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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.23 no.3 São Paulo Sept./Dec. 2018

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v23i3p626-637 

DOI: 10.11606/issn.1981-1624.v23i3p626-637

ARTIGOS

 

Um estudo de caso sobre a brincadeira do FORT-DA como indício de estruturação do sujeito

 

A case study on the game FORT-DA as evidence of subjective constitution

 

Un estudio de caso sobre el juego del FORT-DA como indicio de la estructuración del sujeto

 

 

Renata GonçalvesI

IPsicóloga. Mestre em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo teve como objetivo discutir a constituição do sujeito a partir da brincadeira nomeada por Freud como Fort-da. Realizou-se estudo de caso de criança deficiente visual com base nos pressupostos da teoria psicanalítica, baseando-se em fragmento de fala durante brincadeiras simbólicas entre criança e terapeuta. Observou-se que tal fragmento de fala representou a possibilidade de emergência do sujeito sem o intuito de necessariamente designar diagnóstico estrutural à criança. Portanto, este estudo tornou-se relevante por discutir a possibilidade de estruturação subjetiva de tal criança à luz da articulação lacaniana entre Simbólico e Imaginário e o jogo do Fort-da de Freud.

Descritores: sujeito; fort-da; estruturação; criança.


ABSTRACT

This study aimed at discussing subject constitution from a game named by Freud as Fort-da. We used psychoanalytical theories to study the case of a visually impaired child, based on speech fragments while the child played symbolic games with their therapist. We observed that such speech fragment represented the possibility of subject's emergence without necessarily giving the child a structure diagnosis. Therefore, this study is relevant, since it discusses the possibility of a child's subjective constitution based on the lacanian articulation between Symbolic and Imaginary and on Freud's Fort-da.

Index terms: subject; fort-da; structuring; child.


RESUMEN

El presente artículo discute la constitución del sujeto a partir de un juego llamado por Freud de Fort-da. Se realizó un estudio del caso de un niño deficiente visual con base en los presupuestos de la teoría psicoanalítica, utilizando un fragmento del habla durante los juegos simbólicos entre el niño y el terapeuta. Se observó que el fragmento del habla representó la posibilidad de emergencia del sujeto sin intención de necesariamente designar un diagnóstico estructural al niño. Por lo tanto, este estudio puede ser relevante para discutir la posibilidad de la estructuración subjetiva del niño a la luz de la articulación lacaniana entre lo Simbólico y lo Imaginario y del juego Fort-da de Freud.

Palabras clave: sujeto; Fort-da; estructuración; niño.


 

 

A experiência do espelho tem um caráter primordial na teoria lacaniana, uma vez que está para além de uma etapa do desenvolvimento da criança. O Estádio do Espelho é a primeira referência ao corpo feita por Lacan, situando-o no real do organismo, que vem a se constituir enquanto corpo pulsional, isto é, corpo que demanda interpretação, distinto da pura materialidade orgânica por efeito de investimento imaginário e simbólico.

Conforme Lacan (1949/1998), a constituição imaginária do eu retrata a função do Estádio do Espelho como o estabelecimento de uma relação do organismo (Innenwelt) com sua realidade (Umwelt).

O Estádio do Espelho representa a constituição do eu por meio da identificação com a imagem do outro. Lacan (1949/1998) confere à imagem papel fundador na estruturação do eu e na matriz simbólica do sujeito, definindo a identificação como uma mudança produzida no sujeito a partir da construção de uma imagem.

Basta compreender o estádio do espelho como uma identificação, no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem – cuja predestinação para esse efeito de fase é suficientemente indicada pelo uso, na teoria, do antigo termo imago. (Lacan, 1949/1998, p. 97)

A formação da imagem do corpo é prematura em relação ao próprio domínio motor e fisiológico da criança. Inicialmente, o infans apresenta a imagem de um corpo despedaçado, fragmentado, dividido em partes. Por meio dos apontamentos carregados de desejo do Outro e da imagem encontrada no espelho, a criança encontra meios de estruturar a própria imagem corporal como uma unidade.

Lacan (1949/1998) se refere a um ponto de clivagem em que a criança se vê no espelho como outro (outro de si mesmo), de modo que seja possível estabelecer uma diferença entre eu e outro à medida que antecipa a unidade do corpo próprio – o infans se surpreende diante de sua imagem e essa surpresa é índice de emergência do sujeito.

A assunção jubilatória de sua imagem especular por esse ser ainda mergulhado na impotência motora e na dependência da amamentação, que é o filhote do homem nesse estágio de infans, parecer-nos-á, pois, manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica em que o [eu] se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito. (Lacan, 1949/1998, p. 97).

A posse da imagem do corpo próprio revela a alienação ao Outro, já que a constatação do corpo – como unidade – no espelho desperta júbilo na criança, que possui uma relação de dependência ao olhar do Outro e encontra nesse olhar a confirmação do que vê no espelho.

o estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação – e que fabrica para o sujeito apanhado no engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos de ortopédica – e para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental. (Lacan, 1949/1998, p. 100)

Conforme Vorcaro (2008), tornar-se sujeito significa "tomar corpo", ou seja, assenhorar-se do próprio corpo, uma vez que a criança – antes da subjetivação – pertence aos caprichos do Outro. Para que o sujeito advenha é preciso que o infans "conquiste" seu organismo e interponha-se ao Outro.

A imagem do corpo como unidade no espelho é prenúncio do sujeito a advir e encobridora de um corpo que lhe foi atribuído pelo Outro. Tal atribuição é crucial para que a criança assuma o domínio do corpo e por meio da imagem do outro identifique a diferença (próprio corpo) no idêntico (corpo do outro).

Em O seminário, livro 10: a angústia, Lacan (2005) reformula a teoria sobre o Estádio do Espelho ao afirmar que o corpo inscreve o sujeito para além de uma imagem, visto que tal inscrição irrompe como um furo para ambos: sujeito e Outro, ou seja, a inscrição é simbólica e não tão somente imaginária como consolidado por Lacan em 1949. Lacan reitera que o Outro é estruturado por uma falta: diante do espelho, do olhar e do testemunho de reconhecimento do Outro haveria um furo, um resto, inerente ao sujeito. Dado isso, torna-se vago afirmar que o sujeito constrói a imagem corporal como uma unidade. Neste momento, o que é denominado "especular" não possui mais relação com a construção de uma imagem própria do corpo, mas com aquilo que é estruturado no campo do Outro, campo marcado pela falta.

Veja que a criança só pode vir a se estruturar como sujeito desejante por meio do Outro. Contudo, não é oportuno afirmar que se trata de uma relação dual e sim que a criança integra uma relação triádica desde sempre: mãe – criança – falo. A criança ocupa lugar de falo (lugar marcado pelo desejo materno), posto que a criança se identifica imaginariamente com o objeto de desejo da mãe, ou seja, neste momento há satisfação mútua. Ocupar o lugar de objeto do desejo materno é imprescindível, porém arriscado, em razão de a criança encontrar-se assujeitada a esse desejo, à mercê dos caprichos do Outro. O processo de subjetivação implica defender-se do querer do Outro ou, ainda, renunciar ao lugar de objeto de desejo.

O sujeito advém devido à perda da possibilidade de identificar-se plenamente com o objeto da falta do Outro, mas é ao constatar o risco de ser situado como objeto e mesmo de oferecer-se como objeto dessa falta que o sujeito poderá se reconhecer numa outra posição de onde poderá se defender desse lugar: "subjetivar-se implicará defender-se do querer do Outro, contando com a melhor arma, supondo um instrumento de defesa – a interdição e, ainda, operando com ela" (Vorcaro, 2008, p. 30).

O pai intercede efetivamente nessa relação como terceiro, quando aparece como a "encarnação" da lei, como proibição, de modo que a criança se depare com a falta. O pai encarna o lugar de significante (Nome-do-pai), que se configura como metáfora paterna que barra o desejo da mãe/criança.

Essa operação simbólica, que corresponde à entrada no campo da linguagem, da metáfora paterna, é possibilitada pela introdução de um significante, qual seja, o significante Nome-do-pai, que edifica uma barreira entre a criança e mãe e que passa a orientar e organizar a cadeia falante. (Vorcaro, Machado & Loureiro, 2011, p. 64)

Nesse momento, o sujeito do inconsciente tem a possibilidade de emergir na hiância da cadeia significante, uma vez que a primeira simbolização da criança, isto é, o significante primordial, dá origem a S1 e o Nome-do-pai corresponde a S2: "A função do pai no complexo de Édipo é ser um significante que substitui o primeiro significante introduzido na simbolização, o significante materno" (Lacan, 1999, p. 180).

Em outra publicação, Gonçalves (2016) discorre brevemente a respeito das operações de causação (alienação e separação), implicando o caráter negativo do significante, ou seja, o significante é caracterizado por aquilo que não é idêntico a si mesmo, obtendo valor tão somente por meio da articulação com outros significantes da cadeia. Veja-se: o sujeito, na hipótese do inconsciente, existe no e pelo discurso do Outro. O sujeito é capturado pela linguagem. Ele é efeito dela e nela se aliena. Vale lembrar que o sujeito (cindido) também está alienado no imaginário (no outro). A entrada no simbólico, contudo, decorre da captura pelos significantes do Outro. Pode-se afirmar, então, que o Outro é causa de haver sujeito, posto que o sujeito é resultado de sua relação com o Outro.

O Outro é tesouro do significante e o "empréstimo de significantes" ao sujeito implica a alienação ao Outro. O agente materno oferece os primeiros significantes, isto é, "oferecerá lugar simbólico, fazendo operar este lugar, viabilizando o funcionamento do neonato" (Vorcaro & Rahme, 2011, p. 31). Nesse jogo, a criança (o ser) é apagada pelo sentido que a mãe lhe atribui. Pode-se dizer que a articulação produtora de sentido é que propicia a alienação. Nessa operação, a criança fica à mercê do desejo do Outro – passo fundamental para que ocorra a constituição do sujeito.

Lacan (1988), ao formular as operações de causação (alienação e separação), primordiais para emergência do sujeito, destaca que este primeiro momento em que a criança se apresenta atrelada ao desejo do Outro caracteriza a operação de alienação. A lógica da alienação, ensina ele, implica uma escolha que envolve duas premissas: a escolha pelo ser ou a escolha pelo sentido. Lacan procura iluminar essa afirmação dizendo que se trata de escolher entre "a bolsa ou a vida" – se a escolha for pela bolsa (pelo ser), perde-se tanto a bolsa quanto a vida. Se a escolha for pela vida (pelo sentido), perde-se a bolsa, fica-se com a vida, mas com uma falta, uma vida decepada.

A escolha pelo sentido remete ao Outro da linguagem, ao "sim" pelo simbólico, que abre a porta para a constituição do sujeito. Se a escolha é pelo ser, então, há um "não" à captura, uma rejeição à alienação ao campo do Outro: por aí, o sujeito não se constitui. Vê-se que, pelo sentido, a alienação ao desejo do Outro é determinante para a criança advir como sujeito, ainda que haja um custo: a perda do ser – "o que resta, de qualquer modo, fica desfalcado" (Lacan, 1966/1998, p. 855). Entende-se, por aí, porque a alienação ao Outro é a operação de causação do sujeito.

A lógica da alienação comporta a impossibilidade de conservar o ser e o sentido (a bolsa e a vida). O assim designado vel da alienação (Lacan, 1988) implica a lógica de uma escolha forçada pelo sentido e a perda irremediável implicada nessa operação: não se sai dela sem perder algo. Se a escolha é pelo ser, tem-se um sujeito marcado pela impossibilidade de emergência do sujeito do inconsciente porque há recusa à alienação, a ser objeto de desejo do Outro. A escolha pelo sentido implica, porém, uma perda – uma parte fica marcada pelo não senso, não sentido, ele perde a possibilidade de manter S1 sem significação, esse significante presente do lado do ser, que não se articula com outros.

A escolha pelo sentido é a abertura de direção para significar S1 por meio de uma articulação com S2, da articulação de significantes em cadeia. Em outras palavras, o sujeito tem duas saídas: petrificar-se no significante mestre (S1), no ser, ou deslizar interminavelmente entre os significantes, na indeterminação eterna do sentido. Embora S1 não tenha significado, sua articulação em S2 adquire sentido(s) retroativamente. Acontece que a escolha pelo sentido revela uma falta do sujeito, mas também a falta do Outro, que não é somente "tesouro do significante", mas igualmente o Outro do desejo e, portanto, faltoso. Nisso, reside a operação de separação: ao Outro, detentor dos significantes no jogo da alienação, falta alguma coisa. Ele aparece como a falta de um saber ou da verdade sobre o sujeito. O ponto é que essa hiância permite que o sujeito vá além do que foi inscrito nele pelo Outro.

Veja que, para emergência do sujeito, são necessários pelo menos dois significantes que façam cadeia. Segundo Dor (1990), o jogo do Fort-da, descrito por Freud, demonstra claramente como a metáfora paterna possibilita o acesso da criança ao simbólico, ou seja, ao "controle simbólico do objeto perdido" (p. 89). Quando a criança tem o objeto representado pela linguagem, este pode ser substituído. A brincadeira do Fort-da permite que a criança saia da posição passiva – encontrada na alienação – e possibilita a constatação da ausência e a elaboração da falta.

Em "Além do princípio de prazer", Freud (1920/1996) discute as brincadeiras das crianças, especificamente a brincadeira de seu neto de um ano e meio de idade. O famoso jogo do Fort-da foi descrito por Freud como uma brincadeira que consistia na desaparição e surgimento de determinado objeto. Certo dia, ao observá-lo com uma linha atada a um carretel, percebeu que repetidas vezes o menino segurava o cordão e atirava o objeto sobre a borda de sua cama de modo que o carretel desaparecesse junto à emissão de um expressivo som "o-o-ó" (interpretado por Freud e familiares como fort, correspondente, a "ir embora" em alemão). Em seguida, puxava o objeto por meio do cordão e, junto ao reaparecimento do carretel, emitia um "da" (ressignificado por "ali", "retorno").

Freud interpreta o jogo do Fort-da como uma encenação das partidas e retornos de sua mãe. Assim, é possível que o garotinho "deixe a mãe ir", pois, agora, ele próprio pode encenar o desaparecimento e o retorno dos objetos ao seu redor. A respeito dessa brincadeira, Freud (1920/1996) afirma que a criança não experiencia a partida da mãe como agradável e questiona: "Como, então, a repetição dessa experiência aflitiva, enquanto jogo, harmonizava-se com o princípio do prazer?" (p. 26).

Freud explica que tal brincadeira possibilita que a criança elabore uma cena na qual se encontra numa posição passiva (assujeitada/abandonada pelo Outro). Desse modo, o jogo do Fort-da representa uma mudança de posição: de passiva a ativa, uma vez que por meio dessa brincadeira a criança responde a uma tendência de dominação, isto é, obtém prazer com a descoberta de controle sobre a ausência do objeto (mãe) – a criança não mais se encontra à mercê dos caprichos do Outro.

Freud (1920/1996) relaciona o jogo do Fort-da à conquista cultural do infans, isto é, a satisfação pulsional é abdicada, uma vez que a função que passa a operar é a simbolização, ou seja, agora a criança encena simbolicamente a presença na ausência.

O movimento de lançar o objeto e trazê-lo para perto de si – junto à enunciação carregada de significação – marca a saída da alienação.

 

Caso clínico de Rafael

Durante o período de dois anos e meio participei de uma formação complementar na Divisão de Educação e Reabilitação dos Distúrbios da Comunicação (Derdic) – uma instituição mantida pela Fundação São Paulo e vinculada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Rafael foi acompanhado durante 19 meses.

Rafael nasceu prematuro e durante o período em que esteve internado passou por oito infecções e sangramento cerebral. Aos cinco meses, a família descobriu que Rafael era deficiente visual devido a um descolamento de retina.

Lúcia, mãe de Rafael, relatou que, quando o filho completou um ano de vida, ele ainda não produzia som algum e, muito preocupada, levou-o a uma fonoaudióloga. Apenas quando Rafael completou dois anos e meio de idade é que iniciou o tratamento fonoaudiológico. Aos três anos, a criança começou a frequentar uma instituição que oferece atividades em grupo (para pais e crianças) e de estímulo sensorial. Aos cinco anos, Rafael foi matriculado em uma escola regular. Entretanto, sem atividades direcionadas a ele, a mãe decidiu matriculá-lo em uma escola especial para deficientes visuais. Assim, aos 6 anos, iniciou tratamento psicológico na Derdic.

Os pais chegaram com a queixa de que Rafael não conseguia se comunicar, repetia a fala do outro e não iniciava conversação. Em entrevista com os pais, há relatos tanto de Lúcia quanto de Vagner (pai de Rafael) a respeito de lembranças sobre casos de cegueira. Lúcia relatou uma cena: quando jovem e ainda solteira, estava assistindo a um programa de televisão em que o tema era deficiência visual – o que lhe causou grande angústia. Ela recordou – nessa cena – de ter dito que a deficiência mais tocante é a cegueira, pois "como uma pessoa conseguiria aprender ou conhecer o mundo sem ver?" Vagner trouxe lembranças da infância quando acompanhava uma vizinha deficiente visual até a feira e que sentia muita pena da mulher devido às dificuldades que enfrentava, principalmente em relação às humilhações a que tal mulher era submetida. Vagner relatou que receber a notícia de que seu filho é cego foi assustador.

As primeiras sessões com Rafael são mais distantes. Ele se interessou pelos brinquedos e pelo ambiente. Falava pouco – uma fala que não era dirigida a mim. Havia um brinquedo específico pelo qual Rafael muito se interessava: uma guitarra com botões que tocavam músicas e sons estridentes como um instrumento de verdade. Com a fala cristalizada, não respondia aos meus chamados ou tentativas de participação na brincadeira.

Após a indisponibilidade do instrumento na brinquedoteca, começamos a brincar com livros sonoros, de alto-relevo e alguns contos. Inicialmente, minha preocupação era: "como brincar com uma criança deficiente visual?" Porém, aos poucos, fui me dando conta de que como toda e qualquer brincadeira é simbólica, as brincadeiras com Rafael não seriam diferentes.

Assim, Rafael começou a cantar comigo. Ele cantava durante os intervalos que eu fazia nas músicas. Isso ocorreu com os contos também. Rafael complementava e trazia cenas de outras histórias como João e o pé de feijão, Os três porquinhos, A bela adormecida etc. Esses contos permitiram que construíssemos nossas próprias histórias. Iniciamos brincadeiras com alguns alimentos e utensílios de cozinha de brinquedo. Dessa forma, juntos, montávamos cenas, como o transporte até o mercado, as compras dos alimentos e a preparação de pratos. Nesse momento, Rafael apresenta falas menos cristalizadas, canta junto e inicia conversação.

Após meses de atendimento, encerrei minhas atividades na Derdic e iniciei o processo de encaminhamento de Rafael a outra profissional da instituição. Algumas sessões antes, conversei com Rafael a respeito de minha saída, que não estaria mais com ele nas sessões, mas que outra terapeuta, Flávia, ocuparia meu lugar e viria para brincar, conversar, cantar, contar histórias etc.

No encontro seguinte, convidei Flávia para participar da sessão e Rafael permaneceu calado brincando com alguns alimentos como de costume, e poucas vezes direcionou a fala a uma das duas terapeutas.

Na última sessão, brincamos com um carrinho, em que fazíamos compras e dirigíamos por São Paulo. Na brincadeira, estávamos voltando para casa depois das compras e Rafael disse:

Rafael: Renata vai morar em outra cidade!

Terapeuta: Sim, vou morar em outra cidade e a Flávia vem brincar com você.

Rafael: Renata vaaaai, Flávia veeeem.

Compreendo essa cena como o jogo do Fort-da do neto de Freud, representado pela fala "Renata vaaaai, Flávia veeeem" de Rafael, uma fala que representa a simbolização da presença-ausência, a elaboração da partida e ausência da terapeuta, ou seja, um modo de manejo com a falta. O jogo presença-ausência (Fort-da e aqui representado pelo vai e vem) dá indícios de funcionamento simbólico, no qual a criança reproduz partida e retorno. Os operadores de alternância criam uma hiância, que não corresponde à ausência física do Outro – tal hiância é índice de existência de desejo no Outro.

Essa subjetivação consiste, simplesmente, em instaurar a mãe como aquele ser primordial que pode estar ou não presente. No desejo da criança, em seu desejo próprio, esse ser é essencial. O que deseja o sujeito? Não se trata da simples apetência das atenções, do contato ou da presença da mãe, mas da apetência de seu desejo. (Lacan, 1999, p. 188)

A concepção de "desejo" – essencial à psicanálise – liga-se à falta. A ausência do Outro instaura um enigma, "um x", diz Lacan. "Falta" e "enigma" propiciam mudança de posição da criança, propiciam a inscrição no campo simbólico, sendo este o registro que possibilita o tratamento da presença na ausência, ou seja, uma representação quando o objeto falta.

A brincadeira do Fort-da representa a possibilidade de estruturação, uma vez que possibilita a destruição do objeto em que a criança faz aparecer e desaparecer: "Nessa oposição fonemática, a criança transcende, introduz num plano simbólico o fenômeno da presença e da ausência. Torna-se mestre da coisa, na medida em que, justamente, destrói" (Lacan, 1996, p. 200). Veja que a pulsão de morte atuante dá lugar a outro movimento: no lugar de uma posição de assujeitamento diante da privação do objeto, a criança assume tal privação como constituinte do seu vir a ser.

Nesse caso, Rafael serve-se da brincadeira para levar a trabalho a angústia de separação, aquilo que se configuraria como angústia que o real suscita converte-se em uma cena marcada pela fantasia: "A brincadeira infantil é o esforço de tratar o irreconciliável que passa pela angústia de separação, pelo enigma do corpo e da sexualidade ou pelas experiências traumáticas" (Cardoso & Vorcaro, 2017, p. 54). A brincadeira de Rafael permite que a terapeuta se vá, instaurando a separação entre Eu e Outro, proveniente da lógica simbólica, ou seja, é possível que Rafael se depare com a ausência de modo que não apague o Outro, mas efetue o processo de separação.

É possível afirmar que a elaboração simbólica evidencia a atualização de um processo de controle: Rafael é, nesta cena, mestre da ausência, não se encontra à mercê dos caprichos do Outro – a criança passa da posição passiva, assujeitada, para a posição ativa. Dor (1990) afirma que a criança elabora a falta com o brincar do vai e vem, do estar e não estar, passando a ativo desejante.

No caso de Rafael, não houve o movimento de um objeto que representasse simbolicamente a ausência. Porém, as brincadeiras com os carrinhos, os quais dirigíamos e com os quais fazíamos compras juntos, eram muito significativas. Justamente durante essa brincadeira, Rafael elaborava os operadores de alternância presença-ausência, que possibilitam a emergência do sujeito.

O atravessamento do simbólico ao imaginário representa a passagem da natureza à cultura marcada pelo interdito, pela lei. O controle sobre o Outro se apresenta sob forma de prazer, uma vez que o infans tem a possibilidade de ressignificar e substituir o objeto simbolicamente. O prazer no jogo se refere à posição ativa que a criança ocupa em relação à sua angústia ao fantasiar que ela é quem obtém controle sobre os acontecimentos. O que possibilita a criança ser capturada pelo funcionamento simbólico é a castração, a lei, a marca que permite ao infans sair de uma posição narcísica e se reconhecer como ser falante.

É importante ressaltar que a deficiência visual de Rafael não era o fator impeditivo de sua estruturação subjetiva. Porém, levanto as seguintes questões: seria a deficiência visual de Rafael um modo de impedir a invasão do Outro avassalador? Como quem atesta "por aqui não sou invadido"? Essas questões são importantes devido aos elementos correlatos à cegueira na fantasia dos pais de Rafael. Penso que é oportuno presumir que a deficiência visual de Rafael se apresenta como um modo de manejo dos pais com a cegueira.

Não tenho a pretensão de atribuir uma das estruturas – neurose, psicose, perversão – a Rafael, nem mesmo alegar que esta cena seja o marco de ingresso a uma delas, mas sim apontar como a reinvenção (no caso, a brincadeira) propicia a elaboração dos operadores de alternância presença-ausência e possibilita a emergência do sujeito. Aproveito para levantar a reflexão com relação à posição da criança diante do Nome-do-pai (significante que marcará diversas formas de o sujeito se posicionar em relação ao discurso e ao desejo do Outro), já que, de acordo com Vorcaro, Machado e Loureiro (2011), a criança ainda não "decidiu" como se posicionará em relação a esse significante: "Uma criança não teria, ainda, atravessado os vários desdobramentos do complexo de Édipo. E, ainda que muitos desses desdobramentos possam já ter se mostrado em sua vida, a criança não teria criado seu modo singular de gerir o seu desejo" (p. 65).

Casos como o de Rafael mostram que essas crianças não estão aprisionadas em seus sintomas e que refletir sobre a direção do tratamento relacionado às questões referentes às posições da criança diante do Outro, da linguagem, da lei etc. é mais profícuo que as tentativas de fechar um diagnóstico estrutural prematuramente.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
renatacgoncalves@hotmail.com
Rua Antônio Donizete, 53
37200-000 – Lavras – MG – Brasil

Recebido em junho/2018.
Aceito em dezembro/2018.

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