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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.23 no.2 São Paulo maio/ago. 2018

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v23i2p242-261 

DOI: 10.11606/issn.1981-1624.v23i2p242-261

DOSSIÊ

 

A criança e a "morte anunciada": Considerações sobre a escuta analítica na oncologia pediátrica

 

The child and the "announced death": Considerations about analytical listening in pediatric oncology

 

El niño y la "muerte anunciada": Consideraciones sobre la escucha analítica en la oncología pediátrica

 

 

Flora Corrêa GuimarãesI; Caciana Linhares PereiraII

IPsicanalista. Membro do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise – Seção Fortaleza, Fortaleza, CE, Brasil.
IIProfessora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia na Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil.

Correspondência

 

 


RESUMO

O artigo expõe um percurso de elaboração que advém da escuta de crianças em instituições de saúde – de modo particular, instituições de tratamento oncológico – interrogadas fundamentalmente a respeito de sua experiência diante da morte. Problematizando as incidências do discurso médico na experiência da criança e os aportes ofertados pela escuta analítica, o artigo visa contribuir para a interlocução entre a psicanálise e o campo da saúde, sustentando o olhar para o que é da ordem do singular, em especial no contexto da "morte anunciada", em detrimento do sujeito doente tomado puramente como organismo biológico.

Descritores: psicanálise; hospital; discurso médico; criança; morte.


ABSTRACT

The article presents a process of elaboration that comes from listening to children in health institutions – in particular, cancer treatment institutions – fundamentally questioning the child's experience of death. By problematizing the incidences of medical discourse in the child's experience and the contributions offered by analytical listening, the article aims to contribute to the interlocution between Psychoanalysis and the field of Health, sustaining a look at what is singular, especially in the context of "announced death", to the detriment of the sick subject taken purely as a biological organism.

Index terms: psychoanalysis; hospital; medical speech; child; death.


RESUMEN

El artículo expone un camino de elaboración que viene de la escucha de niños en instituciones de salud – especialmente, instituciones de tratamiento oncológico – interrogando fundamentalmente la experiencia del niño frente a la muerte. Discutiendo las repercusiones del discurso médico en la experiencia del niño y los aportes ofrecidos por la escucha analítica, el artículo objetiva contribuir a la interlocución entre el psicoanálisis y el campo de la salud, sosteniendo la mirada hacia lo que es del orden de lo singular, en particular en el contexto de la "muerte anunciada", en detrimento del sujeto enfermo tomado puramente como organismo biológico.

Palabras clave: psicoanálisis; hospital; discurso médico; niño; muerte.


 

 

Introdução

Este artigo interroga como o discurso médico, atravessado pela lógica de mercado e cientificista da sociedade moderna, implica um embate com a vivência da criança diante de seu adoecimento e, mais especificamente, diante da morte. Expõe um percurso de elaboração teórica que advém da escuta de crianças em instituições de saúde, de modo particular, crianças em tratamento oncológico. Nesse campo de experiência, que abarca a escuta em setores de cuidados paliativos, a interrogação se dirige de modo fundamental à experiência da criança mediante a morte, buscando recolher aspectos da escuta empreendida nestes setores e articulá-los a contribuições aportadas por psicanalistas que também se voltaram para a problemática da escuta psicanalítica de crianças em contextos institucionais – de modo específico, onde a possibilidade da morte comparece para a criança, para os pais e para a equipe de saúde. Partindo de uma discussão mais geral sobre o discurso médico, segue-se com a problematização desse discurso no campo da experiência institucional da criança e de suas incidências subjetivas. O confronto com a morte produz efeitos na equipe e nos pais, que implicam em seus modos de escutar a criança. A escuta sustentada pela ética analítica permite levantar questões importantes nesse campo transferencial que indicou o efeito de solidão e desamparo experienciados pela criança diante de um tratamento que passa a valorizar o corpo em sua dimensão biológica em detrimento de uma escuta que possa acolher a marca singular de toda experiência subjetiva.

Desse modo, a reflexão busca contribuir para a interlocução entre a psicanálise e o campo da saúde, sustentando a tensão necessária entre uma perspectiva que funda sua intervenção a partir do estabelecimento do que é comum, partilhável entre os indivíduos, e outra que privilegia o que é da ordem do singular, portanto, da ordem do sujeito. é diante desses questionamentos que se pode pensar nos efeitos produzidos diante do adoecimento da criança e de sua hospitalização e apontar para novas dimensões que o adoecer também implica. Quer dizer, tendo em vista as possibilidades curativas da doença – almejadas na instituição hospitalar – e a busca incessante para sua cura, os sujeitos envolvidos nesse contexto também podem deparar com seu contrário, que é a experiência da morte. E o mais importante: essa experiência se articulará ao que há de singular para cada um. Sendo a morte uma experiência propriamente humana – compondo um núcleo real a partir do qual o símbolo se produz – de que modo o deparar-se com a morte é vivido no contexto dos serviços que lidam com ela diariamente?

 

A instituição hospitalar, seus discursos e a escuta psicanalítica

No tocante ao discurso científico e ao saber médico, Jorge (1983) afirma que esses, identificados com o discurso do Mestre, conceituado por Lacan em sua teoria dos quatro discursos, desconsideram a subjetividade tanto daquele que fala quanto daquele que escuta. A objetividade preconizada pela ciência médica subtrai qualquer proximidade do agente com o sujeito adoecido, resultando na inexistência da relação médico-doente. Assim, operando sob o paradigma biomédico e sustentado na cientificidade do saber, a emergência do sujeito – ou mesmo dos sujeitos, agente e outro – fica restrita (Costa & Szapiro, 2016), isto é, "ele [o médico] se anula enquanto sujeito perante a exigência de objetividade científica. O médico só se autoriza por não ser ele próprio, por ser ele próprio o menos possível" (Clavreul, 1977 citado por Jorge, 1983, p. 11, grifos do autor). A desconsideração da palavra do paciente afasta o médico – e seu consequente diagnóstico – da história de vida e clínica do doente, visto que aquele não se permite ouvir os significados atribuídos aos sintomas descritos.

Tendo em vista que a dinâmica do hospital envolve a urgência fisiológica da doença e o tempo cronológico diante desta e da internação, observam-se intervenções que acabam por privilegiar o atendimento pontual diante daquilo que emerge aos "olhos e ouvidos" de todos nas enfermarias. Isso quer dizer que as ações são pautadas em reações conscientes dos pacientes e dos acompanhantes perante a doença e o momento vivido, em busca do bem-estar destes sobre aquilo que eles se queixam. Nessa premissa de supressão do mal-estar, as intervenções psicológicas são direcionadas e incidem sobre o sujeito do conhecimento, que diz saber de si e que pede para que algo que incomoda seja mais bem "administrado". Então, assim como "o saber médico pré-estabelece os passos que guiam o profissional a elaborar um diagnóstico objetivo e indicar o tratamento mais eficaz para a cura da doença" (Almeida, 2011, p. 48), a abordagem psicológica parece caminhar no mesmo sentido, visando eliminar o que o paciente indica como sintoma e mal-estar emocional ou psíquico. Dessa forma, percebe-se que essa abordagem pode coincidir com o discurso do Mestre, assim como a própria ordem médica firmada na instituição hospitalar. O sujeito internado se encontra submetido a uma dimensão imperativa inteira e completa, e o significante-mestre age, mediante a sugestão, sobre o outro enquanto saber. é um discurso que alimenta a crença da completude e a possibilidade de satisfação da demanda do sujeito (Jorge, 2006). Como Jorge (1983) declara, "converter, convencer, vencer são tarefas próprias ao discurso do Mestre" (p. 14). Em contrapartida, a psicanálise privilegia o lugar de não saber – ou de suposto saber, para o analisante – para que, a partir deste, o sujeito possa enunciar os próprios significantes de que é efeito (Jorge, 2006) e isso é possível mesmo no contexto hospitalar. Esse discurso é o único que permite que o sujeito esteja localizado na posição do outro, sendo o psicanalista um "mero objeto a" (Alberti, 2000, p. 46, grifo do autor).

 

A morte

Na Idade Média, a morte era um tema mais aberto e presente, assim como o morrer era um evento público e que envolvia a todos – adultos e crianças – em rituais menos privatizados e mais familiares (Elias, 1982/2001). Ainda que não fosse pacífica – contando com epidemias e guerras –, ela era presente e menos oculta, já que aspectos da vida humana, como o nascimento e a morte, eram fenômenos mais compartilhados e sociáveis. A diferença entre esses tempos é também destacada por Elias (1982/2001) mediante a presença dos outros na morte de um indivíduo, pois "era muito menos comum que as pessoas estivessem sozinhas" (p. 25). Isso indica o afastamento do outro diante do moribundo, fato que se evidencia hoje nos hospitais. Assim, o hospital surge como um espaço que promove a distância entre o vivo e o doente, privando-o do ambiente familiar que antes detinha junto aos seus conhecidos, e afastando os vivos dessa experiência irremediável, mas insuportável. Isso quer dizer que "a morte, tanto como processo quanto imagem mnemônica, é empurrada mais e mais para os bastidores da vida social durante o impulso civilizador. Para os próprios moribundos, isso significa que eles também são empurrados para os bastidores, são isolados" (Elias, 1982/2001, p. 19).

Com base em Freud (1915/2010), temos a compreensão de que imaginar a própria morte – ainda que ela seja inevitável e natural aos seres vivos – é impossível, pois se está sempre como um espectador; ela não é encarada de frente, é sempre percebida a partir da morte do outro. Quer dizer, "a morte é um problema dos vivos. Os mortos não têm problemas" (Elias, 1982/2001, p. 10). Portanto, ter ciência da morte do outro é deparar com a possibilidade da sua própria e é isso que causa temor aos homens – é o seu conhecimento que se torna um problema (Elias, 1982/2001). Por isso, estar junto a um moribundo, ajudando-o em seu processo de finitude e fazendo-o valer enquanto sujeito, é tão custoso. Outro aspecto para o qual é possível apontar esse distanciamento, cada vez mais presente atualmente, é o controle sobre a vida, intentado pelas ciências médicas, na busca incessante pelo adiamento da morte. Segundo Elias (1982/2001), "a vida é mais longa, a morte é adiada. O espetáculo da morte não é mais corriqueiro. Ficou mais fácil de esquecer a morte no curso normal da vida" (p. 15). Hoje, esse fato é ainda mais expressivo e frustrante, uma vez que o saber médico depara com seu "fracasso". Logo, defrontar-se com a morte de um paciente é também esbarrar-se com seu insucesso, e isso incide, diretamente, no despreparo ao cuidado do sujeito em terminalidade. Por conseguinte, é diante dessa lógica que Fuks (1995) denuncia o lugar que o sujeito passa a ocupar quando está morrendo:

A ciência, preocupada apenas em construir uma cultura de medicalização da morte, torna os idosos, assim como o doente incurável em estado terminal, seres mudos e impotentes. Ao reprimir a subjetividade de seus pacientes, os médicos acabam por privá-los do direito de morrer com dignidade, isto é, como falantes. (p. 10, grifos do autor)

Essa conjuntura chega à criança de modo ainda mais contundente, uma vez que sua experiência diante da morte tem sido, também, cada vez mais encoberta. Conforme Freud abordou, a criança recebe o estatuto de representação narcísica dos pais e da cultura, lugar de realização do que aqueles não fizeram, de prevenção e de ortopedia em direção ao ideal da civilização (Vorcaro, 1999). Portanto, os pais, diante de seus filhos doentes, também sofrem diretamente os impactos do adoecimento, seja social ou psiquicamente, pois são convocados a abdicar de suas vidas pessoais para se dedicar à vida daqueles (Góes, 2013), nos quais depositaram aspirações e idealizações. Costa (2009) também indica que, perante uma criança com câncer, as relações entre os membros da família se modificam significativamente, tendo em vista que questões ligadas ao narcisismo e à castração são evocadas mediante o contexto da doença e a proximidade com a morte. O câncer adentra a história familiar, para além da história médica, pois o lugar que a criança doente ocupa no imaginário e no desejo de cada membro delineará as formas de enfrentamento e as reações de cada um diante do adoecimento, assim como a atitude tomada pela criança dentro desse contexto refletirá nas respostas daqueles (Almeida, 2011). Além disso, de acordo com Góes (2013), "a morte de uma criança resgata nos pais seus próprios mitos infantis sobre a origem e sobre a morte, material psíquico que afeta aquilo que eles transmitem a seus filhos com psiquismo ainda em formação" (p. 98).

Em outro contexto, da "comunicação de más notícias" – como frequentemente é designado o parecer de cuidados paliativos, ou seja, o cuidado de um paciente com uma doença sem possibilidade curativa –, o que aparece de incômodo nesse novo momento, além da necessidade de elaborar o luto – em virtude da possibilidade de morte do filho amado –, é o "ouvir direto" sobre a situação da criança, o "falar direto" da equipe que causa mal-estar aos pais. Ainda que a reafirmação dos profissionais de que não há mais terapia curativa seja apoiada na garantia de que serão proporcionados conforto e qualidade de vida à criança, a renovação desse discurso, por vezes, se torna nefasto para quem o escuta. é diante deste que surge a declaração de uma mãe: "é muito difícil ficar ouvindo isso toda hora". E é nesse mesmo cenário que a fala de uma médica da equipe de cuidados paliativos anuncia um conflito entre o curar a doença, tratar os sintomas e a consideração dos sujeitos envolvidos. Ela revela: "às vezes a gente até esquece da criança na hora do comunicado de cuidados paliativos e, na enfermaria, às vezes esquecemos da família". Isso evidencia, novamente, a desconsideração da criança enquanto sujeito que merece saber sobre si, nesse caso, do ponto de vista clínico e, ainda, a criança que, posteriormente, poderá ser olhada apenas como um corpo a ser cuidado, sem que haja espaço para o respeito e a consideração à família que também sofre.

Todavia, tais atitudes também denotam a dificuldade dos profissionais em se envolverem com o paciente e sua família, e mais, em lidar com a possível morte daquele. Pois, como Carvalho (2011) aponta, a morte evidencia a castração da equipe médica, fazendo-a confrontar com a problemática do luto e de suas limitações técnicas. é por isso que seu afastamento lhes parece necessário. Para alguns profissionais, é preciso "fugir" desse envolvimento, mudando de leito ou realizando apenas os procedimentos-padrão na criança, uma vez que, diante da morte, a equipe de saúde se sente impotente por não poder prolongar a vida de seus pacientes. Sua primeira reação parece ser esquivar-se dela, escondendo-se da família (Mannoni, 1995b), ou mesmo do paciente em processo de terminalidade. Quer dizer, "o encontro com algo que foge ao controle do sujeito ratifica sua condição de assujeitado na vida" (Ferreira & Castro-Arantes, 2014, p. 59). E isso transcende à experiência dos pais e dos pacientes, que se deparam com a doença e a possibilidade da morte iminente, pois também afeta a equipe de saúde para a qual se apresentam seus próprios limites em relação à cura. Assim,

é bastante difícil para o médico ter que desviar o foco de sua atenção da cura para a perspectiva da morte. Ele é um profissional que está comprometido com a cura, e a incapacidade de alcançar tal objetivo corresponde a um fracasso de sua parte. (Gonçalves, 2001, p. 35)

Outra experiência que acontece com os profissionais da saúde diz respeito a situações em que a equipe solicita a intervenção do profissional "psi" para a resolução de possíveis problemas psíquicos dos pacientes ou de seus acompanhantes, que podem interferir em seu trabalho. Góes (2013) afirma que, muitas vezes, esse pedido inclui o tamponamento da angústia dos próprios profissionais que demandam, sem que a criança enderece alguma questão. Daí a sinalização de uma profissional da saúde ao afirmar que a equipe que lida diretamente com os pacientes "precisa ter o tempo dela, um momento para falar sobre ela". São demandas que dizem respeito, muitas vezes, à sua relação com a morte, como a enfermeira que diz: "ela [a criança] não quer ir agora", "vou segurar [não deixar morrer] ela até de noite", mas que, em contrapartida, a médica surpreende ao se opor a essa atitude, reconhecendo os limites de seu exercício – e os seus próprios – ao afirmar "não, deixa ela ir". Também aparecem falas que expressam diretamente a relação dos profissionais com a morte e com a sua inevitabilidade, como: "ai, deve ser horrível saber que vai morrer", "é difícil a gente dizer que não vai dar certo, que não tem cura" e até mesmo a frustração ao reconhecer que existe uma "dificuldade dos médicos em prever a morte". Sobre isso, como Mannoni (1995b) bem sublinha, "atualmente, o homem que conseguiu dominar o nascimento deseja ter o direito de dominar a morte" (p. 74).

Escutam-se, ainda, falas que indicam atitudes de enfrentamento e afastamento da finitude por parte dos profissionais, como a enfermeira que afirma: "numa hora de emergência, a gente quer é salvar", ou a confissão da médica, de que "a maioria [da equipe] ali atende porque quer a cura" ou, ainda, o profissional que declara "não tem mais o que fazer", diante de uma criança em terminalidade de vida. Esta última fala, que surge insistentemente nesse contexto, pode indicar uma postura que aceita o processo da finitude no que se refere a sua prática, que tudo o que era possível já fora feito, e o profissional pode se agarrar à ideia de que a família "viveu a pior parte da vida de forma tranquila e segura". Ou seja, a garantia imaginária de que tudo fora feito e os pais vivenciaram de maneira "não sofrida" a morte do filho evidencia um bom trabalho realizado pela equipe. Entretanto, ela também pode designar o seu oposto, sendo um discurso revelador de que a impossibilidade de cura resulta na "falta do que fazer" – pois seu trabalho é "inútil" a partir desse ponto, já que a morte é inevitável. Mais uma vez, evidencia o limite das técnicas, produz uma ferida narcísica nos profissionais, revela a castração de cada um. Mas, nesse momento, é possível interrogar: não há o que se fazer em relação à morte, mas e em relação à vida que ali ainda existe? Será que a morte anunciada não impõe a sentença de que a criança não tem mais uma palavra a ser ouvida? Será que, posto isso, ela não deixa de ser considerada sujeito de desejo para ser um corpo à espera da morte, com o qual os profissionais têm dificuldade de lidar e estar junto? E como essa criança se sustenta nesse tempo? Ou melhor, ela consegue se sustentar diante desse outro que parece não mais vê-la e escutá-la?

À vista disso, percebe-se que há um sentido comum produzido na instituição hospitalar, de modo que os profissionais trabalham "em prol do mesmo objetivo": a cura da doença. Assim, estar diante de algo sem inscrição psíquica, como a morte, e que ainda revela o limite de cada um, é desafiador para os que lá atuam e para aqueles que estão envolvidos nos cuidados, como a família e o próprio paciente. é assim que ela é posta de lado, numa tendência a eliminá-la da vida e reduzi-la ao silêncio, pois "no fundo ninguém acredita na própria morte" (Freud, 1915/2010, p. 230), inconscientemente, cremos em nossa imortalidade. é o deparar-se com a morte e com suas repercussões, paralelamente ao desejo de cura, que as atitudes do adulto diante da criança podem fazê-lo esquecer das particularidades que cada uma apresenta perante seu adoecimento e sua história. é por isso que Carvalho (2011) também afirma que "significantes como morte e doença mexem com o imaginário das pessoas e emergem em forma de angústia, embotando os discursos" (p. 11, grifos do autor). Há um perigo em querer apenas manter a criança viva, na tentativa de evitar uma perda ou a interrupção de algo que se supunha ter o controle, pois a consideração da criança enquanto sujeito desejante pode ser reduzida a um corpo doente que deve ser tratado e cuidado.

Portanto, para a equipe de saúde, a revelação da morte tão próxima e real comparece em sua postura diante dos pacientes em fim de vida. Manter esse distanciamento parece ser vital para os profissionais como uma defesa da morte, resultando na instrumentalização do corpo e no não envolvimento com o paciente e com sua família que sofrem. Ou seja, os profissionais "tendem a lidar com isso por meio de um distanciamento do paciente, criando um ambiente de conspiração de silêncio" (Gonçalves, 2001, p. 35). Silêncio este que não permite mais – se é que antes era possível – que a criança enderece sua palavra e simbolize o momento que está vivendo. Nesse instante atentamos que não há mais a palavra do outro para a criança – apenas sobre ela – e ela também não vê mais espaço para a sua própria, restando-lhe, como reposta ao silêncio produzido, sua demissão, seu abandono à própria morte. Ao tratar dessa questão, Mannoni (1995a) se refere a casos em que o olhar da mãe sobre um bebê, quando vazio afetiva e simbolicamente, acaba por provocar sua demissão psíquica. Ou seja, esses bebês com aparência depressiva parecem não mais reagir ao outro, devido à falta de trocas emocionais de outrora. Assim, é possível pensar que essa condição de demissão subjetiva pode ser transposta para o que aqui se discute em situações de adoecimento e da morte anunciada, mediante a falta de proposta curativa da doença da criança, já que o sujeito doente se cala, pois se recusa a ser olhado como moribundo. Isto é, "se a criança não encontra ninguém capaz de ir ter com ela, se só depara com o silêncio ou a mentira, também ela se cala" (Raimbault, 1979, p. 19).

 

A criança, a "morte anunciada" e seus efeitos

É no corpo da criança que os profissionais de saúde percebem sinais e sintomas que indicam sua finitude e tais marcas refletem diretamente no olhar do outro sobre ela. Esse fato se anuncia a partir da fala de uma médica sobre seu paciente, ao constatar que ele "já tá começando a ficar diferente, como acontece com as crianças em terminalidade". No entanto, parece que não é só a criança que fica "diferente", mas os adultos que a veem assim também se colocam em outra posição, diferente da anterior, quando a criança ainda dispunha de sua saúde a ser reestabelecida. Além disso, as "crianças em terminalidade" passam a ser um todo, generalizáveis em seus "sintomas de morte", sendo mais um momento em que se perde a singularidade de cada uma. Mais uma vez o corpo é percebido como sinalizador de disfuncionalidades e categorizado. Nesse momento, ele não pode mais ser alvo de medidas curativas, mas o controle da dor e do desconforto respiratório, por exemplo, são atendidos prontamente, pois esses são sinais que os profissionais tentam apaziguar no "momento mais difícil da vida". Ainda que se reconheça a importância de fazê-lo, promovendo-se um ato de sensibilidade para com o outro que sofre – fisicamente, nesse caso –, atenta-se para o encobrimento que a atitude do puro controle de sintomas envolve, a partir da qual não se permite acessar a criança em sua totalidade e restringe-se aos procedimentos-padrão. Isso quer dizer que o que resvala para o sujeito dessa experiência tão radical muitas vezes não é escutado, pois ele é escamoteado em prol das atitudes emergenciais do corpo (Ferreira & Castro-Arantes, 2014). Prevê-se então, uma "dupla" sensação de solidão, em seu sentido simbólico, afetivo e social. No tocante a esse fenômeno, Mannoni (1995b) afirma que "tem-se a tendência frequente, nesse momento, a considerar o doente apenas como objeto de cuidados, quando é essencial para ele que se privilegiem os momentos em que pode, enquanto sujeito, permanecer interpelável como tal" (p. 49). E é justamente em relação a esse tempo que Elias (1982/2001) declara: "se uma pessoa sentir quando está morrendo que, embora ainda viva, deixou de ter significado para os outros, essa pessoa está verdadeiramente só" (p. 75).

Muitas vezes, a morte da criança no hospital é perpassada pelo seu silêncio antecipado, pois é somente a partir do olhar e da voz do outro endereçados a ela – que nesse momento não comparecem – que a criança pode se sustentar enquanto sujeito (Mannoni, 1995b). Nesse sentido, "quando a única prescrição é 'obedecer ao doutor', o paciente desaparece, e uma violência cega (gerada pelo medo de fazer mal) se exerce: . . . o doente se torna aquele de quem se fala, não mais é escutado" (Mannoni, 1995b, p. 127). Logo, o seu silêncio pode não se dar unicamente como uma resposta ao momento da finitude, por sua elaboração do luto, mas também como resultado da atitude do outro diante dela. A "insignificância de seu caso" o deixa desamparado, já que os adultos agem como se não houvesse nada, já que ele vai mesmo morrer; e o médico se afasta, pois ele também se constrange (Mannoni, 1995b). Assim, conforme destaca Raimbault (1979),

o silêncio é a máscara da condição e da função do moribundo, criança ou adulto, em relação aos desejos dos vivos. Todo diálogo autêntico mostra-se insustentável, ninguém é capaz de ouvir o depoimento do condenado, ninguém pode responder-lhe. Ele está obrigado a um silêncio oficial que prefigura o silêncio da sua própria morte. (p. 18)

No entanto, também há casos em que a criança insiste em saber seu estado, em se fazer valer enquanto sujeito, possivelmente porque sente que "algo está diferente" – em seu corpo e mediante os outros. A tentativa de quebrar o silêncio produzido entre os pais e a instituição é atravessada pela angústia desses diante da possível descoberta ou da necessidade de sua comunicação. Os pais são os primeiros a saberem sobre o estado de seu filho, e só então será considerado falar ou não para a criança, principalmente quando se trata de uma comunicação de "prognóstico restrito", sem possibilidade curativa. Escutam-se falas dos pais e dos médicos que versam sobre a inquietação que causa esse anúncio, como "temos que começar a conversar com ela", "ele não sabe", "a mãe está sem saber como falar com o filho, e ele está querendo saber, porque está perguntando". Quanto a isso, Elias (1982/2001) declara que

a dificuldade está em como se fala às crianças sobre a morte, e não no que lhes é dito. Os adultos que evitam falar a seus filhos sobre a morte sentem, talvez não sem razão, que podem transmitir a eles suas próprias angústias. (p. 26)

Ademais, a sensação – imaginária – de que o saber da criança sobre a morte pode prejudicá-la resulta na ocultação de fatos simples da vida, que ela terá de conhecer para então compreendê-los (Elias, 1982/2001). Todavia, de acordo com Góes (2013), é possível – e necessário – incluir a criança em seu tratamento e fazê-la participar dos momentos de sua doença, atentando-nos para as diferenças na constituição psíquica do sujeito, em seus tempos de desenvolvimento.

Percebe-se, também, que é diante da proximidade da morte que o sujeito doente pode se questionar sobre sua vida, sobre o que foi experienciado e o que ainda deseja viver. Isso quer dizer que pode haver a antecipação de questões subjetivas até então não acessadas, ou seja, "a morte próxima precipitou algo" (Baroni & Kahhale, 2011, p. 71), pois "é o corte . . . da morte que lhe traz a urgência" (Castro-Arantes, 2016, p. 640). Isto é, a morte precipitou o falar e o desejo de significação do que se está vivendo. Mas a simbolização e a criação de novos sentidos diante desse momento só são possíveis se a escuta do sujeito é privilegiada, de modo a fazê-lo percorrer por sua cadeia significante e propiciar um contorno ao processo traumático, pois é justamente o seu contrário – a falta de contorno e de palavra – que pode fazê-lo calar-se e viver sua finitude de modo angustiante (Ferreira & Castro-Arantes, 2014). Portanto, "o trabalho analítico estaria então em encontrar, junto com o paciente, recursos que o sustentem, para suportar a vida – e a finitude" (Castro-Arantes, 2016, p. 647). Em se tratando de crianças, essa experiência não difere totalmente. Ela conta com particularidades quanto à sua elaboração em comparação ao adulto, mas isso não lhe tira o direito da palavra e a possibilidade de fazê-la, se assim desejar e for escutada. Ou seja, a clínica em psicanálise é a clínica do desejo e é por isso mesmo que o sujeito – que não tem idade – deve ser auxiliado pelo analista a se sustentar em sua posição desejante, mesmo diante da terminalidade (Baroni & Kahhale, 2011). Segundo Raimbault (1979), "a única ajuda que podemos dar à criança moribunda é mostrar-lhe que temos vontade de permanecer com ela até o fim" (p. 50). No entanto, permanecer com a criança aqui não deve significar a mera presença e os cuidados físicos dos adultos mediante aquela que morre, mas, sobretudo, seu comparecimento simbólico, pois, considerando sua palavra, considera-a também enquanto sujeito. Para tanto, Gonçalves (2001) ainda acrescenta: "é preciso que haja desejo de estar-com a criança na vivência de sua doença terminal, mesmo que este estar-com seja através da linguagem do silêncio" (p. 36).

Por outro lado, o trabalho do analista também pode ser o de facilitar uma mudança de posição dos adultos diante da criança, do campo da impotência ao da impossibilidade (Carvalho, 2011), já que o primeiro pode remetê-los à culpabilização (Castro-Arantes, 2016) por algo que não foram capazes de "dar conta", que, nesse caso, diz respeito à morte. Rodrigues (2006) ainda ressalta que, "para um ser pensante, não é a morte, categoria geral e indefinida, que coloca um problema, mas o fato de que ele, sujeito pensante, morre – o fato de que 'eu' morro" (p. 17). E estar na presença de uma criança que morre é ter a consciência de que se é também mortal, uma vez que "a criança hospitalizada nos confronta com esse real de que a morte não é o fim da vida, mas o que estabelece o fim à vida" (Carvalho, 2011, p. 7).

Uma outra situação que chama atenção no contexto hospitalar é quando crianças com doenças crônicas – mais "fatais", como o câncer –, convocam a equipe assistente e outros adultos a sentirem "pena" e a dar tudo o que elas pedem, e mesmo o que não pedem. Tudo isso numa tentativa imaginária de ajudar essas crianças a passar pelo momento do adoecimento de maneira mais agradável, quando, na verdade, as enxurradas de brinquedos visam tamponar, antes, uma falta daqueles que os fornecem e não uma necessidade das crianças. Segundo Castro-Arantes e Lo Bianco (2013), "há na pena o desdém e o desprezo, daquele que, defendido, se crê inteiro frente ao outro mutilado (às vezes literalmente)" (p. 2521). Ou seja, esse é um mecanismo que o sujeito encontra para poder se sustentar e se perceber inteiro diante do outro que revela um real insuportável. Todavia, Góes (2013) destaca que estar com a criança e considerá-la enquanto sujeito, inclusive quando diante da certeza da morte, parece ser mais fundamental e estruturante do que carregá-la de presentes.

Diante da criança doente, também se percebe que há um perigo circundando o processo de constituição do sujeito, pois, muitas vezes, os adultos – inclusive os pais – acabam isentando-a de suas ordens. Mediante o sentimento de pena e pressupondo um sofrimento em consequência da doença, tentam compensá-la de outras formas, não impondo limites e oferecendo presentes, por exemplo. Por vezes, até esquecem as demandas da criança, que podem, inclusive, não dizer respeito ao seu adoecimento.

Outra cena que chama atenção é a do adulto que parece querer suprir a criança que morre, a partir de objetos que poderiam amenizar sua – a do adulto e a da criança – angústia, pela busca de satisfação de "desejos" da criança, como o pedido de um carrinho de controle remoto ou o querer conhecer um personagem famoso. Essa ação surge apenas quando a equipe de saúde sabe que não há mais cura para a doença da criança, ou seja, é preciso supri-la de alguma outra forma, já que "não resta mais o que fazer". Passa a ser uma corrida contra o tempo, pois a morte pode estar próxima – nunca se sabe com precisão, para a frustração dos médicos. Tais posturas podem indicar, novamente, mais uma posição dos adultos perante a dificuldade de lidar com a doença na criança e as repercussões psíquicas nela envolvidas. A ilusão de que um objeto ajudará no enfrentamento da criança, ou mesmo pôr fim ao seu possível sofrimento, e a sensação de bem-estar causada nos adultos por essa atitude não é, por vezes, da mesma forma significado pela criança. é inegável a satisfação dela ao ganhar um presente – afinal, quem não gosta de ganhar presente? –, porém, o lugar em que ela pode se situar no momento em que isso acontece não é o que ela quer estar para os adultos. Isso indica que a criança quer ser considerada um sujeito ainda vivo e cheio de possibilidades – ainda que limitadas –, não uma pessoa com uma doença que a remete à fragilidade para o adulto e no qual opera sentimentos de pena e temor à morte. Quanto a isso, Castro-Arantes e Lo Bianco (2013) apontam que "expressar pena cala o sujeito porque fecha qualquer espaço de construção de fala, que toque no real do que experimenta" (p. 2521). Exemplo disso: uma criança fala que não gostaria que as pessoas de sua cidade a vissem doente – de máscara hospitalar e careca –, ainda que já soubessem de seu adoecimento. Tal situação poderia localizá-la em um lugar não desejado, lugar este que poderia comprometê-la diante de suas demandas e experiências, que vão além do acometimento orgânico. Por conseguinte, conforme Mohallem (2003) declara, "torna-se fundamental ter um outro que continue apostando na pessoa, que ela possa continuar tendo um lugar no desejo do Outro" (p. 29).

No entanto, também é possível considerar essa cena a partir de um outro olhar. Escutar a criança em fim de vida desejando algo particular dá voz ao seu último desejo, o qual poderá ser considerado pelo outro e lembrado posteriormente, como a criança que queria conseguir pintar novamente ou ir à praia. Realizar esse último desejo, então, de acordo com as possibilidades e sua viabilidade, pode imprimir para os adultos envolvidos algo da ordem de uma marca do sujeito, que será lembrado mesmo depois de sua morte. Quer dizer, estar diante da morte iminente da criança pode fazer que o outro "acorde" e busque fazer valer seus desejos ainda em vida, e mais, pode permitir que a criança, de fato, viva. Mas é preciso atentar para que esse olhar não seja acompanhado pelo silêncio e pela angústia diante da morte que se aproxima, mas que seja legítimo e a favor da criança e da vida que ela ainda dispõe.

Além disso, a relação da criança com a morte, por vezes, é falada por ela de modo mais "natural", menos camuflado. Como exemplo, um garoto com o diagnóstico de leucemia fez um desenho quando estava internado e contou a seguinte história sobre a flor que desenhara: "um dia um homem quis plantar uma flor. Ele tinha umas sementes e plantou. Ela se chamava rosinha. Todos na cidade achavam ela muito bonita e muito cheirosa. Ela cresceu, mas ficou no sol e começou a murchar. Aí o homem pegou ela e botou pra dentro de casa, mas ela ficou triste porque queria ficar no sol, porque era o lugar dela. Aí o homem botou ela no sol de novo e ela morreu". Como uma leitura do que fora dito por essa criança, nota-se que o desejo da rosa – de voltar ao seu lugar, no sol – deveria ser escutado e a dificuldade do homem em lidar com esse processo inevitável da morte, querendo evitá-lo, revela um registro de sentido que difere do da criança.

Há casos em que as crianças deparam com a morte, fazendo questões a ela, no momento em que seus vínculos são rompidos mediante a perda de um familiar ou mesmo de um amigo, também paciente oncológico. Ou seja, é diante da morte do outro que a possibilidade da própria morte se apresenta ao sujeito. Diante dessa morte, aliás, por se tratar de crianças envolvidas – a que foi e a que ainda vive – o não-dito prevalece, numa nova tentativa de evitá-la por parte dos adultos. Assim, a criança fica alheia à morte de seu amigo ante uma causa defendida por aqueles que referem proteção, para a criança e para si, ao não querer entrar em contato com esse conteúdo. Contudo, aqui circunda uma questão ética, pois, em alguns casos, a criança já sabe da morte e não pode ou não consegue falar dela, não sendo possível significá-la. Nesse caso, o trabalho do psicanalista será outro. Se a palavra da criança lhe é endereçada, não se pode negar sua escuta, ainda que os pais acreditem imaginariamente que "é melhor ela não saber", pressupondo seu desconhecimento. Portanto, conforme destaca Gonçalves (2001), a oferta de escuta proporciona uma abertura para os não-ditos ou "mal-ditos", "isto é, dar ao paciente a oportunidade de falar sobre coisas que são omitidas ou distorcidas no contexto do "lugar para a cura", que é a instituição hospitalar" (p. 36).

 

Considerações finais

Freud (1914/2004) ressaltou que, em situações de adoecimento orgânico, o desinvestimento no mundo externo não é incomum, consistindo, na verdade, como essencial ao doente. Isso quer dizer que os que estão internados podem voltar-se para si e não mais para o externo, para o outro, e é natural considerar que "o sujeito atormentado por uma dor orgânica e por incômodos diversos deixe de se interessar pelas coisas do mundo exterior que não digam respeito ao seu sofrimento" (Freud, 1914/2004, p. 103). Tal atitude pode ser necessária para que o sujeito encontre o equilíbrio, a fim de que ele possa investir novamente a sua libido no mundo externo, após a cura. Entretanto, tal inversão se torna patológica na medida em que o doente não consegue sair desse estado, tornando-se engessado e sem condições de investimento para além de si mesmo, voltando seus investimentos libidinais somente para o Eu (Freud, 1914/2004).

Observa-se que em alguns pacientes, quando estão em processo de morte e internados, o desinvestimento externo se torna ainda mais expressivo, causando dificuldade ao profissional da saúde em lidar com esse afastamento. Essa recusa do paciente à presença do outro incomoda a equipe a ponto de questionarem o que ainda pode ser feito quando há certeza da morte, baseados na premissa de que ajudá-lo a passar por esse momento é preciso – entendendo, aqui, morrer de forma "tranquila e sem sofrimento" e "sem perturbar a ordem" –, ou acabam por julgar como uma recusa à pessoa do profissional e ao seu trabalho. Não se dão conta de que a nova postura adotada diante do paciente que está morrendo tem incidências no seu endereçamento diante dele e, consequentemente, também pode ocorrer o seu contrário. Ou seja, olhar para o sujeito que morre, muitas vezes, o coloca na posição de "já morto" para a equipe, tendo em vista que não parece haver mais investimento subjetivo e simbólico para com esse sujeito – inclusive clínico, perante a perspectiva curativa.

Desse modo, imersos na rotina do ambiente hospitalar e tratados como objetos, corpos a serem curados, o sujeito entra em estado de omissão, de possibilidade de ser consigo e com o outro. Isso acontece, também, em casos de longa internação, nos quais o quarto do hospital se torna sua casa, as vestes e a comida, bem como as pessoas que ali estão, se transfiguram, involuntariamente, como parte de seu dia a dia, o que pode culminar em uma demissão física e subjetiva. Desse modo, quem era antes, sua casa, sua escola e suas relações podem se perder se não surge alguém sensível que possa "recuperar" essas dimensões subjetivas essenciais ao sujeito – essenciais, inclusive, para seu reestabelecimento físico. No caso de crianças, essa dimensão pode tomar uma proporção ainda maior, tendo em vista que são sujeitos cuja experiência é marcada por sua dependência do outro. Referimo-nos aqui ao aspecto destacado por Wallon (1968, 1971) e Lacan (1998), quando falam da especificidade da espécie humana no que tange ao tempo em que vivem na total dependência do outro; dependência articulada à linguagem, ao fato de que o corpo, no caso do humano, terá que ser tomado pela linguagem. Nesse campo, circunscreve-se o amor, que se instalará nessa fronteira entre linguagem e desejo – desejo de que o outro esteja ali. é por isso que Freud (1914/2004) aponta que "um forte egoísmo protege contra o adoecimento. Mas, no final, precisamos começar a amar para não adoecer, e iremos adoecer se, em consequência de impedimentos, não pudermos amar" (p. 106). é nesse instante que o comparecimento de um terceiro, como o psicanalista, pode ser importante, pois poderá promover o endereçamento da palavra, que até então estava apagada pelas rotinas médicas e pelo próprio padecimento orgânico.

Portanto, contata-se, a partir da escuta do sujeito, que o não falar sobre a hospitalização ou sobre a doença não necessariamente indica um não-saber sobre o que está acontecendo, mas, antes, pode indicar que essa fala – que às vezes a equipe cobra que seja pronunciada – não é solução para o que ele está vivendo. Logo, o sujeito traz aspectos de sua vida justamente porque ele não quer perdê-la. Diante disto, entende-se que não se pode ter a pretensão de que o sujeito saiba tudo e fale sobre o seu adoecimento e os procedimentos médicos, porque falar "só" disso – experiência na qual já se está imerso e que está fora de seu controle – pode ser insuportável para sua própria realidade psíquica. Uma escuta vazia de saber prévio é então privilegiada, pois deixar que o sujeito fale livremente, a partir de seu próprio desejo inconsciente, é fundamental. E conforme Melo (2014) assinala, "oferecer um lugar de palavra não é pouca coisa. A escuta convoca o sujeito em meio ao tratamento orgânico, considerando o campo do desejo em jogo sempre, inclusive durante todo o tratamento, fazendo valer seu direito" (p. 27). Logo, é pela promoção do endereçamento da palavra, para além das rotinas institucionais e médicas, que a criança pode recuperar seu posto de sujeito e de saber que estavam subjugados a um outro.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em fevereiro/2018.
Aceito em setembro/2018.

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