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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.22 no.3 São Paulo dez. 2017

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v22i3p1-12 

RESENHA

 

Os destinos do sintoma: psicanálise, ciência, religião e capitalismo

 

 

Heloisa Helena MarconI

IPsicanalista. Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Doutoranda do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), docente do Curso de Especialização em Psicologia Hospitalar e da Saúde do Hospital Santa Catarina de Blumenau, Blumenau, SC, Brasil

Correspondência

 

 

L'effet révolutionnaire du symptôme
Sauret, M.-J.
Toulouse, France: Édition Érès, 2008, 280 p.

Para ser mais preciso, a situação atual é uma chance caso o sujeito encontre um outro vivente que com ele faça a aposta de que a vida vale a pena ser vivida, à condição de inventar, a cada vez, o "viver-junto".

(p. 141)

L'effet révolutionnaire du symptôme, livro de 2008 do psicanalista francês e professor de psicopatologia clínica em Toulouse, Marie-Jean Sauret, se inscreve na coleção "Humus, subjetividade e laço social" que vem publicando trabalhos cujo objetivo é pensar a cultura contemporânea, os discursos e o laço social, e os efeitos de produção de uma nova economia psíquica, logo, de novos sintomas. Constituído por conferências, aulas, intervenções em seminários e colóquios realizados por Sauret ao longo dos anos 2000, o livro é organizado em quinze capítulos divididos em quatro eixos temáticos: I. A sociedade psicoterapêutica; II. O Outro e o amor; III. A questão do pai; IV. A resposta do sintoma.

O autor começa o livro introduzindo o leitor nos temas que atravessarão todas as discussões dando o tom do caminho a ser percorrido: as mutações do laço social que correspondem hoje ao discurso capitalista cuja promessa de completude nos coloca, por um lado, mediante a ameaça à psicanálise e, por outro, diante da necessidade da psicanálise na medida em que ela muda a relação do sujeito aos bens, à tecnociência e ao consumo. "O discurso capitalista repousa sobre a convicção que a ciência torna compreensível tudo o que nós teríamos a conhecer, a tecnociência pode fabricar tudo isso de que nós temos necessidade e que o mercado nos dará acesso a tudo o que nos falta" (p. 7). Diante desse triplo tudo, Sauret coloca a cura psicanalítica como saída ao capitalismo enquanto ela desfalca o objeto (que a tecnociência fabrica), o saber (o que teríamos a conhecer), e o gozo (que o mercado nos daria acesso). No entanto, lembra a caça aos psicanalistas e à psicanálise nas universidades que só aceitam uma psicanálise que esteja de acordo com o ponto de vista da psicopatologia experimental, o cognitivismo, as neurociências ou o modelo biopsicossocial.

A partir da pergunta "A psicanálise apresenta ainda algum interesse no mundo de hoje?" o autor percorrerá conceitos fundamentais e que diferenciam a psicanálise das psicoterapias, sobretudo o de sujeito que, para a primeira, não coincide com a pessoa ou o indivíduo. Sauret situa a psicanálise como o único dispositivo clínico que considera e acolhe o outro como sujeito.

A psicanálise chama sujeito isso que fala no indivíduo, o que deve desde então tirar as consequências da resposta a sua questão e da natureza dessa resposta. Ora, o que caracteriza essa última é que ela é linguagem e que, nas palavras que ela usa, o sujeito não é senão representado, in absentia: ele não está ali in effigie, ele falta a ser. É essa falta que Freud registra como desejo (p. 15).

Mas o sujeito é apenas representado na linguagem, reencontrando o enigma do que ele é, e para o qual, ali, ele só dispõe de palavras para responder. Nesse sentido o real do sujeito constitui um buraco no saber – o que Freud chamou de inconsciente ou recalcamento originário. Lacan chama de gozo essa falta-a-ser como a falta que causa o desejo – substância negativa que o sujeito encontra como perdida, mas que é fantasiada como o que lhe restituiria seu ser em falta. O sujeito que enuncia é a primeira coisa que o significante representa desde que é tomado numa cadeia significante; o sujeito se dobra, assim, ao fato que, na linguagem, ele só é representado. O que o sujeito encontra na linguagem é um representante, dito de outro, sua própria ausência, sua falta de ser real, de onde, o desejo. A falta a ser não é curável a não ser ao preço da extinção do desejo que o causa, ou seja, ao preço da morte do sujeito. Nesse sentido: "Ou eu falo e eu falto, ou eu não falto e, aí, não desejo e, então, eu me calo – definitivamente: morte enquanto sujeito" (p. 106).

O humano tem, assim, um duplo nascimento: como animal e como falante. O que ele é como vivo, sua existência, está em conflito com ser sujeito, "com a prisão do ser formatado que ele recebe do Outro" (p. 68). A partir da estrutura do sujeito e da necessária dependência do Outro para sua constituição, na medida que devemos pegar emprestado do Outro sua sintaxe, seu vocabulário, sua gramática e seus códigos para subvertê-los quando vamos falar, o psicanalista francês aponta a tautologia em nomear "sujeito de fala" pois a fala é o ato a partir do qual se verifica a existência do sujeito, ou seja, não há sujeito senão de fala, fora disso, temos alguém na posição de objeto do saber do Outro: "eu não posso ser a uma vez objeto e falante; eu só falo quando me perco como objeto" (p. 73).

É nesse sentido que o estágio do espelho, conforme proposto por Lacan, traz a estrutura do sujeito, pois o Outro simbólico é quem fornece um corpo para o sujeito que, fora disso, só tem organismo, funciona como vivo. "É a partir desta estrutura simbólica que ele simbolizará, de um lado, sua dependência no lugar do Outro linguageiro e, de outro lado, mesmo se ele depende do Outro, sua irredutibilidade ao saber do Outro" (p. 74).

Para o autor, o sintoma consiste no modo como o sujeito faz laço com seus semelhantes, recriando para si e para os outros o laço social que os liga e o situando na linguagem: "No fundo os humanos estão juntos porque habitam a linguagem e porque o significante se articula" (p. 17). O sintoma, na sua função de solução e não na sua dimensão patológica, é a resposta de cada sujeito ao modo como vai executar a tarefa de se ligar aos outros num "viver-junto" evitando dois rochedos: "de uma parte, se dissolver na massa, renunciar à sua singularidade por adaptação, acomodação, assimilação, e, de outra parte, tornar impossível a vida social sob o pretexto do respeito à singularidade (a cada um sua verdade, sua liberdade e seu gozo)" (p. 20).

Apresenta o laço social a partir da invenção e da presença da ciência moderna como um processo de construção de um saber objetivo, generalizável e universal por ter excluído a subjetividade que ficou no campo da metafísica. Mas essa ciência, mesmo fornecendo explicações, nos deixa em pane de sentido na medida que não tem nada a dizer sobre o sentido da vida ou sobre quem eu sou como sujeito, pois ela impôs sua racionalidade sobre todas as outras tentativas de resposta, por exemplo, a mítica, a religiosa ou a filosófica, retirando delas sua autoridade.

Sauret situa a pós-modernidade como o tempo que abandona os sujeitos à única autoridade que parece subsistir: a racionalidade econômica. "Deus, caçado do mito e da religião, habitaria a partir de agora a economia!" (p. 18). Não há como fugir das leis do mercado. . . mas, assim como a ciência, a economia também não responde aos enigmas dos sujeitos.

Esse casamento infernal entre a ciência moderna e o mercado confunde o sujeito falante e o indivíduo biológico e acaba transformando o desejo em necessidade, pois "se alguém acredita que um carro ou um computador são o que lhe completaria, é que ele é da mesma natureza do dito objeto" (p. 19). Assim, a partir de um neologismo introduz um novo utilitarismo (utilitarisme), o utilitairisme, a saber, um utilitarismo-que-cala (taire). Esse novo utilitarismo cala justamente o sujeito na medida que o completa com o gozo, ou seja, na medida que o transforma em indivíduo. A nova economia psíquica diz respeito a esse movimento que equivale o desejo a uma necessidade sempre frustrada na qual o sujeito goza menos dos objetos utilitários comercializados que do consumo ele mesmo, para alegria do capitalismo neoliberal.

A forma do laço social que tende a dominar impõe a concepção de uma racionalidade, de uma modalidade de saber sem falha. Se impõe a ideia de uma organização que eliminaria toda forma de alteridade, que valeria para todos. É por que a globalização convém tanto hoje: reduzir os sujeitos em pane de autoridade à exigência de um pensamento único. Salvo que todos os sujeitos não estão prontos para se deixar reduzir ao estado de objeto da ciência, da economia, até da política. E, sem dúvida, não importa o que nós pensemos do movimento anti-globalização, ele testemunha em ato este protesto dos sujeitos (p. 20).

Sobre esse protesto lógico do sujeito contra sua inclusão numa massa que ameaça sua singularidade, Sauret destaca alguns "acidentes" do laço social contemporâneo como soluções inventadas pelos sujeitos para tentar ali restaurar as condições de sua existência: sectos religiosos entre as soluções que privilegiam o simbólico, grupos de semelhantes construídos sobre a exclusão do estrangeiro entre as soluções que privilegiam o imaginário, e as toxicomanias enquanto dependendo de um gozo imperioso, com privilégio no real.

Ao mesmo tempo, quanto a tais "acidentes", o autor chama atenção para a impressionante constatação de haver em torno de nós sujeitos que não estão bem se não estão em situação de obediência e, portanto, que não sabem viver emancipados, consistindo um problema real para o futuro das democracias.

Coloca o sujeito como o que está contra a ordem preestabelecida, como a arte está contra a cultura, fazendo surgir o que pode justificar o interesse da psicanálise hoje: ir contra o pensamento único, dar lugar ao sujeito. A psicanálise defende a irredutibilidade do sujeito a qualquer teoria, inclusive a sua. Felizmente, lembra Sauret, o sujeito permanece fabricado do mesmo modo não importando as ideologias e teorias que se esforçam por absorvê-lo ou suprimi-lo.

O autor lembra que os blocos sociais (exército, igreja, grupos de esporte, de afinidades) são obtidos pela "anonimação" dos indivíduos que os compõem e pelo achatamento das diferenças. Uma massa se constitui por submissão à mesma ordem simbólica via identificação ao mesmo traço – traço unário – que dá um mesmo modo de se reconhecer em relação à falta de gozo. Assim se passa quando o sujeito pega um significante que pode representá-lo e ligá-lo aos outros sujeitos que pegam emprestado do mesmo discurso. Massa uniforme que se impõe, desse modo, a um mesmo tipo de funcionamento e de gozo e tenta identificar o estrangeiro que lhe permitiria traçar sua própria fronteira. "Na ocasião, ela [a massa] colocará seu inimigo como ladrão de seu gozo e responsável por tudo que não vai bem para ela" (p. 27). Esse inimigo é o estrangeiro, o outro, a alteridade, que, em comunidades que excluem Thanatos pretensamente para salvar Eros, constituem sociedades da identidade e não da identificação. Mas "o que essa construção esquece é que o gozo não está excluído a ponto de desembaraçar o sujeito: ele esburaca o sujeito no mais íntimo, constitutivo de sua estrutura" (p. 88). Ainda que pela operação castração o sujeito simbolize o que ele perde de gozo ao falar, "o gozo não se deixa reduzir totalmente ao significante nem forcluir pela técnica. Há um resto que o sintoma de cada um testemunha" (p. 88).

No entanto, o laço social não é essa relação de grupo, de bloco, tampouco o laço de cada um com cada um; o laço social é o laço de cada um com o próprio laço, de modo que cada um é, pelo menos em potência, responsável por ele tanto na sua criação como por sua manutenção, seu funcionamento e sua renovação. Um laço social é organizado em torno do gozo impossível e não sobre a exclusão do gozo; por isso se diz tratamento do gozo e não sua cura. E uma das possibilidades de tratamento é mudar de discurso quando o gozo ali faz retorno sob a forma de intratável, de insuportável.

O humano não é apenas fabricado, de tal maneira que ele demanda seu ser ao Outro – mitos, religiões, filosofias, ou seja, as teorias do ser ou ontologias –, como a esse Outro abandona a responsabilidade da resposta. Nesse sentido, Sauret coloca a psicoterapia como consubstancial ao humano – ela data da aparição das ontologias. As ontologias dão a ver, assim, uma concepção heteronômica do homem. "Certamente o primeiro laço social apareceu com a humanidade nascente, criado pelo sujeito chamando um mestre que responde, e o segundo é aquele do mestre comandando no saber chamado" (p. 69). O sujeito usa de muitas estratégias para recuperar seu ser de gozo, a primeira consistindo em se endereçar ao saber das ontologias.

A primeira solução, pelas ontologias, corresponde a deixar para o rei e para os deuses, ou no monoteísmo para o Deus-pai, todas as respostas e indicações para a vida.

No que o autor chama de "primeira modernidade", a solução pelas ontologias muda a partir das Luzes, com o advento da ciência moderna. Sauret aponta uma passagem da heteronomia para a autonomia e a neurose surge como a fabricação, pelo sujeito, de sua própria ontologia, localizada no fantasma, e que Lacan chama de mito individual do neurótico. É nesse tempo histórico que a medicina toma o lugar de Deus e a psicoterapia aparece como cuidado de si, tratando-se de um momento de troca de discurso que é também uma mudança de civilização.

A neurose, como coloca o autor, é a resposta do sujeito para se ligar aos outros num certo viver-junto, o neurótico sendo, assim, o sujeito adaptado da modernidade. A sociedade que cria a neurose – a das Luzes e da Revolução Francesa – é a da quebra do patriarcado. "Os sujeitos desta 'fratura social' de algum modo repatriaram a função paterna no seu íntimo, com as consequências observadas por Freud: o complexo de Édipo e o complexo de castração como condições do processo de humanização próprio a cada um" (p. 189). Portanto, a neurose é um meio de salvar o pai e, por isso, chamada por Freud de religião privada, enquanto a religião passa a ser uma neurose universal. Desse modo, a neurose salva, ao menos um tempo, a autoridade ao lado do poder da ciência.

A sociedade da modernidade funcionava com base na repressão, alimentando a neurose do sujeito que caminha para o recalcamento, ao mesmo tempo que a neurose produzia também inovação cultural – novos arranjos com o gozo, novas perversões e, portanto, nova repressão. A solução passava por um mundo mais racional, mesmo que o funcionamento do sistema repousasse sobre o fato de que ele se renovava em função de um gozo inassimilável pela cultura e não eliminável pela repressão.

O advento do discurso analítico resulta do nascimento da ciência moderna, uma racionalidade que se impõe às ontologias porque ela pretende explicar o mundo: o "sujeito suposto saber" vem substituir o "sujeito suposto crer". Esta racionalidade revela a divisão do sujeito entre o que ele é como sujeito da ciência (como as coisas funcionam?) e o que ele é como sujeito das ontologias (por que existe algo e não nada?), entre sujeito da explicação e sujeito do sentido (p. 41).

Freud inventa a psicanálise no contexto pós-Luzes com o que a ciência precisou excluir para alcançar a objetividade e a universalidade, ou seja, todo traço de singularidade do sujeito. No âmbito da clínica psicanalítica, a transferência, sendo o amor endereçado ao saber, é o saber suposto restaurar meu ser que eu amo, mesmo se essa restauração, até o final, necessitar ficar em estado de promessa. No final da cura se produz a prova que não existe Outro capaz de responder no lugar daquilo que, de estrutura, é mudo sobre esse ponto. Ou seja, não há Outro do Outro. Assim se dissolve o amor de transferência. É nesse sentido que Sauret assentará a psicanálise não como mais uma ontologia, mas como o que fornece a razão das ontologias ao trazer à luz a estrutura do sujeito. Assim o sujeito poderia vislumbrar que a solução pelo pai não vale mais que a solução pelas ontologias se lhe tira a responsabilidade de suas escolhas na vida, no sexo e na morte, que são as contingências mais humanas.

Uma análise permite, portanto, verificar a incapacidade do Outro para responder o que o sujeito é, ao invés de, por exemplo, se bater na ausência de um Outro que é chamado e não responde. O autor situa, então, os anteriormente nomeados "acidentes" do laço social contemporâneo – seitas, grupos, toxicomanias, submissão – como uma nostalgia de ter esse Outro à altura da resposta esperada. A psicanálise vislumbra a possibilidade de construir uma resposta desde que cada um possa se apoiar sobre o que é como objeção ao saber.

O psicanalista francês apresenta o casamento infernal entre a tecnociência e o mercado – o que Lacan nomeia de discurso capitalista – como a "segunda modernidade" ou a pós-modernidade que traz uma terceira solução quanto às ontologias na medida em que a racionalidade científica já fez seu trabalho de sedução sobre os sujeitos e de abalo em direção a outras racionalidades. A segunda modernidade também fabrica mito, no caso, o da promessa do triplo tudo: tudo compreender, tudo fabricar e tudo fornecer. Nesse sentido, o autor situa o Outro desse momento como mentiroso e não como inexistente, incompleto ou inconsistente.

O discurso capitalista é "um discurso cujo agente é o self made man que comanda o mercado (em posição de verdade) a exigir da tecnociência que ela fabrique os objetos que o sujeito é capaz de 'gozar'" (p. 60). O psicanalista destaca o problema posto para os sujeitos sugestionados por esse discurso que rejeita a castração e as coisas do amor: não encontrarão mais o apoio da sua estrutura. Quanto ao objeto, sublinha também que ali, onde Freud inscreve a falta-a-ser como incurável, o capitalismo propõe um objeto – um utilitário-que-cala – complemento do sujeito. Desse modo ele atenta que no discurso capitalista não há troca de discurso, pois não há a fabricação de um sujeito separado de seu gozo, mas de um indivíduo completado por objetos e, assim, perdido para o social. O sujeito efeito da forclusão da castração é um frustrado que reivindica seu direito à reparação. Nessa economia psíquica da ditadura do objeto, em que o gozo é o novo mestre, Sauret apresenta dois tipos de novos sintomas: 1) aqueles que vão no sentido da nova economia; 2) aqueles que continuam a resistir a ela.

A dominação do pensamento único, o politicamente correto, como correlato da redução da verdade na sua acepção científica produz a tentação de retornar a sistemas sem restos, nos quais não há objeção, até a guerra é "limpa". Discurso que apaga a dimensão de objeção ao saber fazendo do sujeito um novo objeto da ciência e do mercado.

Mas nem tudo está dentro do discurso capitalista. O escritor dá como exemplo a existência de leitores para esse livro como atestando a existência do discurso do mestre e do discurso universitário, assim como a existência de histéricas fabricando o mestre ao qual elas tentam se impor histericizando os sintomas modernos, sem falar do discurso do analista. O mito foi desfeito pela ciências, mas o Complexo de Édipo e o inconsciente são a prova de que subsistem, respectivamente, os discursos em que o neurótico encontra refúgio e um esquema de saber mítico após o advento da ciência moderna. De modo que "o discurso capitalista é, então, de fato enquadrado pelos outros discursos, o que cria condições favoráveis a uma mudança de discurso – ainda" (p. 80).

Ao lado do fantasma – teoria íntima que o sujeito se dá para regular sua relação com o Outro, com o saber, com os objetos e com o gozo –, Freud descobriu o sintoma como a solução inventada pelo sujeito para alojar sua singularidade no comum: "Tudo, mas não isso" é a fórmula de Lacan para o sintoma. Assim, o sintoma participa da resistência do sujeito a sua dissolução no Outro e constitui uma abertura em direção ao "não-todo". "O sintoma é, assim, abertura sobre a alteridade a partir da alteridade que é o sujeito" (p. 243). Nesse sentido, o sintoma é a pedra no caminho do triplo tudo do discurso capitalista.

Não obstante, "Quanto mais o sujeito chama o Outro mais ele sofre do seu sintoma. Só a confiança no seu sintoma, consequência do seu 'ateísmo', o alivia" (p. 47), ou seja, o sintoma é um meio de o sujeito se emancipar do Outro, alojando sua singularidade no social. Trata-se aqui da função sinthoma do sintoma. É graças ao corpo, na medida em que ele é irredutível a qualquer saber, e à função paterna, ao passo que permite reconhecer o que do gozo excede à castração, que o sujeito pode inventar sua solução singular, seu sintoma, que evita sua dissolução no comum e igualmente evita que o social se suprima sobre a rocha da singularidade.

No final, a questão não é exatamente saber se a mundialização econômica ou cultural é possível, mas saber a saída que será dada à alteridade, à diferença. O mundo se construirá sobre o modo do todo simbólico, do todo saber, que resume o termo pensamento único, com os efeitos de segregação, de exclusão, de normalização, de colocação no passo, que eliminaria até a menor parcela de originalidade? Esse mundo privilegiará a contenção militar sob o modo do campo de concentração generalizado? Ou nós encontraremos uma solução para manter o lugar do singular e, assim, do sintoma de cada um, no "gozo que não é necessário"? A criação, a invenção, a renovação do laço social, o sujeito da responsabilidade, o sujeito do ato – a democracia para dizer tudo – estão nesse preço (p. 98).

A teoria dos discursos de Lacan exige a solidariedade dos quatro discursos – do mestre, universitário, da histérica e do analista – e que não haja nenhum privilégio de um sobre os outros. Não há laço social sem os quatro discursos. "a promoção de um discurso em detrimento dos outros, mesmo que fosse o analítico (se isso faz sentido), volta a interditar a mudança de discurso e assim a forcluir a função de agente do impossível" (p. 100).

Sauret cita o estalinismo como inscrevendo-se num discurso universitário excludente de outros tipos de laço social, assim como o nazismo. Foi essa exclusividade que provavelmente tornou a psicanálise impossível nos países totalitários. "Ora, a mentira é de estrutura: ela reside na pretensão de um simbólico sem falta que dobraria o real ao seu gosto" (p. 252). Essa ideologia ou lógica científica de determinação absoluta, assentada sobre essa mentira estrutural, é apresentada pelo autor como um dos restos ou traços deixados pelo nazismo e totalitarismos. Assim como a democracia ter se tornado democratismo, a autoridade, autoritarismo, a ciência ter se apagado diante do cientismo, a liberdade mudado para liberalismo, e o utilitarismo virado utilitarismo-que-cala.

Ele assinala que a maioria dos atores da sociedade moderna parece partilhar dessa ideologia e, assim, é levado a lembrar da analogia de Lacan que coloca essa sociedade sob a categoria de psicose social.

Freud vê na substituição da força pelo direito o passo constitutivo da humanidade, daí o interesse pela autoridade. Sauret toma de Hannah Arendt a diferença entre autoridade e poder, a grosso modo, que a primeira implica restrição de liberdade, mas nunca sua abolição, enquanto a segunda visa a supressão de todo espaço de liberdade. "A autoridade se opõe tanto ao constrangimento pela força quanto à persuasão por argumento" (p. 123), assim como tem o consentimento daquele que se submete. Nesse sentido, o psicanalista francês traz à tona a lei simbólica que é primeira em relação ao campo do direito. "A lei simbólica se enuncia simplesmente: é a articulação da linguagem que condiciona a produção do sentido. Ela exige, então, a participação daquele que Lacan chama 'fala-ser'" (p. 124). Trata-se da autoridade do discurso compartilhado, dado que reconhecemos a existência, que nos ultrapassa, da racionalidade discursiva, de uma ordem simbólica tal que aquele que quer se fazer compreender deve a ela se submeter preservando o espaço de liberdade, de consentimento, daquele a quem se endereça.

"O primeiro efeito da linguagem é sem dúvida o próprio sujeito: o sujeito é resposta do real ao significante" (p. 125). Mas, como já colocado acima, o sujeito é apenas representado na linguagem, ele é separado de seu ser pelo saber. Assim, os humanos, os que se submetem à autoridade da linguagem, demandam seu ser ao Outro que lhes fornece ontologias como resposta. Eles dão ao Outro a autoridade de garantir as teorias do ser como verdadeiras. Dão consentimento para esta autoridade submetendo-se aos deuses, ao Deus dos monoteístas, aos mestres da filosofia ou a quem quer que os alivie da responsabilidade que lhes confere sua liberdade. Reúnem-se em torno dessa autoridade por quem esperam ser tratados da falta que os constitui e que os faz desejantes.

Mas não dá na mesma, conforme Sauret, adotar as consígnias de tal religião ou tal outra, dado que a posição do sujeito varia com o tipo de Outro que ele adota. Do mesmo modo que esse consentimento, que o autor nomeia à la Boétie de "servidão voluntária", não impede o sujeito de explorar suas capacidades criativas, sem o que a humanidade não teria deixado sua caverna pré-histórica.

"A questão do laço social é indissociável da estrutura do sujeito" (p. 165), como Freud já apontava em Psicologia das massas e análise do eu, ao afirmar toda psicologia individual como psicologia social, pois o sujeito não pode ser dessolidarizado de um Outro de quem ele pega emprestado suas palavras e com quem dialoga. Assim, se as palavras mudam, a natureza do laço social varia, assinala o autor.

O singular é aquilo que convence cada um de que é radicalmente diferente do outro. Ele está incluído no sintoma, é ponto de apoio para uma emancipação do Outro, e é feito de não importa o quê que assegure o sujeito de que ele não é redutível a nenhum saber não sendo, portanto, mensurável. Por isso foi preciso excluí-lo para fazer ciência e colocar no seu lugar o particular, que é avaliável.

O único laço social que considera o outro como sujeito é o discurso analítico, na medida em que é o único discurso que não ensina nada, que não tem nada de universal, sendo, nesse sentido, o limite de toda universalização. Desse ponto de vista, o autor situa a existência do discurso analítico como uma caução deixada à democracia.

A psicanálise é uma prática que aposta no singular mais que na resposta do Outro, aposta no real contra a verdade, no sintoma dedução feita do fantasma, assim como aposta no laço social em detrimento das promessas de gozo.

Se a psicanálise pode visar alguma coisa é descompletar o indivíduo, tentar restaurar a parte inassimilável, a objeção ao Outro, o singular, o infantil, o feminino, o sintoma – a tomar, em um sentido, o partido da violência a serviço do laço social – de uma mudança de discurso e não a serviço da perenização do discurso capitalista (p. 81).

De qual parte de gozo irredutível ao Outro cada um é fabricado é até onde uma psicanálise pode chegar. É desse modo que se cura da tentação de se sacrificar à fome do "Deus obscuro" que, sempre que o sujeito ceder ao que ele é, pode ressuscitar. Na medida em que está submetido à lei fálica, ele para de demandar o amor do Outro como marca de reconhecimento, o que o levava a se sacrificar ao gozo desse Outro em troca da promessa do seu quinhão de gozo.

Assim, o livro nos adverte da importância de estarmos atentos aos menores sinais de resistência do sujeito, aos seus protestos, porque, mesmo no discurso capitalista, ainda que disfarçado de discurso especializado, a linguagem e a fala continuam a ser como são e, assim, só funcionam com o impossível. E para fazer frente ao impossível ou ao real, o sujeito precisa mobilizar o gênio de sua estrutura, podendo a partir disso se colocar na relação com o Outro, fazer laço e incluir sua singularidade, renovando o laço social e, quem sabe, provocar mudanças de discurso.

 

 

Endereço para correspondência
Rua Expedicionário Sapucaia, 213
89010-470 - Blumenau - SC - Brasil.
heloisamarcon@yahoo.com.br

Recebido em maio/2017.
Aceito em setembro/2017.

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