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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.23 no.3 São Paulo Sept./Dec. 2018

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v23i3p590-610 

DOI: 10.11606/issn.1981-1624.v23i3p590-610

ARTIGOS

 

Demanda diagnóstica na escola: entre querer-o-bem-do-sujeito e a escuta analítica

 

Good and analytical listening

 

Demanda diagnóstica en la escuela: entre querer-el-bien-del-sujeto y la escucha analítica

 

 

Beethoven Hortencio Rodrigues da CostaI; Cynthia Pereira de MedeirosII

IProfessor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia/Psicossomática da Universidade Ibirapuera, São Paulo, SP, Brasil
IIPsicóloga e psicanalista. Professora adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, RN, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo surge a partir de duas indagações: "qual é a utilidade de um diagnóstico na escola?" e "o que move essa demanda por diagnóstico?". Tais questionamentos foram elaborados em resposta à demanda diagnóstica produzida no contexto do nosso estágio em Psicologia Escolar/Educacional. Para discutir nossa posição, partimos de dois casos e os submetemos à construção e análise. Como resultado, encontramos que não há como saber, a priori, o que será feito de um diagnóstico e quais serão seus usos. Assim, mais do que saber o que move a demanda, o importante são os usos do sujeito e a nossa posição diante dela para que eles possam engendrar um trabalho.

Descritores: diagnóstico; educação; psicanálise.


ABSTRACT

This study arises from two questionings: what is the usefulness of a diagnosis in school? And what moves that demand for diagnosis? Such questions were framed in response to a diagnostic demand produced in the context of our internship in Scholar/Educational Psychology. To discuss our position, we started from two cases and submitted them to construction and analysis. As a result, we found out that one cannot know in advance what is to be done on a diagnosis and how it will be used. Thus, more than knowing what moves the demand, what matters is the subject's uses and our position towards it so that they can produce a work.

Index terms: diagnosis; education; psychoanalysis.


RESUMEN

Este estudio surge a partir de dos indagaciones: ¿cuál es la utilidad de un diagnóstico en la escuela? ¿Y qué mueve esa demanda de diagnóstico? Tales cuestionamientos fueron elaborados en respuesta a la demanda diagnóstica producida en el contexto de nuestra residencia en Psicología Escolar / Educacional. Para discutir nuestra posición, partimos de dos casos y los sometemos a la construcción y análisis. Como resultado, encontramos que no hay como saber en el a priori qué se hará de un diagnóstico, cuáles serán sus usos. Así, más que saber lo que mueve la demanda, lo importante son los usos del sujeto y nuestra posición frente a la misma para que de esa forma se pueda engendrar un trabajo.

Palavras clave: diagnóstico; la educación; psicoanálisis.


 

 

Este texto trata-se do resumo de nossa dissertação de mestrado, na qual, no contexto do estágio em Psicologia Escolar, surge um pedido de diagnóstico de todas as crianças, acompanhadas por profissionais "psi"2. Esse interesse pelo diagnóstico leva-nos a uma incursão por sua história, bem como a uma revisão da literatura produzida por psicanalistas acerca do tema. Tal empreendimento responde as seguintes problemáticas: "qual é a utilidade de um diagnóstico na escola?". Mais ainda: "o que move essa demanda por diagnóstico?".

Veremos por quais caminhos, nesta pesquisa, desembocaram esses questionamentos.

 

A história do diagnóstico: breve incursão da Babilônia aos dias de hoje

De acordo com Botero (1997), na Babilônia, entre os séculos XVIII e VI a. C., as atitudes diante das doenças dependiam do sistema que o médico seguia: a medicina dos médicos ou a medicina dos magos. Ambos os sistemas conviviam nessa civilização: o asû (médico) e o âchipu (exorcista).

Antes de "receitar" o remédio, o asû identificava a "natureza do mal" e pedia para o doente que obtivesse uma contraprova junto ao oráculo. A atitude do asû a respeito do diagnóstico aglutinava o "racional" e o "irracional", além disso, a responsabilidade do diagnóstico recaia sobre ele.

Na mesma época, as ofensas aos deuses eram reprimidas mediante ao "mal de sofrimento", atribuído aos demônios. Contra os seus ataques, os homens criaram a "medicina exorcista" (Botero, 1997), na qual as técnicas do exorcista (âchipu) se configuravam em um ritual previamente estabelecido e os deuses agiam por meio dele.

Na Grécia, esse mesmo arranjo entre o "racional" e o "divino" podia ser encontrado. Ao considerar os poemas homéricos – a Ilíada e a Odisseia –, Sousa (1981) nos permite o encontro com a repetição dele. No que lhe concerne, o autor considera que a medicina é apresentada, na Ilíada, como arte natural, sem caráter mágico, enquanto na Odisseia aparecem referências a práticas mágicas.

Nesse contexto, Sousa (1981) considera que a escola grega de Hipócrates opera uma mudança de posicionamento à questão da racionalidade: "mal de sofrimento", considerado pelos babilônios como castigo dos deuses, passou a ser concebido como um desregramento.

Muito tempo depois (século X d.C.), a herança de Hipócrates ainda era marcante na medicina árabe. No Livro que contêm tudo, uma enciclopédia com 23 volumes, as doenças estão repartidas em 12 capítulos. Nesse período, a medicina árabe diferia da medicina ocidental da mesma época, pois esta última permanecia aliada à crença no divino (Sousa, 1981).

Apenas no século XV a medicina ocidental sofreu uma mudança e se ligou à tradição hipocrática. O fundamental, nessa época, foi o pensamento de que nenhuma classificação podia dar conta das múltiplas variações que oferece a natureza.

A partir da Idade Moderna, século XVII, segundo Figueiredo (1999), houve redefinições nas relações entre sujeito e objeto. Desde então, a subordinação do conhecimento científico à utilidade, à adaptação e ao controle, bem como à modelação da prática científica pela ação instrumental, alcançam realce cada vez maior.

De acordo com Figueiredo (1999), o cientificismo busca a inteligibilidade dos fenômenos a partir de uma ordem natural. O ideal de cálculo exato é condicionado por uma abstração que exclui o sensível, para trabalhar apenas com o inteligível. Ocorreu, então, uma ruptura epistemológica – abstração do objeto para que a previsão fosse eficaz.

Com a Idade Moderna, a medicina deixou de ser uma ciência classificatória, em cujo espaço de localização a doença era livre, e passou a ser anátomo-clínica, cujo processo de classificação de sintomas se atrelou à localização anatômica da doença.

Para a medicina classificatória, o fato de se atingir um órgão não era necessário para definir uma doença. Com a ruptura epistemológica, apontada por Figueiredo (1991), a clínica se tornou, ao mesmo tempo, um novo recorte das coisas e o princípio de sua articulação em uma linguagem reconhecidamente própria de uma ciência positiva.

A partir desses pensamentos diversos, se alicerçam as bases do imaginário sobre o que é um diagnóstico nos dias de hoje. Dos jardins suspensos da Babilônia aos dias atuais, várias coisas mudaram, mas algumas ideias se fazem tão presentes como se estivéssemos no tempo de Nabucodonosor. Pensamentos que podemos ver refletidos na quarta edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentaisDSM (DSM-IV) (Associação Americana de Psiquiatria, 1995).

Assim como na Babilônia, com seu tratado, os médicos necessitam de um artifício ainda hoje. Porém, os tratados dos dias atuais guardam a preocupação estatística. Além de centrar suas forças no diagnóstico, não dão tanta importância aos prognósticos e à preocupação de que nenhuma classificação daria conta da singularidade do caso.

A inclusão de um transtorno na classificação do DSM-IV não exige que exista o conhecimento sobre sua etiologia. Diferente dos médicos da Babilônia, que tinham a preocupação em saber a "natureza do mal", o que importa à classificação atual são os sintomas. Mas, ao contrário da medicina classificatória de outras épocas, sobre esse novo tratado paira sempre a suspeita da etiologia orgânica ou genética da doença.

De tudo isso, o que se pode afirmar é que há uma diferença crucial entre os médicos da Babilônia e os médicos nos dias de hoje: os da Babilônia eram falíveis, "o asû era falível, como toda gente, ele podia . . . hesitar, até enganar-se. Quanto aos exorcismos, os deuses eram livres de não escutar as orações que lhes eram dirigidas" (Botero, 1997, p. 27). Já os médicos de hoje não podem errar, pois "a medicina hoje aparece mais do que nunca como um produto da conjunção da ciência com o discurso capitalista" (Quinet, 2003, p. 150). Em outras palavras, o importante é que tudo funcione para que os consumidores consumam. O mercado controla a marcha dos médicos, que precisam cada vez mais se especializar e ser mais rápidos.

Sob a vigência dessas transformações, desde as quais o erro não pode ser cometido e tudo ocorre com maior rapidez, não seria legítimo exigir um diagnóstico para que tudo funcione conforme a marcha? Não seria legítima a demanda de diagnóstico das professoras? Assim, de certo modo, esse trilhamento pela história responde ao questionamento sobre o que move a demanda diagnóstica.

Vejamos o que a revisão da literatura psicanalítica pôde acrescentar.

 

Diagnósticos atuais e psicanálise: meninos sem história

Discutindo acerca da questão diagnóstica, Janin (2005), Jerusalinsky (2005), Levin (2005) e Lerner (1997) acreditam que nomear e classificar são atos tranquilizadores para o humano. Algo deixa de ser inominável e passa a ter um nome, isso dá a certeza de que já se sabe do que se trata. O intuito desses autores é denunciar para que serve o diagnóstico e alertar para a lógica classificatória embutida nos diagnósticos, atrelada à medicação e a etiologia orgânica. Abordam a classificação diagnóstica como um enquadre do sofrimento, descontextualizando o sujeito, produzindo "meninos sem história"3. Assim, nos dias atuais, os diagnósticos trazem como consequência a nomeação da criança não por sua singularidade, mas pelo diagnóstico: "tu és" o transtorno (Janin, 2005).

Essas denúncias, no entanto, não são as únicas considerações desses autores. Lerner (1997) aponta que, a partir do diagnóstico, pode ser constituída a impossibilidade de construção de uma história que insira a criança na ordem familiar, mas não é apenas isso que ocorre, pois há a escolha da criança de "aceitar" esse "selo".

No mesmo clima, País (2000) afirma que quando alguma coisa se repete, quase sem exceções, é algo inerente à estrutura do sujeito humano. O que remete às primeiras considerações citadas de alguns psicanalistas, os quais acreditam que nomear e classificar são atos tranquilizadores para o humano. Assim, se o diagnóstico pode delinear uma tragédia, mas por outro lado, a elaboração diagnóstica pode constituir, para a criança, um drama com possibilidade de construção de uma história que a insira na ordem familiar, consideramos que a hipótese diagnóstica pode organizar e estruturar. Isso significa que, o diagnóstico da criança, por si só, não nos diz do significado que entra nessa trama.

Então, o que faz com que, a partir do diagnóstico, outras elaborações sejam feitas e, acerca da criança, de uma tragédia possamos elaborar um drama com final imprevisível? Em outras palavras, o que faz com que as professoras possam sair do lugar de considerar o diagnóstico como última palavra sobre a criança, com o sentido per si? O que delinearia uma cristalização do sujeito em um selo, para considerar o diagnóstico apenas mais um significante4 que se alia aos outros? Na perspectiva de darmos tratamento a essa interrogação, produzimos a seguinte questão: quais as elaborações que as professoras produzem a partir do diagnóstico da criança, que situam esta como apresentando necessidades educativas especiais?

Em um primeiro momento, consideramos a possibilidade de tratar metodologicamente essa questão por meio da análise do discurso. No entanto, uma preocupação com a coerência teórico-epistemológica, mais precisamente, um questionamento acerca da especificidade da pesquisa em psicanálise, nos levou a empreender um percurso teórico em torno do tema.

 

Pesquisa em psicanálise: reviravoltas no percurso

Freud (1924/1999)5 relata que sua práxis tinha um único objetivo: "compreender algo daquilo que era conhecido como doenças nervosas 'funcionais', com vistas a superar a impotência que até então caracterizava seu tratamento". Ele fala a respeito da impotência dos médicos em relação ao fator psíquico, visto que eles estavam centrados nos fatores químico-físicos e patológico-anatômicos, sendo o psíquico relegado aos filósofos, místicos e charlatães. Portanto, do refugo do saber médico, Freud escolheu fazer sua investigação.

De acordo com Freud (1924/1999), "um só e mesmo procedimento servia simultaneamente aos propósitos de investigar o mal e livrar-se dele, e essa conjunção fora do comum foi posteriormente conservada pela psicanálise". A indissociabilidade entre prática e pesquisa, portanto, demarca o corte que a pesquisa psicanalítica desfere ao saber médico. Sugere, aqui, a associação livre como principal procedimento de investigação no tratamento analítico.

Embora, ao iniciar sua pesquisa, os ideais cientificistas fossem uma marca significativa no posicionamento e ideais freudianos, isso não o impediu de calar quando Frau Emmy von N. assim o exigiu, para que ela continuasse falando do que lhe afligia (Quinet, 2000). No instante em que Freud, sem qualquer objetivo de investigar cientificamente a experiência, ratificou o ato histérico de Frau Emmy von N., se deixou levar pelo achado. Consequentemente, começou o trabalho analítico de Emmy no que a ratificação de Freud foi um ato, o ato analítico. Somente após o término do caso, ele o pesquisou cientificamente.

Evidenciamos, assim, os dois momentos da pesquisa em psicanálise: a pesquisa na situação analítica e a pesquisa teórica. No primeiro, a investigação é a do analisante, na qual o analisante "associa livremente" para tornar-se analista de si próprio. No segundo, a investigação é a do analista, na qual o analista constrói o caso a partir da sua relação com o analisante, em transferência aos textos de outros psicanalistas (Pinto, 1999; Elia, 2000).

Consideramos tal distinção essencial para a prática analítica, visto que a primeira pesquisa é do analisante e possui um lugar específico para a sua transmissão e avaliação: o passe6. Já a segunda pesquisa é a construção do caso para possibilitar a transmissão do tratamento analítico somente após o término dele (Nogueira, 2004). Assim, seja do analisante, seja do analista, a investigação, em psicanálise, coloca em jogo e evidencia os fundamentos da psicanálise.

Como já situamos, o método da psicanálise é a associação livre e para que o analisante continue no seu trabalho de dizer qualquer coisa, é imprescindível a contrapartida do analista.

A esse respeito, Freud (1937/1999) se questiona sobre o lugar em que o analista pode adquirir a qualificação para a sua profissão. Sua resposta consiste em que essa só pode ser adquirida na própria análise. Freud (1912/1999) insiste nisso, para que o analista se coloque em posição de fazer uso de tudo que lhe foi dito, sem a ambição de curar. Mais precisamente, que o analista ao demandar esse poder de curar engendra uma sugestão, não uma análise. Ressaltando a posição de Freud sobre o furor curandis, Lacan (1959-1960/1991) evidencia que o desejo de fazer o bem é algo suscetível de desencaminhar-nos, alerta contra as vias vulgares do bem, contra a falcatrua benéfica de querer-o-bem-do-sujeito. Há outros riscos implicados na práxis e investigação analítica, entre estes, Freud (1912/1999) menciona a atividade educativa que surge no tratamento psicanalítico, sem que o analista possua a intenção de que ela ocorra.

Seguindo a mesma consideração sobre a necessidade da análise pessoal na formação do analista e interessado em discutir a interpretação dos sonhos, Freud (1911/1999) distingue que "não é a mesma coisa se o analista sabe de algo ou se o paciente o sabe". Distinção fundamental para as considerações acerca da interpretação, visto que o próprio analisando é que interpreta. A respeito da interpretação, Lacan (1969-70/1992) faz questão de diferenciar o significado comum dado a esse termo, que é o de engendrar um sentido, do significado que interpretação tem para a análise. Podemos dizer que a interpretação é uma construção que não possui sentido per si, o que importa é a sua construção. Ele sugere a citação e o enigma como as duas faces da interpretação.

Até esse ponto, consideramos a análise que ao analista é exigido percorrer para que o analisante fale "o que foi esquecido, sob a condição do 'ouvir' específico do analista para que o analisando também 'ouça' o que fala" (Celes, 2005, p. 29). Consideramos também algumas tendências que a não passagem pela análise traz ao tratamento, efeitos que podem ser subsumidos na tendência de fazer da psicanálise uma Weltanschauung7. Dessa forma, o questionamento de Freud (1932/1999) em relação à psicanálise não foi formulado de modo despropositado: "a psicanálise conduz a uma determinada Weltanschauung?". Consciente que seus construtos poderiam ser considerados uma visão de mundo, Freud resolve elaborar teoricamente o porquê da psicanálise não a ser. Mesmo no seu ideal científico, Freud diz que nada é tudo, que não há um saber todo que solucione todos os problemas de nossa existência. Consideramos esse ponto no que diz respeito à construção teórica embasada no tratamento analítico, um dos eixos da pesquisa em psicanálise.

De acordo com Pinto (1999), a construção do caso ganha consistência central para tal pesquisa, pois somente a posteriori de uma situação específica poderemos dizer se ela é analítica. Entretanto, há uma impossibilidade imanente em tornar o método freudiano explicitamente disponível, visto que esse estilo "não equivale nem se limita às balizas técnicas esboçadas por Freud" (Vorcaro, 2003, p. 90). Após o encontro analítico ter ocorrido, o caso é construído e sua transcrição delimita a posição de quem lê (Vorcaro, 2003).

Nesse caso, o impasse se torna central, pois a pesquisa implica que o analista fale da sua posição a partir do tratamento de outrem. Tal posição, como situa Elia (2000), não é outra senão a do analisante. Posição que considera o impasse como ponto de apoio à produção de saber (Pinto, 2001), que questiona o estabelecido, análoga ao trabalho analisante que se lança no contingente. Em última instância, a pesquisa é sempre feita do lugar de analisante.

Sobre esse lugar, sua posição enquanto aquele que transmite a psicanálise, Lacan (1975/1985) declara que tal transmissão é do lugar de analisando do seu não quero saber nada disso. Ora, como ele afirma, as posições em relação a isso são diversas. Cada um, portanto, precisa inventar como construir sua pesquisa. Desse modo, "a escrita do caso mostra que o analista está submetido à clínica, sendo falado pelo seu escrito muito mais do que saberia dizer" (Vorcaro, 2003, p. 111).

O que queremos extrair desse breve percurso é que dizer da pesquisa em psicanálise, exige dizer o que delimita essa práxis, o que é específico da clínica8. Dizer da dimensão de inacabamento e renovação constante do edifício teórico da psicanálise. Em suma, que "em sua estrutura metodológica, a clínica não é lugar de aplicação de saber mas de sua produção" (Elia, 2000, p. 32).

Tais considerações surgem da clínica psicanalítica, ou melhor formulando, da psicanálise em intensão. Em 1967, Lacan (1967/2003) defende, em sua proposição sobre o psicanalista da Escola, que a psicanálise em intensão é a didática e a psicanálise em extensão é "tudo o que resume a função de nossa Escola como presentificadora da psicanálise no mundo" (p. 251). Em outras palavras, tudo que escapa ao tratamento analítico stricto sensu, como a crítica social, a pesquisa em psicanálise na universidade, ou psicanálise extramuros feitas pelos psicanalistas desde Freud, é denominada psicanálise em extensão (Rosa, 2004).

Esta pesquisa, portanto, é uma psicanálise em extensão. Apesar disso, o percurso em pesquisa em psicanálise corresponde às bases, para que possamos sempre inventar a psicanálise em extensão. Além disso, foi esse percurso que permitiu ao estagiário uma torção da sua questão de pesquisa e as considerações feitas a partir do trajeto. Consideramos, com Figueiredo e Minerbo (2006), que a pesquisa em psicanálise requer um psicanalista, ou seja, alguém que esteja no percurso da psicanálise em intensão.

Em relação à psicanálise em extensão ao campo da educação, remetemos ao trabalho A produção brasileira no campo das articulações entre psicanálise e educação a partir de 1980 (Kupfer et al., 2010), para quem quiser se aprofundar na produção nesse campo em específico. Nesta pesquisa, o que importa é que essa imersão na psicanálise em intenção proporcionou ao estagiário uma mudança em relação a sua pergunta inicial de pesquisa.

Pretendíamos fazer uma pesquisa nos parâmetros comuns da academia, na qual a pesquisa delimita um a priori. Considerávamos a possibilidade de tratar metodologicamente a questão – quais as elaborações que as professoras produzem a partir do diagnóstico da criança, que situam esta como apresentando necessidades educativas especiais? –, por meio da análise do discurso. A partir do percurso teórico realizado acerca da pesquisa em psicanálise, tal questão e empreendimento metodológico se destituem, pois como nos mostrou Freud (1932/1999), a psicanálise não é uma Weltanschauung.

Dessa forma, voltamos às questões iniciais e encontramos como resultado que, a partir do que consideramos como pesquisa em psicanálise, essas perguntas só poderiam ser respondidas caso a caso, a posteriori, a partir do encontro com um analista.

Assim, tomamos a experiência de estágio, da qual surgiram as nossas questões, e nos perguntamos: quais são as posições que ocupamos, nessa experiência, orientados por uma escuta analítica, diante da demanda de diagnóstico de todas as crianças? A formulação dessa questão enfatiza a experiência em sua lógica subjacente, meio de transmissão da psicanálise, permitindo-nos analisar a experiência no só-depois e suas consequências no interior da própria psicanálise.

O percurso em pesquisa em psicanálise, portanto, da psicanálise em intensão, permitiu ao pesquisador uma torção em relação à própria condução da pesquisa e seu objeto, que passou da demanda diagnóstica para a posição do analista diante dessa demanda. Uma invenção possível da psicanálise em extensão.

Vale salientar, ainda, que Lacan (1969-1970/1992) evoca a produção dos iniciantes em relação à psicanálise, por acreditar que eles estão menos contaminados por certa imitação de seu estilo. De outro modo, podemos afirmar que há uma contribuição valiosa daqueles que se inserem no campo da psicanálise – no caso do específico, a formação clínica (psicanálise em intensão), a análise e estudo dos operadores da pesquisa psicanalítica ofereceram ao estagiário uma oportunidade de perceber sua mudança de posição.

Na sequência, apresentaremos a construção de dois casos para extrairmos as consequências desse último problema.

 

A construção dos casos: considerações de um resultado

A professora Cândida9 e o menino que é um sucesso

No nosso primeiro encontro, Cândida se queixou de Sílvio, nomeando-o: "o sucesso da turma". Não sabia o que fazer com Sílvio para que ele aprendesse e prestasse atenção à aula. No final, perguntou: o que eu faço com esse menino impossível? Por que Sílvio é como é?

Em resposta a tal demanda, propusemos outra reunião com Cândida e a professora de Sílvio do ano anterior. A nossa proposta era discutir, à luz do que esta última reconstituísse da história de Sílvio, as estratégias que Cândida poderia construir.

O relato daquela professora consistiu em dizer sobre uma pesquisa em que Sílvio descobriu ser adotado. Depois desse ocorrido, ele não quis mais saber da escola, e sua agitação aumentou. A partir do conhecimento de tal fato, toda a nossa intervenção com Cândida se dirigia para sentenciar que ela não poderia esquecer a história de Sílvio.

Em reunião com a supervisora de campo, nos foi informado que Sílvio foi diagnosticado com transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH). Nessa reunião, a supervisora relatava que a transmissão do diagnóstico à mãe lhe concedeu um alívio, por saber a causa de Sílvio ser como é e que, portanto, a culpa não foi sua.

A partir desse outro conhecimento, nos posicionamos de forma a relatar para a professora que ela não poderia cair no mesmo álibi da mãe em se contentar com um diagnóstico aprisionador. Claramente, o nosso intuito era fazer com que Cândida mudasse sua demanda.

Relatávamos a nossa compreensão da denúncia dos autores psicanalistas aos diagnósticos atuais, informávamos que o diagnóstico apenas servia para a impressão de um sentido único que engendra a aderência da criança a tal significação, cristalizada, a partir do seu sintoma, e alertávamos para a lógica classificatória atrelada à medicação e a etiologia orgânica, bem como ao fato de que tal lógica foi construída historicamente. Portanto, de um lugar de saber, partíamos para escutar a professora Cândida; um lugar de saber sustentado pelas estórias dos outros (a psicóloga e a professora) e pelo escrito dos autores psicanalistas (mestres).

Tempos depois, Cândida nos falou da sua angústia ao ver que Sílvio piorou. Ela afirmou que ele fazia uso de remédios, mas que naquele momento Sílvio disse ter esquecido de usá-los. O que ela demandava? Que Sílvio retomasse o aprendizado ou os remédios? O que se produziu a partir do lugar de saber foi uma professora que, ora, concordava com nossa teoria ao afirmar que a estória de Sílvio e ele próprio precisavam de atenção e, ora, exigia que Sílvio retomasse os remédios para deixar a agitação.

Quais seriam os efeitos se, em vez de tentar ensinar, perguntássemos o que ela demandava? Cândida precisava desdobrar a demanda numa construção produzida em suas associações, e não numa imposta por aquele que ensina, pois dessa forma o efeito é uma sugestão.

Nós fizemos uma aposta ao transmitirmos as formulações teóricas que nos embasavam: conseguiríamos tirar a professora do lugar de aprisionadora dos sujeitos. Desse modo, o que depreendemos da nossa primeira intervenção como sua lógica subjacente é que do lugar de saber, colocamos o outro no lugar de objeto de nossas elucubrações, mas o que se produziu não foi o que "conscientemente" almejávamos. A verdade que nos sustentava: a denúncia por alguns psicanalistas, de que os diagnósticos atuais apenas serviriam para aprisionar o sujeito em um selo. Consequentemente, o referente (S1) da nossa intervenção era um "menino sem história", um significante sem sentido, mas que encadeava nossas ideias. Portanto, várias hipóteses nos sustentavam, certezas que se configuravam como um mandamento. O que poderia fazer com que isso falhasse seria a consideração de que fale o que falar, qualquer humano é o sujeito efeito da articulação significante que devemos escutar.

Seguimos uma lógica de tudo-saber, com o intuito de fazer o bem às crianças. Esse laço social que enfatiza o saber formalizado coloca o Outro como objeto de elucubrações cujo resultado esperado é a produção de um homem educável. Queríamos que se produzisse o bem do sujeito, o bem da criança10. Por isso, nos posicionávamos no lugar de saber, saber sobre o bem da criança. O produto não é o que queríamos: a confirmação de que um diagnóstico aprisiona a criança em um rótulo.

Desse modo, a afirmação de Lacan (1967-1968/2006) acerca de Piaget, no sentido de que ele buscava uma lógica formal nas construções e pensamentos das crianças e foi exatamente o que encontrou, nos leva a inferir que, em nossa intervenção, o que buscávamos, mesmo inconscientemente, era a confirmação de que se Cândida agisse a sustentar que o diagnóstico encadeava o modo de Sílvio ser, ela o aprisionaria em um selo. Piaget interrogou as crianças no registro da lógica e elas o respondiam nesse registro, "deduzir daí que é o desenvolvimento da criança que constrói as categorias lógicas é uma pura e simples petição de princípio" (Lacan, 1967-1968/2006, p. 43). Análoga a Piaget, encontramos as nossas teorizações sobre o aprisionamento do sujeito a partir de um diagnóstico. Sílvio permaneceu preso ao diagnóstico, um menino sem estória, nomeado pela alcunha de hiperativo. Porém, como Freud afirmou que quando um caso fracassa é aí que ele ensina, abordamos esse fracasso no que ele nos ensinou.

Quando formulamos que precisávamos transmitir a Cândida nossa teoria, estávamos fomentando uma nova causa para ela. Em sua divisão, Cândida tende a atribuir um sentido ao significante hiperativo. À custa do que fomentávamos, ela encontrou uma via para escapar do que não funcionava em sua relação com Sílvio.

Desse modo, procurávamos ensinar a Cândida que ela não poderia cair no álibi de demandar um diagnóstico, lugar que levou ao pior. Nesse sentido, ignorávamos a reserva de Freud e Lacan com relação à atividade educativa.

Assim, era para o domínio da ortopedia que estávamos nos dirigindo, quando queríamos o bem da criança. Esquecíamos, portanto, o aviso de Freud e Lacan quando afirmam que querer o bem do outro, se desviar pela ambição de curar, engendra uma sugestão, um caminho pelas vias vulgares do bem que leva ao pior. Se admitirmos, com Lacan (1958/2003), que nossa mensagem vem do Outro, sob forma invertida, podemos inferir que ao situarmos o outro como despossuído de escolhas, de poder, que é mais infeliz que nós, nos colocamos como possuidores de um poder. Essa é a falcatrua benéfica de querer-o-bem-do-outro enfatizada por Lacan (1959-1960/1991).

Do mesmo modo, esquecíamos das palavras de cuidado de Lacan (1959-1960/1991), que afirma que a verdade que buscamos "numa experiência concreta não é a de uma lei superior. Se a verdade que procuramos é uma verdade libertadora, trata-se de uma verdade que vamos procurar num ponto de sonegação de nosso sujeito. É uma verdade particular" (p. 35). Isso foi negado, na nossa posição, pois procurávamos atribuir a denúncia de que os diagnósticos aprisionam para todos os casos.

Portanto, nós já tínhamos um "diagnóstico" diante das professoras, qual seja, culpabilizávamos todas as professoras por qualquer fracasso escolar. Para nós, as professoras não contabilizavam a história das crianças diagnosticadas. Parece aqui que, a partir do significante-mestre "meninos sem história", fundamos uma categoria nosológica em que todas as professoras caberiam: professoras que prendem o sujeito. E, assim, Cândida não encontrou outra saída a não ser afirmar sua crença na nossa sugestão e negar em ato tal afirmativa.

 

Marlene e Paula: entre a metáfora do mar e a metonímia do desejo

No primeiro encontro com a professora Marlene, ela não parecia apresentar queixa alguma sobre sua turma. Seu discurso era homogêneo e ela falava de todos. No entanto, ressaltou que "possuía" uma aluna especial: "uma menina que por fora é normal. . .".

Poucos dias após esse episódio, chegou-nos um relatório sobre aquela aluna especial: Avaliação específica de Paula. A primeira sentença de Marlene nesse relatório dizia: "nem sempre o que é nos permitido ver, tem um certo grau de veracidade. . .". Questionávamo-nos, na leitura do texto, se a continuação desse primeiro enunciado não diria respeito à sua primeira fala: "por fora ela é normal". Ainda no relatório, Marlene escreveu: "Paula é uma aluna calma. Em certos momentos demonstra impaciência com barulho, ou seja, grita por silêncio e bate na mesa". Marlene registrou que, ao questionar Paula sobre a necessidade de gritar e bater no móvel, Paula respondeu: "às vezes pedir apenas silêncio não basta". Diante de tal resposta, Marlene concluiu em seu escrito: "a menina aparentemente calma explode com os colegas por motivos insignificantes".

Na leitura desse registro, alguns lapsos de escrita foram produzidos. Tais lapsos foram sublinhados no texto do relatório e, num segundo momento, discutidos com a professora. Em um trecho do relatório, Marlene escreveu: "Paula é uma espécie de 'café-com-leite'". Noutra parte, afirmou: "consegue 'interpretar metáforas' e de uma 'acerta forma' até em um tom irônico (em se tratando dos outros alunos), quando ditas pela professora, ela apenas sorri".

Em reunião subsequente com a professora, enfatizamos tais lapsos e "nomeações". Quanto à nomeação de Paula como "café com leite", perguntamos: "o que é regra para os outros não vale para ela?". Do que Marlene se defendeu, dizendo que teve muito pouco tempo para fazer uma avaliação sobre Paula. Para nós, a metáfora do café com leite retratava claramente uma não valia de Paula em relação às outras crianças, visto que, em brincadeiras, a locução adjetiva "café com leite" significa que não importa o que a criança faça ou lhe inflijam, isso não terá valor, pois a criança não entende as regras do jogo. Movidos pelo saber, intervimos.

No entanto, no mesmo caso foi possível uma intervenção com efeito de interpretação. No lapso de escrita do acerta forma, perguntamos à professora se não seria de uma acertada forma que Paula conseguia interpretar metáforas. Ao que ela retrucou: "é engraçado. . . . Agora que você disse, eu me lembrei que quando perguntei para a turma sobre a forma de uma poesia concreta que versava sobre o mar, apenas Paula respondeu que a forma da poesia era por causa do balanço do mar, por causa das ondas, que a poesia tinha a forma das ondas. . .".

Isso produziu em Marlene uma surpresa, a lembrança de um acontecimento que modalizou seu posicionamento anterior em relação a Paula. Nessa pontuação, conseguiu produzir um saber inédito sobre Paula, onde havia uma resposta – por fora ela é normal –, se instalou uma nova associação. Mesmo na nossa intenção educativa, em nosso furor sanadis, o dizer pôde se equivocar, foi tomado como equivocação, pois surpreendentemente não foi desse lugar que Marlene escutou, confirmando em elaboração discursiva a interpretação. Dessa forma, o sentido não deve ser revelado, mas assumido por quem demanda. Além disso, que o sujeito saia do estado nebuloso, após a intervenção do analista, não comprova que tal intervenção tenha sido eficaz, ou seja, não podemos considerar a mudança de estilo como justeza da interpretação, mas que o sujeito traga um material confirmativo, ainda que isso precise ser nuançado (Lacan, 1953-1954/1996).

Acompanhamos o trabalho de Paula e Marlene, as soluções encontradas produziram o avanço no que concerne ao aprendizado da primeira. Esse avanço, e o trabalho que nos foi relatado com entusiasmo, nos remetia sempre ao fato de a nossa escuta ter proporcionado à Marlene sua mudança adiante da aluna especial. Que se tornou especial, não porque por fora era normal, mas porque sabia dar forma à poesia. Tal mudança teve uma relação intrínseca com a reunião na qual nossa posição, apesar de educadora, pôde produzir um efeito de escuta.

Nessa perspectiva, a leitura da Avaliação específica de Paula permitiu o uso de várias sentenças da professora para questioná-la em sua posição. Mesmo que naquele momento nosso ideal fosse o de que Paula viesse a ser percebida por Marlene como uma pessoa sublime, algo no modo de citar o texto de Marlene pôde se equivocar. O que fizemos foi sublinhar as sentenças que nos questionavam. Porém, somente em um desses sublinhados – acerta forma –, um efeito surpreendente foi produzido. Algo tropeçou, a afirmação de que por fora ela é normal rateou.

Marlene, consequentemente, começou um trabalho com afinco, que lhe proporcionou novas descobertas e produziu em Paula um avanço na escola. Na penúltima reunião com a professora, ela nos contou: "Paula tem seu próprio tempo. . .".

É importante frisarmos que quem escreveu o relatório foi Marlene, nós apenas sublinhamos, essa foi nossa intervenção: citação do texto de Marlene. Assim, a substituição metonímica produzida por Marlene de "por fora ela é normal", para "ela é a que interpreta metáforas" e, em seguida, "ela é a única que sabe sobre a forma da poesia", permitiu à Paula se mover no desejo de Marlene de um lugar no qual se delimitava uma tragédia – ela é café-com-leite –, para um drama com final imprevisível: "ela tem seu próprio tempo".

 

Reminiscências: os resíduos da História e de uma denúncia

Retomemos o que encontramos na História. Obviamente a História afeta os sujeitos envolvidos e de algum modo suas demandas, mas apenas como estória, como ficção para cada sujeito. Não possuímos nenhuma fórmula de antemão sobre como cada um vai responder às exigências para que tudo funcione, para que se consuma cada vez mais.

Em O seminário, livro 20: mais, ainda, Lacan (1972-1973/1985) sustenta que a História é uma construção que concerne menos aos fatos concretos, a uma verdade das origens, do que a quem construiu. Ela, segundo Lacan, diz da tentativa de construir um sentido para aquele que demanda. Da mesma forma, ele afirma em O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, que de fatos se faz o factício, o fato fictício (Lacan, 1969-1970/1992). Desse modo, quando recuperamos os "fatos históricos", dizemos de uma busca que expõe o nosso posicionamento, mais do que uma verdade sobre os eventos.

Dessa forma, podemos pensar que, como o âchipu, em resposta aos ataques dos demônios (DSM-IV), buscávamos esconjurar os males em um ritual previamente estabelecido pelos deuses (autores psicanalistas). Despossessão do nosso ato, pois considerávamos a psicanálise uma Weltanschauung. A recompensa que pretensamente esperávamos, ou seja, o alívio do mal não ocorreu, pois querer-o-bem-do-outro engendra uma falcatrua benéfica11 na qual nos situamos como possuidores de um bem a ser doado. Em outras palavras, ser elevado de simples mortal a um deus.

Quando situamos, no tópico sobre a História do diagnóstico, que no caso de Hipócrates, o "o mal de sofrimento" dos babilônios, de castigo divino passou a um desregramento e desequilíbrio, poderíamos, ao invés de acusar subliminarmente, forçar outros sentidos com os mesmos significantes. Se a doença é desregramento e desequilíbrio, ou seja, sem regra e sem equilíbrio, como medir, como regrar e como manter o equilíbrio diante delas? Como encontrar as leis gerais tão enfatizadas na Era Moderna? Perguntas que poderiam ser feitas a Cândida, que poderiam fazer equivocar-se a nossa posição, fazê-la construir uma interpretação e deslocar sua atenção do menino de quem a atenção faz falta.

Do mesmo modo, sustentamos no percurso histórico que, a partir da Idade Moderna, os homens passaram a senhores da natureza. Poderíamos, ao invés de ensinar que nenhuma classificação pode dar conta das múltiplas variações da natureza, questionar o caráter utilitário de prever e controlar, não como se Cândida agisse cegamente, respondendo a essa exigência, mas naquele caso, naquele momento, ouvir o que ela demandava em resposta a essa exigência.

Quando acusávamos o DSM-IV de situar a instrumentalidade do conhecimento com o controle, cálculo e teste, ou seja, uma crença em uma ordem natural, poderíamos nos questionar como essa crença nos afeta. Não estamos vacinados contra tal pensamento. Quando ensinávamos a Cândida, lhe posicionávamos como objeto de nossas elucubrações, ou seja, acreditávamos que o real é o que é tecnicamente manipulável. Dessa forma, agíamos como alguém que "procura fazer do sujeito o seu objeto . . . torná-lo maleável como uma luva para lhe dar a forma que quer, para tirar dele o que quer, . . . impelido por uma necessidade de dominar e de exercer o seu poder" (Lacan, 1953-1954/1996, p. 38).

Atuávamos como se houvesse uma ordem natural, pois, se ensinamos a Cândida o modo certo, ela se aproxima da ordem que acreditamos ser a natural: nosso ideal. Ao invés de considerar o caso em sua singularidade, ou seja, fazer o sujeito reintegrar sua história "até os seus últimos limites sensíveis, isto é, até uma dimensão que ultrapassa de muitos os limites individuais" (Lacan, 1953-1954/1996, p. 21). Agíamos de modo a sustentar uma readaptação de Cândida ao real, como se o conjunto do sistema de mundo que nos concerne servisse de medida para ela.

Quanto ao que encontramos no tópico sobre os diagnósticos atuais, a denúncia dos autores psicanalistas pôde ser "relativizada". Visto que encontramos a demanda diagnóstica como solução para a inerente humana de demandar um sentido e a possibilidade de a hipótese diagnóstica organizar e estruturar a criança. O que pôde ser ressaltado com o caso de Marlene e Paula, para quem o diagnóstico serviu, permitindo contar uma estória de avanços com final imprevisível. Não temos como saber, a priori, o que será feito de um diagnóstico, quais serão seus usos. Ponto que antes considerávamos devastador para uma criança.

O que podemos extrair disso tudo é que na origem das formulações sobre para que serve um diagnóstico na escola e o que move a demanda por esse diagnóstico, houve uma culpabilização às professoras. Para nos afastarmos dessa culpabilização, formulamos a questão sobre as elaborações que as professoras produzem a partir do diagnóstico. Um esforço de trabalho das primeiras questões que se configurou como equívoco, pois iríamos construir uma pesquisa qualitativa, portanto na lógica a priori. As consequências de se construir uma pesquisa com essas características em psicanálise é fazer da psicanálise um ideal. Portanto, tanto o que "causava" esses questionamentos – a culpabilização às professoras – quanto o caminho que trilhávamos em uma pesquisa qualitativa, ambos os movimentos estavam atrelados a fazer da psicanálise uma Weltanschauung. A consideração para nos voltarmos às situações que ocorreram na nossa experiência nos permitiu tanto o afastamento da culpabilização quanto o caminho que devíamos seguir.

O que nos aponta para a nossa responsabilidade no tratamento dado à demanda diagnóstica. Mais do que saber o que move a demanda, o importante são os usos do sujeito e a nossa posição para que ele possa engendrar um trabalho. Assim, apontamos para uma reflexão ética contínua, para que o rigor do que nos propomos fazer não se perca.

Não há como prever o destino nem de todas as crianças, nem de todas as professoras. Atualmente, estamos avisados que a demanda ou a transmissão do diagnóstico não garantem nada, nem o aprisionamento do sujeito, nem sua soltura.

Assim, da acusação às professoras, passamos a questionar o nosso posicionamento. Acreditamos ser essa uma posição ética.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
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59143-285 – Parnamirim – RN – Brasil

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Av. Rui Barbosa, 1110/1003 – Bloco C
59056-300 – Natal – RN – Brasil

Recebido em junho/2017.
Aceito em dezembro/2018.

 

 

NOTAS

1. Demanda aos profissionais "psi", que consideramos como se referindo tanto aos profissionais que atendiam as crianças nos consultórios, quanto a nós, que fazíamos parte da equipe de psicologia escolar/educacional. Não no sentido de que nós pudéssemos responder à demanda de diagnosticar as crianças, mas no de que esse pedido era dirigido a nós como profissionais "psi".
2. Termo tomado de empréstimo de Jerusalinsky (2005).
3. Segundo Andrès (1996), quando comenta as formulações de Saussure, o significante "é a representação psíquica do som tal como nossos sentidos o percebem, ao passo que o significado é o conceito a que ele corresponde" (p. 472). Assim, como Lacan (1972-1973/1985) aponta, o "significante como tal não se refere a nada, a não ser que se refira a um discurso, quer dizer, a um modo de funcionamento, a uma utilização da linguagem como liame" (p. 43).
4. Os textos de Freud não possuem paginação, visto que foram retirados do CD-ROM com as Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, produzido pela Imago. Os trechos citados podem ser recuperados pela ferramenta de busca do referido CD-ROM.
5. O passe é a forma de investigar (avaliar) a passagem do analisante a analista, o que seria o fim da análise (Nogueira, 2004).
6. De acordo com Freud (1932/1999), Weltanschauung é uma "construção intelectual que soluciona todos os problemas de nossa existência, uniformemente, com base em uma hipótese superior dominante, a qual, por conseguinte, não deixa nenhuma pergunta sem resposta e na qual tudo o que nos interessa encontra seu lugar fixo".
7. Clínica, que segundo Elia (2000), não se restringe ao local de atuação. Podemos inferir, portanto, que clínica é o adjetivo de uma postura, de uma escuta, de um estilo.
8. Os nomes utilizados neste trabalho são fictícios, para preservar o sigilo.
9. Confundíamos o sujeito com a criança, equívoco que, como veremos, traz consequências indesejáveis. O sujeito, segundo Lacan (1972-1973/1985), "não é outra coisa – quer ele tenha ou não consciência de que significante ele é efeito – senão o que desliza numa cadeia de significantes" (p. 68).
10. Falcatrua benéfica a nós, pois querer-o-bem-do-outro expõe que quem possui o bem é aquele que oferece, aquele que tem para dar. Portanto, esse termo denuncia a nossa posição ao sustentar que sabemos qual é o bem das crianças.

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