente pôde tolerar tanto a voz quanto o olhar de seus pais.

 

A presença apagada do sujeito da enunciação: ecolalia e apropriação de scripts

A importância da apropriação de scripts para se expressar oralmente é marcante na autobiografia de Jean Shaw (2002), que descreve como seu filho autista, Jody, falava quase exclusivamente por meio dos scripts dos seus filmes e programas de TV; ele só podia falar por meio das falas extraídas dos vídeos e também adotou comportamentos aprendidos de seus personagens. De maneira similar, o livro autobiográfico de Ron Suskind (2014) abarca a importância dos scripts da Disney para a saída do quadro de retraimento e mutismo autísticos manifestado pelo seu filho autista Owen, que mimetizou a fluidez da fala, a inflexão e a expressão corporal desses personagens para poder se comunicar com os outros. Inicialmente, ele ficava recitando passagens de diálogos dos filmes expressas, como se fossem pequenas explosões rápidas da voz emitidas entre dez e vinte segundos, para então retornar ao silêncio. Progressivamente, essas expressões monológicas de trechos de filmes foram acompanhadas de dramatizações nas quais ele utilizava os scripts desses filmes para se comunicar, expressando por meio destas vozes mimetizadas alguns scripts copiados e outros originais que retratavam sua experiência subjetiva e que lhe permitiam se apropriar da voz, desde que apagasse a presença do sujeito da enunciação.

Em seu livro autobiográfico, Valerie Paradiz (2002) descreve a infância e adolescência de seu filho autista Elijah. Ela conta que, durante a infância, ele dizia quase exclusivamente duas palavras repetidas: "Triste, triste, triste" (p. 2) ou "Divertido, divertido, divertido" (p. 2). Lentamente, Valerie percebe que ele começa a falar mais frases, por exemplo, cantarolando e copiando a maneira como ela pronuncia o nome do músico Robert Schumann. Nota que, enquanto ouve música, ele parece relaxar e ela pode acariciá-lo, colocando-o em seu colo. Progressivamente, Elijah desenvolve sua linguagem, principalmente a partir dos sete anos de idade, quando fica interessado, o tempo todo, nos filmes da Disney, dentre os quais um de seus prediletos é Pinóquio. Quando está com quase oito anos de idade, fica desenhando e fazendo esboços dos personagens dos desenhos animados, além de toda hora verbalizar as falas desses personagens, sendo que Valerie constata que ele utiliza os desenhos animados da Disney para ancorar seu pensamento e sua linguagem.

Em seu livro autobiográfico, Charlotte Moore (2006) descreve a problemática apropriação da voz por seus dois filhos autistas, George e Sam. A aquisição das primeiras palavras por George se deu rapidamente: com um ano de vida, já sabia falar algumas palavras e era capaz de apontar inúmeras outras palavras que já reconhecia. Nessa época, Charlotte considera que George não buscava utilizar a linguagem para se comunicar com os outros, mas "ele curtia a linguagem; palavras eram um dos maiores incentivos" (p. 42). Na infância, sua aprendizagem linguística foi especialmente rápida. Houve ausência do balbucio, mas desde o início, ele manifestava uma habilidade especial para imitar o tom do que as outras pessoas falavam, sendo que a sua voz se tornou "musical e atraente" (p. 42).

Tamanha era a sede de literatura de George que ele seguia os adultos da casa com um livro, buscando que lessem as estorinhas. Aos dezesseis meses de idade, se o adulto parava no meio da frase de uma leitura familiar, principalmente de poesias, ele era capaz de completá-la com a palavra ausente (frases de cerca de cinquenta estórias), de maneira similar ao que realizava com músicas e cantigas. Aos dezoito meses, cantava inúmeras músicas, demonstrando uma memória impressionante.

Ao olhar o céu, nunca conseguia dizer algo como "mamãe, olhe as nuvens", mas dizia uma frase de "Ant and Bee and the Rainbow": "Havia brancas nuvens fofinhas no pálido céu azul" (p. 45), sendo que Charlotte afirma que ele parecia "um estrangeiro" (p. 46) com um livro de expressões linguísticas. Havia a premência de uma voz mimetizada, de sons e de mensagens padronizadas, mas ao contrário do vasto vocabulário memorizado e que podia ser expresso de forma automatizada ou enquanto repetições de citações, demonstrava uma quase inabilidade para criar suas próprias frases. Entre três e quatro anos de idade, mostrou-se "resistente" (p. 47) a qualquer livro novo e ficava misturando trechos dos livros já conhecido como "um DJ" (p. 47), de modo que sua fala se torna ainda mais cantada.

Enquanto na combinação de trechos de vídeos, George estava inventando uma estória privada, as vocalizações de Sam não eram construídas na forma de um enredamento ou de algo mais coerente que alguns pedaços de voz solta. No entanto, ambos os irmãos repetiam cenas dos filmes, selecionando algumas cenas que reprisavam inúmeras vezes, sendo que George se destacava pela incorporação mimetizada da voz dos personagens. Durante toda a vida, George se comunicou utilizando scripts de seus filmes prediletos, e Charlotte enfatiza a densidade da personalidade de cada um dos personagens, realçando a importância desses vídeos para que ambos os filhos pudessem ser banhados pela linguagem da humanidade.

Charlotte afirma que tanto George quanto Sam tinham duas modalidades distintas de uso da linguagem: uma funcional direcionada à obtenção do que queriam no aqui-e-agora e uma linguagem ligada a uma "satisfação privada" (p. 40) não compartilhada com os outros. No âmbito da linguagem íntima privada, ela situa frases murmuradas para si mesmo, a repetição ecolálica de trechos de diálogos de vídeos e palavras que eram sintetizadas e compactadas em algumas sílabas que eram sussurradas ou berradas.

 

Solilóquio e outras modalidades de fala possível no autismo

O autista Naoki Higashida (2014) descreve na sua autobiografia que embora seja capaz de falar, a não ser que esteja lendo um livro ou cantando para si, sem finalidade de comunicação, é incapaz de dizer o que pensa pela fala. Nesse contexto, sua voz era vivida como reconfortante quando dita sem objetivo comunicacional, ao repetir palavras e frases familiares, enquanto "a voz que não consigo controlar é diferente. Ela escapa de mim sem querer" (p. 29), tornando-se uma "voz estranha" (p. 30) cuja emissão é impossível de ser controlada, pois "é quase impossível de segurar, e seu eu tento é doloroso, quase como se eu estrangulasse minha própria garganta" (p. 30). Para evitar que essa voz estranha saísse em uma conversa, ele precisava repetir muitas vezes o que foi dito, como se fosse um papagaio repetindo tudo. Além disso, quando queria dizer algo, precisava recorrer às palavras que estavam acessíveis, que poderiam ser as mais usadas ou as que haviam deixado uma impressão prévia marcante, e não eram necessariamente as mais adequadas à sua ideia. Muitas vezes, seus pensamentos levavam tanto tempo para ser transformados em uma palavra que eram perdidos, ou ele dizia o contrário do que havia pensado, mesmo quando se tratava de respostas do tipo sim ou não. Assim sendo, conversas eram sempre um desafio árduo a ser enfrentado, implicando um longo trabalho mental, pois "conversar é um trabalho muito duro! Para ser compreendido, é como seu eu tivesse que falar numa língua estrangeira desconhecida" (p. 34), principalmente se implicasse falar das emoções.

De maneira similar, a autista falante Temple Grandin relata que na infância não conseguia falar nada a maior parte do tempo, pois "embora eu entendesse tudo o que as pessoas diziam, minhas respostas eram muito limitadas (...) as palavras simplesmente não saíam" (Grandin & Scariano, 2014, p. 24). As únicas ocasiões nas quais falava eram expressões episódicas emitidas como pequenas explosões angustiadas, pois nessas situações seria possível a emissão "quando a tensão foi mais forte que a barreira que geralmente me impedia de falar" (p. 24). Não somente seu vocabulário era restrito, mas quando falava, sua "voz era inexpressiva, com pouca inflexão e nenhum ritmo" (p. 28). Na adolescência, falava muito, mas sob forma de "interrogatórios obsessivos e a perseverança obstinada num determinado assunto" (p. 41), em decorrência disso é que foi apelidada "Vitrola" (p. 41) e "Gravador" (p. 87). Outra autista falante, Donna Williams (1996) refere sua dificuldade em controlar sua "diarreia verbal" (p. 47), relatando que, em grande parte das suas relações cotidianas, respondia qualquer coisa ao que lhe perguntavam. No decorrer do tempo, precisou inventar estratégias para obter algum controle do seu corpo antes que sua boca começasse a falar ou seu corpo a agir. Ao contrário dessa modalidade verborrágica, ela descreve que havia uma voz que ficava retida e cuja emissão implicava enfrentar intensas defesas e angústia, como podemos observar no seguinte trecho, acerca dos efeitos de uma conversa em que tenta assumir uma posição enunciativa:

eu tremi com a exposição, lutei para encontrar as palavras, e lutei contra os músculos da minha garganta que pareciam querer estrangular as palavras para pará-las de sair. No fim do dia, minha garganta estaria ferida e meus pulmões doíam devido à minha luta contra eles para expulsar as palavras que não queriam deixar sair para fora (p. 70).

 

Apontamentos

Como pensar todas essas manifestações que acabamos de descrever e que são tão prementes na clínica do autismo? O psicanalista Maleval (2009b, 2011) aponta alguns elementos centrais que estão sendo enfatizados no estudo psicanalítico da linguagem no autismo, principalmente na vertente lacaniana. Aspectos esses marcantes nos relatos autobiográficos, referentes a "uma dificuldade específica para habitar subjetivamente e afetivamente uma fala endereçada" (p. 98), em decorrência da retenção do objeto pulsional voz.

Além das condições originais que viabilizam a comunicação com os outros, apontamos a existência de esporádicas frases ou expressões nos casos de mutismo e retraimento autísticos. Mas por que alguém capaz de se expressar com tamanha nitidez, como Biger, Lucy e Tito, "escolhe" o mutismo? Maleval (2009a) enfatiza quão perturbadoras são para os autistas as expressões nas quais o sujeito da enunciação se faz presente e há um endereçamento nítido ao Outro, sendo tais expressões de cessão do objeto voz vividas como tão angustiantes que beiram a experiência de mutilação do corpo próprio, como explicitamos mais nitidamente em relação a Lucy. Nesse contexto, o psicanalista se ancora na formulação lacaniana do autista verboso para delimitar traços estruturais que caracterizam e explicam tanto as manifestações dos autistas em mutismo – os autistas que adquirem palavras sem demonstrarem que são capazes de utilizá-las para se comunicar ou saberem compreendê-las – quanto as manifestações do autista descrito de alto funcionamento – que é capaz de se expressar com fluência, utilizando todavia uma voz artificial sem expressividade pessoal – sendo prevalente a verborreia, os monólogos ou a ausência do interlocutor no diálogo.

A especificidade da voz no funcionamento psíquico destaca sua "importância decisiva no funcionamento pulsional" (p. 78), pois embora a voz seja um objeto pulsional assim como os objetos escópico, anal e oral, em contraposto a estes, a voz "comanda o investimento da linguagem ... que permite estruturar o mundo, as imagens e as sensações" (p. 78) e que marca "a presença do sujeito" (p. 78).

Em decorrência da retenção da voz, muitas vezes o autista só pode sair do mutismo, mesmo que parcialmente, por meio de recursos como os que descrevemos – scripts, textos literários, músicas, ecolalias, gravador, mimetização na voz de animais e personagens – por meio dos quais pode se expressar, evitando a marca da presença enunciativa. Se uma enunciação afirmada é extremamente angustiante para o autista, descrevemos outras modalidades que permitem ao autista se expressar, retendo o objeto voz. Em comum, apontamos que a importância do sujeito da enunciação seja apagada, respaldando-se na busca de evitar a "presentificação do gozo vocal que angustia o autista" (Maleval, 2009b, p. 96). Apontamos como nas autobiografias grande parte dos autistas responde com maior desenvoltura a vozes expressas sem grande entonação pessoal, com um tom de voz mais monocórdico no qual a dimensão de presença esteja mascarada. Nesse âmbito, se por um lado descrevemos como grande parte dos autistas demonstra entraves à compreensão da mensagem expressa em uma enunciação na qual se faz presente o sujeito, por outro, muitas vezes mostra facilidade com uma linguagem funcional ou técnica, ou com sonoridades como melodias de músicas nas quais a dimensão de presença enunciativa está ausente ou apagada.

Nesse mesmo sentido, apontamos os exemplos de expressões musicais nos quais havia a viabilidade da inscrição de uma tonalidade marcante, enquanto para falar uma mensagem o tom era robótico. Essa mesma tendência era observada na facilidade de escutar uma fala direcionada como se fosse uma melodia, em contraposição a uma fala dita diretamente, assim como a tendência a se expressar cantando ou somente podendo se relacionar com o que os outros diziam, desde que fosse apagada a marca da presença do outro, por meio de falas registradas no computador ou no gravador, por murmúrios, expressões cantadas e outras modalidades expressivas que tornassem discreta a enunciação.

Descrevemos a existência de gritos guturais que remetem "à voz do sujeito, antes de toda alienação significante" (Maleval, 2009a, p. 237), que não se direciona ao Outro simbólico, mas retrata a demasia presença do Outro real. Em contraposto ao "gozo solitário da voz" (p. 78) nesses gritos e na linguagem privada, quando o autista pode se expressar para se comunicar, ele busca colocar à distância esse gozo vivido como assustador. Nesse sentido, Maleval aponta haver "uma constante principal do funcionamento autístico que é se proteger de toda emergência angustiante do objeto voz" (p. 78). Os relatos corroboram, então, a teorização do psicanalista acerca de uma estrutura em comum em todas as manifestações da voz que abordamos e que demonstram algumas consequências da retenção do objeto voz e da permanência da voz retida, que não é colocada no campo do Outro. Nesse âmbito, Maleval teoriza que mesmo quando o autista pode falar, mantém o controle do objeto voz, sendo premente a "carência de enunciação" (p. 87). Apontamos nos relatos autobiográficos de autistas a tentativa de apagamento da presença do sujeito da enunciação, na busca de controlar a cessão da voz, realçando, todavia, que tais manifestações retratam uma posição subjetiva do autista, fornecendo, assim, indícios das condições nas quais é possível a saída do fechamento autístico e apropriação da voz.

 

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Endereço para correspondência
Rua Joao Ramalho, 257/ 24
05008-001 – São Paulo – SP – Brasil.
mbialer@hotmail.com

Recebido em fevereiro/2017.
Aceito em julho/2017.

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