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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.23 no.3 São Paulo set./dez. 2018

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v23i3p503-522 

DOI: 10.11606/issn.1981-1624.v23i3p503-522

DOSSIÊ

 

Os impasses do feminino e os possíveis entrelaçamentos com a maternidade

 

The impasses of the feminine and possible intertwining with maternity

 

Los contratiempos de lo femenino y sus posibles entrelazamientos con la maternidad

 

 

Lina CavalcanteI; Débora Passos de OliveiraII

IPsicanalista. Especialista em Semiótica Aplicada à Literatura e Áreas Afins pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Membro do Fórum do Campo Lacaniano de Fortaleza, Fortaleza, CE, Brasil
IIDoutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFCE). Professora do Curso de Psicologia da Universidade de Fortaleza (Unifor), Fortaleza, CE, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Mesmo diante de mudanças culturais e conquistas de direitos para as mulheres, ouve-se, no senso comum, que a mulher só se completa ao ser mãe. Partindo desta premissa, a pesquisa aborda os impasses entre a maternidade e o feminino, ancorando-se nas teorias psicanalíticas de Freud e de Lacan, e trabalha a possibilidade de a maternidade representar uma posição fálica. Assim, ela não teria como dar conta das feminilidades. Quais os encontros e desencontros nessa relação entre ser mãe e ser mulher? Além da psicanálise, está presente a poesia de Francisco Buarque de Hollanda, conhecido por seus eus líricos femininos.

Descritores: psicanálise; feminino; maternidade.


ABSTRACT

Even face the cultural changes and achievement of rights for women, the common sense dictates that a woman is only complete when she becomes a mother. From such premise, this research addresses the impasses between motherhood and femininity, based on the psychoanalytic theories of Freud and Lacan, and works with the possibility the motherhood represents a phallic position. Thus, it would not be able to deal with femininity. What are the meetings and disagreements in such relation between being a mother and being a woman? Besides psychoanalysis, we mention the poetry of Francisco Buarque de Hollanda, known for its female lyrical selves.

Index terms: psychoanalysis; femininity; motherhood.


RESUMEN

A pesar de los cambios culturales y las conquistas de derechos por las mujeres, aún se escucha que la mujer sólo se completa cuando se convierte en madre. A partir de esta premisa, la investigación plantea los contratiempos entre la maternidad y lo femenino, basándose en las teorías psicoanalíticas de Freud y Lacan, y trabaja con la posibilidad de que la maternidad pueda representar una posición fálica. Así, la maternidad no tendría como abarcar las feminidades. ¿Cuáles son los encuentros y desencuentros en esa relación entre ser madre y ser mujer? Se recurre además en este texto a la poesía de Francisco Buarque de Hollanda, conocido por sus yo líricos femeninos.

Palabras clave: psicoanálisis; femenino; maternidad.


 

 

Introdução

Costuma-se ouvir, no senso comum, que uma mulher se completa ao ser mãe. Ainda hoje, mesmo com todas as lutas feministas e as conquistas de direitos, é possível encontrar esse pensamento no repertório dos ditos populares. Saindo do popular para um viés psicanalítico, abrem-se questões sobre o ser mãe e o ser mulher: do que se trata essa suposta completude? A maternidade seria o que legitima a condição de ser mulher?

Seguindo por essas interrogações, chega-se ao feminino na psicanálise. Na lacaniana, o feminino é uma posição: "Lacan formulou a partilha dos sexos não a partir do atributo peniano que dividiria os seres em portadores ou privados do pênis, mas a partir da função fálica" (Quinet, 2012, p. 59). Ambas as posições (masculina e feminina) estão referidas à falta fálica, mas de modos distintos. Em outras palavras, a separação entre feminino e masculino não se restringe à anatomia, mas está relacionada à maneira como esses sujeitos respondem à função fálica. Se o que está em jogo é essa resposta, é possível sim que ser mãe seja ocupar uma posição fálica e, portanto, uma posição masculina.

No que diz respeito a um entrelaçamento entre o ser mulher, a maternidade e o feminino, "o ser mãe resolve essa falta através do ter, sob a forma do filho, substituto do objeto fálico que lhe falta. No entanto, o ser mulher da mãe não se resolve inteiramente no ter fálico substitutivo" (Soler, 2005, p. 100). Nesse ponto, encontram-se duas formas de lidar com a falta, uma que aparece no ser mãe e outra no ser mulher. Assim, se há algo no dizer popular sobre a maternidade que pode corresponder ao que buscam algumas mulheres, Soler (2005), partindo das ideias de Freud e de Lacan, destaca que ser mulher não se esgota na questão de ser mãe. Diante dessas colocações iniciais, o que interessa a esta pesquisa é tratar o feminino, e não somente a mulher. Assim, este artigo abordará a temática do feminino e sua relação com a maternidade, com embasamento teórico na psicanálise de Freud e de Lacan, e ainda dialogando com a poesia de Francisco Buarque de Hollanda e seus eus líricos femininos.

 

Feminino em Freud: tateando o impossível

Nos três escritos de Freud reunidos como as "Contribuições à psicologia do amor – Um tipo especial da escolha de objeto feita pelos homens" (1910/2003), "Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor" (1912/2003) e "O tabu da virgindade" (1918/2003) –, encontramos informações sobre as escolhas de objeto de amor, em que condições elas ocorrem e algo sobre o valor psíquico das necessidades eróticas em relação à facilidade de satisfazê-las. Dessas elaborações freudianas sobre o amor, podemos perceber como aparece a questão do feminino: a mulher na posição de objeto, condição de tornar-se atrativa ao homem.

Em seu texto sobre o narcisismo, Freud (1914/2010) aponta as relações amorosas como sendo uma via de acesso para o estudo do narcisismo e assinala, a partir de sua prática analítica, ter constatado que há quem escolha seu objeto de amor pautado pela sua própria pessoa: "procuram abertamente a si mesmas como objeto de amor, exibem um tipo de escolha de objeto a ser chamado narcísico" (Freud, 1914/2010, p. 22). Freud (1914/2010) faz uma referência à mulher, falando inclusive sobre o encanto que causam aquelas muito belas, não só pela estética bem afeiçoada, mas, e principalmente, pelo seu narcisismo, que aparece como sua força sedutora. O narcisismo causa fascínio àqueles que um dia desistiram de parte dele em nome de um amor objetal. Aponta, ainda, que, a essas mulheres, interessa muito mais serem amadas do que amar. Desse modo, coloca uma diferença entre homens e mulheres quanto ao tipo de escolha de objeto, pois o amor objetal completo seria característico do homem, enquanto a mulher, especialmente as muito bonitas, apenas amaria a si mesma com a mesma intensidade com que é amada por um homem. É preciso, no entanto, atenção a esse ponto de diferença entre homem e mulher quanto à escolha de objeto de amor, pois uma leitura atenta pode encontrar nesse texto já um pouco do que posteriormente, em Lacan, teremos com mais vigor. Nele, Freud (1914/2010) destaca que as diferenças não estão limitadas ao biológico: "disponho-me a admitir que muitas mulheres amam segundo o modelo masculino e exibem superestimação sexual própria desse tipo" (p. 24).

Em "A organização genital infantil", Freud (1923/2011) aborda a primazia do falo, a castração e as oposições que aparecem para a criança até chegar ao que seria a diferença sexual. A primeira observação que merece destaque para este estudo é exatamente essa de que, na organização genital infantil, não existiria uma primazia genital, mas uma primazia do falo. No texto, Freud (1923/2011) traz descrições que dizem respeito ao menino. Para os meninos, todos os outros seres têm o órgão igual ao dele e apenas depois eles descobrem que não é bem assim. Quando isso acontece, o que se pensa não é que há um outro órgão, mas que havia um pênis que foi retirado. Entra em jogo a oposição entre genital masculino e castrado. A priori, os meninos pensam que perdem o pênis apenas aquelas mulheres indignas, até que, nas investigações sobre as origens do bebê, segundo Freud (1923/2011), eles percebem que só as mães podem ter filhos – e aí a mãe também perde o pênis. A teoria infantil, contudo, é de que a criança cresce no ventre e nasce pela saída do intestino, "em tudo isso o genital feminino parece jamais ser descoberto" (Freud, 1923/2011, p. 154). Freud (1923/2011) lista, ainda, as oposições que aparecem nessa organização, sendo a primeira a própria escolha de objeto que o separa do sujeito, no que chamamos de uma relação objetal. No estágio pré-genital, encontram-se as oposições passiva e ativa e, no que se segue, há masculino, mas não há feminino, pois, como já citamos aqui, a oposição é entre aquele que possui o pênis e o que é castrado. Somente no período da puberdade isso mudaria e a oposição entre feminino e masculino estaria atrelada à passividade e atividade.

"Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos" é um texto no qual Freud (1925/2011) aborda a questão sobre o complexo de Édipo da menina: o que a levaria a abandonar o amor pela mãe, que se sabe, é o primeiro, tanto para meninos quanto para as meninas? A resposta estaria relacionada à inveja do pênis. A menina vê, sabe que não tem e quer ter, nos diz Freud (1925/2011), e muito provavelmente responsabiliza a mãe por isso que lhe falta: "o conjunto não é muito claro, mas estamos convencidos de que quase sempre, afinal, a menina vê a mãe como responsável pela falta de pênis, por tê-la posto no mundo tão insuficientemente aparelhada" (pp. 263-264). É exatamente a descoberta da castração que leva a menina ao complexo de Édipo, por meio desse enfraquecimento do elo com a mãe. Nesse momento, ela abandonaria o desejo de ter um pênis e passaria a desejar ter um filho; para isso, toma o pai como objeto de amor. Ainda segundo Freud (1925/2011), o complexo de castração sempre age promovendo a feminilidade. Neste texto, assinala também que homens e mulheres reúnem tanto caracteres masculinos como femininos e considera bastante incerta a possibilidade de masculinidade e feminilidade pura, pois estas existiriam apenas em construções teóricas (Freud, 1925/2011).

Em "Sobre a sexualidade feminina", Freud (1931/2010) percebe que o complexo de Édipo precisa ser visto por um olhar mais amplo, ao atentar para uma fase pré-edípica da mulher. Ainda às voltas com a questão sobre a mudança de objeto de amor da mãe para o pai, no caso da menina, Freud (1931/2010) acaba por encontrar a relevância dessa fase. Aponta ele como sendo duas importantes descobertas o fato de que antes dessa ligação intensa com o pai, havia existido uma ligação tão intensa quanto com a mãe, uma ligação rica e variada. A segunda é que a duração dessa relação foi, por um tempo, subestimada pelos estudos psicanalíticos. Dessa forma, o que o texto apresenta é que há uma fase de ligação com a mãe que antecede a de amor pelo pai e que esta tem durabilidade, intensidade e importância muito maior do que se imaginava até então.

Além da mudança de objeto pela qual passa a menina, primeiro amando a mãe e depois o pai, há também uma mudança em relação à zona sexual. Freud (1931/2010) caracteriza o clitóris como sendo uma zona análoga ao membro masculino e a vagina como sendo propriamente feminina. Acredita que, no início, o que se tem de sensações é essencialmente no clitóris e que a vagina só ganharia importância na fase da puberdade. Esta seria outra questão crucial na diferença entre o desenvolvimento sexual masculino e feminino:

a vida sexual da mulher se divide normalmente em duas fases, das quais a primeira tem caráter masculino; apenas a segunda é especificamente feminina. No desenvolvimento feminino, há, então, um processo de transição de uma fase para a outra, que não tem análogo no homem. (Freud, 1931/2010, p. 206)

Freud (1931/2010) nos diz, então, que "à mudança no sexo da mulher tem de corresponder uma mudança no sexo do objeto" (p. 206). Nessas colocações freudianas, muitos caminhos se abrem acerca de feminino e masculino, pois permitem questionar e refletir sobre todas as possibilidades que estão disponíveis nesse percurso de passagem de um objeto a outro que, certamente, não se dá sempre por completo e nem da mesma maneira. A fase pré-edípica, como já foi colocado aqui, tem uma importância muito maior no desenvolvimento sexual da menina. A exemplo disso, Freud percebe, em sua clínica, que, embora algumas mulheres escolham seu parceiro tendo como referência o pai, a relação que reproduzem com ele é semelhante a que outrora tiveram com suas mães. A relação com a mãe é colocada, portanto, como a original. Essa fase anterior ao Édipo por vezes retorna, e uma forma de isso acontecer seria repetindo com um marido a má relação com a mãe (Freud, 1931/2010).

Diante da questão sobre o que a menina quer da mãe, Freud (1931/2010) afirma que as metas sexuais são de natureza tanto passiva quanto ativa, dependendo da fase da libido que a criança atravessa. O autor faz referência às brincadeiras infantis cujo objetivo é a passagem de uma atitude passiva para ativa e ao prazer que essa mudança proporciona, mesmo quando a repetição traz conteúdo doloroso: "é inegável que temos aí uma rebelião contra a passividade e uma preferência pelo papel ativo" (Freud, 1931/2010, p. 213). Até então, estávamos vendo uma associação de passivo com feminino e ativo com masculino. Mas, como já foi dito algumas vezes, mesmo em Freud, não se encontram as coisas assim tão puras e determinadas. Ao citar a preferência das meninas pela brincadeira com bonecas, por exemplo, e ao afirmar essa diversão como sinal de feminilidade, o autor coloca que essa seria uma expressão de caráter ativo da feminilidade. A fundamental contribuição desse texto de Freud (1931/2010) está na atenção mais precisa à fase pré-edípica da menina, em reconhecer o afastamento em relação à mãe como um passo altamente significativo no desenvolvimento.

Para finalizar esse percurso em Freud, apontamos algumas contribuições encontradas nas "Novas conferências introdutórias à psicanálise" (Freud, 1933/2010), mais precisamente na 33ª conferência, intitulada "A feminilidade". O texto repete algumas teorias já apresentadas em "Sobre a sexualidade feminina", mas traz outras informações que merecem destaque aqui. É colocado de forma clara que a anatomia não pode dar conta do masculino e do feminino: há algo que escapa. Além disso, o autor traz questionamentos acerca dos pares de oposição antes apresentados. Sobre passivo e ativo, ele coloca que existe essa relação entre passividade e feminino e atividade e masculino, mas que isso também não apreende o essencial dessas posições: "mesmo no âmbito da vida sexual humana vocês logo percebem como é insatisfatório identificar a conduta masculina com a atividade e a feminina com a passividade. Em todo sentido a mãe é ativa em relação ao filho" (Freud, 1933/2010, p. 267).

Freud (1933/2010) reconhece parcelas de passividade nos homens e de atividade nas mulheres e, por isso, não aconselha que se guie por essa associação como forma de delimitar o que seria feminino e masculino. Partindo disso, pode-se chegar a um caminho mais fecundo, que seria pensar a feminilidade como caracterizada pela preferência de metas passivas (Freud, 1933/2010). Dizer isso seria diferente de falar em passividade, já que "pode ser necessária uma boa dose de atividade para alcançar uma meta passiva" (Freud, 1933/2010, p. 268). Outro ponto marcante desses escritos é quando o autor coloca a importância do social nas questões em torno da mulher, principalmente no que tange a essa associação entre o feminino e a passividade. Segundo ele, é preciso não subestimar ou ignorar a organização social, que historicamente tem empurrado a mulher para situações passivas (Freud, 1933/2010). Freud, então, reorganiza suas descobertas e passa a reconhecer um limite à psicanálise, que não pretende definir o que é a mulher, mas investigar várias formas de ser mulher, a partir de uma criança inatamente bissexual. Seguiremos por esse ponto no percurso do feminino pela obra de Lacan.

 

Feminino em Lacan: o outro absoluto

Em "Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina" (publicado para o evento, que ocorreu em 1960), Lacan (1958/1998) faz uma releitura de alguns dos escritos de Freud e confirma a importância do falo, em uma posição-chave, no que diz respeito ao desenvolvimento sexual. Ao expor sobre a temática de seu texto, Lacan coloca algo do que pretende:

Ela diz respeito ao exato ponto para o qual gostaríamos, nessa conjuntura, de chamar a atenção, ou seja, a parte feminina, se é que esse termo tem sentido, daquilo que se articula na relação genital, na qual o ato do coito ocupa um lugar ao menos local. (Lacan, 1958/1998, p. 734-735)

Podemos perceber que se iniciam os passos do que depois seguirá em densa trajetória em seus estudos, que seria exatamente essa constatação do limite anatômico para definir a diferença sexual. Lacan segue um caminho que vai do marcado pelo anatômico para algo marcado pelo significante, abordando também as duas zonas eróticas femininas, clitóris e vagina, partindo daquilo que Freud concebeu, um como masculino e outro como feminino, até chegar ao gozo feminino – esse também marcado por uma duplicidade: gozo fálico e gozo misterioso, o que veremos depois em "O Aturdito" (Lacan, 1972/2003). A esse respeito, Ribeiro, Lamarca, Fonseca e Junqueira (2015, pp. 79-80) assinalam que:

Nesse momento inicial, ele [Lacan] propõe que a mulher usa o homem com quem copula como um conector, um transformador que muda a voltagem de seu gozo. Com o homem desejado a mulher obtém o gozo fálico, mas para além dele encontra o gozo misterioso.

Para adentrar nesse assunto, Lacan (1958/1998) levanta algumas questões sobre as quais a psicanálise vai se debruçar: até que ponto o genital daria conta da diferença entre homens e mulheres? Os fenômenos atestados pelas mulheres confirmam ou não as bases nosológicas? Outra questão seria sobre a subordinação desses fenômenos ao desejo inconsciente e, por último, as implicações de uma bissexualidade psíquica. Outro aspecto do texto de Lacan (1958/1998) que merece destaque nesta pesquisa é a respeito da sedução que exerce na mulher o homem castrado, colocando que não há virilidade que a castração não consagre. Partindo disso, é possível retomar alguns exemplos que encantam as mulheres, como o herói machucado ou o atleta exausto (Ribeiro et al., 2005). Tudo isso gira em torno do que já foi colocado aqui: a importância do falo no desenvolvimento sexual, ou seja, nisso que vamos chamar, a posteriori, de masculino ou feminino e como cada um se comporta em relação à castração.

Lacan (1958/1998) recorre, a todo momento, aos estudos de Freud para formular sua contribuição nessa espinhosa temática, sem também pretender desvendá-la totalmente: "um congresso sobre a sexualidade feminina está longe de fazer pesar sobre nós a ameaça do destino de Tirésias" (Lacan, 1958/1998, p. 737). E, ainda em relação à importância da função fálica, ao entrelaçamento entre genital e psíquico e ao desenrolar do desenvolvimento sexual, nos diz:

Seja como for, reencontra-se a questão estrutural introduzida pela abordagem de Freud, isto é, a de que a relação de privação ou de falta-a-ser simbolizada pelo falo se estabelece, como uma derivação, com base na falta-a-ter gerada por qualquer frustração particular ou global da demanda – e de que é a partir desse substituto, que afinal o clitóris instaura antes de sucumbir na competição, que o campo do desejo precipita seus novos objetos (antes de mais nada o filho por chegar), pela recuperação da metáfora sexual com que já estavam comprometidas todas as outras necessidades. (Lacan, 1958/1998, p. 739)

Em O seminário, livro 20: mais, ainda, Lacan (1972-1973/1985) traz as fórmulas da sexuação. Trata-se de uma leitura lógica (aristotélica) da diferença sexual, feita sob o viés psicanalítico:

Do lado neurótico: todo homem é referido ao falo (proposição universal possível); sustentada na exceção lógica: existe um homem que não é referido ao falo (o pai da horda primeva de "Totem e tabu"). Do lado feminino: a mulher é não toda referida ao falo (proposição particular contingente), que não se sustenta em nenhuma exceção: não existe nenhuma mulher que não seja referida ao falo (a dupla negação indica uma proposição impossível). (Ribeiro et al., 2015, p. 82)

Assim, do lado feminino, há uma ausência no lugar do pai da horda, o que impossibilita o conjunto para todas as mulheres, pois não existe uma mulher fora da função fálica. A mulher seria, então, diferentemente dos homens, não-toda inscrita na ordem fálica, por não ter a exceção que funde o conjunto (Fuentes, 2012). Daí vem o aforismo A mulher não existe – não existe como universal feminino, pois a mulher só pode ser escrita como barrada. Assim, "porque ela não existe, um semblante deve vir nesse lugar vazio, como suplência, suprindo a falta desse significante" (Fuentes, 2012, p. 128). Em O seminário, livro 20: mais, ainda, Lacan (1972-1973/1985) aponta o amor como uma função de suplência para a inexistência da relação sexual (seu outro aforismo), garantindo o laço entre os parceiros.

O aforismo a mulher não existe não pretende depreciar a mulher, como muitos se dispuseram a pensar, nem negar o feminino. Trata-se de expor o problema referente à ausência de representação do feminino no inconsciente. Noção essa já trazida por Freud, quando afirma a primazia do falo, o que não é negado por Lacan. Assim, já começa a se desenhar melhor o feminino e o masculino enquanto posições, definitivamente rompidas de uma marcação apenas biológica.

"O Aturdito" (Lacan, 1972/2003) é um texto que traz enorme complexidade. Nele, Lacan (1972/2003) retoma as fórmulas da sexuação, bem como o aforismo de que não há relação sexual. Não se pretende aqui dar conta de tudo que os textos lacanianos nos oferecem, mas entrelaçar alguns pontos com o fundamental em nossa pesquisa. Partindo disso, de O Aturdito parece interessante ficar com aquilo que toca em uma solidão da mulher, ou seja, no gozo feminino: "dizer que uma mulher não é toda é o que nos indica o mito por ela ser a única a ser ultrapassada por seu gozo, o gozo que se produz pelo coito" (Lacan, 1972/2003, p. 476). Já foi falado aqui sobre a duplicidade do gozo da mulher que se dividiria em gozo fálico e o gozo propriamente feminino, esse tido como enigmático. A solidão a qual fazemos referência seria exatamente essa do gozo que ultrapassa o fálico, para onde a mulher segue só: o gozo feminino. E aí, mais uma vez, podemos recorrer ao popular, pois se sabe que a mulher quer ser reconhecida como única, e há relação entre isso que ouvimos por aí e percebemos de nós mesmos com os construtos psicanalíticos. Enquanto o senso comum reverbera que todos os homens são iguais, em psicanálise é possível colocar que todos os homens são castrados. A partir do mito freudiano sabemos que todos são castrados, menos um. A exceção permite que se forme o conjunto de todos os homens castrados. Do lado da mulher, não há a exceção. Não-toda mulher está inscrita na função fálica. Por isso mesmo, a mulher quer ser vista como única. Então, é importante perceber que, nessa diferença sexual da qual estamos falando, há uma diferença no tipo de gozo e há um gozo ao qual só o feminino tem acesso; "é também por isso que é como única que ela quer ser reconhecida pela outra parte: isso é mais do que sabido" (Lacan, 1972/2003, p. 467).

Ainda sobre singularidade, solidão e gozo feminino, Lacan (1972/2003) coloca que o gozo que se tem da mulher a divide "fazendo-a parceira de sua solidão, enquanto a união permanece na soleira" (p. 467). O texto traz as palavras sozinho, único e soleira, que, em francês têm grafia bastante semelhante (seul, seule, seuil) para falar dessa solidão de ser único, e dessa solidão do gozo feminino, ao qual o parceiro não tem acesso e que ela segue sozinha. Ligando isso à exigência feminina de ser reconhecida como única, é possível recorrer a um texto de Clarice Lispector, em que ela nos diz, "ninguém é eu. Ninguém é você, esta é a solidão" (Lispector, 1998, p. 33). Não há inscrição para o feminino no inconsciente, então muito pode ser dito sobre ele e nada será de fato a verdade. Na ausência de um nome que inscreva a mulher, muitos virão na tentativa de representá-la. Por isso, Lacan refere-se à mulher como o Outro absoluto. O feminino como uma expressão do real há de escapar de tudo que lhe foi dito (Fuentes, 2012). Ainda sobre esse aspecto, Soler (2005, p. 41) nos indica:

Dizer que a mulher é o Outro absoluto é dizer que ela não será nada de tudo que se possa dizer a seu respeito, que ela fica fora do simbólico, real no duplo sentido que não se pode dizer e daquilo que se goza de não-fálico, com o Outro absoluto opondo um desmentido, por definição, a qualquer atribuição eventual.

Não ter inscrição no inconsciente é o que leva à questão importante do feminino: a inconsistência e a busca que cada sujeito vai fazer para dar lastro à sua existência, não sendo mais possível se afirmar o amor ou a maternidade como únicas opções – e mais, não é possível afirmar apenas uma forma de amar ou de ser mãe e, por isso, a importância do um a um nesse olhar sobre a busca feminina por consistência.

Para contar sobre uma dessas formas de dar lastro à existência, podemos recorrer à poesia de Francisco Buarque de Hollanda (ou apenas Chico Buarque). Tido pelos seus admiradores como grande conhecedor da alma feminina, Chico se destaca pelo primor com que concebe eus líricos femininos. Como pode um homem falar tão bem por uma mulher? Esta é uma questão muitas vezes levantada por aqueles que o ouvem. Já se sabe que, para a psicanálise, é possível conceber que um homem, biologicamente falando, esteja em posição feminina e possa, então, falar dessas angústias. Com açúcar, com afeto (Hollanda, 1967) é uma canção que, em primeira leitura, é muitas vezes julgada por um discurso de valor e taxada como machista. A esposa da canção seria (seria mesmo?) uma mulher submissa ou masoquista. Alguns se incomodam bastante com essa mulher, tão ocupada em agradar um marido que passeia por aí, conversa, paquera e chega em casa tarde e arrependido. Para se compreender melhor a reação fervorosa de alguns, é preciso ir até a canção. A narrativa conta a história de uma esposa dedicada que está à espera de seu marido, mas que sabe que este há de se desviar no caminho do trabalho para casa. Ele se diverte, paquera, canta e conversa, e ela está sempre a esperar, com amor, complacência e com o doce predileto de seu parceiro. Ao falar desse amor, a esposa da letra usa algumas palavras que se destacam: (me) sustentar, (lhe) cansa, criança, perdão, sentida, maltratado, beijo no retrato.

Quando a personagem diz "dou um beijo em seu retrato", aparece, por essa metáfora, a condição do marido inventado por ela. Especificamente, o beijo no retrato pode ser interpretado como uma representação da fantasia. Um retrato é um signo. Então, aquilo tudo se trata de uma ficção, e a autora da ficção é ela, mulher, eu lírico da canção, protagonista. Que surpresa, portanto, para os que olham essa mulher como subordinada. Ela é a protagonista, pois fez seu próprio marido por meio de sua fantasia e, assim, decidiu em que posições eles estariam nessa relação:

Não há limite, diz Lacan, para as concessões que a mulher se dispõe a fazer por um homem, com seu corpo, seus bens, sua alma; está tudo bom para ela quando se trata de se enfeitar para que a fantasia do homem encontre nela a sua hora da verdade. (Soler, 2005, p. 66)

Submissão pode ser, então, uma visão equivocada desse movimento feminino em busca de consistência, ou à essa complacência para com os semblantes, como diz Soler (2005). Ao contrário de uma posição submissa, que remete apenas à passividade, à sujeição, o amor cantarolado em Com açúcar, com afeto (Hollanda, 1967) parece uma via para lidar com o impasse da inexistência. A esposa dedicada da música de Chico Buarque está lidando com suas questões, com a ausência de representação inconsciente para o feminino; ela está se fazendo existir por meio desse amor, com açúcar, com afeto, com concessões, com dedicação, sendo amada, sendo esposa, sendo. Ser alguma coisa para alguém às vezes é o muito que se pode ser (Soler, 2005).

Se há um lugar de submissão para a esposa da canção, foi ela mesma que o escolheu. Mas, ainda parece estranho que se adjetive como submissa quem desenhou toda a cena. Pensemos no par passividade-atividade e, como bem coloca Quinet (2012), as mulheres sabem o quanto é difícil, ativo e trabalhoso fazer-se de objeto. Então, ela faz-se. E o verbo fazer não parece passivo. Ela fez a história, fez um marido, fez um marido que falta, fez um doce predileto. E tudo que ele, o marido, aparentemente ativo, protagonista, tudo que esse marido faz, é ela que o diz para fazer. Ela diz: "você vai puxar assunto", "ficar olhando", "vai querer cantar". A música é uma fantasia dela e, por isso, a metáfora do beijo no retrato é um ponto de virada da história, quando o autor traz a fotografia como símbolo que representa o marido e, assim, mostra que ele é uma fantasia. O marido daquela (apenas dela) mulher.

Há um momento da música em que ela diz "Quando a noite, enfim, lhe cansa / você vem feito criança / para chorar o meu perdão. Qual o quê? Diz para eu não ficar sentida / Diz que vai mudar de vida / para agradar meu coração". E assim, Chico Buarque deixa a lacuna para uma possível questão: esse amor se sustentaria com essa mudança? Se ele mudasse e já não errasse tanto, quem viria feito criança para chorar o perdão dessa mulher? Que papel teria ela em uma cena outra que não a que ela desejou? E então, diante da promessa de mudança, ela diz que não vai se aborrecer e logo vai esquentar o prato, dar um beijo no retrato (na fantasia) e abrir os braços para o marido. E é possível supor que o desejo está em que ele continue se atrasando, cantando e olhando para as pernas bronzeadas das outras mulheres para, depois, se arrepender e procurar o perdão dela. O que, então, muitos dizem diante dessa canção? Que a esposa é submissa, fraca ou ainda masoquista. Mas a mulher, às vezes, assume ares de masoquista para se dar ares de mulher, "sendo a mulher de um homem, na impossibilidade de ser A mulher" (Soler, 2005, p. 66). Dito de outro modo, na impossibilidade de ser A mulher, ela pode ser uma, uma mulher escolhida por um homem. E se o homem crê nisso, está garantida a consistência: "o homem acredita criar – ele crê-crê-crê, ele cria-cria-cria. Ele cria-cria-cria a mulher" (Lacan, 1972-1973/1985, p. 177).

 

O feminino e a maternidade: vizinhos distantes

Chega-se, então, ao feminino como uma posição, que não se resume à mulher nem à maternidade. Em relação à mãe, à mulher e ao desejo feminino são possíveis alguns apontamentos. Freud (1914/2010) coloca a maternidade como uma saída da mulher para o amor objetal e assinala que o amor ao homem leva ao filho tão esperado. É preciso admitir que o filho pode ser um objeto a para uma mulher que acredita ter o falo, mas isso não significa que o desejo sexual esteja esgotado (Soler, 2005). Já em Lacan, quando se fala em desejo feminino, há referência ao gozo feminino. O homem goza colocando a mulher no lugar de objeto a, a mulher goza do homem castrado (chamados de gozo complementar no caso do masculino, e suplementar no caso do feminino). Por que voltar a essa questão do tipo de gozo como marca da diferença sexual ao falar dos impasses entre ser mãe e ser mulher? Porque dentre as características que marcam o hiato dessas duas posições está exatamente o tipo de gozo. Ter um filho como falo estaria relacionado ao gozo fálico e não ao gozo feminino: "o gozo fálico, como gozo do Um, é gozo localizado, limitado e fora do corpo" (Soler, 2005, p. 36). Não está apenas no âmbito do erotismo, mas presente em várias realizações do sujeito ligadas a diversas satisfações.

Com o filho, a mulher pode vir a ter essa satisfação fálica, que está relacionada a uma posição masculina e não feminina: "um gozo 'envolto em sua própria contiguidade' é outra coisa. Um gozo que não cai sob a barra do significante, que nada sabe do falo e, portanto, não causado por um objeto a, é um gozo foracluído do simbólico, 'fora do inconsciente'" (Soler, 2005, p. 37). É por conta do gozo outro que se fala da mulher como o Outro absoluto, e assim entende-se porque Lacan chama de heterossexual aquele que ama a mulher, seja um homem ou outra mulher (Lacan, 1972/2003). É possível, então, encontrar, em Lacan, uma das respostas ao impasse entre feminino e maternidade nesse caminho das diferentes formas de gozar, uma delas à qual o filho não dá acesso. Por isso, torna-se fundamental a contribuição de Lacan em relação ao gozo feminino quando se pretende falar dessa posição em psicanálise, pois o psicanalista "indica a originalidade e a dificuldade da posição feminina: suportar ser dividida entre o gozo fálico e o Outro gozo, sendo não-toda fálica, mas também não-toda fora da linguagem" (Fuentes, 2012, p. 42). Nesse caso, a crença popular de que a mulher se completa ao ser mãe já portaria em si um paradoxo. Se o feminino se refere à falta, como ser feminina quando se completa? Talvez pudéssemos falar da busca por essa completude como algo feminino, pois o meio seria feminino, e não o fim. Buscar o falo, mas não de fato encontrá-lo pela via do ter e resolver nisso sua questão desejante.

Importante também lembrar que não só o feminino é uma função para a psicanálise, mas também a maternidade. E basta um breve estudo histórico para se perceber que, ao longo dos anos, os substitutos para as mães foram muitos. Na relação mãe e filho, uma variedade de caminhos pode ser traçada. A mulher que não se completa no ser mãe, ou que crê nisso apenas por um tempo, aquele tempo em que ela e o bebê estão muito ligados e em que este precisa dela para sobreviver. Casos em que o filho vem tamponar a falta. Pode-se falar de um poder que a mãe tem em relação ao filho nesse primeiro momento; e o que se faz com esse poder também abarca certa pluralidade. Que lugares ocupam cada mãe e cada filho? No começo, o recém-nascido é um objeto e está à mercê dessa mãe. Dentre os caminhos, portanto, há aquele em que o filho funciona como objeto fálico por um tempo, mas não chega a encerrar a questão do desejo feminino; há aquele em que o filho vem tamponar a falta; e aquele em que ele não funciona como objeto fálico. Neste último caso, conforme coloca Lacan (citado por Soler, 2005), o filho não passa de um pedaço de carne.

Para discorrer sobre uma dessas possibilidades, optamos mais uma vez por recorrer ao poeta aqui escolhido, Chico Buarque. Em sua poesia, encontramos Uma canção desnaturada (Hollanda, 1979), na qual é possível perceber o maldizer que recaiu sobre aquele que ousou desejar e sair da posição de objeto da mãe. A canção traz o desabafo de uma mãe desgostosa com a filha. A mãe considera rápida a saída da filha dessa condição de objeto e anuncia até onde iria seu poder se assim lhe fosse permitido: ela reverteria o tempo. Então, poderia se vingar da criança que ousou sair da posição objetal e negar amor e cuidados: "Se fosse permitido/ Eu revertia o tempo/ Pra reviver a tempo/ De poder/ Te ver, as pernas bambas, curuminha/ Batendo com a moleira/ Te emporcalhando inteira/ E eu te negar meu colo/ Recuperar as noites, curuminha/ Que atravessei em claro/ Ignorar teu choro/ E só cuidar de mim". Até que ponto isso chegaria? Até reverter o tempo fazendo o bebê retornar ao ventre, voltando a fazer parte dela, de onde não poderia desejar, certamente: "Te recolher pra sempre/ À escuridão do ventre, curuminha/ De onde não deverias/ Nunca ter saído". O ventre aí pode ser visto como uma metáfora dessa posição de objeto, e a mãe lamentando não ter podido estender ilimitadamente seus poderes sobre a criança. Quando na barriga, o filho é objeto fálico, ainda sob a guarda materna.

É preciso lembrar que nós humanos temos uma relação mediada com o mundo e que precisamos do outro por um longo período. Além da sobrevivência, os humanos recebem as palavras. Aos gritos do bebê, a mãe, ou quem ocupe essa função, oferece um significado e assim ela aliena o bebê e abre espaço para que depois venha o desejo. Mas, se o bebê se aliena naquilo que recebe do outro, como pode vir a ser desejante? Esse outro nem sempre acerta. E para que se tenha sujeito, é necessário também que essa mãe erre. Se a mãe se encontra demasiadamente satisfeita com esse filho – o que já citamos como sendo um dos caminhos possíveis na relação mãe e filho –, não existirá brecha para o sujeito. É preciso que o filho não lhe ocupe totalmente a falta para que ele consiga sair desse lugar de falo da mãe. Daí a importância da metáfora paterna, da entrada do pai, do corte. A relação a dois é marcada pelo imaginário e é o Nome-do-Pai que permite a passagem para o simbólico. A metáfora paterna é, portanto, representante da lei, é quem instaura o desejo, exercendo regulação sobre o sujeito e seu desejo (Fonteles, 2009). A filha da canção desnaturada de Chico consegue sair disso, e é a poesia que nos mostra que ela escapou: "se fosse permitido", diz a mãe, em uma lamentação daquilo que não pôde fazer. Não lhe foi dada a permissão e, por isso, o verbo não se marca no presente, mas em uma condição que foi negada. O Nome-do-Pai pôde aqui oferecer as garantias e, por isso, a criança desejou e contrariou a mãe. A boca do jacaré não fechou, para fazer referência a uma metáfora de Lacan (1969-1970/1992, p. 105):

O papel da mãe é o desejo da mãe. É capital. O desejo da mãe não é algo que se possa suportar assim, que lhes seja indiferente. Carreia sempre estragos. Um grande crocodilo em cuja boca vocês estão – a mãe é isso. Não se sabe o que lhe pode dar na telha, de estalo fechar sua bocarra. O desejo da mãe é isto.

E por que separar-se do filho pode ser tão difícil? Separar-se do bebê poderia significar exatamente o fim dessa posição, ou seja, a perda desse poder, dessa posição fálica: "o comovente amor parental, no fundo tão infantil, não é outra coisa senão o narcisismo renascido dos pais, que, ao se transformar em amor objetal, acaba por revelar inequivocamente sua antiga natureza" (Freud, 1914/2010, p. 37). Nesse ponto, não podemos falar apenas de narcisismo, mas de castração, já que o corte tem relação íntima com esse outro conceito psicanalítico. O corte ao qual a pesquisa faz referência nesse momento é muito caro à teoria psicanalítica e está relacionado à própria constituição do sujeito:

. . . o que separa a mãe e o filho deve estar referido ao outro corte, trazido à luz por Lacan, que passa entre o organismo vivo, o animal, se quisermos, e o sujeito como efeito do simbólico. Essa tese liga-se, como se sabe, à descoberta freudiana chamada castração: é o simbólico que, assegurando seu domínio sobre o ser vivo, nele introduz a falta que Lacan declinou como falta de gozo e falta-a-ser, e que efetivamente confere um papel fundamental ao "objeto perdido" na humanização do rebento. (Soler, 2005, pp. 99-100)

Para finalizar, é preciso tecer alguns comentários sobre o que foi abordado na questão maternidade-feminino e o que envolve os lugares dessa mãe e dessa criança. Primeiro, é preciso levar em conta a questão do desejo de ser mãe e que este não deve ser confundido com vontade de ter um filho (Soler, 2005). O desejo de ter um filho, ou a ausência desse desejo, contribui para os lugares que cada um vai ocupar na relação familiar. O nascimento de um filho afeta a libido da mãe e gera uma circunstância específica, na qual "o enigma do Outro barrado se atualiza para o sujeito, não raro em duas vertentes: como mistério de seu desejo e como opacidade de seu gozo" (Soler, 2005, p. 94). Devemos lembrar, também, que é fundamental o lugar que o inconsciente da mãe reserva para essa criança, do qual o filho também participa; muitas vezes está em jogo uma interpretação que o sujeito faz desse discurso materno, no qual é envolvido.

 

Considerações finais

O feminino, a mulher, as feminilidades: temática ainda enigmática e densa dentro do campo psicanalítico, permeada por mudanças de rumo, por viradas teóricas, por reconhecimento de limitação. Dentro desse terreno ardiloso, interessa menos a construção de casa sólida, e mais que se semeie o terreno e o garanta como espaço de reflexão e possibilidades. Assim, foi realizado, neste trabalho, um percurso bibliográfico em Freud e em Lacan, a fim de reunir aspectos sobre o feminino que pudessem dar subsídio para uma relação entre feminino e maternidade – e que respeitassem as semelhanças e as diferenças acerca dessas posições. Freud reconheceu o limite de seus estudos nessa temática e encarregou os poetas de seguir adiante naquilo que não foi possível desvendar. Por isso, seguimos essa orientação, fazendo uso da poesia de Chico Buarque, escritor, cantor e compositor, conhecido pela elaboração certeira de seus eus líricos femininos, por dar voz às angústias de mulheres, por colocar em cena suas questões – assim como Freud, que deu espaço para a escuta das histéricas, o que não pode ser esquecido, pois dar voz àquelas mulheres era algo bastante inovador para o século XX.

Em Freud, foi possível perceber uma trajetória que buscava se distanciar da limitação do biológico para definir homens e mulheres, esboçando as posições masculinas e femininas. Freud expõe seu trajeto sem esconder suas dúvidas, mudanças, correções. Marca a psicanálise como um campo de pesquisa aberto, uma construção permanente, sempre disposta a ceder espaço para aquilo que é trazido pela experiência clínica, mesmo que isso acarrete mudanças em teorias já desenvolvidas. Encontra-se, na obra freudiana, uma limitação acerca do feminino, que esbarra exatamente no ponto crucial de nossa pesquisa. O pai da psicanálise aponta a maternidade como a saída para as mulheres em seu amor objetal, a saída para lidar com a falta. Esta limitação não impede que se reconheçam todas as contribuições dos estudos freudianos, em seu mergulho no universo pré-edípico e edípico da menina, na relação original com a mãe, depois com o pai, até chegar à via do amor por um homem.

O que querem as mulheres é uma questão que causa incômodo desde muito tempo e que está presente no repertório popular e no acadêmico. Em Lacan, optamos por trabalhar três importantes textos, que ficaram marcados por suas contribuições sobre o feminino e seus impasses. Os aforismos lacanianos, em destaque o que diz que A mulher não existe, bem como as fórmulas da sexuação, são motivos de grandes debates, críticas e inquietações. Lacan refez o percurso freudiano e se dispôs a ir além, oferecendo não só uma atualização, já que os dois encontram-se em tempos diferentes, mas outro olhar, caracterizando a mulher como não-toda inscrita na ordem fálica. A impossibilidade de ser A mulher estaria relacionada à ausência de universal feminino, à falta de inscrição no inconsciente, abrindo, assim, espaço para que existam as mulheres. Como cada uma vai dar lastro à sua existência? Em Lacan, a maternidade já não é mais o único caminho. Por estar dividida em seu gozo, a maternidade não garante completude à mulher, pois está relacionada apenas ao gozo fálico e não ao gozo outro. E não é apenas a maternidade que satisfaz o gozo fálico, ele pode estar em outras atividades e em novos lugares onde as mulheres conquistaram espaço. O dizer popular afirma que a mulher só é mulher, mesmo, ao ser mãe. A mulher sempre na busca de ser. Essa busca, bem característica do que chamamos aqui de feminino, não se resolve na maternidade. A mulher segue faltosa, desejante, não-toda e assim pode inventar sua existência, ou ser inventada pelo amor de um homem, quem sabe. Há pluralidade diante dos impasses do feminino, cada uma traçando sua busca.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em maio/2018.
Aceito em dezembro/2018.

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