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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.24 no.1 São Paulo enero/abr. 2019

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v24i1p62-70 

DOI: 10.11606/issn.1981-1624.v24i1p62-70

DOSSIÊ

 

Educa-me ou te mato!

 

¡Edúcame o te mato!

 

Educate me or I will kill you!

 

 

Roselene GurskiI

IPsicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa). Professora do Departamento de
Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: roselenegurski@terra.com.br

 

 


RESUMO

Temos pensado que a repetição da errância e da marginalidade na trajetória escolar de meninos e meninas que chegam à socioeducação acaba colocando a escola em um lugar complicado, um real não simbolizado em suas vidas. Ao não estarem incluídos nos sonhos e nas utopias educativas de nosso país, ao não serem sonhados como sujeitos educáveis e escolarizáveis, lhes apresentamos, enquanto sociedade, o que eles verbalizam: suas vidas se reduzem a matar ou morrer, ou seja, se encontram com o real da morte. Nesse contexto, abrimos algumas questões que irão nortear este artigo: o que se passa com esses adolescentes que migram da instituição escolar para a socioeducativa? O que temos feito, ou deixado de fazer, para que esses jovens não colem na escola e não se interessem pelo crime? Por que acabam por fazer suas trajetórias de vida junto ao tráfico e não nos bancos escolares? Qual a transmissão que aí não se faz? Que jovens a escola brasileira considera como "seus"?

Palavras-chave: psicanálise; socioeducação; escola; adolescência.


RESUMEN

Hemos pensado que la repetición de la equivocación y de la marginalidad en la trayectoria escolar de niños y niñas que llegan a la socioeducación termina por dejar la escuela en un lugar complicado, un real no simbolizado en sus vidas. Al no estar incluidos en los sueños y en las utopías educativas de nuestro país, al no ser soñados como sujetos educables y escolarizables, les presentamos, como sociedad, lo que ellos verbalizan: sus vidas se reducen a matar o a morir, o sea, se encuentran con el real de la muerte. En ese contexto, abrimos algunas cuestiones que van a guiar el presente artículo: ¿Qué pasa con esos adolescentes que migran de la institución escolar a la institución socioeducativa? ¿Qué hemos hecho, o dejado de hacer, para que esos jóvenes no se interesen por en la escuela y se interesen más por el crimen? ¿Por qué acaban por tener sus trayectorias de vida junto al tráfico, pero no en los bancos escolares? ¿Cuál es la transmisión que no se hace? ¿Qué jóvenes la escuela brasileña les considera como "suyos"?

Palabras clave: psicoanálisis; socioeducación; escuela; adolescencia.


ABSTRACT

We have thought that the repetition of the wandering and the marginality in educational trajectory of boys and girls who arrive at socio-education ends up putting the school in a complicated status, a real not symbolized in their lives. By not being included in the educational dreams and utopias of our country, by not being dreamed as educable and schooling subjects, we present to them, as a society, what they verbalize: their lives are reduced to killing or dying, that is, they meet the real of death. In this context, some questions that will guide this article are presented: What happens to these adolescents who migrate from school to the socio-educational institution? What have we done, or failed to do, so that these young people do not stick to school and are more interested in crime? Why do they end up doing their life trajectories with the traffic, not with the school seats? What is the transmission that is not there? What young people does the Brazilian school consider as "theirs"?

Keywords: psychoanalysis; socio-education; school; adolescence.


 

 

Provocada pela instigante questão que nos reúne neste dossiê "Escola consumida ou consumada?" e, mais especificamente, convocada pela pergunta "que escola para os nossos adolescentes?", gostaria de desdobrar algumas ideias acerca da adolescência com a qual tenho me envolvido nos últimos anos1, os jovens denominados em conflito com a lei – os adolescentes da socioeducação2 – e sua relação com a escola pública no Brasil.

O que se passa com esses adolescentes que migram da instituição escolar para a socioeducativa? O que temos feito, ou deixado de fazer, para que esses jovens não colem na escola e não se interessem pelo crime? Por que acabam por fazer suas trajetórias de vida junto ao tráfico e não nos bancos escolares? Qual a transmissão que aí não se faz? Quais adolescentes, afinal, consideramos como "nossos"? Que jovens a escola brasileira considera como "seus"?

Se em outros momentos os debates educativos acerca da inclusão se debruçavam sobre a problemática das dificuldades de aprendizagem daqueles que estavam na escola sem conseguir acompanhar as premissas educativas nacionais, mais atualmente, com o acirramento da crise social expressa na marginalização e segregação de uma parte importante da população, a urgência parece estar depositada nas diversas problematizações daqueles que ficam fora do sistema escolar; daqueles que se debatem em certo limbo das margens, que entram e saem da escola sem conseguir forjar um lugar consistente do ponto de vista da aprendizagem e da inserção social.

O trabalho, ao longo de alguns anos, com o tema da violência juvenil, levou-nos quase naturalmente ao âmbito da socioeducação. Começamos interrogando os fenômenos de violência juvenil com jovens de classe média e alta3, depois passamos a nos perguntar sobre as intervenções com adolescentes nas políticas públicas de saúde mental e experimentamos a construção de um dispositivo de escuta com adolescentes junto a uma equipe da Estratégia Saúde da Família (ESF) de uma das regiões mais empobrecidas da cidade de Porto Alegre. Nessa trajetória, voltamos nossa atenção para as questões da socioeducação, pois, ao passoque avançávamos neste trabalho, as estatísticas de adolescentes com medidas socioeducativas aumentavam. Assim, em meio às pesquisas e intervenções no formato de rodas de conversa e rodas de RAP – Ritmos, Adolescência e Poesia (Gurski, 2017; Gurski & Strzykalski, 2018a, 2018b) no âmbito da socioeducação, algumas questões sobre a relação desses jovens com a educação escolar foram surgindo4.

Cabe explicitar que as Rodas de R.A.P. – aproveitamos o efeito equívoco que se forja com as iniciais do gênero musical rap (rhythm'n'poetry) para formar as rodas de ritmos, adolescência e poesia – são um dispositivo de escuta baseado na livre circulação da palavra em conjugação com narrativas musicais escolhidas pelos meninos. Por meio dos relatos das bolsistas-pesquisadoras que os acompanhavam, articulamos e problematizamos aquilo que ia se produzindo no discurso dos jovens a partir do encontro com as narrativas musicais e os mais variados aspectos de suas vidas. Dentre as enunciações que apareciam, via Rodas de R.A.P., falavam da aridez das ruas e dos sentidos únicos de suas vidas secas: "lá fora dona não dá tempo de parar e pensar, é matar ou morrer" (Gurski, Strzykalski & Rosa, no prelo). Acerca das inúmeras experiências doloridas, também falavam da relação com a escola: "Dona, eu não abandonei a escola, foi ela que me abandonou". Essa fala foi produzida por um dos adolescentes, que cumpria medida de privação de liberdade, durante uma das referidas rodas de R.A.P. Deste modo, o jovem formulou uma resposta à questão endereçada a ele pela agente socioeducativa: "Ei, guri, por que tu abandonou a escola?". A resposta imediata do menino despertou nossa atenção especialmente porque sabemos o quanto esse questionamento, feito pela trabalhadora, é atravessado por um discurso compartilhado socialmente que, frequentemente, localiza a relação entre adolescência, abandono escolar e entrada no sistema socioeducativo a partir de uma via de mão única, não raro centrada na responsabilização individual do jovem pelo abandono (Gurski & Strzykalski, no prelo).

Em contraponto a essa visão, a posição do menino acabou por renovar uma discussão que Paulo Freire (1991) fazia com muita desenvoltura. O educador propunha pensar o abandono do alunado brasileiro da periferia no seu avesso; não eram os jovens que se retiravam da escola, mas a escola, com sua configuração e cultura intolerantes com as diferenças de todas as ordens, raciais, sociais, cognitivas e outras, que os expulsava da educação formal.

Nesses espaços de pesquisa-intervenção que desenvolvemos junto aos meninos e aos trabalhadores da socioeducação, também registramos a presença de uma relação bastante paradoxal com a aprendizagem formal. Em alguns momentos, eles falam da escola como uma ponte, uma porta para o futuro. Interrogam o funcionamento da universidade e demonstram muita curiosidade pela vida estudantil das bolsistas; já por outro lado, a universidade aparece em suas narrativas como algo muito distante e mesmo inalcançável, pois, quando se trata de realmente falarem de um amanhã, a perspectiva se torna "matar ou morrer", ou no máximo, "fazer seu próprio embolamento" – associar-se oficialmente a uma facção do tráfico. Ou seja, qual o futuro possível para os jovens de nosso país, quando não se autorizam a sonhar com uma perspectiva de vida? Quando não conseguem se imaginar produzindo algo diferente da morte e do tráfico?

Temos adensado, no âmbito de nosso Programa de Pós-graduação em Psicanálise: clínica e cultura5, um debate importante acerca dos caminhos para fazermos uma psicanálise no Brasil6. Referimo-nos à necessidade premente de nós, psicanalistas deste tempo social, operarmos uma reflexão consistente sobre as novas demandas dirigidas à Psicanálise.

Desde a descoberta freudiana, a psicanálise tem estado onde o desamparo está; buscando fazer-se presente nas situações nas quais os efeitos de sujeito, também do ponto de vista do laço social, estão colocados (Gurski, 2018, no prelo). Segundo Koltai (2014, p. 21), já nos primórdios freudianos, quando o fundador da psicanálise elaborou um método de cura pela palavra, lá onde a medicina fracassara, ficou clara a concepção de que o "desejo do analista remete tanto ao particular de uma análise . . ., quanto ao mundo em que vivemos".

Deste modo, seguindo alguns preceitos originais da psicanálise freudiana, temos buscado ampliar o diálogo com as políticas públicas de educação, saúde e assistência social, especialmente por meio da tentativa de construir dispositivos de escuta e intervenção fora da clínica padrão.

Uma das inquietações que nos acompanha no trabalho com aqueles que migram da educação para a socioeducação refere-se à pergunta: afinal, o que se passa nas condições que ofertamos aos adolescentes nas escolas públicas de nosso país, especialmente quando vemos, com tanta frequência, a passagem rápida da escola para o crime e para o tráfico e uma chegada tantas vezes precoce na morte, como é o caso de muitos adolescentes da periferia.

Não são poucas as estatísticas e mesmo os trabalhos que apontam para uma espécie de genocídio da população jovem e negra em nosso país. Temos percentuais de mortes de adolescentes da periferia que se assemelham a países em guerra. Neste âmbito dos números, é interessante perceber que o maior contingente de jovens em situação de privação de liberdade, segundo estatísticas da Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul (Fase/RS), está entre 16 e 18 anos, o que representa 81% de todos internos (Fundação de Atendimento Sócio-Educativo, 2015).

O interessante é que as estatísticas mostram que os atos infracionais desses sujeitos, na grande maioria, não são graves. O roubo é o crime que mais acomete essa parcela dos adolescentes, representando 40% das infrações; em segundo lugar estão os homicídios, com 13,5%. Outro dado bastante impressionante divulgado esse ano pelo Movimento Educação para Todos, baseado nos registros da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2015), é de que temos 2,5 milhões de crianças e jovens fora da escola, sendo que destes, 1,5 milhão estão na faixa dos 16-18 anos. Ou seja, o grupo entre 16 e 18 anos, que se encontra no topo da evasão escolar, coincide com a idade daqueles que tem maior volume de infrações nas instituições socioeducativas.

Diante destes dados nos perguntamos, será que a socioeducação poderia ser pensada como um capítulo que se introduz quando a educação não consegue fazer sua função? Algumas produções atuais, como a pesquisa de doutorado do jornalista e sociólogo Marcos Rolim (2016), sublinham que, no Brasil, os jovens da periferia são precocemente excluídos da escola, sendo acolhidos e socializados por grupos ligados ao crime e, mais especificamente, ao tráfico.

Um dos traços que se observa nas histórias de vidas desses meninos e meninas da socioeducação é realmente uma passagem frágil e em geral sintomática pela escola. A produção do mal-estar na escola fica, muitas vezes, associada a situações de agressividade e violência. Muitos dos adolescentes em conflito com a lei foram crianças que apresentaram problemas de aprendizagem, de socialização e que, depois de repetirem vários anos na escola, ao chegarem à adolescência acabaram virando estatísticas de evasão escolar (Gurski, 2017).

Vemos assim que a distância com a escola, a não inclusão dos adolescentes em uma rede de cuidados e de intervenções que possa levá-los a construir outras nomeações de si, os deixam vulneráveis à sedução da rede do tráfico e da posição de um Outro7 que se apresente como total, um Outro imaginariamente sem falta. Como refere Rassial (1999), a adolescência é um momento em que se dá o que ele denomina de pane do Outro.

O sujeito, ao despertar do sonho do Édipo, depara-se com as questões relativas ao tema do sexo e da morte, o que, é claro, produz um encontro de modo derradeiro com a dimensão da falta e da castração. A essas questões que se problematizam na passagem adolescente, produzindo um quantum tantas vezes excessivo de angústia e mal-estar, costumamos chamar de furo no saber (Lacadée, 2011; Viola, 2017). Esse tempo, em que o saber e o gozo ficam desalojados, caracteriza-se pela busca por uma resposta para o enigma posto pela sexualidade e pela angústia por ter de falar em nome próprio (Lacan, 1974/2003).

É o momento, do ponto de vista psíquico, em que o sujeito muda sua posição de gozo na relação com o Outro. Nesse sentido, os adultos que até então gozavam de um lugar de "tudo saber", sofrem os efeitos de erosão de sua aparente (oni)potência. A clínica com adolescentes, ou ainda, a sintomatologia juvenil atual mostra que a resistência a encarar a castração e seus avatares faz parte da liturgia adolescente – até pela ausência de recursos passiveis de elaborar a dimensão da falta. De algum modo, na ausência de outros recursos simbólicos, sintomas tais como o conflito com a lei e o encontro com o crime, em uma parcela dos jovens, vêm para ancorar o sujeito nessa nova configuração. Nesse diapasão, o surgimento da figura do chefe do tráfico, do líder da facção e do fanático religioso – entre outros que se apresentam como mestres do gozo –, aparecem, justamente, pela busca de uma resposta rápida cujo fim seria suturar o vazio e responder ao enigma posto pelas questões dessa passagem.

Junto a essa discussão, gostaríamos de associar uma recente produção cinematográfica que justamente aborda o tema da adolescência na escola pública no Brasil. Referimo-nos ao belo documentário de Cacau Rhoden (2017), chamado Nunca me sonharam. O diretor rodou diversas regiões do país e conversou com jovens e educadores de diferentes escolas públicas de ensino médio sobre seus sonhos, projetos, expectativas e frustrações; o resultado foi uma narrativa constituída por uma bricolagem de expressões tão potentes quanto nomeadoras de nossas vastas confusões8, quando o assunto é educação.

O título do filme é justamente uma expressão recolhida da fala de Felipe Lima, um adolescente de Nova Olinda, município do interior do Ceará que, ao contar sobre o que sua família esperava de seu futuro, diz "acho que nunca me sonharam . . . Nunca me sonharam psicólogo, nunca me sonharam sendo um professor, um médico. Eles não sonhavam e não me ensinaram a sonhar".

Rhoden (2017) parece fazer o que, muitas vezes, nós fizemos em nossos trabalhos e pesquisas. O diretor ofertou um espaço de escuta, dando a oportunidade para que jovens de diversos pontos esquecidos do país falassem de si, de seus sonhos, de suas inquietações relativas à escolarização e à educação.

Sublinho que nossa intenção não é pensar nessa narrativa do ponto de vista fílmico. Neste escrito, não evocamos o filme a fim de fazer uma exegese de sua montagem ou mesmo de suas condições de produção. Interessa-nos, sobretudo, o efeito interpretativo que o diretor produziu quando recolheu a fala de Felipe e a utilizou para nomear o documentário.

Queremos, sobretudo, destacar que o diretor, ao nomear seu filme com essa expressão da fala do adolescente cearense, operou de modo analítico, produzindo uma intervenção clínico-política. Além de nomear a mítica fundadora de Felipe, ele interpretou a trajetória, tantas vezes desastrosa desses jovens, dando um outro nome ao que frequentemente é chamado de fracasso escolar ou dificuldade de aprendizagem. O jornalista Marcus Faustini (2017) escreveu, em um artigo no jornal O Globo, que a expressão de Felipe "nunca me sonharam" é uma das enunciações mais políticas e poéticas já proferidas na história da educação e do audiovisual em nosso país.

Extrair a dimensão política da fala de Felipe produz caminhos para pensar a relação da adolescência com a escola e, de algum modo, dialoga com o pequeno comentário de Freud (1910/1969), quando, em uma reunião da sociedade psicanalítica de Viena, na qual o tema era o suicídio de crianças e adolescentes, sublinhou que a escola secundária deveria fazer mais do que deixar de impelir os jovens para o suicídio; deveria lhes transmitir a vontade de viver, pois se trata de uma época em que os sujeitos estão afrouxando os laços com os pais e precisam de um outro espaço para investir o seu despertar no mundo lá fora.

O tema do despertar do jovem para a vida lá fora, para a sexualidade, para a dimensão da falta e da castração, pode ser tomado como a própria operação psíquica da adolescência. É no despertar do sonho de Édipo que o púbere toma nas mãos a responsabilidade de fazer uma versão de si. Nesse sentido, a adolescência talvez possa ser pensada como o verdadeiramente novo do sujeito, aquilo que esse despertar pode acrescentar como um passo além do Outro (Barbosa, 2012). Momento de realizar certo deciframento do enigma de quem lhe sonhou. Ao fazer polissemia da demanda do Outro, o adolescente pode criar e fazer seu o que recebeu (Gurski, 2012). Nesse sentido, o despertar da adolescência pode ser tomado como um gesto também político, quando o sujeito, ao despertar do sonho da infância, inscreve sua marca e seu novo no mundo.

Porém, do que se trata quando, como diz Felipe, no lugar do sonho enquanto enigma, apresentam-se condições que lhes fixam a determinado lugar na cultura, quase como um vaticínio vindo do Outro social? Como disse outro adolescente em privação de liberdade na Fase: "dona, ganhei uma bolsa em um curso de inglês, mas não consegui ficar, não era prá mim, só tinha playboy por lá, vazei". A partir dessa pequena narrativa, fica evidente que o oferecimento de meios concretos de acesso à educação não garantem condições de permanência. É preciso que exista um discurso, sustentado coletivamente no laço social, que seja capaz de oferecer traços de pertencimento com os quais o sujeito possa vir a se identificar ao campo educativo (Gurski & Strzykalski, no prelo).

Adorno (2003), no texto "Educação após Auschwitz", insiste com um apontamento de Hannah Arendt (1999), atualmente retomado por Giorgio Agamben (2008): que estejamos atentos às condições banais do laço social, pois foram as banalidades que deram origem ao genocídio de milhões na Alemanha. No texto, que inicialmente foi uma fala para um programa de rádio no ano de 1967, Adorno destaca que a função fundamental da educação é impedir o retorno à barbárie, não permitindo que Auschwitz se repita.

Nesse sentido, temos que falar do genocídio no plural que já opera em nosso país. Além do morticínio de jovens, os índices de abandono da escola nos últimos anos do ensino fundamental e as taxas muito baixas de matrículas no ensino médio mostram que os adolescentes, ao menos os das classes populares, já não tomam a instituição escolar como um lugar de transmissão de possibilidades para o futuro. A escola já não lhes transmite o desejo de viver. É nesse sentido que Dunker (2017) evoca a expressão "a morte do futuro" ao fazer um comentário sobre o filme em questão (https://bit.ly/2KojwpC).

Talvez o fato de aceitarmos tacitamente a situação de exclusão educacional dos jovens menos favorecidos seja uma das expressões da desumanidade que Paul Valery (citado por Adorno, 2003), ainda antes da Segunda Guerra, previa como tendo um grande futuro pela frente. A naturalização com que olhamos para a distância que esses jovens tomam de um projeto de vida pela via da educação e da escolarização já indica a presença de um futuro empobrecido de perspectivas. Nesse sentido, com relação a esses jovens, talvez pudéssemos inverter a pergunta inicial deste escrito: que adolescente para a escola?

Felipe, o rapaz que emprestou sua fala para o título do filme de Cacau Rhoden, tem toda a razão, só se constrói um lugar de inscrição na medida em que há um estofo simbólico, na medida em que o sujeito esteve inscrito no sonho de um Outro. Este Outro a que me refiro aqui são também os rumos das políticas públicas de educação dirigidas à infância e juventude do país.

A repetição da errância e da marginalidade na trajetória escolar desses meninos e meninas que chegam à socioeducação nos faz pensar que a escola acaba colocada como um real não simbolizado em suas vidas. Diferente do discurso pronto, que alguns deles repetem, de que o colégio seria uma porta para o futuro, vários acabam exilados do direito de pertencerem à escola como um espaço de construção de seu despertar.

Ao não estarem incluídos nos sonhos e nas utopias educativas de nosso país, ao não serem sonhados como sujeitos educáveis e escolarizáveis, lhes apresentamos o que eles verbalizam: suas vidas se reduzem a matar ou morrer, ou seja, se encontram com o real da morte. Talvez possamos pensar que com um futuro pautado pela morte, esses jovens devolvem ao país, com seus atos infracionais, o real que recebem como simbólico: EDUCA-ME OU TE MATO!

 

Referências

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Recebido em  novembro/2018 – Aceito em fevereiro/2019.

 

 

1 Refiro-me às pesquisas no campo da Psicanálise e Socioeducação que temos desenvolvido desde o Eixo III: Psicanálise, Educação, Adolescência e Socioeducação do NUPPEC – Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura. Para outros detalhes, ver https://www.ufrgs.br/nuppec/.
2 A noção de socioeducação surgiu a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Esse termo marca uma nova concepção de intervenção com adolescentes que cometeram ato infracional. O termo socioeducação está intimamente ligado à Doutrina de Proteção Integral, que veio substituir a Doutrina da Situação Irregular, a qual preconizava, entre outras coisas, a Fundação do Bem-Estar do Menor (Febem).
3 Essas questões resultaram dos estudos de doutorado da autora e estão trabalhadas no livro "Três ensaios sobre juventude e violência" (Gurski, 2012).
4 Esse artigo é fruto das pesquisas e extensões realizadas pela autora no campo da Psicanálise e Socioeducação, especialmente, a pesquisa "Os jovens em conflito com a lei, a violência e o laço social" (Edital Universal CNPq 447672/2014-2). Agradecemos o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por meio do financiamento deste estudo.
5 Discussão gerada a partir da Conferência proferida pelo Prof. Marcelo Ricardo Pereira (UFMG) e pela Prof. Ana Cristina Figueiredo (Uerj) por ocasião da III Jornada do PPG de Psicanálise: clínica e cultura que ocorreu na UFRGS, em setembro de 2017
6 Não se trata de uma psicanálise brasileira, assim como poderíamos pensar em uma psicanálise francesa ou argentina. Sabemos que a psicanálise, apesar de não ser uma weltanschauung, como já apontava Freud (1933/1976), trata de uma determinada concepção de sujeito, por isso independente do contexto no qual esteja inserido, aquilo que a caracteriza é a noção de que é a outra cena, o inconsciente que origina o sujeito.
7 Para tratar da constituição psíquica, Lacan diferencia duas instâncias: o chamado "pequeno outro", que seria o semelhante, o parceiro imaginário; e o "Outro" (grande Outro), que ele conceitualiza como a instância simbólica e, portanto, da linguagem. Esta última é a instância que determina o sujeito, sendo de natureza anterior e exterior a ele; lugar da palavra, do tesouro dos significantes (Lacan, 1954-1955/2010).
8 Essa expressão se inspira no título do livro de Ana Cristina Figueiredo, Vastas confusões e atendimentos imperfeitos (1997).

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