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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.23 no.1 São Paulo Jan./Apr. 2018

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v23i1p152-174 

10.11606/issn.1981-1624.v23i1p152-174

ARTIGO

 

REFLEXÕES SOBRE AS PRÁTICAS PSICANALÍTICAS COM CRIANÇAS AUTISTAS NO BRASIL

 

REFLECTIONS ON PSYCHOANALYTICAL PRACTICES WITH AUTISTIC CHILDREN IN BRAZIL

 

REFLEXIONES SOBRE LAS PRÁCTICAS PSICOANALÍTICAS CON NIÑOS AUTISTAS EN BRASIL

 

 

Anahi Canguçu MarfinatiI; Jorge Luís Ferreira AbrãoII

IEspecialista em Saúde Mental para Equipes Multiprofissionais pela Universidade Paulista. Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), Assis, SP, Brasil.
IILivre-docente em Psicologia Clínica e professor adjunto do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), Assis, SP, Brasil.

Correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho é fruto de uma pesquisa1, que buscou compreender o surgimento e desenvolvimento das práticas psicanalíticas ligadas ao atendimento de crianças autistas brasileiras, no período de 1990 a 2010. Com o intuito de alcançarmos os objetivos propostos, fizemos uso de duas fontes históricas: documentais e orais. A primeira foi empregada para que pudéssemos identificar as práticas psicanalíticas e verificar quais os profissionais que mais publicaram na área, os quais foram entrevistados. Por meio da análise das entrevistas, discorremos acerca de questões importantes para compreensão das práticas psicanalíticas desenvolvidas em território nacional, apresentadas ao longo desse artigo.

Descritores: autismo; psicanálise; história; Brasil.


ABSTRACT

This paper is the result of a research that sought to understand the emergence and development of psychoanalytical practices related to the treatment of Brazilian autistic children, from 1990 to 2010. To reach the proposed goals, we used two historical sources: documentary and oral. The first one was used so that we could identify the psychoanalytical practices and check which professionals published most in the field, who were later interviewed. Through the analysis of the interviews, we expatiated important issues to understand psychoanalytical practices developed in national territory, presented throughout this article.

Index terms: autism; psychoanalysis; history; Brazil.


RESUMEN

Este trabajo es fruto de una investigación, la cual buscó comprender el surgimiento y desarrollo de las prácticas psicoanalíticas ligadas a la atención de niños autistas brasileños, de 1990 a 2010. A fin de alcanzar los objetivos propuestos, hicimos uso de dos fuentes históricas: documentales y orales. La primera fue empleada para que pudiéramos identificar las prácticas psicoanalíticas y verificar cuáles los profesionales que más publicaron en el área, los cuales fueron entrevistados. A través del análisis de las entrevistas, hablamos acerca de cuestiones importantes para la comprensión de las prácticas psicoanalíticas desarrolladas en el territorio nacional, presentadas a lo largo de este artículo.

Palabras clave: autismo; psicoanálisis; historia; Brasil.


 

 

Conforme apontam Marfinati e Abrão (2011), ao longo do século XX, encontramos um número significativo de trabalhos psicanalíticos dedicados ao estudo do autismo, produzidos na Europa e nos Estados Unidos por psicanalistas como Margareth Mahler (1979), Francis Tustin (1984), entre outros. No decorrer das últimas décadas do século XX, esses estudos influenciaram o surgimento de uma prática clínica voltada ao tratamento de crianças autistas amparada nos preceitos psicanalíticos. Os desdobramentos dessas práticas resultaram em diferentes frentes de atuação, quais sejam: atendimentos clínicos em consultórios e o surgimento de instituições de caráter educativo-terapêutico.

Este artigo visa refletir sobre as práticas psicanalíticas institucionais dedicadas às crianças autistas no Brasil a partir da década de 1990, apresentando, por meio de entrevistas realizadas com profissionais cujos trabalhos estão descritos em um maior número de publicações, temas relevantes para o entendimento do autismo, bem como sua inserção nas práticas psicanalíticas institucionais no cenário brasileiro. Para maior compreensão, faz-se necessário explicitar metodologicamente o caminho percorrido, apresentado a seguir.

 

Considerações sobre a pesquisa histórica em psicanálise

Em termos metodológicos, este artigo está inserido no campo de pesquisa relativo à historiografia da psicanálise sob o vértice da abordagem contextual. Nesta, os fatos históricos ganham nova conotação, que não está restrita ao caráter informativo, e permite análises mais depuradas, na medida em que o contexto científico e cultural é relevante para o entendimento do movimento psicanalítico e de seus personagens (Abrão, 2004).

Assim, para obter um panorama do tema ora em análise, empregaremos inicialmente as fontes documentais e, posteriormente, as fontes orais, organizadas da forma que segue.

Com relação às fontes documentais, recorremos à literatura técnico-científica dos anos de 1990 a 2010, disponível na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS). Essa biblioteca é uma parceria entre a Rede Nacional de Bibliotecas da Área de Psicologia, o Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Psicologia da USP, o Conselho Federal de Psicologia e a Bireme. A base de dados utilizada para este levantamento foi a Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs), um dos mais importantes indexadores da literatura científica da América Latina e do Caribe.

Assim, após buscarmos na biblioteca virtual os artigos que discorriam acerca do autismo sob um viés psicanalítico, verificamos quais os autores que mais publicaram suas práticas e onde as exercem. As seis autoras cujos nomes apareceram de modo mais recorrente – Ana Beatriz Freire, Angélica Bastos de Freitas Rachid, Conceição Aparecida Serralha de Araújo, Katia Alvares de Carvalho Monteiro, Maria Cristina Machado Kupfer e Maria Izabel Tafuri – foram convidadas a participar desta investigação.

A escolha por utilizar as fontes orais reside no fato de que, no período a que nos propomos estudar, a maioria dos profissionais responsáveis pelo desenvolvimento dessas práticas clínicas encontrava-se em plena atividade profissional, estando, portanto, em condições de testemunhar suas experiências em relação às práticas que desenvolvem e ao contexto institucional em que atuam.

Com vistas a uma execução profícua das entrevistas, as depoentes foram abordadas tomando-se por base um roteiro elaborado previamente, cujos objetivos foram estabelecer parâmetros comuns para a realização das entrevistas e obter o maior número de informações possíveis sobre o tema em estudo. Entretanto, as questões que constituem o roteiro foram propostas aos entrevistados de forma livre, permitindo ampla liberdade de resposta e associação de ideias.

 

As práticas psicanalíticas com crianças autistas: que lugar é esse?

A prática psicanalítica sobre o autismo desenvolvida no Brasil suscita inúmeras reflexões e questionamentos, os quais procuramos abordar nas entrevistas com as profissionais da área.

As reflexões então apresentadas a partir das entrevistas foram organizadas de acordo com os seguintes temas geradores:

  • mudanças em relação à forma pela qual o autismo tem sido compreendido ao longo dos anos;
  • contribuição(ões) da psicanálise para o entendimento/tratamento do autismo;
  • diagnóstico diferencial entre autismo e psicose;
  • pluralidade de entendimentos sobre a etiologia do autismo;
  • práticas psicanalíticas institucionais voltadas ao tratamento e escolarização de crianças com autismo;
  • inovações trazidas pelos autores brasileiros;
  • dificuldades advindas das práticas clínica e institucional com as crianças autistas.

 

Mudanças em relação à forma pela qual o autismo tem sido compreendido ao longo dos anos

De modo geral, um dos aspectos abordados pelas psicanalistas associa-se ao surgimento, nas últimas décadas, de maior ênfase no aspecto biológico do autismo, com o aparecimento de explicações genéticas e organicistas, culminando no aumento do recurso aos psicofármacos, como aponta a entrevistada Angélica Bastos, em seu trabalho "Medicação e Tratamento Psicanalítico do Autismo":

Assiste-se com frequência ao endereçamento de um pedido de alívio imediato e avesso à mediação da palavra por parte de mães e pais de crianças autistas, e também por parte de profissionais encarregados da educação e da reabilitação desses pacientes. Em proveito da eliminação de distúrbios (do sono, da motricidade, da alimentação), esse pedido ignora a escuta, fazendo calar a todos antes mesmo que a fala produza os efeitos que identificamos, a partir da invenção freudiana, como o inconsciente (BASTOS, 2003, p. 26).

Conforme assevera Conceição Araújo em entrevista, ao mesmo tempo em que o aperfeiçoamento dos recursos da medicina esclareceu acerca da constituição neurológica e as bases biológicas do autismo, houve uma perda do olhar sobre as questões de relacionamento. A psicanalista entende que a existência e a comprovação de uma questão biológica e neurológica envolvida na etiologia do autismo não podem tamponar ou sobrepor-se à questão relacional, sob risco de agravar os quadros da criança.

De acordo com o relato de Ana Beatriz Freire, atualmente existem determinadas psicopatologias da infância que são diagnosticadas erroneamente como autistas, porque os pacientes que são encaminhados para tratamento são superficialmente diagnosticados: "Recebemos pacientes que são rapidamente diagnosticados, porque virou o significante quase do discurso da medicina e do Mestre, como Lacan diria, então, às vezes, tem rápidos diagnósticos" (Ana Beatriz Freire). Por isso, pode-se pensar que o aumento do número de crianças diagnosticadas dentro do "transtorno autista" está correlacionado à forma como tem sido feito o diagnóstico, o qual é muitas vezes elaborado sem o cuidado necessário. Por sua vez, os pais têm cada vez mais procurado formas de tratamento com resultados imediatos, como uma tentativa de aliviar o sofrimento decorrente das angústias mobilizadas no convívio com os modos de expressão da subjetividade autista.

Como consequência, assistimos, nos últimos anos, ao surgimento de uma profusão de métodos e de abordagens advindos das terapias cognitivo-comportamentais, conforme menciona Maria Cristina Kupfer: "O número de abordagens e métodos aumentou significativamente, assim foram criados métodos específicos como o Son-Rise, o TEACCH e o ABA, os quais surgiram nesses últimos 20 anos".

Por outro lado, a entrevistada Maria Izabel Tafuri aborda a mudança sobre a compreensão do autismo dentro do saber psicanalítico. Ressalta a autora: "Até a década de 1980, entendíamos os autistas como uma modalidade de psicose – quase todos os psicanalistas pensavam dessa forma. Depois passamos a ver o autismo como uma clientela à parte disso, diferente dos pacientes psicóticos" (Maria Izabel Tafuri). Atualmente, existem autores que consideram o autismo como uma quarta estrutura, pensamento este não compartilhado por ela.

No que tange ao tratamento das crianças autistas, a referida entrevistada aponta como uma mudança significativa a maior flexibilidade dos psicanalistas, atualmente mais abertos aos outros campos do saber, como às neurociências e à psiquiatria.

Por fim, Katia Monteiro observa que, nas últimas décadas, houve um aumento de publicações sobre o autismo em diversos campos do conhecimento:

É no ano 1990, exatamente dos anos 1990 a 1995, que passamos a encontrar uma produção muitíssimo maior nessa área de autismo, onde você se depara com diversos profissionais e não só na área da saúde, mas também na área da educação, trabalhando com esta clientela (Katia Monteiro).

Como consequência do aumento do interesse sobre a saúde mental da infância e da juventude, os municípios foram se organizando e, no final da década de 1990, surge o primeiro Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil – CAPSi Pequeno Hans, inaugurado no Rio de Janeiro, em setembro de 1998.

Para a entrevistada, a preocupação com as psicopatologias da infância nas últimas décadas repercutiu também dentro do campo psicanalítico, no qual se pôde notar o incremento de profissionais empenhados no estudo e nas práticas clínica e institucional com as crianças autistas:

Dentro da própria psicanálise, você vê o incremento maior de profissionais em formação que começam a se interessar pelo trabalho da psicanálise com crianças e com crianças autistas e psicóticas. Surgem iniciativas que darão origem a diversos eventos científicos, a diversas associações de pais (Katia Monteiro).

Há, portanto, um aumento do interesse no estudo das crianças autistas, em decorrência de alguns fatores, quais sejam: atenção crescente aos estados primitivos da mente, por parte da psicanálise; maior incidência de crianças em que prevalecem quadros clínicos regressivos, cujo autismo se tornou um paradigma, dado o seu reconhecimento social; e o surgimento de políticas públicas direcionadas a esta população.

 

Contribuição(ões) da psicanálise para o entendimento e tratamento do autismo

De todas as temáticas abordadas, o tópico ora em apreciação foi um dos mais consensuais, haja vista que as profissionais entrevistadas são unânimes em destacar as contribuições da psicanálise no tratamento e no entendimento do autismo.

No trabalho de Izabel Tafuri e Gilberto Safra (2008), "Extrair sentido, traduzir, interpretar: um paradigma na clínica psicanalítica com a criança autista", a clínica psicanalítica com a criança autista é pensada para além da técnica clássica – as interpretações. Nesse sentido, as ações interventivas do analista são referentes ao tom de voz, gestos, o setting e o holding, por intermédio de atividades outras que não a decifração, a decodificação e a interpretação, de modo a contribuir para o tratamento do autismo.

Por outro lado, para Angélica Bastos (Informação verbal, setembro de 2011), trabalhar dentro de uma concepção psicanalítica é considerar que, antes de qualquer sintomatologia, há um sujeito ali implicado, ou seja, é apostar que há uma subjetividade. Por conseguinte, a psicanálise vai retirar do lugar de déficit a criança autista, positivando a sua forma de existência e vislumbrando um olhar diferenciado sobre o modo como se posiciona diante do Outro, tal como aponta Katia Monteiro:

A psicanálise vai retirar do lugar de déficit a criança autista e psicótica. A riquíssima sintomatologia descrita por Kanner como as estereotipias, a ecolalia, são tomados pela psicanálise como trabalho da criança em uma tentativa de fazer frente a seu Outro invasor, da demanda que é sentida pelo autista como invasora. Desta forma, os sintomas observados no autismo não são entendidos como algo deficitário. Encontramos o TCC que entenderá como déficit cognitivo e, para isso, é preciso recuperar o que foi perdido (Katia Monteiro).

Na mesma linha de pensamento, as entrevistadas Ana Beatriz Freire e Maria Izabel Tafuri ressaltam que a psicanálise, ao contrário de outros campos "psi", não pretende eliminar os sintomas ou proceder a um tratamento baseado em técnicas psicopedagógicas e médicas para que a criança autista se torne apta a exercer suas atividades em sociedade. Segundo Tafuri, a psicanálise

não é um tratamento que vai ensinar a criança a comer, andar e a falar, ou seja, não é um tratamento educativo, é um tratamento que vai lidar com a sua constituição, com o ego, com o desenvolvimento da personalidade, com todas as questões humanas dessa criança (Maria Izabel Tafuri).

Conforme aponta Ana Beatriz Freire, tal compreensão ainda se deve ao fato de a psicanálise enfrentar a questão do autismo, quer dizer, ela não recua diante da impossibilidade e "enfrenta a questão, propondo inventar outras formas de diálogo com o Outro, com aquilo que a princípio é invasivo, avassalador, como o autismo, e vimos muitos resultados, muitos bons resultados" (Ana Beatriz Freire). Outra contribuição do conhecimento psicanalítico mencionada pela profissional consiste em que, para esta abordagem, o autismo não é uma relação biunívoca de causa e efeito no nível da culpa, ou seja, no sentido de que a criança se constitui desse modo em razão dos pais, os quais, muitas vezes, são implicados e estão em sofrimento.

A importância da psicanálise para o tratamento do autismo e seus familiares também é salientada por Conceição Araújo, cujas reflexões foram trazidas à luz do referencial teórico de Winnicott. A entrevistada examina que, ao tratar da criança autista e de sua família nos serviços públicos, como nos CAPSi, é preciso ampliar a clínica e superar a visão da psicanálise tradicional, pois a família tem que dar continuidade ao trabalho, o que só é possível quando os familiares passam a compreender a importância do ambiente e de sua relevância terapêutica:

Porque, se a família começa a entender isso, ela vai saber trabalhar essas questões também, o que eu acho fundamental. É por isso que eu acredito que a psicanálise, especificamente a linha winnicotiana, permite uma abertura muito grande, porque sai daquela questão tradicional da criança ir ao atendimento cinco vezes por semana só com o terapeuta, o qual não fala nada para o pai e a mãe... Acho que permitiu que a gente pudesse modificar essa forma de atendimento e ampliar a clínica (Conceição Araújo).

Além disso, Conceição enfatiza que, independentemente da linha teórica, a psicanálise desenvolve um trabalho diferenciado no tratamento das crianças autistas, caracterizando-se por ampliar o setting analítico realizado em consultórios e dedicar-se à prática psicanalítica efetuada também no interior de instituições: "Todos têm a sua importância e estão se desenvolvendo no sentido de sair propriamente do trabalho realizado estritamente em consultório para um trabalho que possa ser feito em instituições e na atenção primária, por exemplo" (Conceição Araújo).

Por fim, Maria Cristina Kupfer refere que, embora a psicanálise não seja precisa no que tange à explicação etiológica do autismo, sua contribuição é fundamental por levar em conta a relação e a constituição de um laço social, o qual, segundo a entrevistada, não existe no autismo:

Ela tem uma contribuição fundamental, uma vez que ela coloca o olhar na relação, no laço, onde reside a especificidade do autismo, ou seja, é realmente um laço que não se faz. A psicanálise realiza uma leitura da dimensão pulsional, libidinal, sexual, tendo uma grande produção a respeito da construção da sexualidade infantil e como a gente sabe que é esse o ponto preciso de construção que a gente não vê no autismo, faz toda a diferença (Maria Cristina Kupfer).

Em síntese, podemos agrupar as contribuições da psicanálise para o atendimento da criança autista em duas grandes áreas: a forma de compreensão do diagnóstico e o desenvolvimento de estratégias de tratamento.

 

Práticas psicanalíticas institucionais voltadas ao tratamento e escolarização de crianças com autismo

Quando questionadas quanto às práticas aqui descritas, todas as profissionais entrevistadas revelaram considerar fundamental o trabalho com essas crianças em instituições norteadas pelo referencial psicanalítico.

Para Conceição Araújo, a importância do trabalho reside na peculiaridade de essas instituições possibilitarem que as crianças autistas encontrem um modo de ser, sem objetivar enquadrá-las em padrões preconcebidos do que seria uma criança normal:

Eu penso que são experiências importantes, especialmente porque eu sinto que há uma preocupação com o ser dessa criança, e eu acho que isso é fundamental: poder se aproximar disso, não achar que a criança tem que ser enquadrada, não achar que o importante é que ela se ajuste a tudo que a gente acha que ela deve se ajustar. Penso que o mais importante é possibilitar essa compreensão, ajudar as famílias com as suas angústias (Conceição Araújo).

Na mesma direção, Angélica Bastos sustenta que a clínica do autismo tem que ser inventada a partir das trajetórias profissionais do clínico e da equipe, e, nesse aspecto, o trabalho psicanalítico desenvolvido em instituições com crianças autistas torna-se essencial: "Acho muito interessante a experiência, pois mostra que o tratamento do autismo tem que ser inventado dentro do estilo e da formação das pessoas, que não é possível trabalhar com protocolos fixos, uma vez que depende muito da criança, do clínico e da equipe" (Angélica Bastos).

Por sua vez, Maria Cristina Kupfer destaca a importância do trabalho em equipe realizado no interior das instituições: "É muito importante que a gente trabalhe institucionalmente, porque o trabalho com a criança grave é muito difícil, o trabalho individual é quase insustentável" (Maria Cristina Kupfer). Conforme seu relato, a autora refere que muitos psicanalistas, cujo trabalho era efetuado individualmente em clínicas particulares, estavam adoecendo por não compartilharem e discutirem aquilo que era transmitido pela criança autista, a qual também se beneficia ao permanecer na instituição com outras crianças:

Então, a instituição é um lugar de "partilhamento", não que você vá deixar de se responsabilizar pela criança que você atende, pelo contrário, você continua se responsabilizando, sustentando a transferência. Mas a possibilidade de discussão e de poder aliviar os momentos de angústia é extremamente importante. Além disso, fui percebendo a importância da própria criança estar na instituição com outras crianças (Maria Cristina Kupfer).

Katia Monteiro aponta, com base em sua prática clínico-institucional vivida no Ateliê Espaço Terapêutico, que o trabalho com as crianças autistas efetuado nas instituições não deve perder de vista o percurso particular da criança e, para isso, é preciso promover um trabalho preliminar, de modo que a criança autista consiga suportar a demanda advinda do Outro e construir a sua própria.

Nesta direção, é imperativa a construção de uma clínica que sustente o percurso singular dessa criança na elaboração de sua solução particular, ou seja, na construção de suas marcas subjetivas. Um trabalho preliminar é necessário para que a criança possa suportar a demanda do Outro ou mesmo vir a construir uma demanda própria. Esse é o trabalho que realizamos no Ateliê Espaço Terapêutico, aqui no Rio de Janeiro. (Katia Monteiro).

A entrevistada Ana Beatriz Freire acredita que o trabalho psicanalítico com crianças autistas no contexto nacional é imprescindível e necessita maior ampliação, haja vista que, embora reconheça que os CAPSi estejam criando uma rede importante no tratamento das crianças autistas sob uma perspectiva psicanalítica, a autora manifesta seu desejo de que existissem mais iniciativas como estas.

Por fim, seguindo a mesma linha de pensamento, Maria Izabel Tafuri analisa que, a despeito de haver aumento do trabalho psicanalítico-institucional, há uma dificuldade financeira no que tange aos incentivos públicos destinados à criação de serviços interdisciplinares:

Acho que têm aumentado as iniciativas na área da psicanálise de criar as equipes interdisciplinares e criarem os serviços. A grande dificuldade é mais econômica do que de base, porque nós não temos muitas condições junto ao governo (Maria Izabel Tafuri).

Nesse sentido, pode-se inferir que as práticas psicanalíticas institucionais destinadas às crianças autistas no Brasil, seja no âmbito público, seja no privado, têm se tornado importantes por permitir que o trabalho com essas crianças seja reinventado de acordo com o transcorrer do tratamento, o que dependerá do clínico, da equipe, da criança e de seus familiares.

Ademais, a atuação de profissionais norteados pelo referencial psicanalítico em equipe interdisciplinar leva a psicanálise para outros espaços, favorecendo a troca de informações e contribuindo para transformar o setting analítico-psicanalítico.

Finalmente, tendo em vista que a grande maioria dos artigos escritos pelas autoras entrevistadas é derivada do trabalho psicanalítico institucional com crianças autistas, é válido mencionar alguns de seus trabalhos: "Paradoxos em torno da clínica com crianças autistas e psicóticas: uma experiência com a 'prática entre vários'" (2004), de Ana Beatriz Freire e Angélica Bastos; "O manejo clínico com adolescentes autistas e psicóticos em instituição" (2005) e "Porta de entrada para adolescentes autistas e psicóticos numa instituição (2007)", ambos escritos por Angélica Bastos, Katia Monteiro e Mariana Ribeiro; "A psicanálise e o tratamento de crianças e adolescentes autistas e psicóticos em uma instituição de saúde mental" de Jeanne Ribeiro, Kátia Álvares e Angélica Bastos (2006); e "O tratamento institucional do outro na psicose infantil e no autismo" (2007), de autoria de Maria Cristina M. Kupfer, Carina Faria e Cristina Keiko.

 

Inovações trazidas pelos autores brasileiros

Este tema buscou abordar as opiniões das profissionais quanto à prática psicanalítica brasileira destinada às crianças autistas, mais especificamente sobre a existência (ou não) de inovações nessa área.

A entrevistada Angélica Bastos acredita que haja práticas psicanalíticas inovadoras com as crianças autistas no Brasil, todavia não as conhece profundamente. De todo modo, entende que a invenção do trabalho psicanalítico com as crianças autistas em nosso país acontece no nível particular de cada caso.

Segundo Conceição Araújo, a inovação existe quando os profissionais abrangem, no tratamento psicanalítico com as crianças autistas, o atendimento à família: "Acho que tem uma inovação quando eles começam a abrir mais para o atendimento da família. . . Nesse sentido, existe uma abertura maior" (Conceição Araújo).

Para Ana Beatriz Freire e Maria Izabel Tafuri, a criatividade dos autores brasileiros é uma das inovações da clínica psicanalítica do autismo. Em entrevista, Tafuri destaca a importância de alguns autores brasileiros no estudo do autismo, como Laznik-Penot e Alfredo Jerusalinsky, enfatizando que, embora as condições financeiras do Brasil para o atendimento de crianças autistas sejam desfavoráveis, os profissionais são criativos:

Há muitos autores importantes na nossa área. A própria Laznik, que, apesar de estar na França, é brasileira. Ela tem trazido coisas inovadoras. Algumas eu concordo, outras não, mas tem trazido. O Jerusalinsky também. O pessoal da área winnicottiana tem trabalhos inovadores também. A gente produz. Temos sido mais criativos do que os psicanalistas franceses, por exemplo, em termos de atendimento de crianças com autismo . . . . Lá eles têm mais condições, aqui nós temos mais criatividade (Maria Izabel Tafuri).

Por outro lado, Ana Beatriz Freire sustenta que a inventividade existente na prática psicanalítica brasileira voltada para as crianças autistas não deve servir de modelo a ser seguido e repetido de forma acrítica:

Então, eu acho que são muito criativos, só não acho que tem que virar padrão, só porque uma coisa deu certo, precisa repetir automaticamente. Eu acho que vale como experiência, sobretudo as experiências clinicas para refletir. Acredito que os autores brasileiros têm contribuído, sim, eu tenho lido coisas muito interessantes (Ana Beatriz Freire).

Por fim, Maria Cristina Kupfer acredita que a busca dos autores brasileiros por novas estratégias de atendimento às crianças autistas propicia a inovação das práticas psicanalíticas. Como exemplo, menciona a "prática entre vários" adotada pelo Núcleo de Atenção Intensiva à Criança Psicótica (Naicap), localizado no Rio de Janeiro, a noção de transferência subjetal empregada pelo Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem (CPPL), situado no Recife, e a Educação Terapêutica, desenvolvida no Lugar de Vida, em São Paulo.

Assim, pode-se afirmar que o surgimento de profissionais interessados na temática em estudo tem enriquecido as discussões e promovido avanços na área. Em acréscimo, embora não haja, no contexto psicanalítico brasileiro, incentivos financeiros representativos voltados ao tratamento de crianças autistas, os analistas e autores nacionais valem-se de sua inventividade para buscar novas estratégias de atendimento.

Finalmente, conforme destacado pelas entrevistadas, deve-se evitar que tais inovações adquiram um status de padrão a ser seguido, uma vez que determinada orientação de trabalho funciona para aquela criança em particular, e não para todas as crianças autistas, impulsionando os profissionais na busca da melhor estratégia de tratamento, a ser construída a partir da singularidade de cada caso.

 

Dificuldades advindas das práticas clínica e institucional com as crianças autistas

A respeito das dificuldades advindas do trabalho com as crianças autistas no Brasil, as entrevistadas apontam obstáculos diversos, tanto no que concerne à prática clínica, quanto à institucional.

Um dos impasses institucionais enfocados alude à problemática da inclusão. Nesse aspecto, Maria I. Tafuri afirma em entrevista que a sociedade não oferece as mínimas condições de inclusão das crianças autistas no convívio social:

As famílias precisam de orientação e a sociedade, como um todo, não oferece as condições mínimas de inclusão. É um trabalho constante que estamos fazendo, principalmente em Brasília, de criar grupos de estudo, cursos, e sempre convidarmos os psiquiatras, os pediatras, os neurologistas e as escolas que estão atrasadas em relação à inclusão para conversar conosco sobre o autismo (Maria Izabel Tafuri).

A inclusão das crianças autistas torna-se ainda mais desafiadora quando nos referimos à problemática da inclusão escolar, pois, muitas vezes, conforme especifica a autora, os pais das crianças "comuns" excluem as crianças autistas das escolas, por acharem que seus filhos não podem conviver com eles.

Eles se reúnem e fazem a cabeça do diretor da escola para expulsar aquela criança. É uma questão social muito séria. Pode ser porque a criança mordeu outra, enfim, são ações que qualquer criança faz, mas quando é a criança autista que morde, vira uma bola de neve . . . e os pais dizem que seus filhos não podem conviver com autista, com um marginal, com um maluco, dentro da sala de aula. E o que eles fazem? Eles combinam entre eles, fazem pressão para o diretor da escola e a criança acaba sendo convidada a sair da escola. Então, acho que tinha que ser um trabalho cotidiano de sensibilização social (Maria Izabel Tafuri).

Ana Beatriz Freire também frisa a questão da inclusão escolar como uma grande dificuldade para a criança e seus familiares, os quais, muitas vezes, não têm com quem deixar seus filhos:

As mães têm muita dificuldade, até o Jardim ainda aceitam, agora depois. . . eu tenho paciente no consultório que não tem para onde ir, as escolas não aceitam. Essa é uma grande dificuldade, imagino para os pais, paciente e também para nós que trabalhamos e não podemos ficar o dia inteiro com uma criança, por isso o Lugar de Vida é importante, o CPPL no Recife. Mas aqui no Rio de Janeiro eu acho que ainda não existe um lugar assim: existem escolas, mas funciona quase como um depósito (Ana Beatriz Freire).

Assim, verificamos a escassez de serviços que incluam essas crianças, seja na esfera da educação, seja no âmbito da saúde.

Na esfera pública encontramos poucos recursos para implementação de um número necessário e razoável de serviços que possam dar conta da demanda . . . . Na esfera privada encontramos diversos profissionais trabalhando com o autista, mas, na grande maioria das vezes, de forma fragmentada. Os pais se deslocam de um profissional para outro, o que sobrecarrega tanto a criança quanto a família. Da mesma forma, registro a escassez de serviços que atendem autistas. Encontramos algumas escolas clínicas, na maioria, orientadas pelo TCC (Katia Monteiro).

Somados à insuficiência de serviços públicos e privados destinados às crianças autistas, a autora menciona o despreparo dos profissionais de saúde diante da grande demanda de atendimentos nos serviços de saúde mental infantil e a falta de psiquiatras nas equipes.

Angélica Bastos também aduz, em entrevista, que a falta de um lugar na rede social para a criança autista é uma das grandes dificuldades encontradas, sobretudo quando a criança cresce e torna-se um adolescente:

Uma dificuldade que eu vivi e as pessoas do Naicap também viveram é que, uma vez que o autista deixa de ser uma criança autista, é muito difícil encontrar um lugar para ela na rede social de um modo geral, não só na rede de saúde. Durante a adolescência, pelo menos aqui no Naicap, eles ainda iam ficando um pouco, mas depois é muito difícil encontrar no Outro social um lugar para essas pessoas (Angélica Bastos).

Para Conceição Araújo, um dos impasses institucionais no trabalho com as crianças autistas concerne às exigências burocráticas, as quais, muitas vezes, não coadunam com a necessidade da criança e de seus familiares: "uma criança com uma dificuldade e sua mãe não podem ser tratados como uma neurose onde vou estabelecer: 'Venha nas quintas-feiras às 14h'. É no tempo dela, não é no meu tempo, nem naquele que a prefeitura exige" (Conceição Araújo).

Outra dificuldade no trabalho efetuado com as crianças autistas no interior de instituições públicas, assinalado pela entrevistada, tange à política de contratação, visto que o ingresso na instituição ocorre por meio de concursos públicos, de maneira que muitos profissionais são transferidos para o setor infantojuvenil sem que se verifique, na maior parte das vezes, o desejo em atuar nessa área, o que irá repercutir no tratamento dessa população.

Por sua vez, Maria Cristina Kupfer considera a cultura atual um dos empecilhos encontrados no tratamento das crianças autistas:

A primeira dificuldade é cultural, tem a ver com a cultura dentro da qual a gente opera: que resiste. . . "time is money", uma cultura que espera rapidez, que não pode suportar incertezas, que não suporta que haja Resto, Real, Inapreensível, ou seja, que não tem tempo para esperar, paciência para esperar o tempo que precisa qualquer trabalho psicanalítico – essa é a primeira (Maria Cristina Kupfer).

Para a entrevistada, a biologização das doenças mentais é mais uma dificuldade encontrada, culminando na procura por remédios em prejuízo do tratamento: "Então, tudo isso impede que a gente instale um tratamento e ele dure o tempo que é necessário durar". (Maria Cristina Kupfer).

O terceiro percalço no trabalho psicanalítico com as crianças autistas, ressaltado por Cristina Kupfer e também mencionado pelas entrevistadas Conceição Araújo e Ana Beatriz Freire, refere-se à fragmentação da psicanálise e à consequente diversidade de compreensões sobre o autismo. Segundo Kupfer, essa pluralidade tem um efeito também nas práticas institucionais: "tem horas que isso é muito bom porque você tem várias possibilidades de pensamento, mas em outros momentos, paralisa" (Maria Cristina Kupfer).

Conceição Araújo focaliza ainda a fragmentação da psicanálise como uma grande dificuldade do trabalho institucional com essa clientela, especificamente nos CAPSi:

Eu penso que um CAPSi, para funcionar, todo mundo deveria ter uma compreensão e agir conforme ela . . . existem contribuições importantes de todas as linhas, não estou dizendo que só uma linha saiba trabalhar, mas acho que é como em uma família – as pessoas têm que estar minimamente compreendendo as coisas de uma determinada maneira para não gerar confusão e poder obter algum tipo de resultado. Quando começa essa briga entre equipe, cada qual querendo fazer valer sua teoria e se esquecem de que o principal é aquela criança que está precisando ser compreendida, de uma família que está precisando ser ajudada, o resultado é esse tipo de dificuldade (Conceição Araújo).

No âmbito da clínica, o trabalho com os pais das crianças autistas é um dos obstáculos indicados. Conforme a fala de Ana Beatriz Freire, os pais possuem extrema dificuldade em abrir mão do lugar de objeto do filho, motivo pelo qual se deve trabalhar com os familiares o vínculo de confiança. Seguindo a mesma linha de raciocínio, Cristina Kupfer adiciona que o trabalho de detecção de sinais precoces de autismo torna-se desafiador, pois os pais não conseguem entrar em contato com o terror de ter uma criança autista, dificultando o trabalho de prevenção:

Os pais são aqueles que mais queremos ajudar, com quem mais me preocupo e com quem o trabalho é mais difícil, principalmente quando se trata de crianças muito pequenas. Quando conseguimos detectar sinais precoces, que eles venham sem esse terror, que é absolutamente explicável e compreensível. É muito difícil que eles sejam capazes de vir para o atendimento antes que se instale o autismo. Já tive ocasião de ver casos de crianças em creche com sinais de autismo e que os pais não quiseram saber de buscar atendimento e só foram buscar 3, 4 anos depois. Quer dizer, tiveram a chance de uma intervenção precoce e não puderam entrar em contato (Maria Cristina Kupfer).

Para Maria Izabel Tafuri, o tratamento clínico feito com as crianças autistas é muito pesado, razão pela qual há que se reduzir o número de pacientes, o que significa um ganho financeiro menor: "É uma clínica bastante pesada e são pacientes que, geralmente, não vão poder custear o tratamento, como é a grande maioria da clientela, exigindo muito de você" (Maria Izabel Tafuri).

Finalmente, ainda no tocante às dificuldades do trabalho clínico, Ana Beatriz Freire destaca o desafio da contratransferência, exigindo do analista um trabalho constante de formação e análise pessoal:

A parte clínica é como você trabalhar em um diálogo sem cair no seu delírio do sentido, isso requer o seu processo de análise, para poder suportar o Real e ser de alguma maneira, quase um "não-sujeito", para conseguir ser orientado pelo próprio trabalho do autista, mas também ser sujeito: também ter que estar lá, como clínico, estar presente, isso exige muita formação. Você tem que suportar, você é uma presença quase ausente com o autista, são eles que nos guiam, não damos a direção, o autista é quem dá a direção. . . . um caso que se resolveu com um, não adianta transpor para o outro, como em toda análise (Ana Beatriz Freire).

Assim, podemos notar que a temática ora em apreciação foi uma das mais discorridas pelas profissionais entrevistadas, abrangendo diversos desafios das práticas clínicas e institucionais com as crianças autistas no contexto nacional.

 

Pluralidade de entendimentos sobre a etiologia do autismo

Ao tratar deste tema, objetivamos compreender a opinião das entrevistadas a propósito da pluralidade de entendimentos sobre a etiologia do autismo. Nesse sentido, embora as profissionais reconheçam que a discussão etiológica do autismo é necessária em suas práticas clínicas e institucionais, norteadas pelo referencial psicanalítico, as autoras não têm a pretensão de buscar uma causa para o autismo, ainda que algumas psicanalistas possuam suas próprias hipóteses sobre o assunto.

Para Ana Beatriz Freire, a diversidade de entendimentos sobre a etiologia do autismo deve-se ao fato de ser uma questão humana e, ao limitar o autismo a uma relação de causa e efeito, corre-se o risco de a etiologia incidir sobre a culpa (caso haja uma falha na relação) ou implicar uma desresponsabilização (na hipótese de uma procedência genética):

a questão é humana, demasiadamente humana, é querer ter uma explicação causal que não é tão simples assim. . . . Não podemos ser prepotentes, temos que aprender com os autistas e não apenas tachar uma causa e efeito na relação, porque senão cai na culpa, ou então você atribui a uma genética e não se vê implicado, o que é muito fácil (Ana Beatriz Freire).

Desse modo, a autora prefere pensar na saída do autismo, e não na sua causa, apontando que os discursos científicos, ao fixarem uma procedência única desse quadro clínico, impedem o surgimento de invenções possíveis de tratamento.

Esse ponto de vista é compartilhado por Katia Monteiro, que observa, em sua fala, que identificar o mecanismo neurobiológico responsável pela etiologia do autismo não auxiliará no sentido de mostrar as respostas que o sujeito poderá construir:

Identificar somente o mecanismo neurobiológico específico que responda à etiologia do autismo não nos ajudará muito, na medida em que não nos mostra as possíveis respostas (e são elas infindáveis) que o sujeito irá construir frente aos problemas colocados por sua história, seu corpo, seu organismo (Katia Monteiro).

Ademais, a autora destaca que a classificação diagnóstica tem sido um recurso usado como solução diante da impossibilidade de escuta, de forma que a medicalização e intervenções aparecem como única alternativa, sem que se pesem os efeitos simbólicos de tais intrusões.

Os artigos de Conceição Serralha de Araújo "Winnicott e a etiologia do autismo: considerações acerca da condição emocional da mãe" (2003b), "O autismo na teoria do amadurecimento de Winnicott" (2003a) e "A perspectiva winnicottiana sobre o autismo no caso de Vitor" (2004), partem da concepção teórica de Winnicott para pensar a etiologia do autismo. Em entrevista, Conceição Araújo aduz que a pluralidade de entendimentos voltados à busca etiológica do autismo deve-se à complexidade deste quadro. Dessa forma, muitas teorias surgem com a ilusão de uma resposta única, preocupação essa advinda do desconforto que o "não saber" acarreta no meio científico:

As pessoas ficam tentando encontrar alguma coisa que vai dar essa resposta tão exata como elas querem. Então, eu penso que se dê por essa dificuldade de lidar com o não saber, com o que não vem pronto, e que, portanto, não se assina embaixo. É o que faz com que surja tanta teoria. É, e muitas vezes, tem teorias que trazem a ilusão de um saber, se você coloca: "Pronto, eu sei: é isso!", ou "Pronto, a coisa está fechada e o que eu tenho que fazer é te falar como você deve agir", te dou uma receita você vai lá, faz o que está determinado, a criança se enquadra e fica tudo resolvido (Conceição Araújo).

A precocidade com que o autismo aparece também faz surgirem hipóteses muito diversas sobre a origem dessa patologia, conforme salienta em entrevista Maria Izabel Tafuri: "É uma patologia muito enigmática e muito precoce, e a gente não consegue detectar uma causa única, resultando nessa confusão toda".

Cristina Kupfer também parte da concepção de que a multiplicidade de teorias voltadas à explicação etiológica do autismo é oriunda do enigma que esse quadro clínico suscita, cuja aparição ocorre em um momento muito precoce da constituição do sujeito:

Ao fato de ser profundamente enigmático e mexer profundamente com as pessoas, com os teóricos. Eu vejo psicanalistas que não trabalham com o autismo, que quando começa a discussão eles sempre têm uma teoria, uma concepção, ou seja, cada um tem a sua na tentativa de entender o que acontece. E também porque acontece muito no início da vida e que pode abalar com múltiplas teorias (Cristina Kupfer).

A autora prossegue com seu relato, afirmando que, dentro do referencial teórico psicanalítico lacaniano, o autismo abala a divisão proposta por Lacan de psicose, neurose e perversão, surgindo o imperativo de situar o autismo ao lado dessas estruturas clínicas, opinião com a qual compartilha, mas que sabe não ser um consenso.

Assim, a busca por explicações etiológicas do autismo está presente em diversas áreas do campo "psi" e no conhecimento científico que se tem produzido nas últimas décadas.

Todavia, a preocupação etiológica não é o foco do trabalho das profissionais, em parte por conta das consequências advindas, caso seja fixada uma relação de causa e efeito: se o autismo é uma falha na relação, logo é culpa dos envolvidos. Por outro lado, se o quadro clínico estudado deve-se a uma questão de ordem genética, o autismo está circunscrito aos fatores orgânicos, eximindo os profissionais e familiares de qualquer implicação com essas crianças.

 

Diagnóstico diferencial entre autismo e psicose

Em face da problemática do diagnóstico diferencial entre autismo e psicose, notamos que, para algumas profissionais, a diferenciação é necessária para a direção de tratamento a ser seguida, enquanto outras psicanalistas partem do pressuposto de que o mais importante é ter o cuidado qualitativo, não havendo a necessidade de discriminar entre um ou outro quadro clínico.

Esta última posição é compartilhada por Ana Beatriz Freire, cujo entendimento do autismo é compreendido como um campo da psicose. Contudo, desvencilha-se da concepção psiquiátrica de diagnóstico por acreditar que, muitas vezes, esta causa um efeito avassalador sobre a criança e seus familiares:

O mais importante é ter o cuidado qualitativo, não usar só esses Manuais Psiquiátricos, como o CID, que são muito fenomenológicos e descritivos. Penso que o autismo não tem cura, no sentido que ele vai sair daquela estrutura, daquele campo, que é um campo da psicose, enfim, não vai ter cura, mas tem tratamento . . . . Então, o diagnóstico é importante, desde que não seja avassalador, não caia na impotência (Ana Beatriz Freire).

Conceição Araújo também acredita, conforme seu relato, que, mais importante do que traçar um diagnóstico diferencial entre autismo e psicose é identificar as necessidades da criança, independentemente do quadro psicopatológico que se configure: "o mais importante é a identificação das necessidades daquela criança em particular e saber agir de acordo. Penso que, enquanto você fica preocupado em diagnosticar e em diferenciar, você perde um pouco isso que é essencial" (Conceição Araújo). Além disso, a autora indica que, mesmo dentro do autismo, existem variações sintomáticas, motivo pelo qual o profissional precisa estar aberto para conseguir identificar a necessidade da criança e o modo como a família está funcionando, de sorte a realizar a melhor intervenção clínica.

Esse mesmo raciocínio é partilhado por Angélica Bastos, haja vista que, para a autora, há uma grande controvérsia entre autismo e psicose, e o decurso do tratamento, irá indicar qual quadro está se configurando.

Eu acho que depende, entre autismo e psicose eu não acho tão importante decidir, há controvérsias. . . . Acredito que o curso do tratamento indica para o clínico se é uma psicose que está se configurando ou se se trata mesmo de um autismo, mesmo em casos mais difíceis de classificar e de discernir (Angélica Bastos).

Finalmente, Katia Monteiro adiciona que, apesar de ser necessário o estabelecimento precoce de um diagnóstico, a fim de decidir qual conduta tomar, a pertinência do diagnóstico só receberá confirmação ao longo do tratamento:

Melhor dizendo: o ato diagnóstico deverá necessariamente ser colocado em suspenso e confirmado a posteriori no decorrer do trabalho analítico. O analista, em seu trabalho, nas entrevistas preliminares, deverá ter condições de concluir algo acerca da estrutura clínica do sujeito, localizando sua posição subjetiva . . . . Muitas vezes é necessário trabalhar com a suspensão do diagnóstico para que não se feche um destino manicomial e psiquiátrico para uma criança (Katia Monteiro).

Partindo de uma concepção diferente das profissionais até agora discutidas, Maria Izabel Tafuri considera importante a distinção entre autismo e psicose, embora também aponte em sua fala que o diagnóstico em psicanálise é evolutivo e que, ao longo do primeiro ano de tratamento, poderá ser avaliado qual o nível de dificuldade da criança em sair daquele quadro sintomático. No que concerne às particularidades do autismo em relação à psicose, a entrevistada nota que a capacidade de fantasiar nas crianças psicóticas encontra-se preservada, diferentemente do que ocorre com o autismo:

As crianças psicóticas têm uma capacidade muito grande de fantasiar a realidade, é um quadro completamente diferente, que não tem nada a ver com o quadro de autismo. No autismo tem uma ausência dos pensamentos fantasiosos, ausência total, não existem fantasias. E nas crianças psicóticas tem a presença do mundo fantasioso (Maria Izabel Tafuri).

Por outro lado, com base em sua prática clínica desenvolvida com essas crianças, a entrevistada observa que algumas delas tornaram-se autistas devido a falhas ambientais e que, em alguns casos, as mesmas falhas também podem causar a psicose, recolocando a complexidade da diferenciação entre autismo e psicose: "Temos, então, falhas ambientais causando autismo e falhas ambientais causando psicose" (Maria Izabel Tafuri).

De acordo com o que observa Maria Cristina Kupfer, em seu trabalho incluído nas fontes documentais, intitulado "Notas sobre o diagnóstico diferencial da psicose e do autismo na infância", uma das principais barreiras ao avanço dos estudos sobre a psicose infantil e o autismo está na disputa diagnóstica:

A falta de concordância entre profissionais impede, logo de saída, qualquer estudo epidemiológico, e dificulta enormemente as trocas científicas, já que os pesquisadores não estão falando do mesmo objeto de pesquisa – o autista do neurologista não é o autista do psicanalista (Kupfer, 2000, p. 85).

Em comunicação pessoal, a psicanalista Cristina Kupfer ressalta que a diferenciação entre esses dois quadros clínicos é imprescindível para decidir qual a direção de tratamento a ser tomada. Dessa forma, é preciso identificar qual o momento da constituição do sujeito que não se efetivou:

o momento de constituição do autista é diferente do momento de constituição da psicose. A criança psicótica tem algumas construções que dizem respeito, justamente, à imagem corporal, que o autista não tem, e isso faz muita diferença na direção do tratamento. A partir disso, você tem que decidir a direção do tratamento: se é construir um laço que não existe ou se você tem que incidir sobre um laço constituído em uma direção defensiva, muito maciça, como é o caso da psicose. Então, tem que se fazer essa diferença (Maria Cristina Kupfer).

Assim como as demais profissionais, a autora enfatiza que há uma variedade combinatória de possibilidades sintomatológicas de uma posição subjetiva de uma criança autista dentro do autismo dela. Contudo, há que se tentar fazer distinções para poder dirigir o tratamento.

Com base nos dados coletados por meio das fontes orais, podemos constatar que o diagnóstico diferencial entre autismo e psicose, assim como a necessidade ou não desse procedimento, não é um pensamento consensual. Em verdade, as entrevistas refletem a complexidade da questão que, embora abranja o conhecimento psicanalítico, não é circunscrito a ele.

 

Considerações finais

Por meio deste trabalho, pudemos refletir sobre temáticas importantes para a compreensão do autismo à luz do conhecimento e das contribuições trazidas pelas entrevistadas.

Tais reflexões tornam-se importantes por abrir um campo de discussão entre diversas áreas do conhecimento, inclusive o psicanalítico, podendo servir de parâmetro para o surgimento de novas pesquisas científicas voltadas à temática do autismo, no contexto nacional.

Por meio da análise dos trechos das entrevistas apontados, pode-se dizer que a psicanálise enfrenta grandes desafios quando desenvolvida em instituições, exigindo dessa área do conhecimento uma modificação de seus pressupostos tradicionais de setting analítico. A necessidade da atuação conjunta com os familiares, o trabalho em equipe multidisciplinar, a articulação com as políticas públicas de saúde e a descontinuidade muitas vezes ocorrida nos atendimentos com as crianças autistas são alguns dos desafios da interface psicanálise-instituição e, mais especificamente, da prática psicanalítica institucional com as crianças autistas.

Essa adequação da psicanálise e o consequente aumento das práticas psicanalíticas institucionais destinadas às crianças autistas no Brasil, seja no âmbito público ou no privado, têm se tornado importantes, por permitir que o trabalho com essas crianças seja reinventado de acordo com o transcorrer do tratamento. Além disso, essas experiências possibilitam que os profissionais compartilhem os sentimentos advindos da contratransferência que geralmente o trabalho com as crianças autistas acarreta, os quais muitas vezes podem ter um efeito avassalador. A atuação de profissionais fundamentada pelo referencial psicanalítico em equipe interdisciplinar leva a psicanálise para outros espaços, favorecendo a troca e o compartilhamento de informações, essenciais no trabalho destinado ao público em estudo.

 

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Endereço para correspondência
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19814-000 – Assis – SP – Brasil.

Recebido em setembro/2017.
Aceito em março/2018.

 

 

NOTAS

1. Pesquisa apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis, da Universidade Estadual Paulista, para obtenção do título de Mestre em Psicologia.

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