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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.22 no.2 São Paulo ago. 2017

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v22i2p319-338 

ARTIGO

 

Enquadres diferenciados ser e fazer: a princesinha e o veneno da planta da floresta

 

Being and doing differentiated settings: the little princess and the plant's poison of the forest

 

Ser y hacer encuadres diferenciados: la princesita y el veneno de la planta de la floresta

 

 

Vera Lúcia MencarelliI; Adriana Micelli BaptistaII; Tania Maria José Aiello VaisbergIII

IDoutora em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil
IIMestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil
IIILivre-docente do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho objetiva pesquisar a potencialidade mutativa do uso de histórias ficcionais personalizadas para revelar diagnóstico de doença orgânica para crianças e adolescentes. Articula-se ao redor de sessões de atendimento psicológico de uma adolescente HIV+, registradas sob a forma de narrativas transferenciais e apreciadas à luz do Procedimento de Ambrosio e Vaisberg de avaliação de benefícios psicoterapêuticos. Por essa via, foi possível constatar que o uso da história favoreceu uma experiência mutativa de transição desde um posicionamento defendido e dissociado para outro mais integrado e menos ansioso, caracterizado pela possibilidade de maior tolerância ao sofrimento quando o pertencimento à vida comum é oferecido. Interlocuções clínico-reflexivas com a psicanálise winnicottiana finalizam o texto, evidenciando a passagem do diagnóstico HIV+ de objeto subjetivo para objeto pertencente ao mundo compartilhado.

Descritores: crianças com HIV; comunicação do HIV; método psicanalítico; enquadres diferenciados; mudança psicoterapêutica.


ABSTRACT

This work investigates the mutative potential of using personalized fictional stories to reveal to children and adolescents the diagnosis of organic diseases. It is set around psychology sessions of an HIV+ adolescent which were transcribed in the form of transference narratives and examined under the Ambrosio and Vaisberg Procedure for evaluation of psychotherapeutic benefits. Adopting this procedure, it was possible to verify that the use of stories favored a mutative experience of transition from a defended and dissociated position to a more integrated and less anxious position, characterized by the possibility of greater tolerance to suffering when the option of belonging to ordinary life is offered. Clinical and reflective dialogues with Winnicot psychoanalysis finalize the text, evidencing the passage of a HIV+ diagnosis from a subjective object to an object that belongs to the shared world.

Index terms: HIV children; HIV disclosure; psychoanalytic method; differentiated setting; psychotherapeutic change.


RESUMEN

Este trabajo busca investigar la potencialidad cambiante del uso de historias ficticias personalizadas para revelar el diagnóstico de enfermedad orgánica para niños y adolescentes. Está elaborado alrededor de sesiones de atención psicológica de una adolescente VIH+ que fueron registradas en forma de narraciones transferenciales y apreciadas a la luz del Procedimiento Ambrosio y Vaisberg de evaluación de beneficios psicoterapéuticos. Por esta vía, ha sido posible constatar que el uso de la historia favoreció una experiencia cambiante de transición desde una posición de defensa y disociada para otra más integrada y menos ansiosa, caracterizada por la posibilidad de mayor tolerancia al sufrimiento cuando el pertenecer a la vida en común es ofrecido. Interlocuciones clínico-reflectivas con el psicoanálisis winnicottiano finalizan el texto, evidenciando la transición del diagnóstico VIH+ de objeto subjetivo para objeto perteneciente al mundo compartido.

Palabras clave: VIH en niños; comunicación sobre el VIH, método psicoanalítico, encuadres diferenciados, cambio psicoterapéutico.


 

 

É fato conhecido que o psicólogo que trabalha no âmbito da saúde pública vive cotidianamente situações marcadas pelo sofrimento emocional infantil. Independentemente de questões restritas a estudos sintomatológicos, entendemos que as profundas desigualdades sociais de nosso país fazem da infância e da adolescência períodos frequentemente vividos sob a ansiedade e a insegurança decorrentes da pobreza, da doença, da exclusão social e da falta de amparo dos adultos, que estão inseridos nesse contexto de amplas dificuldades (Ambrosio, Fernandes & Aiello Vaisberg, 2013). Tal realidade figura no dia a dia de um ambulatório público referenciado para atendimento de pessoas acometidas por moléstias infecciosas, junto ao qual se encontra associado um serviço de assistência aos portadores do vírus HIV. Familiares e cuidadores são encaminhados a esse serviço para que suas crianças e jovens soropositivos recebam cuidados integrados que contemplem sua condição de saúde. Cabe à equipe multiprofissional cuidar do processo de revelação diagnóstica, levando em conta as preconizações do Ministério da Saúde1 a respeito dessa tarefa e auxiliando as famílias que encontram grandes dificuldades para a conclusão do processo, muitas vezes apresentando uma tendência a adiá-lo. Esse adiamento se dá devido ao receio de que a criança não consiga manter o necessário sigilo, gerando estigma e discriminação associados à enfermidade, bem como à culpa relativa à transmissão vertical2 (Gomes & Cabral, 2010; Gomes, Pimentel, Strasburg & Xavier, 2012; Guerra & Seidl, 2009; Paula, Cabral & Souza, 2011; Zucchi, Barros, Paiva & França Jr, 2010). Aos psicólogos, neste contexto, atribui-se o cuidado dos aspectos emocionais dos jovens pacientes e daqueles com eles envolvidos. A tarefa de revelação diagnóstica e o cuidado emocional desses jovens, temas sobre os quais as pesquisas ainda são raras (Faria et al., 2013), têm sido um dos focos de nossos estudos. Enquanto grupo de pesquisadores, buscamos atingir melhor a compreensão dos eventos associados a essa condição de saúde, bem como o aprimoramento da atuação nessa clínica (Mencarelli & Aiello Vaisberg, 2007; Mencarelli, Bastidas & Aiello Vaisberg, 2008).

Neste artigo, apresentamos uma possibilidade de intervenção psicológica que se mostrou bastante viável e objetivamos averiguar sua potencialidade mutativa. Trata-se de fazer uso de uma história ficcional para a revelação diagnóstica. Iremos nos ater ao estudo do caso de uma pré-adolescente que apresenta reagência para o HIV decorrente de transmissão vertical. Diante da necessidade da revelação diagnóstica durante o processo psicoterapêutico, foi criada uma história especialmente para ela. Outros estudiosos e pesquisadores também têm feito uso de histórias destinadas às crianças e adolescentes que vivem com HIV/aids a fim de facilitar a abordagem de eventos relativos à soropositividade. No entanto, diferentemente de nossa proposta, na qual o conto é elaborado principalmente a partir do campo intersubjetivo constituído entre paciente e psicoterapeuta, as histórias utilizadas por tais estudiosos apresentam-se de forma padronizada, tendo sido construídas previamente ao encontro terapêutico. Brondoni e Pedro (2013) empregam uma história criada objetivando preparar a criança para a revelação diagnóstica. Já Galano (2009), com seu chamado "kit de revelação", no intuito de consolidar a tarefa, cria uma encenação acompanhada de uma história na qual são utilizados brinquedos bastante específicos, como bonequinhos que representam as crianças, seu corpo e o vírus.

Nossa modalidade de intervenção, por sua vez, foi desenvolvida a partir de pesquisas empíricas realizadas no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e no Espaço Institucional Ser e Fazer (Micelli-Baptista & Aiello Vaisberg, 2004; Aiello Vaisberg, Micelli-Baptista, Ambrosio & Corrêa, 2004, 2007), se inscrevendo no que chamamos de enquadres clínicos diferenciados de atendimento psicológico. Esses enquadres constituem um modo de praticar a clínica psicanalítica denominado Estilo Clínico Ser e Fazer, resultante dos estudos liderados pela professora livre-docente Tania M. J. Aiello Vaisberg. Os fundamentos de tal estilo emergem da leitura singular que Vaisberg empreendeu da obra do psicanalista argentino José Bleger. Bleger (1963) elegeu a conduta como o objeto da psicanálise, retomando para tanto o pensamento de George Politzer (1928), filósofo que conferia à dramática humana a centralidade da descoberta germinal freudiana. Politzer, já em 1928, realizou uma crítica precisa e radical à metapsicologia psicanalítica que, a seu ver, constituía-se como movimento de abstração teorizante incompatível com a genialidade do encontro de sentido na biografia humana narrada em primeira pessoa. Partindo das contribuições teóricas destes autores, Vaisberg encontrou na obra de D. W. Winnicott, especialmente na concepção do holding materno como tarefa primeira junto ao bebê, a inspiração para o posicionamento do psicanalista no campo intersubjetivo criado com o paciente. Desse modo, o relacionamento psicanalítico se alicerça na oferta de um ambiente de sustentação como recurso clínico maior (Winnicott, 1954). Acreditamos que essa tem sido a resposta às inquietações que clamavam por recursos interventivos capazes de contemplar o sofrimento emocional do homem "encarnado" (Medeiros & Aiello Vaisberg, 2014)3.

O Estilo Clínico Ser e Fazer vem atestando benefícios clínicos e tornando bastante viável o atendimento psicanalítico em árduos contextos. Entre eles, figuram as situações de intenso sofrimento de pessoas que têm suas vidas atravessadas por adversidades potencialmente geradoras de grandes angústias, entre elas as enfermidades orgânicas. Exemplos de tais benefícios podem ser constatados na leitura de estudos que geraram mestrados e doutorados, como a dissertação de Vitalli (2004), que trabalhou com pacientes que apresentavam diagnóstico de distrofia lateral amiotrófica, e de Mencarelli (2003, 2010), que apresentou trabalhos com pacientes soropositivos para o HIV. O trabalho de Cia (2013) versou sobre casais em gestação de fetos anencefálicos, enquanto Cobert (2014) apresentou a problemática de mães e filhos que sofrem violência doméstica. Podemos, assim, vislumbrar como os fundamentos Ser e Fazer têm possibilitado a criação de práticas clínicas voltadas para as demandas impostas por dramas humanos contemporâneos. Ainda sobre o Estilo Clínico Ser e Fazer, destacamos a rica possibilidade da utilização de materialidades como facilitadoras da comunicação emocional, assim como fazia Winnicott ao realizar seu jogo do rabisco (Winnicott, 1964). Tais materialidades mediadoras, com potencial expressivo, caracterizam o que denominamos de enquadre clínico diferenciado de atendimento (Aiello Vaisberg & Ambrosio, 2008).

A modalidade interventiva, ora apresentada ao leitor, constitui-se como um enquadre diferenciado de atendimento e está inteiramente pautada no Estilo Clínico Ser e Fazer. Contamos com a criação e leitura de uma história ficcional, elaborada a partir do encontro do terapeuta com seu paciente. A história é utilizada como materialidade mediadora, visando possibilitar a comunicação emocional necessária (Micelli-Baptista & Aiello Vaisberg, 2004; Aiello Vaisberg, Micelli-Baptista, Ambrosio & Correa, 2007). Temos como fonte de inspiração a dissertação de mestrado de Safra (1984), que criou uma forma de atendimento em três etapas. Primeiramente, o terapeuta encontra os pais e constata suas queixas. Em um segundo momento, atende a criança em um contexto lúdico. Finalmente, constrói uma história a partir da compreensão alcançada a respeito da experiência emocional da criança, que é então lida aos pais. Posteriormente, os pais contam essa história ao filho fora do âmbito do consultório. Na esteira da ideia inaugural de Safra (1984), contamos ainda com o trabalho de Hisada (1995), que abordou o uso de histórias no âmbito psicoterápico.

Em nossa diferenciada modalidade interventiva, a construção da história é realizada pelo psicólogo/psicanalista, que utiliza elementos da própria experiência emocional advindos do encontro com o paciente e com os familiares envolvidos. Dessa forma, os elementos subjetivos do psicoterapeuta que se presentificam na história podem ser criados/encontrados pelo paciente, pois foram apreendidos em plano intersubjetivo. Essa profunda comunicação emocional favorece a apropriação criativa e experiências integradoras pelo paciente. O recurso da história criada e contada especialmente para alguém caracteriza esse enquadre diferenciado e facilita a abordagem cuidadosa de situações de conflito e sofrimento, constituindo uma intervenção psicanalítica de caráter sustentador (Micelli-Baptista & Aiello-Vaisberg, 2004).

Retornando ao caso clínico que ilustra este artigo, recordamos que o emprego da materialidade mediadora da história se configurou com o intuito de realizar a revelação diagnóstica do HIV para a jovem, pois o processo psicoterapêutico chegara a um período durante o qual a comunicação emocional tornara-se obstruída. Esperava-se que, com o uso desse recurso, fosse possibilitada a abordagem da condição de soropositividade da pré-adolescente. Compartilhamos a seguir, através de narrativa transferencial, a história de vida da garota, a quem resolvemos atribuir o codinome de Nadine4. Foram realizados atendimentos à jovem e a sua família, especificamente representada pela avó paterna, que desempenha ativamente o papel de cuidadora. A narrativa transferencial abrange tanto as interações entre a paciente e sua psicoterapeuta como as interações com a avó. A última, sempre ouvida separadamente da neta, pôde transmitir à profissional a história da família e, em especial, a chegada do HIV a seus membros. A narrativa compõe também o registro dos acontecimentos e as observações subjetivas dos impactos afetivo-emocionais da própria psicoterapeuta, ou seja, a percepção de sua vulnerabilidade contratransferencial (Aiello-Vaisberg, Machado, Ayoutch & Caron Beaune, 2009). Na sequência da narrativa, dispomos ao leitor a história criada para a jovem. Permitiremos, dessa forma, que o leitor entre sensivelmente em contato com a mesma materialidade mediadora à qual Nadine foi exposta.

Posteriormente, procederemos à averiguação sobre a potencialidade mutativa da modalidade interventiva utilizada, vale repetir, a criação e leitura de histórias ficcionais para a revelação diagnóstica de doença orgânica em clínica psicológica voltada ao atendimento de crianças e adolescentes. Para tal, passaremos a narrativa transferencial em revista, criando/encontrando campos de sentido afetivo-emocional para, a seguir, evoluir na observação acerca da ocorrência ou não de trânsito entre esses campos. Em seguida, abordaremos a sucessão e qualidade de tal movimento, em diálogo com o campo teórico. A adoção desse processo sistematizado para consideração da prática clínica apresenta-se conforme o que está preconizado pelo Procedimento Ser e Fazer de Acompanhamento de Intervenções Psicoterapêuticas – ou Procedimento de Ambrosio e Vaisberg (Ambrosio & Vaisberg, 2014). O Procedimento, que pode ser usado na compreensão de distintos momentos da psicoterapia, ou mesmo durante uma única entrevista psicológica, sinalizando movimentos emocionais, nos possibilitará considerar a eficácia da modalidade interventiva que foi utilizada.

O Procedimento de Ambrosio e Vaisberg – submetido aos mesmos fundamentos Ser e Fazer – constitui-se como um dos últimos desenvolvimentos, dedicados à investigação de potencialidade mutativa ou eficácia clínica de psicoterapias, alcançados no âmbito das pesquisas empreendidas sob a tutela desse espaço institucional. Veio à luz como fruto de um processo de trabalho coletivo, que combinou atendimentos a grupos, supervisões e pesquisas, sendo formalizada por Ambrosio (2013) sob forma de tese de doutorado. Debruçando-se sobre registros narrativos de evolução de um processo psicoterapêutico conduzido por outra psicóloga, a pesquisadora buscou a criação e o encontro interpretativo de campos de sentido afetivo-emocional em diferentes etapas do atendimento, averiguando a ocorrência de trânsito entre campos para, voltando às bases teóricas, apreciar as características do movimento. Assim, pôde defender a tese de que a adoção de uma sistemática de apreciação de trânsito por campos ou inconscientes relativos, desde estados menos integrados em direção a outros mais integrados, num movimento de superação de dissociações, possibilita atestar a eficácia de processos psicoterapêuticos.

 

Apresentando Nadine através de narrativa transferencial

Nadine é uma garota de dezesseis anos, nascida soropositiva e filha de pais soropositivos. Sua mãe está viva, porém seu pai faleceu há um ano, em virtude da falta de adesão ao tratamento medicamentoso. Nadine tem vivido com a avó paterna desde bebê. A revelação de seu diagnóstico foi feita há aproximadamente cinco anos, durante atendimento psicológico, ocasião na qual o estado de saúde de seu pai ainda se encontrava estável. Esse acontecimento se deu através do procedimento clínico anteriormente apresentado. A partir do manejo transicional, buscou-se alcançar maior tolerância emocional para a situação iminente de um anúncio detentor de grande potência agônica.

Quando a mãe da garota engravidou, surpreendeu-se com o ocorrido, pois nem ela nem o pai do bebê planejaram a gestação. Ambos vinham de relacionamentos anteriores e já tinham filhos. Esses filhos, um do pai e um da mãe, são soronegativos e, quando gerados, não havia conhecimento sobre o status sorológico de cada um dos futuros pais de Nadine.

A nova criança não manteve o casal unido, pois os jovens pais brigavam muito. Já nessa ocasião sabiam-se soropositivos e trocavam acusações sobre a responsabilidade a respeito da gravidez. A mãe não conseguiu aderir de forma absolutamente disciplinada às condutas profiláticas orientadas por sua médica de seguimento, condição necessária para o alcance do sucesso do protocolo que visa à minimização de risco de transmissão vertical.

Quando a paciente era uma garotinha pequena, a mãe constituiu nova parceria com um rapaz bem mais jovem. O pai manteve-se solteiro, apesar de empreender outros namoros.

Nadine não é muito próxima afetivamente da mãe, apesar de conviver regularmente com ela. Foi criada e vive com a avó paterna desde bebê por conta de sentimentos de incapacidade da mãe em cuidar de uma criança com problemas de saúde. Por outro lado, com o pai relacionava-se muito bem, tendo desenvolvido forte vínculo com ele. Adorava o pai e sentia muito ciúmes de suas namoradas.

A avó da jovem paciente ofereceu-lhe desde bebê a verdadeira função materna. Foi com ela que fizemos todo processo de sustentação emocional como parte do processo de revelação diagnóstica. Trata-se de uma senhora muito amorosa e carinhosa, sendo extremamente zelosa com a saúde da neta, mantendo-a rigorosamente aderida aos antirretrovirais. Preocupou-se precocemente com os aspectos psicológicos envolvidos em sua condição especial de saúde e, orientada pelo infectopediatra de seguimento, procurou iniciar consultas psicoterápicas regulares para a menina, com objetivo de que, quando preparada, recebesse a revelação diagnóstica.

A menina começou a frequentar as consultas psicoterápicas com aproximadamente oito anos. Inicialmente foi necessária a presença dos pais para que permitissem o trabalho que, no futuro e oportunamente, culminaria na revelação diagnóstica. O consentimento foi dado por ambos. Esperta e extrovertida, Nadine estabeleceu um ótimo vínculo com a profissional psicóloga que a atendia. Logo no início de seu processo psicoterapêutico chegou a fazer algumas perguntas sobre os remédios para a avó que, seguindo a orientação da profissional, respondeu-lhe de forma objetiva.

Nadine: Por que eu tenho que tomar estes remédios, quando vou parar?

Avó: Por enquanto você não pode parar, pois é para manter sua saúde.

No aguardo de novas perguntas que nos possibilitariam a continuidade de explicações cada vez mais próximas da verdade, a terapeuta e a avó foram surpreendidas pela transformação da conduta da garota no sentido de calar-se de forma muito determinada. Toda tentativa de aproximação à temática do problema de saúde resultava em arrefecimento de sua conduta. Quanto mais idade atingia, mais refratária a conversar sobre sua saúde ela se tornava.

Sua psicóloga chegou a perguntar-lhe claramente se não tinha vontade de ter conhecimento sobre o que a levava a fazer frequentes consultas médicas e tomar remédios continuamente. A esse tipo de intervenção, respondia que estava muito bem assim e que não precisava saber de nada. A psicóloga tinha fortes indícios para deduzir que a paciente já havia compreendido o que se passava, pois aprendera no exercício dessa clínica que a partir de certa idade, por volta dos 10 aos 12 anos, aproximadamente, o jovem geralmente começa a chegar às suas próprias conclusões, em essência corretas. O desenvolvimento e sofisticação intelectual, associados à observação de alguns elementos como os nomes dos remédios, conversas ouvidas entre familiares, exposição aos materiais informativos no ambulatório e pesquisas na internet compõem o quadro do desfecho conclusivo.

A jovem, porém, recusava-se a compartilhar seus pensamentos e sentimentos, e os primeiros sinais de depressão começaram a aparecer associados por ela ao ciúme da nova namorada do pai. Como avançar e consolidar uma revelação diagnóstica já ocorrida em seu mundo interno, sem invadi-la? Não era mais possível que ela permanecesse em solidão, sem ter companhia humana para compartilhar seu pesar. Revelar completamente o diagnóstico constituía-se na oportunidade de desfazer fantasias errôneas que frequentemente povoam o imaginário dos pré-adolescentes, incrementando sobremaneira seu sofrimento. Como possibilitar essa realização sem interrompê-la em sua continuidade de ser? A avó era categórica em afirmar que não conseguiria dar conta da tarefa de ter com ela uma conversa elucidativa, não alcançaria a tolerância emocional necessária. O pai não apresentava condições para tal comunicação, e a mãe também não seria pessoa indicada em razão da fragilidade do vínculo afetivo estabelecido com a filha. Nesse contexto é que foi escolhido o procedimento da criação e narração de história personalizada para empreender a necessária comunicação da soropositividade da jovem.

Três etapas sequenciais envolveram a realização da tarefa. A primeira etapa constituiu-se na criação da história por duas psicólogas do serviço referenciado. Uma delas era a psicoterapeuta da jovem, que contou com a ajuda de uma colega que já empreendera acompanhamento psicológico de outros jovens soropositivos. A segunda etapa ensejou a leitura da historinha para a avó em entrevista individualizada, intentando avaliar sua própria tolerância emocional e sua opinião a respeito da capacidade da jovem para a escuta. E, finalmente, após o consentimento e aprovação da avó sobre o material, em uma terceira etapa, procedeu-se à leitura da história pela psicoterapeuta para Nadine, durante sessão em que a avó esteve excepcionalmente presente. A psicóloga havia comunicado à paciente, em sessão imediatamente anterior à da apresentação da história, que existiam coisas muito importantes sobre as quais queria conversar e que havia escolhido uma forma diferente de fazê-lo, solicitando também seu consentimento para inclusão da avó no encontro. Em todas as etapas, a psicoterapeuta vivenciou profundo sentimento compassivo. Lágrimas da avó emergiram quando a leitura foi feita exclusivamente para ela, que, manifestando aceite, concluiu que esse seria um bom caminho para romper as altas barreiras erigidas pela neta para manter-se à parte da inevitável verdade.

Finalmente, quando da ocasião do encontro psicoterapêutico revelador, forte emoção tomou a psicóloga/psicanalista, que seguiu sua tarefa cautelosa e pôde observar a suspensão das defesas massivas da jovem a realizar-se no contexto de sua oferta de holding. Psicoterapeuta e avó puderam acompanhar o surgimento das primeiras lágrimas de Nadine no meio da leitura, evidenciando a percepção de que a protagonista da história era ela mesma.

Após o término da leitura encontrava-se, enfim, aberta a via de comunicação, pois uma verdadeira comunicação emocional havia acontecido. Pôde-se falar um pouco sobre a verdadeira menina que inspirou a criação da personagem. A paciente contou à sua psicoterapeuta que há um bom tempo já era conhecedora de seu diagnóstico e que aquela história era a da vida dela mesma. Pôde-se, assim, aliviar o sofrimento da jovem, colocando-a a par dos progressos alcançados pela medicina, que lhe proporcionariam uma vida muito parecida a de todas as pessoas.

 

A Princesinha e o veneno da planta da floresta: a história contada

A seguir, transcrevemos a história que foi contada à jovem pela psicoterapeuta, na presença da avó, tendo em vista que o compartilhamento desse material permite uma visão mais clara do recurso clínico ora pesquisado:

Há muitos anos, em um reino bem distante, nasceu uma linda garotinha. Ela era filha do herdeiro do reino, Príncipe Galante, e sua namorada, Linda Moça. Eles haviam se conhecido e se apaixonado nas andanças e estripulias vividas na floresta que se estendia a partir do rio que margeava o castelo real. Como Linda Moça vivia nos arredores do castelo real, sendo seu pai dono de uma estalagem, não foi difícil que se encontrassem, pois ambos adoravam passear na floresta. A jovem gostava de embrenhar-se entre as árvores e banhar-se em riachos e, assim, conseguia descansar quando o trabalho na estalagem se tornava exaustivo. Ele, por sua vez, era uma espécie de cientista nato, e sua curiosidade fazia com que se interessasse por toda nova planta, arbusto, flor ou fruto, sendo esta a motivação que o levava para dentro da floresta.

Certo dia, os jovens encontraram-se à beira do riacho. Linda Moça, depois de um banho, secava as vestes ao sol, enquanto Galante para lá havia se dirigido para lavar as mãos após dedicar-se à pesquisa de novas folhagens. Foi "amor à primeira vista", e os dois passaram a se encontrar todos os dias. O que o casal, porém, não sabia é que havia um perigo a rondá-los. Não se tratava de animais selvagens ou do risco de perderem-se na floresta, mas sim que um dos dois, não se sabe qual deles, havia entrado em contato com uma planta venenosa típica daquela floresta. Talvez tenha sido ele durante suas pesquisas, talvez tenha sido ela, pois a planta também era encontrada no fundo do riacho, onde seus pezinhos descalços encontravam apoio durante os banhos. O complicado do veneno desta planta é que ele era capaz de, após afetar alguém, passar para outra pessoa.

Somente os mais sábios do reino, como o Mago de Branco e a Fada Conselheira, sabiam como lidar com as consequências causadas àqueles que entravam em contato com a planta. Aliás, muita bobagem era dita a respeito dos perigos aos quais os contaminados pelo veneno da planta estavam submetidos. Por isso Linda Moça e Príncipe Galante ficaram muito assustados quando descobriram que haviam se envenenado. Resolveram, entretanto, que continuariam a se encontrar para prosseguir o namoro.

De repente, aconteceu uma coisa incrível: o casal iria ter um bebê! Quando o bebê nasceu, ficaram muito felizes, porque era uma linda menina, que resolveram batizar com o nome de Princesinha Bela.

– Que gracinha total! – Exclamavam todos do reino.

A alegria era tanta que o casal se esqueceu do veneno da floresta. E assim a vida foi prosseguindo. Porém, num determinado dia, quando a menininha era ainda bebê, tiveram que enfrentar um dos maiores desafios de suas vidas. Linda Moça disse a Galante que tinha descoberto algo que nenhum deles desejava. Como a natureza parecia, naquele dia, combinar com as indesejáveis notícias, chovia muito e os trovões ensurdecedores confundiam as palavras, e o casal resolveu abrigar-se em um casebre abandonado. Estando lá, ambos nem precisaram conversar, pois logo ele entendeu o que sua mulher queria lhe dizer. Compreendera que sua filhinha também havia sido contaminada pela planta da floresta. A Princesinha também estava enfeitiçada!

Era o tempo das chuvas naquele reino e pouco se via do sol. A lama e os ventos dificultavam os caminhos das pessoas e até os alimentos ficaram escassos. Esse cenário trazia ainda mais tristeza à mãe de Bela, que se sentia culpada por ter passado o veneno para a filha. O pai tentava melhorar a situação, mas ele também já não tinha mais paciência com sua mulher. Os dois começaram a brigar e se esquecer do amor que os havia unido. Saíam, mesmo debaixo das chuvas torrenciais, cada qual sozinho em seu cavalo, com raiva um do outro, e prosseguiram assim em caminhos separados até que, em um dia, decidiram se separar. Galante conhecera outras jovens, e Linda Moça também se apaixonou por outro rapaz do reino. Belinha seguiu vivendo com a Rainha Soberana, mãe do Príncipe Galante.

Sua avó, D. Soberana, era muito sábia e conhecia bem os cuidados que a querida neta precisava, pois havia recorrido à ajuda do Mago de Branco. Ele era o curandeiro mais velho do Reino e conhecia todos os remédios da floresta. Desse modo, orientou a senhora a dar à neta um antídoto contra o veneno da planta da floresta. Essa era a bem-vinda notícia: quem tomasse o antídoto poderia combater o veneno e torná-lo incapaz de fazer mal! Porém, para que isto acontecesse era necessário tomar este "remédio" todos, todos e todos os dias da vida da pessoa.

Então, o tempo prolongado das chuvas foi embora, dando espaço ao sol e à alegria. Tudo ficou mais calmo e o reino mergulhou em seus melhores dias. Apesar dos pais estarem sempre por perto, a Princesinha crescia bem e saudavelmente sob os cuidados da avó. Ela, porém, muitas vezes encontrava D. Soberana chorando ou com jeito de estar muito preocupada. Quando perguntava o motivo do choro, a avó respondia que chorava por chorar. Com certeza, não poderia esconder da neta aquele segredo, pois ela agora já tinha onze anos e, além de cada vez mais bonita, estava a cada dia mais esperta. Pensava em como esconderia coisas de uma garota tão inteligente. Como era uma avó muito cuidadosa, nunca havia deixado que ela ficasse um dia sequer sem tomar seu antídoto. Por vezes, Bela ficava intrigada e dizia:

– Por que eu tenho que ingerir estas bolinhas (o antídoto era assim) todos os dias. Não vejo ninguém no castelo fazer o mesmo. Sou diferente dos outros?

A Rainha tentava explicar, mas quando estava prestes a falar, sua neta colocava as mãos nos ouvidos. A avó ficava muito triste, pois percebia que ela não queria saber a verdade, porque tinha medo. Assim, entendeu que precisava de ajuda para enfrentar a situação. Foi aí que resolveu ir ao encontro da Fada Conselheira, amiga do Mago de Branco. A fada morava numa caverna onde existiam perfumes, enfeites mágicos, colares e pulseiras para meninas, brinquedos e material para desenhar. D. Soberana contou tudo sobre a vida de Belinha, pois a fada era muito boa para revelar segredos e por isso havia sido escolhida para ajudar. Além disso, a avó explicou que logo os rapazes do reino ficariam interessados por sua neta e, para namorar alguém, a menina deveria saber o que lhe acontecia, pois poderia passar o veneno para seu escolhido, se não tomasse cuidado.

Para dizer a verdade, já tinha um lindo rapazinho encantado pela Princesinha, e a avó já havia percebido isso há muito tempo. Numa determinada festa, notou que um dos convidados não tirava os olhos dela. De fato, não havia garota mais linda do que ela. Entendeu então que apesar de muito novinha, Belinha não demoraria a se apaixonar e querer namorar alguém do reino. Dessa forma, a Fada Conselheira resolveu chamar a jovem para sua caverna. Elas logo fizeram amizade e começaram a conversar sobre tudo, desenhar e confeccionar colares e pulseiras resplandecentes.

Num determinado dia, D. Soberana, que sempre esperava a neta fora da caverna da Fada Conselheira, entrou para participar de uma longa conversa, conforme combinado com a fada. Quando a menina notou que o assunto entre as três era sério, logo colocou as mãos nos ouvidos. A avó disse:

– Minha querida neta, não tenha medo... você já é uma mocinha e deve entender que a bravura e a coragem sempre fizeram parte da minha e da sua vida. Seus pais não puderem estar aqui neste momento, mas eu estou e isto é que importa. Não fuja, fique calma e ouça-nos.

A jovem quase fez menção de fugir, mas olhou para a avó com tanto carinho que resolveu sentar-se novamente. D. Soberana prosseguiu:

–Você se lembra de todas aquelas perguntas que você me fazia sobre as bolinhas que precisa tomar, sobre seus pais terem um segredo e sobre os cuidados que o Mago de Branco tinha por você?

– Sim! – Respondeu ela, com a cabeça baixa.

– Pois então, – continuou a Rainha – hoje você deve saber a verdade. Pedi para a Fada Conselheira ajudar-me na tarefa de revelar para você estes segredos e é por isso que estamos aqui.

– Não! – Gritou Bela – Eu não quero e não preciso saber sobre essas coisas! Quero viver minha vida em paz!

Nesse momento, a Fada Conselheira tomou as mãos da jovem e colocou em seu pescoço um maravilhoso colar. Em seguida foi para um canto da caverna e trouxe um lindo livro fechado por um cadeado.

– Belinha, este é o Livro de Revelações que fiz especialmente para você. Mas só posso abri-lo se você utilizar a chave que está neste colar. Antes de se decidir, quero dizer-lhe que nada é mais terrível do que não conhecermos a verdade. Quando existe um segredo que não é revelado ficamos perdidos e acabamos imaginando que as coisas são piores do que são na realidade. Este é o preço da ilusão: momentaneamente a sensação é agradável, mas logo se esvanece e surge o sentimento de medo. Quando nos dispomos a conhecer a verdade, as coisas tendem a melhorar. No começo podemos ficar confusos, tristes e com raiva, mas com a ajuda daqueles a quem amamos e que nos amam, podemos vencer os obstáculos.

Mesmo temerosa, a jovem levantou vagarosamente as mãos em direção ao colar que estava em seu pescoço. Com cuidado, pegou a chave que havia na ponta do colar, introduziu-a no pequeno cadeado e abriu o livro que a Fada Conselheira segurava. Lá estava toda a história de sua vida, iniciando no dia em que seus pais, na época, jovens e apaixonados, conheceram-se à beira de um riacho. A Fada Conselheira iniciou a leitura do Livro das Revelações. Com muito cuidado, as palavras foram aparecendo e, como num caleidoscópio de emoções, sentimentos fortes surgiram em todos os corações presentes. Enquanto os segredos eram revelados em sua plenitude, Bela foi compreendendo que tudo era importante, pois tudo fazia parte da sua história de vida. Era uma história difícil, tanto quanto muitas outras, mas também, digna, bela e, sobretudo, cheia de esperanças. Ao final da leitura, ela já podia erguer a cabeça. Estava emocionada com todas aquelas revelações, mas era estranho... Sentia-se, ao mesmo tempo, muito mais forte. Seus olhinhos se ergueram luminosos enquanto a avó sugeriu:

– Agora enxugue essas lágrimas e vamos para o castelo, dar continuidade a nossas vidas, como sempre o fizemos.

De fato, o dia e todas as suas luzes estavam apenas começando.

Finalizando essa transcrição, convidamos o leitor a emergir da experiência de leitura por meio da retomada da proposição primeira deste artigo, que visa investigar os benefícios clínicos do recurso mediador apresentado. Para tal, submeteremos o material clínico compartilhado ao Procedimento de Ambrosio e Vaisberg (Ambrosio & Vaisberg, 2014).

 

Consideração do acontecer clínico à luz do Procedimento de Ambrosio e Vaisberg

Neste momento, apresentamos ao leitor os esforços por nós, autoras, empreendidos para criar/encontrar interpretativamente os campos de sentido afetivo-emocionais subjacentes às condutas de Nadine, observadas antes e depois da leitura da história. Na sequência, nos dedicaremos à observação da ocorrência ou não de trânsito entre os campos, sua sucessão e qualidade, a fim de posteriormente partirmos para uma apreciação deste movimento em busca de articulação entre elementos clínicos e teóricos. Tais etapas enunciadas compõem a avaliação da potencialidade mutativa da intervenção clínica, conforme preconiza o Procedimento de Ambrosio e Vaisberg.

Em momento anterior à intervenção pontual, a menina apresentava uma constelação de condutas pautadas pelo recolhimento e massiva recusa ao compartilhamento e diálogo acerca de seu estado de saúde, tanto no âmbito do dispositivo psicoterapêutico como do lar. Tais condutas, perigosamente, pareciam iniciar a configuração de um movimento depressivo, com a presença de sentimentos de solidão, tristeza e apatia. A garota parecia evidenciar dessa maneira seu intenso medo, sustentado por fantasias terroríficas que fazem parte do imaginário social sobre a soropositividade, de confirmar um conhecimento ao qual já havia chegado sozinha a partir de suas próprias conclusões.

Somado a tais sentimentos e fantasias, podia-se observar também o comprometimento que tomou conta do vínculo estabelecido com a psicoterapeuta. A relação antes amistosa, amorosa e depositária de confiança fora contaminada por seu ódio, emergente quando das tentativas de aproximação da profissional ao difícil assunto a ser abordado. Considerando tais condutas da paciente, buscamos criar/encontrar o campo de sentido afetivo-emocional que as sustentava. Nomeamos esse campo, anterior à leitura da história, de "Não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe", pois a crença que o define nos parece ser a de que a ignorância pode proteger alguém do sofrimento.

Durante a leitura da história, foi possível observar o alívio imediato da tensão emocional anteriormente imposta pelas condutas defensivas de Nadine. A desobstrução da via de comunicação emocional entre psicoterapeuta e paciente teve lugar a partir da alteração das condutas da garota. A frieza expressa de modo defensivo, mantendo propositalmente sua psicoterapeuta emocionalmente distante, finalmente sucumbiu. Então ela chorou, na medida em que se reconheceu na personagem. Apelidada Princesinha Bela, com a intenção carinhosa de valorização de sua singularidade, a jovem não foi mais capaz de resistir ao gesto incondicional de acolhimento da psicoterapeuta e da avó diante de sua desfavorável condição de saúde. Nomeamos esse campo emergente, durante e após a intervenção da leitura, de "As primeiras lágrimas da princesa". Acreditamos que tal campo organiza-se a partir da crença de que o inaceitável se torna tolerável quando o pertencimento à vida comum é oferecido.

Debruçando-nos na observação minuciosa dos dois campos afetivo-emocionais criados/encontrados, antes e após a leitura da história, podemos atestar que houve ocorrência de trânsito, cuja sucessão e qualidade caracterizam-se pela progressão em um sentido que parte da configuração de um campo de defesas massivas, antes da intervenção, para outro menos ansioso e mais integrado após a leitura da história. Tal ocorrência e seu sentido nos permite afirmar que houve alcance de benefício em termos de atenuação do sofrimento emocional da menina.

A apreciação do sentido que toma o trânsito ocorrido nos leva, na busca de compreensão, às formulações winnicottianas a respeito do objeto subjetivo, aquele que, pertencente à fantasia, não está necessariamente relacionado à exterioridade. A objetividade não concedida ao objeto impede sua transição para o mundo compartilhado (Winnicott, 1968). Passando em revista os campos de sentido afetivo-emocionais e o trânsito entre eles à luz da conceituação winnicottiana mencionada, torna-se possível compreender a retração da jovem como movimento de manutenção do diagnóstico HIV+ como objeto subjetivo. Com a ajuda da história ficcional personalizada, atestamos uma modificação de posicionamento do objeto, que passa a pertencer ao mundo compartilhado na medida em que ganha exterioridade e aspectos objetivos. A existência do HIV+ de Nadine no mundo compartilhado, na vida "em comum", concede, enfim, a possibilidade de que se transforme em objeto a ser abordado e relativizado por aqueles que cuidam a partir de características reais, que podem torná-lo mais previsível, controlável, menos ameaçador e, portanto, mais tolerável.

Os benefícios clínicos, observados por meio do Procedimento de Ambrosio e Vaisberg de Acompanhamento de Intervenções Clínicas, permitem afirmar que o uso de história ficcional personalizada como modalidade interventiva para consumação de revelação diagnóstica, no caso estudado, demonstrou potência mutativa satisfatória. Conclui-se que essa estratégia clínica pode apresentar-se como alternativa para abordagem de difíceis comunicações referentes a restrições e perdas associadas à doença orgânica em assistência psicológica a crianças e adolescentes.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
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veramencarelli@hotmail.com

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aiello.vaisberg@gmail.com

Recebido em junho/2016.
Aceito em agosto 2017.

 

 

NOTAS

1 .Segundo as preconizações do Ministério da Saúde (2009, 2013), são diversas as considerações a respeito da revelação diagnóstica de sorologia positiva para o HIV em crianças e adolescentes. Sua realização e a garantia de confidencialidade são condições fundamentais na assistência a essa população. A tarefa deve ser de caráter processual, gradual, progressivo e contínuo, levando-se em conta aspectos como idade, sexo, desenvolvimento cognitivo, maturidade psicológica, situação clínica, contexto psicossocial e configuração/dinâmica familiar, realizando-se de forma individualizada, após ser consentida, discutida e planejada em conjunto com pais ou responsáveis. Recomenda-se que a família e equipe iniciem o processo o mais cedo possível, aproveitando as manifestações espontâneas de curiosidade e respondendo às indagações de forma simples e objetiva, podendo lançar mão de recursos lúdicos como brinquedos, desenhos ou teatro. A consumação da revelação, propriamente dita, pode ser empreendida por familiares no âmbito do lar ou no âmbito dos serviços de cuidados, conduzida por um ou mais profissionais na presença ou não de familiares. Deve-se considerar que o evento se define como momento crítico, constituindo-se experiência difícil para maioria dos pais ou cuidadores, pois, além do desconforto em relação à exposição da história familiar, pode colocar em andamento sentimentos de medo relativos à reação emocional da criança ou adolescente, bem como a sua capacidade de manutenção do sigilo, o que leva ao temor do preconceito e discriminação. Considera-se, porém, que se trata de evento inevitável que traz como benefício o alívio advindo da quebra da barreira do silêncio no seio familiar e a facilitação do diálogo com a equipe de cuidados na busca pela melhora da adesão ao tratamento e aos antirretrovirais. Espera-se também que diminua os sentimentos de solidão e enriqueça vínculos, consolidando a confiança naqueles que cuidam. Após a consumação da revelação, deve-se manter acompanhamento psicológico com vistas a monitorar o impacto emocional da comunicação, que pode provocar alívio, mas também raiva, medo, tristeza e ansiedade, sentimentos que podem fazer com que o processo de aceitação do diagnóstico se prolongue. Por fim, deve-se considerar a confidencialidade a ser assegurada em todas as esferas de convivência da criança e do adolescente, procedendo à comunicação do diagnóstico no contexto escolar apenas se houver benefício para o jovem vivendo com HIV.
2. Transmissão vertical é o termo usado para referir a situação na qual a condição de soropositividade da criança é decorrente da soropositividade materna.
3. Os fundamentos Ser e Fazer podem ser encontrados na ampla gama de artigos reunidos no site www.serefazer.psc.br. Recomenda-se, de maneira especial, a leitura de artigo apresentado na X Jornada Apoiar, em 2012, intitulado "Os fundamentos do estilo clínico Ser e Fazer".
4. Como habitual em produções acadêmicas, um nome fictício substitui a verdadeira identidade da jovem paciente.

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