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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.23 no.1 São Paulo jan./abr. 2018

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v23i1p130-151 

10.11606/issn.1981-1624.v23i1p130-151

ARTIGO

 

NEUROCIÊNCIAS E PSICANÁLISE: DIALOGANDO SOBRE O AUTISMO

 

NEUROSCIENCE AND PSYCHOANALYSIS: TALKING ABOUT AUTISM

 

NEUROCIENCIAS Y PSICOANÁLISIS: DIALOGANDO SOBRE EL AUTISMO

 

 

Marina da Rosa VilaniI; Ilvo Fernando PortII

IGraduada em Psicologia pelo Centro Universitário da Serra Gaúcha, Caxias do Sul, RS, Brasil.
IIMestre e Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor do Centro Universitário Instituição Evangélica de Novo Hamburgo e da Faculdade da Serra Gaúcha, Caxias do Sul, RS, Brasil.

Correspondência

 

 


RESUMO

A partir de um entendimento integrativo entre psicanálise e neurociências, busca-se compreender a etiologia do autismo. Trata-se de uma revisão bibliográfica narrativa que abarcou dados da história e do conceito de autismo por meio de uma pesquisa qualitativa de caráter exploratório em bases de dados, periódicos e livros. Apesar das divergências acerca da etiologia e tratamento entre as áreas, algumas investigações desenvolvidas concluem que, quando uma criança nasce com vulnerabilidades orgânicas, estas podem afetar o exercício das funções parentais. Assim, poderá ocorrer a potencialização ou o surgimento de traços autísticos no âmbito psíquico e, também, neurobiológico, dado que o desenvolvimento orgânico ocorre concomitantemente à subjetivação.

Descritores: autismo; neurociências; psicanálise.


ABSTRACT

Based on an integrative understanding between Psychoanalysis and Neurosciences, this work aims to comprehend etiology of autism. This is a narrative literature review that includes data from the history and concept of autism through a qualitative exploratory research in databases, periodics and books. Despite the disparities on the etiology and treatment between these fields, some studies led to the conclusion that, when a child is born with organic vulnerabilities, they may affect the exercise of parental functions. Thus, either a potentialization may occur, or the appearance of autistic traits in both the psychic and also the neurobiological scope, since the individual is in the process of organic development concomitant with subjectivity.

Index terms: autism; neuroscience; psychoanalysis.


RESUMEN

A partir de un entendimiento integrativo entre Psicoanálisis y Neurociencias, se busca comprender la etiología del autismo. Se trata de una revisión bibliográfica narrativa que abarcó datos de la historia y del concepto del autismo por medio de una investigación cualitativa de carácter exploratorio en bases de datos, periódicos y libros. A pesar de las divergencias acerca de la etiología y el tratamiento entre las áreas, algunas investigaciones desarrolladas concluyen que, cuando un niño nace con vulnerabilidades orgánicas, éstas pueden afectar el ejercicio de las funciones parentales. Así, podrá ocurrir el aumento, o el surgimiento de síntomas autísticos en el ámbito psíquico y también neurobiológico, así que el desarrollo orgánico ocurre concomitante a la subjetivación.

Palabras clave: autismo; neurociencias; psicoanálisis.


 

 

Introdução

A temática da etiologia e da direção do tratamento do autismo está longe de apresentar algum consenso entre os profissionais dos diversos campos da saúde que dela se ocupam, e percebe-se um grande número de pesquisas sobre autismo1. A maioria delas se dá na tentativa de compreender suas origens ou encontrar uma cura, o que por enquanto não teve consenso entre as áreas, fomentando as divergências de opiniões em relação a sua etiologia.

Em manuais utilizados atualmente no campo da psicopatologia, o desenvolvimento é apresentado como algo puramente biológico. Isso fica claro nos diagnósticos de Transtornos do Desenvolvimento (TD), Transtornos Globais do Desenvolvimento (TGD) e Transtornos Invasivos do Desenvolvimento (TID); aludindo a palavra transtorno a uma desordem biológica no Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM IV). Assim, ao considerar que por uma patologia ter apenas aspectos orgânicos reconhecidos como parte de sua etiologia, pode-se dar a entender que ela é incurável e que o desenvolvimento do indivíduo é fixo e imutável. Recentemente, devido às descobertas relevantes sobre a neuroplasticidade, epigenética e a incidência dos acontecimentos psíquicos precoces sobre os processos maturativos, sabe-se que o desenvolvimento não obedece apenas aos mecanismos biológicos predeterminados. Há uma dupla incidência que considera, por um lado, o ritmo de maturação neurológica marcado pela genética e, por outro, o processo de estruturação do sujeito psíquico que envolve as influências do meio familiar e cultural (Jerusalinsky, 2015).

Nos dias de hoje já temos conhecimento sobre o trabalho realizado na clínica de estimulação precoce no autismo, onde, por meio de intervenções psicanalíticas com a mãe e a criança, auxilia-se a realização do circuito pulsional2 entre mãe-bebê, podendo até mesmo reverter o diagnóstico precoce de autismo. Segundo Goretti, Almeida e Legnani (2014) "a intervenção terapêutica ocorre quando a espontaneidade do processo de desenvolvimento é interrompida por um acidente patológico. Estimula as funções já existentes no sujeito, proporcionando situações a partir do nível em que se encontram" (p. 421). Dessa forma, o terapeuta é como um terceiro na relação mãe-bebê, com a função de reconstituir, sustentar ou até mesmo substituir a função materna (Crespin, 2004).

Diante do fato de que não há consenso sobre a etiologia e, por conseguinte, o tratamento do autismo, essa pesquisa visa colaborar na investigação das produções de pesquisadores de diferentes especificidades tendo como base as neurociências e a psicanálise. Ao utilizar a revisão bibliográfica com caráter de estudo exploratório se permite que, após realizada uma leitura crítica, as ideias encontradas em estudos de diferentes áreas sejam investigadas e as percepções do autor deste trabalho sejam manifestadas. Dessa forma contribui-se para que se realize a integração desses conhecimentos e sejam criados novos debates em relação ao problema da pesquisa. Visando a evolução do tratamento do autismo, acredita-se que ainda pode haver um debate produtivo entre as áreas de pesquisa. Busca-se a integração dos conhecimentos para uma maior evolução de saberes, uma vez que o entendimento integrado das questões orgânicas e subjetivas relacionadas ao autismo só tem a contribuir com as práticas terapêuticas e pesquisas relacionadas.

Tendo em vista tais inquietações, questiona-se: como compreender as relações entre os processos de estruturação psíquica e os aspectos de ordem orgânica na etiologia do autismo?

Escolheu-se trabalhar com o autismo aliando as óticas das neurociências e da psicanálise, pois entende-se que se deve investigar as relações entre os diversos aspectos biopsicossociais dessa patologia enquanto condição de um sujeito único. Assim, como psicólogos, poderemos tratar a demanda do paciente levando em consideração tanto sua subjetividade quanto as questões fisiológicas, respeitando o tempo de cada um para que haja evolução, mas também a aceitação das possíveis regressões dos casos.

 

Fundamentação teórica

Este trabalho vai utilizar referencial teórico psicanalítico com contribuições das áreas de neurociências e de psicologia.

 

História do conceito de autismo

Em "Autistic disturbances of affective contact" ("Distúrbios autísticos do contato afetivo", em tradução livre), Leo Kanner (1943) apresentou casos de onze crianças que apresentavam características em comum. Segundo ele essas características constituem "uma síndrome"3 que nunca havia sido mencionada anteriormente e que estas crianças provavelmente eram vistas antes como esquizofrênicas ou apenas como idiotas4.

A principal desordem identificada nessas crianças era a incapacidade de se relacionarem normalmente com pessoas e situações desde o início de sua vida. Eram referidas pelos pais como crianças autossuficientes que viviam como se estivessem dentro de uma concha e mostravam-se mais felizes quando deixadas sozinhas. Kanner (1943) prossegue dizendo que desde o início existe um isolamento autista (primeiro momento em que ele utiliza esse termo na pesquisa) que ignora, desconsidera e cala qualquer elemento externo que se dirija à criança. Tentativas de contato físico direto, movimentos ou barulhos que tentem quebrar esse isolamento são tratados como inexistentes.

Em seus registros, esse mesmo autor relata que, quando bebês, essas crianças não assumiam sequer uma postura antecipada ao serem levantadas pelos pais, não se ajustando também ao corpo de quem as carregava, movimentos estes que eram realizados por crianças "normais". Prevaleceram também registros realizados pelos pais de um aprendizado em repetir um grande número de rimas, preces, listas, o alfabeto na ordem correta e de trás para frente, entre outros; entretanto, apesar da memória surpreendente, essa era a única forma de linguagem usada, levando os pais a inundar as crianças com cada vez mais versos e listas. Além disso, os significados das palavras são inflexíveis assim como as entonações, sendo compreendidos apenas pela conotação originalmente adquirida pela criança (Kanner, 1943).

Outrossim, Kanner (1943) observou que os pais dessas crianças pertenciam a um alto nível sociocultural, além de apresentarem um nível de inteligência alto junto de alguns traços obsessivos. Pode-se pensar que essas famílias tinham como denominador comum uma baixa inteligência afetiva, o que poderia influenciar no desenvolvimento saudável ou não das crianças desse estudo. Entretanto, julga-se necessário considerar que outro denominador comum é o nível sociocultural dessas famílias, o que proporcionou que participassem do estudo, ao contrário de famílias de nível mais baixo com crianças que apresentassem os mesmos sintomas, porém sem acesso a essa informação naquela época.

 

Estruturação psíquica normal

Quando uma criança nasce, ainda não há nela um sujeito existindo, apenas um corpo. É necessário que haja um Outro5 que deseje e adote essa criança simbolicamente e faça a inscrição do sujeito por meio de significantes6. Esse Outro primordial exerce a função materna, estritamente necessária para a sobrevivência do bebê (Theisen, 2014).

A função materna, além de atender as necessidades do bebê (orgânicas, como alimentação, deslocamento, higiene etc.), dá significação a todas essas necessidades e vai libidinalizando o corpo do, bebê organizando e respondendo suas demandas pulsionais. Tal processo é fundamental para que a criança se constitua subjetivamente (Theisen, 2014).

O Outro primordial, ainda segundo Theisen (2014), tenta traduzir o que o bebê deseja a partir de suas manifestações entendendo-as como demandas e supondo ali um sujeito desejante mesmo antes de ele existir. Essas suposições maternas possibilitam que o bebê se precipite nessa relação por meio do vínculo que lhe é oferecido, sendo o Outro primordial responsável pelas primeiras referências simbólicas da criança.

Por essa relação mãe-bebê, a criança vai se tornando um sujeito desejante, ou seja, vai se subjetivando. Essa experiência do olhar, toque e afeto entre mãe e o filho são estruturantes para a constituição da imagem corporal e para o psiquismo. O desenvolvimento da criança é impulsionado pelo desejo da mãe que lhe fornece elementos que irão estabelecer um lugar onde pode dar início à sua subjetividade (Theisen, 2014).

Porém, de acordo com essa mesma autora, a relação mãe-bebê não se sustenta sozinha para a constituição de um sujeito na criança. É necessário que uma intervenção seja feita a fim de possibilitar a retirada do bebê da fusão imaginária que foi constituída inicialmente com a mãe. A entrada de um terceiro, o pai7, impossibilita a mãe de reter para si o bebê enquanto objeto real, na suposição de que este lhe completa e, assim, permite a saída da criança da alienação dos significantes maternos proporcionando a ela ser referenciada a outros significantes. Assim, o lugar do Outro que até então era ocupado somente pela mãe tem nele inscrito a função significante Nome-do-Pai, barrando este Outro onipotente e absoluto (da mãe) e inaugurando sua entrada na ordem simbólica. Tal inscrição é o que possibilita a separação entre mãe-bebê, que é fundamental para a constituição da criança como sujeito (Theisen, 2014).

Lacan (1999) fala dessa intervenção no Seminário 5, ao discorrer sobre os três tempos do Édipo. Segundo o psicanalista, no primeiro tempo a criança, como objeto de desejo, deseja e busca satisfazer o desejo da mãe: "o sujeito se identifica especularmente com aquilo que é objeto do desejo de sua mãe" (Lacan, 1999, p. 98). No segundo tempo o pai intervém no plano imaginário como privador da mãe. O pai representa o surgimento da lei, uma vez que "a demanda endereçada ao Outro (mãe), caso transmitida como convém, será encaminhada a um tribunal superior" (Lacan, 1999, p. 98). Por fim, no terceiro tempo ocorre a castração, representando a simbolização da lei "esse tempo se sucede à privação ou à castração que incide sobre a mãe, a mãe imaginada, no nível do sujeito, em sua própria posição imaginária, a dela, de dependência" (Lacan, 1999, p. 201).

 

Etiologia do autismo pelo viés da psicanálise

Segundo Jerusalinsky (1984), a mãe constrói para a criança – ao abraçar, olhar e ter um contato corporal com esta – uma imagem compreendida na sua própria subjetividade. Essa imagem é preenchida com o significado do que a mãe deseja na criança. Porém, esse olhar e abraçar o filho pode ser favorecido ou renunciado involuntariamente pela mãe se ele tiver alguma "falha" que a afete (Jerusalinsky, 1984). Lentidão ou carência na resposta dos filhos pode causar também esse retraimento materno, assim como situações em que o bebê chora quando se espera que durma, não come ao lhe ser oferecido alimento, reage com pânico às tarefas rotineiras. Tais situações podem promover na mãe o sentimento de insatisfação emocional por não ter respostas positivas de seu bebê, fazendo com que ela busque conselhos, métodos e tudo que for possível para cuidar de seu bebê. Dado que esses métodos acabam por ser inconsistentes, acarretam a exacerbação de sentimentos de ambivalência e culpa na mãe. Sentimentos esses naturais do ser humano, que, porém, podem ser identificados no puerpério (Jerusalinsky, 2015).

Não existe um sujeito constituído desde o início na criança, mas existe na mãe um sujeito para si mesma e outro para emprestar ao seu bebê. E uma vez que esse desequilíbrio citado ocorre no encontro do agente materno com a criança, e a mãe não consegue emprestar esse sujeito para seu bebê, surgem os traços autísticos. Tal desequilíbrio depende tanto do status psíquico do agente materno quanto das condições constitucionais necessárias da criança para que ela possa se apropriar dos registros imaginários e simbólicos que se desenrolam no jogo do vínculo mãe-bebê (Jerusalinsky, 1984).

Dessa forma não se dá a inscrição do sujeito, encontrando-se o Real8 no lugar da inscrição e ocorrendo a exclusão do Nome-do-Pai9. Nesse caso, a demanda do Outro primordial recebida pela criança seria tomada como uma demanda de exclusão, o que a levaria a receber manifestações sociais como uma demanda de ausentificação, virando as costas aos que se dirigem a ela e recusando objetos que lhe são oferecidos pelo outro (Jerusalinsky, 1993).

Jerusalinsky (1993) propõe que no autismo não se dá a inscrição do sujeito, dessa forma, se encontrando o Real no lugar da inscrição e ocorrendo a exclusão do Nome-do-Pai. Nesse caso, a demanda do Outro primordial recebida pela criança seria tomada como uma demanda de exclusão, o que a levaria a receber manifestações sociais como uma demanda de ausentificação, virando as costas aos que se dirigem a ela e recusando objetos que lhe são oferecidos pelo outro (Jerusalinsky, 1993). Segundo Lacan (1999), o Nome-do-Pai designa o pai simbólico e, "para que haja alguma coisa que faz com que a lei seja fundada no pai, é preciso haver o assassinato do pai. As duas coisas estão estreitamente ligadas – o pai como aquele que promulga a lei é o pai morto, isto é, o símbolo do pai. O pai morto é o Nome-do-Pai, que se constrói aí sobre o conteúdo" (p. 152).

 

Etiologia do autismo pelo viés da neurociência

Segundo Gillberg e Coleman (1996), as bases biológicas do autismo são discretas. Existem casos em que há o autismo junto com outras doenças como rubéola embrionária, esclerose tuberosa e síndrome do x frágil, porém não se sabe se se essas doenças têm alguma ligação etiológica com os sintomas autísticos. É possível que esses pacientes tenham duas desordens separadas que não estão relacionadas: a de uma doença não identificada, causando o autismo, e uma doença identificada separadamente.

As principais características clínicas do autismo estão relacionadas a déficits nas interações sociais, falhas na comunicação verbal e não verbal, prejuízo das atividades e interesses, e padrões comportamentais estereotipados (APA, 2013; Kanner, 1943). Apesar de ser considerado uma disfunção orgânica – dado o retardo mental estar associado a 75% dos casos de autismo –, os primeiros estudos a utilizar imagem cerebral não constataram nenhuma alteração cerebral consistente. Já em investigações mais recentes, tomografias computadorizadas (TC) e ressonâncias magnéticas (RM) apontam no córtex cerebral, no sistema ventricular e cerebelo diversos pontos de anormalidades anatômicas (Cody, Pelphrey, & Piven, 2002).

Segundo Zilbovicius, Meresse e Boddaert (2006), dentro dos estudos de RM no autismo, existem cerca de 200 publicações entre os anos de 1980 e 2006. Nestes, amígdala, hipocampo, cerebelo, corpo caloso e cíngulo foram as principais estruturas cerebrais relacionadas ao autismo. Publicações recentes relataram maior volume total do cérebro, corroborando com estudos post mortem que documentaram o tamanho maior do crânio associado ao autismo.

Alguns estudos revisados por Zilbovicius, Meresse e Boddaert (2006) descreveram volume maior, outros, volume menor na amígdala, enquanto alguns não encontraram anormalidades significativas relacionadas ao autismo. Igualmente não há dados consistentes sobre o hipocampo de pacientes autistas, posto que estudos não relataram diferença no tamanho do hipocampo enquanto outros descreveram tanto aumento quanto diminuição no volume (Zilbovicius, Meresse, & Boddaert, 2006).

Quanto ao cerebelo, um estudo em 1988 apresentou hipoplasia (diminuição ativa da formação dos tecidos orgânicos) nos lóbulos vermianos VI e VII em pacientes autistas (Courchesne, Yeung-Courchesne, Press, Hesselink, & Jernigan, 1988). Porém, essa hipoplasia não foi encontrada por outros pesquisadores, o que pode indicar que ela está mais relacionada ao retardo mental do que ao autismo especificamente (Piven et al., 1992; Piven, Saliba, Bailey, & Arndt, 1997).

Em indivíduos com autismo, estudos constatam que o terço caudal do corpo caloso é menor do que em indivíduos saudáveis. Assim como no cíngulo que apresenta um volume menor em autistas (Egaas, Courchesne, & Saitoh, 1995; Haznedar et al., 2000).

A partir dos estudos revisados identificam-se como resultados anormalidades, principalmente nas regiões frontais e temporais nos indivíduos com autismo. Por exemplo, Levitt et al. (2003), que encontraram diferentes padrões significativos no sulcamento cortical, principalmente nos sulcos frontais e temporais, em crianças com autismo. Abell et al. (1999) corroboram com o estudo citado, dado que em sua pesquisa foram reveladas anormalidades na substância cinzenta na região frontotemporal. Boddaert et al. (2004) encontraram redução significativa na concentração de substância cinzenta bilateralmente nos sulcos temporais superiores (STS).

Zilbovicius, Meresse e Boddaert (2006) identificam uma expressiva hipoperfusão (baixa irrigação sanguínea) temporal em 77% das crianças autistas de seu estudo, confirmando esses dados em análises individualizada e coletiva, representando "a primeira evidência robusta de disfunção no lobo temporal em crianças com autismo em idade escolar" (p. s23). Essas disfunções das regiões temporais podem explicar grande parte dos sintomas clínicos como déficits perceptivos, emocionais e cognitivos percebidos no autismo. Principalmente porque as regiões associativas temporais estão diretamente conectadas aos sistemas sensoriais associativos frontais, parietais e límbicos, podendo, assim, a disfunção do STS explicar também os componentes emocionais e cognitivos do autismo. Poderia compreender-se, dessa forma, a relação de um vínculo entre disfunções do lobo temporal e comportamentos autísticos (Zilbovicius, Meresse, & Boddaret, 2006; Pandya & Yeteriam, 1985).

Já em relação às respostas corticais, os autistas ativam o córtex associativo posterior direito, ao contrário dos grupos de controle do estudo, que ativam o lado esquerdo ao receberem estímulos auditivos não verbais, apresentando dominância hemisférica direita em estudos semelhantes que estimulavam a audição verbal (Garreau et al., 1994; Muller et al., 1999). O córtex temporal esquerdo tem um padrão de resposta diferente às ativações auditivas, como sugerem os estudos.

Diferenças significativas no padrão de ativação cerebral foram encontradas por Gervais et al. (2004) durante a percepção vocal em indivíduos autistas comparando-se com indivíduos não autistas. Em autistas, escutar uma voz e um som não provenientes de voz ativou as mesmas regiões cerebrais.

Percebe-se, ao comparar alguns estudos, que ainda existem incertezas em relação às estruturas relacionadas ao autismo, o que se torna comum quando um tema complexo é pesquisado por diversas áreas. Dessa forma, o que se busca é evidenciar essa heterogeneidade de conhecimentos. Enquanto alguns estudos apontam determinados resultados, outros apresentam informações que não corroboram os primeiros.

 

METODOLOGIA

Método(s) de pesquisa

Para elaborar este estudo, utilizou-se o método de pesquisa bibliográfica. Este se baseia na revisão de materiais já publicados em jornais, revistas, dissertações, teses e outros documentos científicos (Gil, 2010). Trata-se de uma pesquisa qualitativa, a qual buscou identificar similaridades e diferenças não com o intuito de generalizar, mas sim aprofundar o conhecimento dentro de ambas as áreas teóricas (Stake, 2006).

Os estudos utilizados nesta pesquisa consistem em publicações de psicanálise e neurociências que discorrem sobre a etiologia do autismo coletados em bases de dados, artigos e livros. Conforme seus objetivos mais gerais, possui um caráter de estudo exploratório cujo objetivo consiste em aprimorar as ideias e manifestar intuições, tornando assim o problema mais explícito, contribuindo para a criação de hipóteses em relação ao problema da pesquisa.

Entre os tipos de revisão bibliográfica, foi escolhida a revisão narrativa, também conhecida como revisão crítica, que consiste em uma metodologia em que os dados encontrados na pesquisa de literatura são resumidos, analisados e sintetizados. Não é necessário definir a metodologia previamente, tampouco utilizar mecanismos de busca sofisticados a fim de esgotar as fontes de pesquisa escolhidas. Dessa forma, os estudos a serem revisados pelo pesquisador ficam a seu critério, proporcionando uma característica subjetiva à pesquisa (Mancini & Sampaio, 2006; Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, 2015).

Procedimentos de análise dos dados

A análise de dados ocorreu a partir de um processo de análise de leitura com quatro etapas. A primeira consistiu na leitura exploratória, na qual, segundo Gil (2002), realiza-se a leitura e o estudo do material bibliográfico a fim de identificar quais serão úteis para a pesquisa. Uma vez obtido o conhecimento dos objetos da pesquisa, efetuou-se a leitura de textos que contribuíram para a solução do problema proposto, sendo esta a segunda etapa da análise, a leitura seletiva. Essa técnica, apesar de mais profunda que a primeira etapa, não é definitiva, pois permite que se volte ao mesmo material com diferentes intenções, dado que algumas indagações podem ser respondidas ao ler novamente os textos previamente escolhidos. Assim, um texto que foi descartado em um primeiro momento pode voltar a ser objeto de leitura devido às alterações no propósito do pesquisador (Gil, 2010).

Ainda segundo Gil (2010), na leitura analítica, mesmo que se possa acrescentar novos textos e retirar outros, o pesquisador deverá analisar as obras selecionadas como se fossem definitivas. O objetivo dessa etapa é ordenar e condensar os conhecimentos compreendidos, possibilitando que se obtenha as respostas referentes aos problemas da pesquisa. Na última etapa, a leitura interpretativa buscou relacionar as afirmações dos autores com o problema da pesquisa o qual requer solução. O pesquisador se dedicou à leitura interpretativa dos dados, relacionando-os com os demais conhecimentos obtidos anteriormente (Gil, 2002).

 

Apresentação dos resultados

A partir dos fundamentos psicanalíticos lacanianos – em específico a vertente defendida por Jerusalinsky (em obras de 1984 a 2015) quanto às descobertas das Neurociências sobre o autismo, percebe-se que, apesar de ainda haver resultados divergentes entre os teóricos de ambas as linhas, a integração dessas áreas é fundamental para uma melhor compreensão dessa psicopatologia. Sabe-se que o ser humano é composto por um corpo orgânico e um sujeito psíquico e que ambos são influenciados por fatores ambientais e genéticos. Portanto, possuindo esse conhecimento, não se pode encarar um transtorno ou doença visando apenas uma via de conhecimento, seja esta a via orgânica ou psíquica. Ao considerar apenas a via orgânica em relação ao autismo, por exemplo, enxerga-se apenas a ponta de um iceberg, que tem muito mais a ser compreendido em sua parte submersa. É necessário enxergar o humano em toda sua profundidade e não apenas o sintoma.

Ao olhar o autismo por um viés integrativo compreende-se que, quando a criança é diagnosticada e não apresenta nenhuma vulnerabilidade orgânica, isso pode estar associado a questões psíquicas, tais como o não fechamento do circuito pulsional. Os traços/comportamentos autistas passam a surgir na criança, a qual está em processo de maturação orgânica muito importante devido aos processos neurodesenvolvimentais que ocorrem nos primeiros anos de vida. Nesse período há maior fluxo de nascimento neuronal (neurogênese), diferenciação, apoptose (poda neuronal) e sinaptogênese, em que os neurônios estabelecem suas ligações sinápticas. Dessa forma, o ambiente em que a criança está inserida impactará o seu neurodesenvolvimento (Perry, Beauchaine, & Hinshaw, 2008). Assim, um sujeito que não apresentava comorbidades orgânicas poderá apresentar alterações em suas conexões neuronais. Porém, julga-se importante ressaltar que os processos de mielinização e neurogênese ocorrem até pelo menos os trinta anos de idade, ou seja, mesmo após os primeiros anos de vida o sujeito não deixa de ser vulnerável a sofrer alterações que impactem seu neurodesenvolvimento, mesmo que em menor grau conforme for envelhecendo (Perry, Beauchaine, & Hinshaw, 2008). Dessa forma, ressalta-se a importância do trabalho da clínica precoce e dos demais atendimentos clínicos realizados com esses sujeitos.

Na V Jornada do Movimento de Psicanálise, Autismo e Saúde Pública, "Autismo e Interfaces da Rede", que ocorreu em Porto Alegre, em 2017, a neurologista pediátrica D. Bomfim indicou em palestra que as principais estruturas cerebrais envolvidas no autismo são cerebelo, amígdala, lobo temporal e córtex pré-frontal10, áreas estas também citadas nos estudos de Zilbovicius, Meresse e Boddaret (2006). Sobre essas estruturas, sabemos que o cerebelo, além da sua função motora, também é responsável por questões relacionadas a linguagem e cognição, enquanto a amígdala, considerada parte do sistema límbico, tem como uma de suas responsabilidades o controle das emoções. O lobo temporal tem funções sobre a linguagem e percepção social, entre outras. E o córtex pré-frontal tem funções relacionadas a atenção, planejamento, pensamento abstrato e comportamento social, entre outras (Kandel, Schwartz, Jessell, Siegelbaum, & Hudspeth, 2014; Machado & Haertel, 2013; Zilbovicius, Meresse, & Boddaret, 2006).

Considerando as áreas citadas somadas aos sintomas conhecidos no senso comum do autismo (distúrbios de fala, estereotipias, dificuldades na interação social, impulsividade, agressividade, entre outros) e à constituição psíquica desse sujeito, hipotetiza-se a relação entre o desenvolvimento orgânico (neurociências), a constituição do sujeito (psicanálise) e o ambiente em que ele está inserido. Courchesne (2011a) fala que "a criança autista"11 nasce com um número excessivo de neurônios produzidos no segundo trimestre de gravidez. Porém, hipotetiza-se que na realidade essa "criança autista" pode nascer com o mesmo número de neurônios que as demais crianças, mas que devido a algum ocorrido no seu ambiente – alguma dificuldade na formação de vínculo com seus pais, no fechamento do seu circuito pulsional, ou algum resquício de um fantasma parental devido a dificuldades na gestação/parto do bebê – é ocasionada uma falta de estímulo que influenciará na poda neuronal12 fazendo com que haja um excesso de conexões sinápticas. Ou seja, conjectura-se que as conexões estabelecidas no cérebro de um bebê serão correspondentes aos estímulos13 que ele está recebendo (ou à falta destes), juntamente com a carga genética e fatores ambientais na constituição psíquica. Courchesne (2011a) vai ao encontro desta hipótese quando diz que "o bebê precisa de milhares de interações com a mamãe para aprender como interagir e comunicar" (não paginado), ou seja, o bebê precisa estar em um ambiente saudável, onde tenha interações com sua figura materna, formando vínculo e fechando o circuito pulsional. O autor prossegue dizendo acreditar que, por meio da intervenção precoce, pode-se recuperar o sujeito do autismo, influenciando no seu desenvolvimento neuronal.

Pode-se pensar que emitir um diagnóstico é apenas uma nomeação, e isso é verdade, pois nomear os grandes problemas que a criança enfrenta na estruturação da sua subjetividade não as modifica. No entanto, esse nome carrega um estigma simbólico que transmite aos pais uma representação que influenciará o modo como eles veem e o que esperam do filho, sua maneira de se dirigir à criança e, a curto ou a longo prazo, modifica também a própria criança, ao permitir ou impedir que ela avance na construção de si mesmo (Coriat, 2015). Todavia é importante ressaltar que os pais de crianças com sintomas autistas são, como qualquer outra pessoa, sujeitos com suas questões psíquicas. São esses pais que têm a "tarefa" de supor um sujeito no que até então é um organismo, o qual é a criança, ainda em constituição, naquele momento. Para isso não existe manual ou técnica, é algo que cada pessoa, na sua subjetividade, realiza. Cada um tem sua subjetividade constituída por pessoas diferentes em momentos distintos de sua vida. Até mesmo irmãos criados pelos mesmos pais são constituídos diante de uma subjetividade diferente devido à época em que sua criação ocorreu e tudo mais que tenha ocorrido e acabou sendo associado à criança.

Outro ponto a se destacar é em que posição as comorbidades que a criança possui, ou até mesmo em que posição esse diagnóstico é tomado no campo discursivo parental (Jerusalinsky, 1993), que produz o que chamamos de fantasma parental, que pode se caracterizar pela idealização do filho durante a gestação e que, não havendo correspondência quando do nascimento da criança àqueles ideais, geram-se efeitos nos pais que afetam a relação (Laznik, 1999). Dessa forma, não se consegue fechar o circuito pulsional com a criança, o que não está unicamente relacionado aos pais. Pois, além de haver muitos fatores psíquicos em volta disso, a criança também faz parte da ação e da consequência, mesmo que ainda não haja ali um sujeito constituído. Assim, julga-se importante considerar também essas questões ao tratar da etiologia do autismo, contudo sem ignorar os demais fatores citados anteriormente que podem também estar presentes.

Há pouco tempo tratava-se do autismo como uma deficiência apenas a nível orgânico, como se o cérebro não fosse tão eficiente quanto um cérebro "comum", mas na realidade sabe-se que a poda neuronal no autista não ocorre da mesma forma que acontece em sujeitos não autistas (como já dito anteriormente). Segundo pesquisas, autistas possuem um número maior de neurônios e de conexões neuronais que pessoas comuns (Courchesne et al. 2011b; Zilbovicius, Meresse, & Boddaert, 2006). A partir disso supõe-se que haja, nos autistas, uma capacidade maior em níveis de conexão neuronal e que sejam mais sensíveis aos estímulos recebidos do meio. Essa suposição ajudaria a formular hipóteses sobre os "surtos" de desorganização dos sujeitos com sintomas autistas. Ao pensarmos em estímulos do ambiente, o que consideramos normal pode, para o autista, ser incômodo, uma vez que ele apresenta, por vezes, uma sensibilidade exacerbada, ou captação simultânea de muito mais estímulos que alguém que não vive com o transtorno. Além disso, pode-se pensar que a tendência à repetição de padrões dos autistas se deve a isso, pois aqueles estímulos já lhe são conhecidos e não o incomodam mais com tanta intensidade. Quando ocorre alguma alteração naquela rotina, novos estímulos estarão sendo percebidos, causando a desorganização. Também se relacionam hipóteses de que nesses "surtos", além dos estímulos falados anteriormente, haja uma demanda estabelecida para esse sujeito que ele não consegue dar conta, devido à sua estruturação psíquica que não sustenta os recursos demandados em relação às estereotipias nos surtos. Pode-se hipotetizar também a existência de algum traço subjetivante que esteja fragilizado. Porém, ressalta-se a importância de que essa hipótese não descarta os fatores orgânicos existentes, incluindo os mencionados anteriormente e a possibilidade de uma vulnerabilidade genética – tema que não será explanado nesse artigo, dado que foge dos objetivos propostos neste momento.

Devido ao fato de que na infância o processo de subjetivação e o desenvolvimento orgânico/neuronal ainda estão em construção, não se deve categorizar o bebê ou a criança14 em apenas um diagnóstico. Ao diagnosticar um bebê ou uma criança, desconhece-se que o sujeito psíquico ainda está em processo de estruturação e podem ser provocados efeitos de desreconhecimento e desistência, também por parte dos pais, devido aos efeitos (Jerusalinsky, 1993), perdendo a oportunidade de trabalhar na sua subjetivação. Segundo Laznik (2007b), devido a essa fragilização dos pais diante do diagnóstico, os psicanalistas insistem em intervenções com a família na tentativa de estabelecer o laço que, pelas dificuldades perceptivas ou sensoriais do bebê, foi prejudicado, consequentemente provocando um estado depressivo nos pais. Inclusive, essa pobreza na interação e os estados depressivos maternos fizeram com que psicanalistas presumissem, nos últimos anos, que a depressão materna seria a causa mais provável do autismo, sendo um contraponto para a outra hipótese, em que a causa estaria na falta de interação com um bebê que não demonstra reciprocidade às tentativas de formação de vínculo da mãe (pouco ou nunca sorri, vocaliza ou sustenta o olhar), o que pode levar à diminuição da convocação oral e uso do manhês (Laznik, 2007b; 2017)15.

Qualquer problema orgânico, por diferentes razões, complica de alguma forma a estruturação do psiquismo, porém essa dificuldade, se bem levada, pode não impedir que a criança tenha acesso a uma situação normal (Coriat, 2015). Uma vez que não apenas a constituição psíquica, mas o neurodesenvolvimento também é primordial nessa fase e que este depende dos fatores epigenéticos, intervenções, principalmente precoces, são bem-vindas. Principalmente devido ao fato de sabermos que a neuroplasticidade – capacidade do cérebro de se adaptar a variados contextos e de estabelecer diferentes conexões sinápticas e/ou reforçá-las – continua ocorrendo na vida adulta.

E, se na vida adulta ainda é possível realizar modificações de conexões, na infância isso é ainda mais significativo justamente por estarem sendo estabelecidas as primeiras conexões e devido as etapas do neurodesenvolvimento, como neurogênese, diferenciação e poda neuronal. Dessa forma, a estimulação precoce surge como uma intervenção adequada e necessária, dado que ela intervirá no momento em que as primeiras conexões forem estabelecidas, tendo o poder de estruturá-las de maneira funcional e adaptativa.

Por fim, ressalto a relação de que se uma criança não consegue ter em seu vínculo com suas figuras parentais o fechamento de um circuito pulsional – logo, uma estruturação psíquica saudável –, suas conexões cerebrais e desenvolvimento orgânico não ocorrerão como o de crianças ditas "normais". Essa é a hipótese da relação entre a psicanálise e a neurociência que este trabalho visa trazer para reflexão. O processo de estruturação do sujeito influencia em como ocorre o desenvolvimento orgânico enquanto o contrário também acontece – se uma criança nasce com alguma comorbidade isso influenciará no processo de subjetivação desse sujeito, devido ao discurso parental que faz essa criança ser afetada. A importância de relevar esse aspecto e, logo, a deste trabalho, se deve ao fato de que ao considerar o aspecto psíquico e não apenas o orgânico, mas os dois em conjunto, enxerga-se esse sujeito de uma forma mais humana. Assim, pode-se pensar em intervenções que possibilitem a inscrição do sujeito e a formação de vínculo com suas figuras parentais, como a clínica precoce. Possibilitam também à criança e à família que não seja um diagnóstico do DSM V e um olhar estereotipado que fixem o sujeito naquele quadro. Humaniza-se o ser humano.

 

Considerações finais

Em uma entrevista, François Ansermet e Ariane Giacobino (2015) apontam que aproximadamente a cada seis meses, desde 2008, a revista Nature publica um artigo de capa em que diz ter encontrado o gene do autismo. Esse dado evidencia o momento atual de uma epidemia diagnóstica que estamos vivenciando. Na busca por uma cura para essa doença, e no fracasso em encontrá-la – evidenciado nas múltiplas edições que não corroboram suas próprias pesquisas –, acaba-se por reduzir os sujeitos a diagnósticos fechados no DSM V. Além disso, destitui os pais do saber em relação aos seus filhos, que agora são um diagnóstico e precisam de manuais e receituários para serem criados, trocando a singularidade do desejo e do sujeito por técnicas.

Ao tratar como um diagnóstico a estrutura estabelecida à criança, classifica-se como imutável e não como um processo que está acontecendo e que pode ser revertido e, por fim, empurra a criança à cristalização na estrutura autista. Por isso, acredita-se na importância de enfatizar o dizer de que a criança não é autista, mas sim está autista naquele momento e que aquele quadro pode ser revertido. Mas isso não ficar claro, torna-se parte cada vez mais do senso comum esse saber definitivo de que existe um diagnóstico pronto16. Assim, os pais de uma criança com dois anos, por exemplo, que apresenta esses traços, acreditam que têm que se acostumar ao fato de que o filho é autista, provocando efeito no fantasma parental que, por sua vez, empurra a criança para o autismo pelo efeito que isso causa nos pais. A constituição psíquica daquele sujeito e consequentemente seu desenvolvimento orgânico não acontecem de maneira "saudável", estabelecendo por fim um efeito iatrogênico.

Com base nas leituras para a realização deste trabalho, considera-se que havendo ou não um gene responsável pelo autismo, por trás desse gene há um sujeito, e o tratamento deve considerar suas individualidades (tanto psíquicas quanto orgânicas). Na infância as estruturas psíquica e orgânica não estão definidas ainda, logo, a criança nascer com comorbidades a nível orgânico não prevê a forma como ela será constituída psiquicamente. Pode, sim, influenciar o processo de subjetivação daquele sujeito devido ao discurso parental ali afetado, assim como, justamente por ainda estar em processo de estruturação, a maneira como a construção do sujeito ocorre poderá influenciar na maturação das redes neuronais e, finalmente, no desenvolvimento. Porém, acima de tudo, temos que nos preocupar em favorecer a constituição psíquica do sujeito independentemente da sua estrutura orgânica base.

Ampliar o conhecimento para além da psicanálise e da neurociência, colocando essas linhas de saberes lado a lado, tem como objetivo humanizar ainda mais o sujeito, ao lembrar que ele não é apenas psíquico ou orgânico. Viabiliza que possamos aceitar que pouco conhecemos sobre o ser humano e que ainda há muito o que explorar e estudar a fim de alcançar um entendimento integrado, que possa embasar nossas intervenções clínicas.

Ao realizar esta pesquisa, percebeu-se a carência de estudos que abordem a integração de diferentes conhecimentos, buscando trabalhar interdisciplinarmente. Há tempos vem sendo estudada a temática do autismo, porém muito se perde devido ao enclausuramento do conhecimento em áreas específicas. Este trabalho demonstra que, ao contrário do que aprendemos, neurociências e psicanálise podem e devem se comunicar, bem como outras áreas de saberes as quais são consideradas adversas. À vista disso, reforça-se a necessidade de que haja mais pesquisas colaborativas entre áreas distintas que apresentam contribuições em temas específicos em algum assunto particular, como neste caso, o autismo, para desenvolver meios de intervenção com pacientes autistas. Tais pesquisas poderiam integrar o conhecimento de forma mais profunda do que a tratada neste artigo, por meio de pesquisas de campo.

 

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Recebido em setembro/2017.
Aceito em abril/2018.

 

 

NOTAS

1. Nesse trabalho escolheu-se, enquanto estudantes de psicologia, utilizar o termo autismo, nomenclatura utilizada pela psicanálise, que parte de um ponto de vista estrutural, em detrimento da nomenclatura Transtorno de Espectro Autista, que se encontra no DSM V (APA, 2014), manual psiquiátrico baseado em critérios descritivos/classificatórios.
2. Circuito de três tempos pulsionais (ativo, reflexivo e passivo) que estabelecem o processo da constituição do sujeito (Laznik, 2007a).
3. Reunião dos sintomas próprios de uma doença que não apresenta uma causa determinada (Houaiss & Villar, 2009).
4. Denominação utilizada na época.
5. Termo utilizado por Lacan para designar um lugar simbólico — a lei, a linguagem — que determina o sujeito, de maneira externa a ele, ou de maneira intrassubjetiva em sua relação com o desejo (Roudinesco & Plon, 1998).
6. Elemento significativo do discurso (consciente ou inconsciente) que determina os atos, as palavras e o destino do sujeito, à sua revelia e à maneira de uma nomeação simbólica (Roudinesco & Plon, 1998).
7. Assim como na função materna, não se trata necessariamente do pai biológico para o exercício da função paterna.
8. Designa uma realidade fenomênica que é imanente à representação e impossível de simbolizar. Utilizado no contexto de uma tópica, o conceito de real é inseparável dos outros dois componentes desta, o imaginário e o simbólico, e forma com eles uma estrutura (Roudinesco & Plon, 1998).
9. Designa o significante da função paterna (Roudinesco & Plon, 1998).
10. Embora anotado pelos os autores deste estudo, não foi possível acessá-lo até data de entrega deste trabalho.
11. Entre aspas pois não acredito no diagnóstico precoce, devido ao que sabemos sobre neuroplasticidade e a implicância que esse diagnóstico pode ter sobre o sujeito em constituição e sua família.
12. Processo de remodelação cerebral ocorrido em torno do segundo ano de vida que elimina os excessos de conexões sinápticas.
13. Ao usar o termo estímulos, busca-se abranger tanto o entendimento orgânico da palavra quanto em relação ao psiquismo.
14. Pontua-se no texto criança ou bebê, pois acredita-se que os processos de estruturação e desenvolvimento orgânico na criança também ainda estão em processo e, dessa forma, ainda podem ser revertidos. Um diagnóstico apresentado aos pais, por exemplo, pode dar a entender que já está decidido e produzir efeitos de reduzir a capacidade dos pais em investir na subjetivação da criança. Nesse sentido, é preciso identificar um diagnóstico do que está acontecendo, mas que ainda não está decidido, como seria o caso do período após a puberdade.
15. Utilizam-se referências de obra de Laznik de 2007 e de entrevista que ocorreu em 2017, uma vez que a segunda corrobora a primeira.
16. Essa afirmação não está baseada em dados numéricos/estatísticos, mas sim na perspectiva psicanalítica acerca da constituição do sujeito utilizada neste artigo.

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