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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.22 no.3 São Paulo Dec. 2017

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v22i3p1-13 

ARTIGO

 

A possibilidade clínica do ritmo: uma trajetória com uma criança autista

 

The clinical possibility of rhythm: a trajectory with an autistic child

 

La posibilidad clínica del ritmo: una trayectoria con un niño autista

 

 

Maíra Lopes AlmeidaI; Anamaria Silva NevesII

IMestranda em Psicologia no Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia, MG, Brasil
IIProfessora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia, MG, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho tem como objetivo apresentar o ritmo como um elemento possível no atendimento clínico a crianças autistas. Propõe-se analisá-lo como condição fundamental pela qual a construção subjetiva perpassa e que, por isso, constitui-se aspecto indispensável no trabalho clínico. Como estratégia metodológica, retratamos a trajetória de atendimento a Lucas, um garoto de três anos diagnosticado como autista, e sua família. A partir das reflexões geradas pelo caso, discute-se as especificidades da clínica com crianças autistas e as alternativas que o ritmo, como aspecto primordial do sujeito, traz ao analista.

Descritores: Ritmo; autismo; psicanálise; clínica; infância.


ABSTRACT

This work presents as a goal to present rhythm as a possible element in clinical care for autistic children. It is proposed to analyze it as a fundamental condition by which the subjective construction permeates and, therefore, constitutes an indispensable aspect in clinical work. As a methodological strategy, we reported a trajectory of care for Lucas, a three-year-old boy diagnosed as autistic, and his family. From the reflections generated by the case, it is discussed the specificities of the clinic with autistic children and the alternatives that the rhythm, as the primordial aspect of the subject, brings to the analyst.

Index terms: Rhythm; autism; psychoanalysis; clinic; childhood.


RESUMEN

Este trabajo tiene como objetivo presentar el ritmo como un elemento posible de atención en el atendimiento clínico a niños autistas. Se propone analizarlo como una condición fundamental por la cual la construcción subjetiva permea y que, por lo tanto, se constituye como aspecto indispensable en el trabajo clínico. Como estrategia metodológica, retratamos la trayectoria de atendimiento a Lucas, un niño de tres años diagnosticado como autista, y su familia. A partir de las reflexiones generadas por el caso, se discuten las especificidades de la clínica con niños autistas y las alternativas que el ritmo, como un aspecto fundamental del sujeto, trae al analista.

Palabras clave: Ritmo; autismo; psicoanálisis; clínica; infancia.


 

 

Introdução

Na Idade Média, quando os europeus se aventuravam em andanças por territórios distantes, levavam consigo os trugimães. Assim, quando chegavam em lugares nos quais os habitantes falavam línguas desconhecidas, eram esses homens, os trugimães, os responsáveis por traduzir para eles o que esses povos diziam. Além disso, traduziam também gestos e atos, de forma a fazer com que os europeus considerassem admissível o que para eles ainda soava tão estranho.

É com essa história, relatada no livro Rumo à fala, de Marie-Christine Laznik (2011), que proponho iniciar conjecturas sobre as especificidades e possibilidades da clínica com crianças autistas. Os trugimães, figuras esquecidas e relegadas à Idade Média, podem ser pensados como uma analogia ao que, muitas vezes, é vivenciado na análise dessas crianças. Nessa clínica, cabe também ao analista tornar íntimo o estranho que ronda essa família e constituir-se, além de intérprete, em destinatário das mensagens dessa criança, que antes caíam no vazio (Laznik, 2011).

A partir das particularidades dessa clínica e dos conceitos fundamentais à psicanálise da infância, neste trabalho efetuo um recorte da alternância constitutiva. Articulo, então, essa alternância à possibilidade de trabalho clínico.

A construção do caso de Lucas, sujeito em questão, torna possível observar como essa alternância, registrada com um componente descontínuo, é fundante para o sujeito. A partir do ritmo que se instaura na cena analítica, Lucas pode transitar entre barulhos ensurdecedores a seus próprios sons. Essa alternância, então, parece compor-se como uma especificidade clínica basilar no trabalho com crianças autistas.

 

Lucas: o filho da mãe

A mãe de Lucas, Joana, procura atendimento para o filho em uma clínica-escola devido ao recente diagnóstico de autismo do garoto, cunhado por um neuropediatra. O menino tem três anos e comparece sempre acompanhado da presença materna. Nas primeiras sessões, Joana apresenta uma preponderância do discurso científico do autismo em relação à sua própria experiência com o menino. Conta que o filho vive em seu próprio mundo, não olha ninguém nos olhos, não aceita ser pego no colo e não emite som algum. Afirma ser calada, como todos em sua casa, e se incomodar, principalmente, por Lucas não fazer sons, "até que ele ser mexelão, assim agitado, não me incomoda... o problema é ele não conversar [sic]".

Joana é mãe de outras três meninas, mais velhas, com idades de 22, 20 e 17 anos, e afirma que não queria, de forma alguma, ter tido outro filho. Antes de morar com o pai de Lucas, ela manteve outro relacionamento e engravidou das duas filhas mais velhas. Assim, logo que se separou, conheceu João, pai da filha mais nova e de Lucas, com quem mora atualmente.

O casal se conheceu em um baile, pouco tempo depois de ela se separar do pai das filhas mais velhas. Um mês depois do baile, ela descobriu estar grávida dele. Nessa época, ambos moravam com os pais e resolveram continuar se relacionando, mas sem morar juntos. Nasceu Juliana, que foi criada na casa com a mãe e os avós, mas tinha alguma convivência com o pai em finais de semana e feriados.

Três anos antes da chegada à clínica-escola, Joana teve acesso a uma casa financiada pela prefeitura e resolveu que iria sair da casa dos pais. No entanto, as filhas não quiseram ir morar com ela, pois já estavam acostumadas à rotina na casa dos avós. Na única sessão em que compareceu, a filha mais jovem diz "eu não queria sair da casa da minha vó, ela levou minhas roupas, me obrigou [sic]". Joana, então, pressionou João para que, após 15 anos de relacionamento, passassem a morar juntos. De início relutante, ele afirma que só vai caso tenham um filho do sexo masculino, pois não viu Juliana crescer e gostaria de ter um filho homem. Joana afirma diversas vezes que não queria ter um filho, pois já tinha visto as outras filhas crescerem. Contudo, decidiu atender ao pedido do companheiro, que cumpriu a promessa e foi morar com ela. Assim, ela engravida e nasce Lucas.

A mãe conta que durante a gravidez do menino passou muito mal, sentiu-se muito ansiosa, teve muitos enjoos e parou de trabalhar, e fala "meu marido quis, a gente saía, não tinha bagunça em casa mais, filhas criadas, eu queria não, mas aí ele queria né, aí foi [sic]".

Com Lucas, em nossos primeiros encontros é possível notar um garoto que não vocaliza. Imerso em seu silêncio, fita a janela enquanto permanece a maior parte do tempo dos primeiros atendimentos agarrado à mãe, não atendendo às solicitações de ir brincar. As sessões se configuram como se em todo tempo déssemos um grande mergulho na ausência daquele pedaço de céu nublado que podia ser visto pela moldura da janela. Algumas vezes, Lucas levanta, olha os brinquedos, pega-os e volta ao colo da mãe. Não me olha nos olhos e volta a fitar a janela.

 

Entre o silêncio e os barulhos ensurdecedores

Os atendimentos ganham uma diretriz quando os diversos sons possíveis que existiam na sala dos encontros com Lucas passam a fazer parte da cena psicanalítica. Nesses momentos iniciais, os sons que vão surgindo durante nossos encontros permitem a formação de um vínculo inicial, porém frágil, que se rompe a cada vez que os sons se tornam altos demais ou ininterruptos.

Logo nas primeiras sessões, Lucas faz barulhos ensurdecedores. Nas poucas vezes em que sai do colo da mãe e rompe com a janela, dirige-se a uma mesa que existe na sala e abre uma das gavetas. Quando vai fechá-la, usa de muita força, produzindo um barulho muito alto e estridente. Em outros momentos, vai até uma casinha de brinquedo da sala, que possui um telhado dobrável no meio, sendo possível subi-lo e descê-lo. O garoto, então, sobe o telhado o máximo que consegue e o solta, novamente, fazendo outro barulho bem alto. Lucas, então, ao se afastar do colo da mãe e da janela, começa a se alternar entre esses dois sons possíveis. Movimenta-se pouco pela sala, indo somente até a gaveta ou a casinha.

Durante as sessões iniciais, esses barulhos altos permaneceram por algum tempo, até que o acompanho. Esses barulhos tão altos eram sempre entrelaçados à completa ausência. Lucas retornava ao colo da mãe e mergulhava, novamente, naquele pedaço de céu contornado pela janela. Mais uma vez, estávamos imersos naquilo que se configurava como uma soberania do silêncio.

Diante desses movimentos em sessão, que alternavam entre o nada e o barulho ensurdecedor, sou impelida, ainda que inconscientemente, a tentar dar um fim nesse gritante descompasso. Insiro nas sessões um xilofone que poderia instaurar a possibilidade de fazer marcações e estabelecer um ritmo diante de alternâncias tão bruscas. A partir dessa escolha, há um novo norte nos atendimentos.

Com o xilofone em sala, a criança percebe a sala sensorialmente, toca nos objetos e no espaço, visualiza para além da janela e faz sua primeira vocalização em sessão. A partir disso, outros barulhos tornam-se constituintes das sessões. Tudo o que provocasse o mínimo de perturbação no silêncio era utilizado, como agitar algumas chaves, usar um cone pertencente a um brinquedo de trânsito como apito, um jacaré que fala, entre outros. Todos esses barulhos, incluindo o xilofone, foram tornando-se parte dos atendimentos, de forma que possibilitaram que Lucas, aos poucos, fosse podendo deixar de olhar para a janela e para o instrumento, direcionando seu olhar a mim.

Nosso vínculo, assim como um instrumento que tem que ser afinado para produzir um belo som, foi sendo afinado paulatinamente, a cada novo som, a cada nova interrupção e a cada novo silêncio. No começo, os barulhos altos, quase insuportáveis, contavam com uma angústia imensa, com um desconhecido que, aos poucos, ia se apresentando ao garoto e à sua mãe que, calada, também tem a oportunidade de expressar pela primeira vez seus sentimentos em relação a esse filho que vem com a função de cumprir um desejo de João.

Ao longo das sessões, o xilofone se torna preponderante e os barulhos ensurdecedores abrem espaço para a melodia de Lucas. Assustado, inicialmente tocava o instrumento e corria para a mãe, não conseguia terminar a música. Aos poucos, o menino começa a se expressar em diferentes brincadeiras.

É possível supor, então, a dimensão particular que o toque e o olhar adquirem na clínica com crianças autistas. O xilofone introduz nesse atendimento a rica e fascinante experiência de uma clínica que atenta aos detalhes, às minúcias e aos pormenores da construção subjetiva.

Assim, a partir dessa musicalidade primitiva que estava presente nas mais diversas melodias que entrelaçavam as sessões, começamos a conhecer, de fato, os sons de Lucas. Afinal, como diz a mãe, "acho que deu vontade né... descobriu que pode falar" (relato escrito da 14ª sessão).

 

As articulações entre a escuta da dinâmica familiar e os sons de Lucas

O investimento para a escuta dessa família esteve presente desde o início. No entanto, houve diversas justificativas do pai e das irmãs de Lucas de que não poderiam comparecer. Diante disso, as sessões contavam sempre com a mãe e Lucas e, quinzenalmente, com o pai.

Joana se mostrava muito angustiada com a cena que apontava para o filho que não desejava ter e o marido que "quando viu o filho autista, ele largou e é só meu... esse filho é da mãe" (relato escrito da 3ª sessão). O pai, em suas raras participações no atendimento, brincava reservadamente com o menino, fazendo sons nas cortinas e na mesa, aos quais Lucas repetia incessantemente nas sessões com a ausência do pai.

Em um dos atendimentos, Joana conta que ela e o filho não têm lugar no sofá da casa, que todos chegam e se sentam sem ao menos ceder espaço para que mãe e filho possam também se sentar. Assim, ambos ficam no fundo da casa, brincando com a cadela Cristal, que é muito amada por Lucas. A mãe se emociona muito e diz perceber que os dois são o resto dessa família. Excluídos, ocupam apenas o fundo da casa, sem o direito de tomar posse desta casa que ela tanto desejou ter. Com essa fala, lembro-me das entradas de Lucas em sessão, nas quais ele sempre procurava mergulhar dentro do lixo. Associo com ela essa brincadeira do menino e Joana afirma que o lixo é o lugar mais familiar na sala de atendimento para ele, já que em casa eles são também o resto.

A partir dessa sessão, o lixo não foi mais objeto das brincadeiras de Lucas, que se concentraram nas músicas. Em uma dessas vezes, nos sentamos em uma mesa, frente a frente, e comecei a bater minha mão na mesa, ele também. No meu silêncio, Lucas bate, me ensina esse ritmo e nós rimos. O menino está extasiado em poder controlar meu ritmo e percebo que estamos fazendo uma música com as mãos. Paro de tocar e agora, nas pausas, é ele quem fala – gritos de todos os tipos que se misturam aos meus risos. Passamos toda a sessão assim, prendemos nossos olhares, não olhávamos nossas mãos, ele coordenava o ritmo e nós tocávamos nos olhando.

Joana denuncia a melhora do menino na escola, corroborada pela fala das professoras. Lucas se aproxima da mãe, que agora consegue também conversar com o menino. Na sessão seguinte, ao nosso ritmo das mãos na mesa, o garoto passa a estender os braços para a mãe, pedindo colo, e ela oferece várias desculpas para não o pegar. Em um momento, ela diz "não posso, Lucas, você é muito pesado [sic]". Repito a ela "o Lucas é um peso para você, não é?". Aproximo-me do garoto, que agora estende os braços para mim, e o pego no colo, ao passo em que ele me abraça fortemente. Em seguida à minha fala, ela diz "um peso, uma criança... criança que veio em casa de adulto [sic]". Lucas responde a ela, pela primeira vez, dizendo corretamente "mamãe" (relato escrito da 20ª sessão).

Conversamos sobre a dificuldade dessa família em se comunicar e se relacionar, uma família que parece ter em comum apenas o fato de morar e terem se reunido em um mesmo espaço físico. No entanto, esse espaço parece não ter se constituído enquanto casa, palco de intimidade e enlace de uma família. Embora se esbarrem por esse espaço, há um pacto velado de silêncio. Não conversam entre si e Lucas, que emite barulhos no sagrado espaço da sala de TV, tem que ser rapidamente retirado para o fundo da casa. Não se olham e são indiferentes à presença uns dos outros.

Atualmente, o vínculo iniciado com o xilofone não se restringe mais somente a este, embora seja a referência nas sessões. Após um longo tempo de afastamento, Lucas retorna chorando, mas ao ouvir o som parece recordar-se de todo o vivido e volta a falar e a estar comigo.

Após muita insistência, em um dos últimos atendimentos o pai vai para a sessão e se aproxima do xilofone pela primeira vez. Ele, então, assim como Lucas, começa a tocar, não consegue terminar, depois volta e, finalmente, toca uma música tão bonita quanto uma canção de ninar. Lucas se deita próximo à mãe, olha o pai fixamente e fica maravilhado com a música dele.

Assim tem se constituído o trabalho clínico com essa família: escutar e resgatar as melodias elementares dos sujeitos. Como bem percebido por Rubem Alves (1997, p. 20):

A alma é sinfonia, música.... A verdade da alma é música. As palavras são só um suporte. Elas existem para produzir o espaço vazio e silencioso de que a música necessita para existir. Sabem disso os amantes: não são as palavras que contam. É a música.

 

Discussão

A clínica com o infans autista ainda se constitui um desafio, no qual a grande aposta para aquele que não fala é a de estabelecer uma linguagem. Problematizo, assim, a importância da presença e da ausência na constituição subjetiva, posto que essas duas condições estruturantes, se ritmadas, permitem o surgimento de um sujeito desejante. Mannoni (1986, p. 58) afirma que "é o limite da ausência e da presença que constitui o sujeito". A partir disso, compreendo que levar esse conceito para a clínica, sobretudo a de crianças com hipótese diagnóstica de autismo, é fundamental e pode inaugurar várias alternativas de trabalho psicanalítico com essas crianças.

A organização psíquica da criança perpassa pelo encontro com o Outro. É por esse indivíduo já inserido na ordem simbólica e portador da linguagem que o bebê conhecerá o mundo e será convidado a pertencer a essa mesma ordem, como afirmam Paravidini, Neves e Ferreira (2013).

A origem etimológica da palavra voz apresenta um aspecto importante nessa discussão. Relacionada ao latim vox, é fundamental, pois significa vocalizar ou produzir um chamado. Assim, é a mãe, essa primeira presença materna, quem oferecerá a voz ao bebê, amparando e elucubrando suas fonações enquanto um chamado (Jerusalinsky, 2011).

A mãe é a figura necessária à instalação de uma primitiva alternância, ou seja, produzir um intervalo, e isso só é possível na exata medida em que julga que o bebê tem algo a dizer. Esse cuidador responsável pela função materna conjectura e sustenta a alteridade e, ao mesmo tempo, supõe o desejo nessa criança.

Quando a mãe silencia, dando espaço para que advenha a fonação do bebê – sustentando para ele a matriz dialógica –, este produz ali suas vocalizações que se dirigem ao outro e que comparecem no intervalo, nessa brecha que o outro sustenta para ele (Jerusalinsky, 2011, p. 68).

Assim, a partir desse intervalo possível de ser sustentado, retomamos com Jerusalinsky (2011) a diferença radical da origem da palavra voz, referente ao latim vox, que consiste em produzir um chamado, em oposição ao grego phone, que se remete à produção do som. Desse modo, pelas vias da constituição do sujeito, é necessário que a mãe tome as fonações do bebê enquanto um chamado para que a dimensão da vox, e não apenas a do grego phone, se instale entre a dupla.

Segundo Vorcaro (2001), as manifestações orgânicas do bebê são para a mãe, ou para aquele que desempenhe a função materna, como mensagens. Assim, essas manifestações essenciais para a sobrevivência do recém-nascido são tomadas como signos que representam um ser para outro humano. "Portanto, a resposta do agente materno às manifestações do organismo é imposição que sobredetermina a inserção do ser no campo da linguagem" (Vorcaro, 2001, p. 275).

Se a mãe se entende como destinatária desse chamado remetido pelo bebê, ela pode, com a musicalidade de sua voz associada ao silêncio de quem aposta em um "algo a dizer" dessa criança, fundar uma alternância. O que há de basal nessa musical voz materna é seu componente descontínuo, sendo esta alternância significante devido a sua peculiaridade faltante.

A criança só poderá ocupar o lugar de desejado e de ideal se reconhecer a falta na mãe, se for envolvido pelos objetos a da mesma – dentre eles, a voz. Essa descontinuidade indica, além de presença e ausência da mãe, a ausência na presença da mesma, o que institui uma série de representantes e significantes (Paravidini et al., 2013, p.190)

Não por acaso, a audição é um dos primeiros órgãos a se desenvolver, sendo que por volta do quinto mês de gestação já está presente no bebê. Caracteriza-se, assim, que o ser se insere na fala primeiro pela escuta. Para um falante é necessário que haja um ouvinte que se entenda nesse lugar de recepção. "A escuta antecede a fala e é porque alguém a escutou, se endereçou a ela sustentando a hipótese de que um dia ela responderia, que uma criança poderá tomar a palavra um dia" (Catão & Vivès, 2011, p. 87).

Dessa forma, "aquilo que o feto escuta deixa marcas, que se transformam em traços, que sofrem um apagamento, cujos vestígios se organizam enquanto significantes" (Catão & Vivès, 2011, p. 85). Contudo, para que haja a estruturação nessa rede de significantes é necessário que haja um laço com esse outro portador da linguagem. A voz, enquanto chamado, como enunciação e endereçamento é o que abre o campo para esse laço.

No caso da criança autista, Catão e Vivès (2011) propõem que para que a fala possa se constituir é necessário que haja uma ressonância no chamado da voz, ou seja, a criança escute o chamado da voz que é possível de ser ouvido no endereçamento. No entanto, o sujeito autista não emerge ao ensurdecimento necessário da voz do Outro. Há uma recusa ativa da voz por esse sujeito, que recua diante do imenso e ameaçador campo da linguagem.

Contudo, é importante também pensar que no instrumento denominado Indicadores Clínicos de Risco Psíquico para o Desenvolvimento Infantil (Irdi), construído com base no referencial psicanalítico, há um eixo específico sobre a alternância presença-ausência. Esse eixo se articula e possui íntima relação com os outros, a saber: suposição do sujeito, estabelecimento da demanda e função paterna (Jerusalinsky et al., 2010). No entanto, o que isso parece sublinhar é a função específica e capital que essa alternância desempenha na construção psíquica.

É possível, então, supor que a constituição do sujeito perpassa, necessariamente, a uma instauração rítmica. Como afirma Carvalho (2012, p. 794), "poderíamos supor que crianças com hipótese diagnóstica de autismo, por algum motivo, teriam ficado presas à musicalidade da voz do outro, o que teria constituído um obstáculo a sua trajetória linguística". No entanto, essa mesma musicalidade pode constituir momentos singulares que movimentem a criança.

O que o caso de Lucas parece apontar refere-se, justamente, ao ritmo como uma possibilidade específica e intrínseca ao trabalho clínico com crianças autistas. Faz-se relevante delimitar que, apesar de o caso relatado destacar a introdução de um instrumento musical nas sessões, o ritmo não se restringe a este, sendo possível de ser vivenciado de diversas maneiras.

O trabalho analítico com Lucas necessitou do suporte a seus barulhos, sobrevivendo a eles e traduzindo-os. Assim, eles se tornaram "mensagem para o destinatário que nós somos" (Laznik, 2011, p. 18). O xilofone, quando colocado em operação na cena analítica, foi a ponte para a instauração de um componente descontínuo, ritmado e que exibia seus furos em contraposição à violência dos barulhos estridentes e constantes.

A partir desse endereçamento suposto pelo analista, foi impedido que suas mensagens caíssem mais uma vez no vazio, de modo que houve uma possibilidade de ressonância na qual o garoto pode também se escutar, fazendo que em algum momento essa criança se reconhecesse como fonte dessa mensagem, como aponta Laznik (2011).

Acentuo também o trabalho de intérprete proposto por esta autora, de um analista que pode traduzir aos pais sinais que a eles parecem tão estranhos. No caso de Lucas, a partir da compreensão de sua história e de significar barulhos e brincadeiras, Joana pode ter restituído, ao menos parcialmente, sua preocupação materna primária, conceito de Winnicott (1956/2000) que se refere à sensibilidade materna para lidar o bebê e se adaptar às suas necessidades. Joana abre um interstício para se comunicar e nomear o mundo para esse menino. Não obstante, ela própria consegue nomear, no atendimento, a brincadeira de Lucas de "mergulhar no lixo". Em suas palavras, é uma brincadeira representante do que a dupla vive na própria casa.

Além disso, a mãe, que durante seis meses sentou-se completamente afastada de nós nas sessões, começou a se movimentar pela sala, até que um dia conseguiu sentar-se à mesa de criança junto a mim e Lucas. Ela fala, então, que percebe o quanto prendeu o menino, pois nas férias escolares, ao leva-lo à noite para passear no centro, viu seu olhar encantado pelas luzes e diz:

no começo tudo bem, ele dava trabalho, tinha medo, dava piti, chorava, mas agora ele mudou né? Eu fiquei triste, porque levei ele no centro e parecia aqueles cachorros engaiolados que sai e quer pular em tudo, mas no caso dele, ele só olhava sem parar as luzes, parecia que nunca tinha visto, a gente prendeu muito ele. Mas agora eu entendo também que se eu conversar, ele entende, ele começa a chorar porque tá indo pra escola e eu falo "calma Lucas, você vai ficar lá só um pouquinho, é só a tarde" e ele para de chorar. (Relato escrito da 15ª sessão)

Joana consegue, de alguma forma, dirigir um novo olhar a esse menino que parecia tão estranho a todas as suas expectativas de como deveria ser uma criança. Durante algumas sessões, percebo como a mãe ao chamá-lo sempre se refere como "Lucas" ou "Menino". Assim, há um desencontro inicial de Joana com esse garoto que vem com a marca e a função de ser do sexo masculino.

Com o decorrer do tempo de atendimento, em algum momento, ela consegue assumi-lo como "filho". Mais importante que isso, ao assumir Lucas como filho, Joana se assume como mãe. Conjecturo que, na representação materna, esse menino pode tornar-se filho, ainda que da mãe.

Por outro lado, João se envergonha do garoto. A partir de uma fala sobre esse pai, Lucas consegue articular sua primeira palavra que se refere ao "não". René Spitz (2004) estabelece como o terceiro organizador psíquico o "não" que, para ele, seria o ponto de inicio da humanização e da sociedade, pois é a origem da comunicação verbal.

A gravidez de Lucas, fruto do desejo paterno, relaciona-se fortemente às questões edípicas de João e apontam para sua própria dificuldade em efetuar a separação da casa materna. No entanto, o nascimento de um filho que não corresponde a seu imaginário e, consequentemente, ao de Joana impede que Lucas encontre espaço nesse grupo familiar.

O trabalho analítico, então, retoma o curto-circuito efetuado no confronto entre o bebê imaginário e o bebê real. Segundo Solis-Ponton (2004), é por esse confronto que a criança encontrará seu lugar na família. Podemos supor que no nascimento de Lucas houve um momento de impasse que impediu a confrontação e produziu um curto-circuito nas relações. Na cena analítica, o xilofone pode ter se constituído como mediador, como fazem pensar as produções iniciais de barulhos ensurdecedores e o posterior silêncio.

Embora o ritmo tenha se delineado, no caso de Lucas, a partir de um instrumento musical, é possível resgatar que a alternância pode se instaurar para além das músicas e produções vocais. Benjamin (2007) traz importantes elementos para o cuidado nos níveis sensorial e relacional, assim como Tafuri (2000).

Nesse sentido, o caso de Lucas suscita que o ritmo, em seus componentes musicais, vocais, sensoriais e relacionais, constitui-se possibilidade clínica basilar aos atendimentos com crianças autistas. Essa compreensão não indica uma busca desmedida à instauração de alternância, na medida em que há também um tempo de espera primordial, de continência e de atenção aos movimentos singulares do infans. No entanto, esse entendimento implica que o analista esteja atento a esses movimentos e possa estar disponível para operar as especificidades que esse trabalho clínico demanda.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Av. Pará, 1720 – Bloco 2C
38405-320 – Uberlândia – MG – Brasil.
maira.psicoufu@gmail.com
anamaria@umuarama.ufu.br

Recebido em março/2017.
Aceito em dezembro/2017.

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