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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.24 no.1 São Paulo Jan./Apr. 2019

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v24i1p84-97 

DOI: 10.11606/issn.1981-1624.v24i1p84-97

ARTIGOS

 

Linguagem, cognição e psiquismo: análise do brincar de dois bebês com histórico de sofrimento psíquico

 

Lenguaje, cognición y psiquismo: análisis del brincar de dos bebés con histórico de sufrimiento psíquico

 

Language, cognition and psychism: analysis of the playing of two babies with history of psychic suffering

 

 

Ana Paula Ramos de SouzaI; Antônia Motta Roth Jobim van HoogstratenII; Inâe Costa RechiaIII; Maria Fernanda Almeida SilvaIV; Sabrina Felin NunesV; Tamires Dias dos SantosVI

IFonoaudióloga e professora do Departamento de Fonoaudiologia e dos Programas de Pós-Graduação em Distúrbios da Comunicação Humana e de Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, RS, Brasil. E-mail: ana.souza@ufsm.br
IIPsicóloga e doutoranda em Distúrbios da Comunicação Humana na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, RS, Brasil. E-mail: antoniamroth@gmail.com
IIIFonoaudióloga e professora na Área de Audiologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, RS, Brasil. E-mail: inaerechia@gmail.com
iVPsicóloga e mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, RS, Brasil. E-mail: mfas86@hotmail.com
VFisioterapeuta e doutoranda em Distúrbios da Comunicação Humana na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, RS, Brasil. E-mail: sah_felin@hotmail.com
VIPsicóloga e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Distúrbios da Comunicação Humana da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, RS, Brasil. E-mail: tamiresdds@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo analisa a evolução linguística e cognitiva de dois bebês em sofrimento psíquico, um deles com risco para estruturação autista e outro não autista, e compara dois instrumentos de identificação do risco psíquico, os Indicadores Clínicos de Risco/Referência ao Desenvolvimento Infantil (IRDI) e o Modified Checklist for Autism in Toddlers (M-CHAT). A análise do brincar evidenciou atraso de linguagem e cognitivo em ambos os casos, sendo esse atraso mais importante no caso de risco para autismo. O IRDI conseguiu diferenciar melhor a direção da estruturação psíquica do que o M-CHAT.

Palavras-chave: psicanálise; risco psíquico; autismo; desenvolvimento infantil; linguagem infantil.


RESUMEN

Este trabajo tiene como objetivo analizar la evolución lingüística y cognitiva de dos niños en sufrimiento psíquico, uno de ellos en riesgo de autismo y otro en riesgo de una estructura no autista, y comparar dos instrumentos de identificación del riesgo psíquico, los Indicadores Clínicos de Riesgo para el Desarrollo Infantil (IRDI) y la Lista de Verificación Modificada para el Autismo en Niños Pequeños (M-CHAT). El análisis del juego mostró un retraso cognitivo y en el lenguaje en ambos casos, siendo este retraso más importante en el caso de riesgo de autismo. Los IRDI lograron diferenciar mejor la dirección de estructuración psíquica que la M-CHAT.

Palabras clave: psicoanálisis; riesgo psíquico; autismo; desarrollo infantil; lenguaje infantil


ABSTRACT

This paper aims to analyze the linguistic and cognitive evolution of two babies in psychic suffering, one of them at risk for autism and the other one with non-autistic structuring, and compares two instruments of identification of psychic risk, the Clinical Indicators of Risk/Reference to Child Development (IRDI) and the Modified Checklist for Autism in Toddlers (M-CHAT). The analysis of playing showed a delay in language and cognitive in both cases, being this delay more important in the case of risk for autism. IRDI managed to better differentiate the direction of psychic structuring than M-CHAT.

Keywords: psychoanalysis; psychic risk; autism; child development; children's language.


 

 

A conexão entre o brincar, a linguagem e o psiquismo é visível na avaliação da constituição linguística e psíquica infantil, tanto em trabalhos clássicos (Wallon, 1979; Winnicott, 1975) quanto em trabalhos mais recentes (Kupfer, Jerusalinsky, Infante, & Bernardino, 2008; Vendrúscolo & Souza, 2015). A análise do brincar permite diferenciar casos de risco para emergência de uma psicose de casos em que há uma constituição rumo ao autismo (Bernardino, 2016; Kupfer, 2000; Kupfer et al., 2008).

A definição de Transtorno Espectro Autista (TEA) pelo Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, em sua 5ª edição (DSM-5) (American Psychiatric Association, 2014) acabou por reduzir a diferenciação entre a psicose e o autismo, definida no campo psicanalítico (Kupfer, 2000; Laznik, 2016). Segundo Sibemberg (2015), isso se dá porque o TEA inclui as psicoses não decididas na infância. Essa diferença estrutural entre as duas posições subjetivas pode ser evidenciada, como sugere Jerusalinsky (2015), a partir da posição que a criança assume na linguagem. Nesses termos, diante da demanda vinda do Outro, no autismo há a recusa, o evitamento. Faz-se necessário muito investimento por parte do Outro para que a criança com sinais de risco para o autismo devolva-lhe uma resposta. Por outro lado, na psicose há uma relação com a linguagem, entretanto, a demanda do Outro é tomada como mandato, num sentido unívoco, impossibilitando à criança lançar-se enquanto sujeito (Sibemberg, 2015). Nesses casos, também se podem verificar dificuldades no processo de apropriação da linguagem, tendo em vista que o processo de suposição de sujeito também está prejudicado.

A posição no brincar também é distinta, enquanto no autismo existem características como as dificuldades na imaginação e simbolização, com manejo do objeto de modo estereotipado e como defesa na relação com o outro, nas psicoses não decididas há características de relação objetal do tipo fetiche, e o objeto serve como forma de evitar a angústia proveniente da separação. Enquanto no autismo o objeto é mais importante do que quem está na posição materna, no risco de psicose a pessoa que está na posição materna ainda é mais importante do que o objeto (Graña, 2008).

Diante da possibilidade de se pensar o processo de aquisição da linguagem e da constituição psíquica, em casos de bebês com risco psíquico, este artigo tem por objetivo analisar qualitativamente a filmagem do brincar de dois bebês com 24 meses com suas mães, sendo um deles com sinais de risco para uma estruturação autista e o outro com risco de psicose. Busca-se, ainda, relacionar essa análise com a evolução de linguagem e cognição dessas crianças.

 

Método

Desenho

Esta pesquisa constituiu-se em um estudo de casos longitudinal, de caráter qualitativo, em que os sujeitos foram submetidos a avaliações de linguagem, cognição e de risco psíquico nos primeiros 24 meses de vida. A amostra de conveniência foi composta por dois casos escolhidos em uma amostra maior de crianças acompanhadas no projeto de pesquisa aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade, sob o número de CAEE 28586914.0.0000.5346. Os critérios de escolha dos sujeitos para este estudo de casos foi a presença da variável risco psíquico nos 18 primeiros meses de vida e alterações de linguagem e/ou cognição aos 24 meses.

Procedimentos de coleta e análise

A proposta deste estudo foi analisar dois casos, a partir da história desses dois sujeitos, os resultados de suas avaliações (realizadas aos três, seis, nove, 12, 18 e 24 meses) e as filmagens da interação mãe-bebê realizadas aos 24 meses. Na avaliação de risco psíquico foram utilizados os Indicadores Clínicos de Referência/Risco ao Desenvolvimento Infantil (IRDI) (Kupfer, et al., 2008) e o Modified Checklist for Autism in Toddlers (M-CHAT) (Muratori, 2014). Para a avaliação da linguagem e cognição foi utilizada a Escala Bayley III (Bayley, 2006).

O IRDI é um roteiro com 31 indicadores pensados a partir da teoria psicanalítica e que possui como objetivo indicar possíveis sinais de risco à constituição psíquica e ao desenvolvimento infantil nos primeiros 18 meses de vida. Os indicadores são avaliados em quatro faixas etárias diferentes e baseados em quatro eixos teóricos: estabelecimento de demanda; suposição de sujeito; alternância presença e ausência; e função paterna (Kupfer, et al., 2008).

O M-CHAT, por outro lado, é um instrumento utilizado a partir dos 18 meses, com a finalidade de identificar a emergência da intersubjetividade e, em sua ausência, o risco de autismo. Apresenta 23 questões, e foi utilizado nesta pesquisa pela valorização que possui na literatura internacional como um teste sensível e específico para triagem de autismo (Muratori, 2014).

A escala Bayley III é um instrumento indicado para a avaliação de crianças de um a 42 meses de idade, com ou sem deficiência. A avaliação do desenvolvimento é realizada em cinco domínios: cognitivo, motor, linguístico, socioemocional e comportamento adaptativo. Envolve atividades com brinquedos que facilitam a interação do bebê/criança com o examinador (Bayley, 2006). Para esta pesquisa, cuja aplicação foi realizada por terapeuta com formação específica no protocolo, foram utilizados os subitens linguagem e cognição. A linguagem é subdividida em comunicação receptiva e expressiva.

Ainda, a partir de roteiro elaborado especificamente para esta pesquisa – cujo objetivo foi analisar as dimensões cognitiva e psíquica do brincar e aspectos linguísticos nas interações mães-bebês (Anexo I) –, foram analisados vídeos de interação das mães com seus bebês e desses com o examinador, por 15 minutos. Na elaboração do roteiro, os trabalhos de Novaes e Barzaghi (2014) e de Graña (2008) serviram de base para consideração da cognição e da constituição psíquica na análise das juízas. Duas psicólogas do grupo de pesquisa, P1 e P2, com mais de três anos de experiência em pesquisa com bebês, e que não tiveram contato com as coletas dos 24 meses, realizaram a análise dos vídeos a partir dos roteiros.

 

Resultados

A seguir, os dois casos são apresentados: R. e S.

O caso R

Histórico e avaliações

R, um bebê do sexo masculino, nasceu de 39 semanas, pesando 2,905 kg. Não foi planejado, mas passou a ser muito desejado pela mãe quando ela tomou conhecimento da gravidez. A gestação teve acompanhamento pré-natal, apesar de ter sido um período difícil, porque ela descobriu que o pai de R também estava esperando um filho com outra mulher. R, ao nascimento, R apresentou hiperbilirrubinemia, que pode trazer riscos ao desenvolvimento neurológico, de modo especial para a maturação auditiva.

Considerando os aspectos psicossociais e do desenvolvimento, observou-se no relato da mãe que, por volta dos três meses, R permanecia em cercadinho ou na cama de barriga para cima, enquanto ela fazia as atividades domésticas. Para chamar a mãe, costumava chorar, gritar e olhar para ela. A mãe conversava com ele sempre que estava acordado e quando o fazia dormir. Mas, desde muito cedo, percebia que precisava chamar seu filho muitas vezes para que ele respondesse ao seu chamado. Além disso, a mãe também relatou que R sentia-se incomodado com cólicas e com refluxo.

Salienta-se que, apesar de a amamentação ser mista, a partir do sétimo dia de vida, com leite antirrefluxo, as dificuldades alimentares permaneceram até os 24 meses, tendo em vista que R apresentou dificuldades na transição alimentar para alimentos semi-sólidos e sólidos, a partir dos seis meses. Tais dificuldades evidenciaram um quadro de restrição alimentar, e a equipe de pesquisa solicitou uma avaliação sensorial aos 12 e aos 24 meses.

R recebeu intervenção terapêutica, que ocorreu entre 10 e 12 meses (relatada no estudo de Peruzzolo, 2016). A partir da intervenção, percebeu-se que R pôde estabelecer o terceiro tempo do circuito pulsional em algumas ocasiões, mas a impossibilidade de a mãe continuar a levá-lo à intervenção não permitiu que se revertesse totalmente o risco psíquico (Peruzzolo, 2016).

Além da seletividade alimentar, R também apresentava sinais de hipersensibilidade a sons, luzes e lugares cheios. O menino se assustava com barulho, procurava a voz materna, acalmando-se ao ouvi-la. Essa hipersensibilidade aos sons foi se intensificando com a idade, a ponto de a mãe ter de levá-lo a um quarto escuro e silencioso para que ele se acalmasse quando ficava muito incomodado ou nervoso, sobretudo diante da presença de visitas na casa. A mãe também relatou que, por esses motivos, o menino tinha grande dificuldade em frequentar lugares públicos. Mesmo assim, ela relatou que conseguia estabelecer uma relação com ele. Ela o definia como uma criança extremamente irritada, arisca e de difícil convívio. Ela também relatava que o pai de R apresentava características semelhantes.

Segundo a mãe, a chegada do filho a deixou feliz. Ela afirmava que ele era "tudo" para ela. Contudo, as dificuldades com o pai de R permaneceram ao longo do primeiro ano do menino e o casal acabou se separando.

Em termos de avaliação com o IRDI, na fase I, observou-se que quatro dos cinco indicadores estavam ausentes, são eles: o fato de a mãe não saber identificar o que a criança queria quando chorava ou gritava (indicador 1); a criança não reagir ao manhês (indicador 3); a mãe propor algo a criança e não esperar por sua resposta (indicador 4); e ausência de uma troca continuada de olhares entre R e sua mãe (indicador 5). Nessa avaliação evidenciou-se que a mãe chamava-o incessantemente, cantava para ele, tocava-lhe e, sem oferecer-lhe turno de fala, buscava chamar sua atenção diante de sua tentativa de estabelecimento de relação. Por vezes, R chegava a se esquivar dos estímulos visuais, sonoros e tácteis da mãe. Por esse motivo, a equipe sugeriu a intervenção precoce, visto que havia evidências de risco para autismo, já que ele não buscava espontaneamente o outro (Kupfer, 2000; Olliac et al. , 2017).

O risco psíquico permaneceu na avaliação dos indicadores da fase II do roteiro IRDI e se tornou ainda mais evidente quando estiveram ausentes os indicadores 8, 9, 11, 12, 13 e 15. O indicador 8 se refere à possibilidade de R solicitar a mãe e fazer um intervalo para aguardar a resposta; o 9 está relacionado ao fato da fala materna ser construída a partir de pequenas frases para a melhor compreensão do bebê; o indicador 11 avalia se o bebê procura ativamente o olhar materno; o indicador 12 observa se a mãe dá suporte às iniciativas da criança sem poupar-lhe o esforço; o indicador 13 se refere ao fato de a criança ser capaz de pedir ajuda de outra pessoa sem ficar passiva; e o indicador 15 está relacionado a R não buscar ativamente trocas amorosas com sua mãe.

R se apresentou fechado em alguns momentos e aberto em outros. Isso, de certa forma, explica o fato de não terem sido evidenciados os indicadores 17, 20, 21 e 22 na fase III do roteiro IRDI. Lembrando que: o indicador 17 avalia se mãe e criança compartilham uma linguagem particular; o indicador 20 analisa se a criança faz gracinhas; o indicador 21 observa se a criança busca o olhar de aprovação do adulto; e o indicador 22 se relaciona à aceitação de alimentação semissólida, sólida e variada. Todos esses indicadores ausentes são compatíveis com o fato de o bebê não estar plenamente instalado na comunicação e continuar evidenciando risco de autismo, apesar da intervenção realizada entre 10 e 12 meses.

Quando R estava com 18 meses, na fase IV do roteiro IRDI, estiveram ausentes os indicadores que se referem: à criança olhar com curiosidade para o que interessa à mãe (indicador 27); à criança gostar de brincar com objetos usados pela mãe e pelo pai (indicador 28); e aos pais colocarem pequenas regras de comportamento para a criança (indicador 30). Observava-se que R apresentava comportamentos restritos e que buscava brinquedos, como carrinhos, utilizando-os de modo restrito, embora funcional.

Em relação ao M-CHAT, os resultados obtidos por R aos 18 e 24 meses confirmaram a estruturação na direção do autismo. O protocolo considera risco para uma estruturação autista a ausência de dois ou mais sinais críticos, ou três dos 23 indicadores. Dentre os resultados encontrados aos 18 meses, R apresentou seis itens ausentes (2, 4, 8, 11, 20, 22), desses, seis são considerados críticos para a detecção de risco para autismo (Muratori, 2014). Em relação ao M-CHAT avaliado aos 24 meses, R apresentou seis itens ausentes (4, 8, 11, 18, 20, 22).

A partir do relato materno, aos 18 meses, R apresentou como ausentes os seguintes itens do M-CHAT: apresentar interesse por outras crianças (item 2); gostar de brincar de esconder e mostrar o rosto ou de esconde-esconde (item 4); e conseguir brincar de forma correta com brinquedos pequenos (ex.: carros ou blocos), sem apenas colocar na boca, mexer no brinquedo ou deixar o brinquedo cair (item 8). E, aos sinais que eram esperados ausentes, R apresentou três itens presentes: o item 11 – O seu filho já pareceu muito sensível ao barulho?; o item 20 – Você alguma vez já perguntou se o seu filho é surdo?; e o item 22 – O seu filho às vezes fica aéreo, "olhando para o nada" ou caminhando sem direção definida?

Na avaliação do M-CHAT dos 24 meses, além dos itens 4 e 8 permanecerem ausentes os itens 11, 20 e 22 permaneceram presentes, todos indicando risco. R havia começado a apresentar movimentos estranhos com os dedos perto do rosto, como assinalado no item 18. Além desses protocolos, na faixa etária dos 24 meses, o desenvolvimento cognitivo e de linguagem de R também foi avaliado, a partir do Bayley III. Como resultado, evidenciou-se déficit linguístico maior do que cognitivo.

Na cognição obteve 47 pontos, e na linguagem expressiva, 12. Como resultado de seu teste de linguagem receptiva, R obteve a pontuação zero. R não se concentrava ou respondia à fala do interlocutor, o que dificultava saber se podia ou não compreender o que lhe era dito, em termos de processamento auditivo, ou se isso era efeito da falta de laço com o Outro. Sua hipersensibilidade auditiva indicava que o som chegava ao cérebro e, caso houvesse uma dificuldade no processamento da mensagem esta seria no nível interpretativo, o que apenas um exame de processamento auditivo a nível cortical poderia explicitar melhor. No entanto, cabe a observação de que vários itens do Bayley III demandavam o endereçamento de respostas ao interlocutor, o que R não conseguia fazer1.

Análise do brincar

Em relação à linguagem, P2 observou que R não endereçava pequenas palavras à sua mãe ou mesmo buscava comunicar-se com ela com o próprio corpo. Além disso, para ambas as juízas, ficou evidente que R não convocava sua mãe ou a convidava para juntar-se a ele na brincadeira, tomando-lhe como uma interlocutora. Mesmo assim, ao longo dos 15 minutos de filmagem, P2 argumenta que, em uma única cena, R convocou a mãe para o brincar, pedindo que repetisse uma brincadeira do carrinho, buscando sua perna.

Nessa mesma direção, P1 observou que R fazia pouco contato visual e poucas trocas com a mãe. P2 afirma que apesar de R buscar o contato com a mãe em momentos que buscava seu colo, o contato com o objeto era mais importante do que com ela. Ele chegava a utilizar os carrinhos em seu uso funcional, mas os mantinha próximos a seu corpo, evitando a troca com o Outro.

Quanto ao comportamento materno, P1 observou que a mãe tendia a oferecer novos objetos de maneira forçada, tentando incluir-se na interação com R, e demonstrava dificuldade de perceber as brincadeiras de interesse de R. Enquanto a mãe falava do pai do menino à examinadora, R demonstrou certo incômodo e enunciou "papai". Apesar dessa fala, demonstrava atraso na linguagem, se considerados os parâmetros de produção de fala e engajamento no diálogo para um bebê da sua idade. P2 observou que a mãe precisava esforçar-se muito para fisgar a atenção do filho. Isso fazia com que a mãe fizesse uma grande estimulação, falando e descrevendo as ações, o que, por vezes, dificultava que R tivesse turno para se manifestar.

Em relação à dimensão cognitiva do brincar, P1 afirmou que R realizava exploração sensório-motora dos objetos com suas mãos e buscava objetos com movimentos espontâneos. Demonstrava estar na transição da exploração sensório-motora para o uso funcional de objetos. Ele realizava algumas imitações, utilizando ações da mãe como modelo. O brincar simbólico era pouco frequente, segundo ambas as juízas. P2 ressaltou que R não encadeava um jogo simbólico com os objetos, mesmo após a iniciativa materna. Por exemplo, se a mãe lhe mostrava como dar mamá para o bebê, ou, ainda, quando brincava de carrinho – grande interesse do menino – R permanecia alheio à sua proposta, manifestando incômodo.

O caso S

Histórico e avaliações

S é uma menina, nascida com 39 semanas e pesando 3.100 gramas. Também não foi um bebê planejado, mas passou a ser desejado quando a gravidez foi revelada. A menina precisou de aleitamento artificial. A mãe é quem ficava mais tempo com a criança enquanto o pai trabalhava fora.

Na avaliação dos três meses, a mãe relatou que S permanecia a maior parte do tempo deitada de barriga para cima, gostando, por vezes, de ficar na posição de lado. Para chamar a mãe, resmungava. A mãe conversava com a menina em todas as situações, relatando que nada a deixava incomodada. Além disso, participava das dinâmicas familiares nas refeições e passeios.

Apesar dos pais de S manterem uma relação conjugal, a mãe relatou que o pai desejou fazer o teste de DNA. Na ocasião, não foi possível investigar mais sobre tal situação, mas na avaliação dos 24 meses, o casal permanecia junto.

O resultado do roteiro IRDI entre 12 e 18 meses demonstrou a presença de risco relacionada a função paterna, a partir da ausência de dois indicadores: o indicador 24, referente a suportar bem as breves ausências da mãe e reagir às prolongadas, e o indicador 30, relativo aos pais colocarem pequenas regras de comportamento para S.

Dentre os resultados encontrados com o M-CHAT aos 18 meses, 11 itens (2, 4, 5, 7, 8, 9, 13, 17, 21, 22, 23) apontaram para o desfecho risco, sendo quatro deles críticos (2, 7, 9, 13). Nessa fase, estavam ausentes os seguintes itens: Seu filho tem interesse por outras crianças? (item 2); Seu filho gosta de brincar de esconder e mostrar o rosto ou de esconde-esconde? (item 4); Seu filho já brincou de faz-de-conta, como fazer de conta que está falando no telefone ou que está cuidando da boneca, ou qualquer outra brincadeira de faz-de-conta? (item 5); Seu filho já usou o dedo indicador dele para apontar, para indicar interesse em algo? (item 7); Seu filho consegue brincar de forma correta com brinquedos pequenos (como carros ou blocos), sem apenas colocar na boca, mexer no brinquedo ou deixar o brinquedo cair? (item 8); Seu filho alguma vez trouxe objetos para você (pais) para lhes mostrar este objeto? (item 9); Seu filho imita você? (ex.: você faz expressões/careta e seu filho imita?) (item 13); Seu filho olha para coisas que você está olhando? (item 17); Seu filho entende o que as pessoas dizem? (item 21); e Seu filho olha para o seu rosto para conferir sua reação quando vê algo estranho? (item 23). Ainda, S apresentou o item 22 (Seu filho, às vezes, fica aéreo, "olhando para o nada" ou caminhando sem direção definida?), reforçando o resultado presença de risco.

Em relação à avaliação dos 24 meses, o M-CHAT apresentou desfecho "risco" em virtude da ausência quatro itens (9, 13, 19 e 21), sendo dois deles (9 e 13) considerados críticos para o autismo (Muratori, 2014). Apesar de alguns itens terem se repetido em relação à avaliação anterior, o item 19 (Seu filho tenta atrair sua atenção para a atividade dele?) apresentou-se como ausente e o item 18 (Seu filho faz movimentos estranhos com os dedos perto do rosto dele?) foi relatado como presente pela mãe, apesar de não verificado pelas observadoras.

Além do IRDI e do M-CHAT, na avaliação dos 18 meses, foi realizada uma avaliação cognitiva e de linguagem, a partir da escala Bayley III de desenvolvimento. A partir de sua avaliação de linguagem observou-se uma linguagem compreensiva de nove pontos, expressiva ausente, perfazendo um total de 45 pontos, o que atinge apenas 50% do esperado para estar fora de risco (tendo em vista que o escore mínimo para se estar fora de risco é 90). Por isso, evidencia-se em S atraso na aquisição da linguagem, reforçada com o resultado extremamente baixo da avaliação cognitiva que apresentou uma pontuação composta de 55.

Em relação à avaliação dos 24 meses, S apresentou como resultado da avaliação de linguagem uma pontuação composta de 77 (comunicação receptiva 17 e expressiva 23), evidenciando uma dificuldade maior no processamento receptivo da linguagem, e 57 pontos na avaliação cognitiva. Tais resultados demonstraram uma melhora na aquisição da linguagem e no desenvolvimento cognitivo de S, em comparação à avaliação anterior, apesar das dificuldades com a linguagem permanecerem.

Análise do brincar

Em relação à linguagem, observou-se pelas juízas que S não produzia pequenas frases, todavia, utilizava seu corpo para demonstrar alguns desejos. Ia em direção ao objeto de seu interesse, não utilizava os brinquedos de modo estereotipado ou repetitivo, e o uso do objeto podia ser considerado como primeira possessão não eu, ou seja, podia ter um caráter transicional. P1 observou que S apresentava dificuldade com a entrada em cena da examinadora, escondendo-se e não aceitando aproximação em um primeiro momento.

As juízas concordaram que S aceitava as propostas da mãe e estabelecia contato visual com ela, mas estava sempre bastante agitada e com grandes dificuldades em permanecer por mais de alguns poucos minutos em uma mesma atividade. Ainda, percebeu-se em diferentes momentos a mãe tentando lhe impor limites, sem sucesso e, por vezes, S ignorava a fala materna. Mesmo assim, na visão de P1, de modo geral, a mãe conseguia sustentar a comunicação com a filha, oferecendo brinquedos em ritmo adequado e respeitando a proposta da menina, estimulando-a na linguagem. Inclusive, em algumas cenas, era possível identificar que a mãe corrigiu S quando ela atribuiu a onomatopeia muuu para uma zebra e, após identificar a diferença, a menina passou a nomear a vaca como tal.

P2 observou, por outro lado, que a mãe tinha uma atitude pouco afetuosa e não demonstrava prazer na voz, mesmo quando S se empolgava no jogo de bola. Por vezes, era um pouco diretiva e impositiva, embora oferecesse uma boa estimulação de linguagem, como observou P1.

Quanto à dimensão cognitiva, P1 observou que S já havia transitado para o uso funcional de objetos e que a utilização deles ocorria de modo espontâneo, conforme proposta do fabricante, demonstrando ter internalizado modelos de utilização do objeto pelo Outro. Embora S demonstrasse prazer com o objeto ao jogar bola, a sustentação de uma exploração rumo ao faz-de-conta criativo ainda não era plena, na percepção de P2.

P2 observou que S poderia ter um atraso cognitivo relativo ao processamento da informação, pois parecia apresentar uma latência para assimilar a proposta de brincadeira do Outro. Havia um atraso importante na linguagem, o que também tinha um efeito no brincar, segundo tal juíza. P2 também ressaltou que a dificuldade de compreender o que lhe era falado poderia estar tendo efeito sobre seu engajamento na proposta do Outro, e, por isso, recomendou avaliação e intervenção fonoaudiológicas.

 

Discussão

A partir dos resultados obtidos com os diferentes procedimentos de avaliação e análise das filmagens, foi possível observar que R, de fato, apresentou sinais de risco para estruturação de tipo autista, na medida em que o próprio processo de alienação por parte do agente materno esteve comprometido, bem como a presença de sinais físicos, cognitivo e de aquisição da linguagem, que apontavam para a presença de risco. Em contrapartida, no caso de S há sinais evidentes de problemas no exercício da função paterna e que podem influenciar negativamente em sua estruturação psíquica. Era visível que o exercício da função paterna apresentava impasses, tanto no que concernia a relação com o lugar que ocupava na fala materna quanto no próprio reconhecimento do pai de S enquanto agente da função capaz de sustentar a lógica da castração.

Tratando-se do caso de R, a mãe relatou que enfrentou sérias dificuldades com o companheiro, provocando grande instabilidade emocional e dificultando a gestação. A crise situacional do casal permaneceu ainda no primeiro ano de vida de R e o casal decidiu se separar. A partir de então, R perdeu o contato com o pai. Nesse sentido, salienta-se a importância do cônjuge na saúde mental materna, enquanto suporte para que ela possa exercer sua função. Em sua pesquisa, Nogueira e Ferreira (2012) concluíram que a ausência do pai pode trazer consequências negativas para a mulher, desde a descoberta da gestação até após o nascimento. No entanto, o que se verificou foi que a ausência paterna representou propulsor para que sintomas ansiosos e depressivos das puérperas se manifestassem, trazendo consequências negativas ao bebê.

Salienta-se que desde os primeiros meses do bebê, a mãe já percebia que precisava chamar seu filho muitas vezes para que ele lhe desse atenção ou respondesse ao seu chamado. Tal relato ficou evidente na ausência do indicador 3 do roteiro IRDI (O bebê reage ao manhês ?) e está de acordo com o estudo de Saint-Georges et al. (2011), a respeito dos padrões interativos e dos comportamentos de crianças com menos de 18 meses posteriormente diagnosticadas com autismo. A partir do relato dos pais, os pesquisadores evidenciaram que eles sentiam falta da iniciativa interativa e da capacidade de seus bebês emitirem alguma espécie de resposta quando solicitados. Dessa forma, os pais eram compelidos a cada vez solicitar mais seus bebês, preenchendo seus turnos de fala, na esperança de que eles respondessem.

Outra questão a ser levantada é o fato de R apresentar refluxo gastroesofágico (RGE) persistente, passados os primeiros meses. Segundo Amaral (2008), o RGE está sempre presente no recém-nascido até, aproximadamente, os três meses de vida. Entretanto, após esse período, a persistência de tal dificuldade alimentar incide diretamente na qualidade do laço mãe-bebê, justamente porque o comer ou o não comer não é apenas uma questão fisiológica. Laznik e Burnod (2016) salientam que a dor decorrente do refluxo é um fator importante a ser considerado nos casos de autismo, e sugerem que muitas crianças autistas apresentam problemas digestivos, como verificado no caso de R que, na avaliação dos 24 meses, permanecia com restrição alimentar.

Ressalta-se também o fato de a mãe relatar que R apresentava hipersensibilidade sensorial. Segundo revisão sistemática realizada por Gomes, Pedroso e Wagner (2008), as anormalidades sensório-perceptuais acometem cerca de 90% dos autistas. Entre os sintomas, a hipersensibilidade auditiva, possivelmente relacionada à hiperbilrrubinemia. Com relação à avaliação realizada a partir do IRDI, salienta-se a ausência de indicadores que avaliam, principalmente, a qualidade da interação mãe-bebê, o exercício da função materna e o processo de alienação. Tais indicadores estiveram ausentes, porque, além da mãe apresentar grande dificuldade em lançar uma hipótese a respeito das manifestações de R, o menino também não reagia aos apelos maternos, ao manhês e aos olhares endereçados a ele. Como consequência, a mãe propunha algo para R, mas na falta de resposta, completava seu turno de fala. Essas falhas na protoconversação têm sido indicadas em vários estudos de crianças autistas (Cohen et al, 2013; Mahdhaoui et al., 2011), o que acaba por gerar atraso na aquisição da linguagem, observado nos resultados do Bayley III, e dificultando a passagem de locutor a sujeito, como ressaltam Souza e Flores (2013).

Em relação ao M-CHAT, os resultados obtidos por R, aos 18 e 24 meses, a partir dos relatos maternos, também confirmaram a estruturação na direção do autismo. Dentre os itens ausentes, ressalta-se que R não apresentava interesse por outras crianças, não gostava de brincar de esconder e mostrar o rosto, de esconde-esconde, ou mesmo brincava de forma correta com brinquedos pequenos. Essas alterações no brincar foram verificadas nas análises feitas pelas juízas, em que R se limitava a manusear os  brinquedos sem um faz-de-conta, fazia pouco contato visual e poucas trocas com sua mãe. Assim como evidenciado em todas as fases do IRDI, as juízas perceberam que no brincar entre a díade, a mãe precisava esforçar-se muito para fisgar a atenção do filho (Crespin & Parlato-Oliveira, 2015).

O não olhar entre a mãe e seu bebê, estendendo-se às outras pessoas, estabelece um dos sinais essenciais que permitem manifestar uma hipótese sobre o autismo durante os primeiros meses de vida, anunciam dificuldades na pulsão escópica, que indicam que os requisitos para chegar ao estádio do espelho estão comprometidos. Enquanto um momento lógico, o estabelecimento do terceiro tempo do circuito pulsional é base para que, posteriormente, o bebê conceba a relação com os outros (Laznik, 2013), o que não estava acontecendo com R.

Em se tratando de S, apesar de seus pais manterem uma relação conjugal, a mãe relatou que o pai apresentou dificuldades em reconhecer-se enquanto tal, chegando a lhe pedir um teste de DNA. Apesar de a função paterna não estar relacionada com parâmetros biológicos, como salienta Castro (2001), ao afirmar que o pai real e a função paterna são coisas diferentes, faz-se pertinente salientar tal fato, porque demonstra a dificuldade do pai em assumir essa posição, fundamental no processo de constituição psíquica. Sibemberg (2015) complementa ao afirmar que, na ausência da função paterna, isto é, do significante Nome-do-pai enquanto função que media a relação mãe-bebê, tem-se o risco para a psicose.

No caso de S, tal risco pôde ser evidenciado por meio da ausência de alguns indicadores do roteiro IRDI, na faixa etária entre 12 e 18 meses, relativos ao exercício da função paterna. Dentre eles, salientam-se os indicadores relacionados à dificuldade de os pais colocarem pequenas regras de comportamento para S e ela sustentar breves ausências maternas.

Dentre os resultados do M-CHAT, aos 18 e 24 meses, salienta-se a dificuldade de S em interagir com outras crianças devido a seu atraso de linguagem. A partir do relato materno, pode-se verificar a ausência de sinais relacionados ao seu interesse por outras crianças, sua preferência por brincar de esconder ou de faz-de-conta ou, ainda, por brincar de forma correta com brinquedos pequenos (ex.: carros ou blocos), sem apenas colocá-los na boca. É interessante observar que os itens do M-CHAT ausentes no caso de S se diferenciam de R, pois no menino surgem itens mais específicos a sinais de autismo, como hipersensibilidade e ficar aéreo. Os itens acerca do interesse por outras crianças e do brincar podem ter leituras variadas a partir da observação da criança com as figuras parentais. Enquanto o caso de R relaciona-se a uma falha na alienação, o de S é na separação, porque o acompanhamento do caso e as filmagens analisadas pelas juízas permitem pensar tecer a direção da estruturação dessas crianças sem cair na tentação de diagnosticá-las como autistas, e enquadrá-las em um destino selado, sem volta.

A partir da avaliação de linguagem e cognitiva com a escala Bayley-III, pode-se confirmar a hipótese de atraso na aquisição de linguagem e cognição, além do risco à constituição psíquica, em ambos os casos. No caso de S, a comunicação receptiva foi inferior à expressiva na faixa etária dos 24 meses, evidenciando uma dificuldade maior no processamento receptivo da linguagem.

Ainda, em relação à linguagem a partir do brincar, evidenciou-se que, diferentemente de R, S demonstrava alguns desejos, ia em direção ao objeto, aceitava as propostas da mãe e estabelecia contato visual com ela. Todavia, percebe-se a dificuldade do exercício da função paterna na dificuldade da mãe em estabelecer-lhe alguns limites. Além disso, percebe-se que sua grande agitação motora, bem como sua dificuldade em sustentar a atenção em uma mesma brincadeira por mais de poucos minutos.

A questão da ausência de limites é pensada por Kupfer e Bernardino (2009), como a possibilidade de introjeção da função paterna. Segundo as autoras isso se dá através dos cuidados maternos, pois a função paterna aparece, num primeiro momento, na fala materna. Todavia, salientam também a importância daquele que exerce a função paterna nesse processo de incorporação de limites primordiais, desse contorno subjetivo.

Desse modo, pode-se perceber na avaliação do brincar que a mãe de S lhe oferecia brinquedos em ritmo adequado e reconhecia a filha enquanto sujeito, ao acatar sua proposta de brincadeira, estimulando-a na linguagem. Todavia, a dificuldade da menina em concentrar-se na brincadeira e no que sua mãe lhe falava, bem como em diminuir sua agitação motora, denuncia as consequências das falhas no exercício da função paterna. Percebeu-se nessas observações o risco que estruturação de uma psicose em função de não haver a recusa da relação (Bernardino, 2010).

Em ambos os casos, a relação com o mundo da linguagem evidencia a dificuldade na estruturação psíquica, conforme prevê Sibemberg (2011), a partir de uma leitura psicanalítica. Tanto R quanto S apresentam atraso de linguagem, mas S parece comunicar melhor seus desejos e intenções do que R. Além disso, nos dois casos, há dificuldades na compreensão que podem ter base biológica e deveriam ser investigadas, seja pela hiperbilirrubinemia de R ou pela latência no processamento auditivo de S. Apesar de tais dificuldades, percebe-se que no caso de S o laço com a mãe garante um avanço linguístico maior aos 24 meses, quando ela sai do risco maior em linguagem.

Essas relações linguísticas e psíquicas também se evidenciaram no brincar, visto que R apresentava um brincar com características mais evidentes de um quadro de autismo, negligenciando o contato com a mãe em prol do manuseio do objeto, conforme define Graña (2008). S, por outro lado, conseguia estabelecer um laço com o outro, visto desde suas primeiras avaliações do IRDI, o que lhe garantiu maior evolução cognitiva também, quando comparada a R.

Assim, entende-se que a direção de tratamento é diferente em cada um dos casos. No caso de S refere-se a uma intervenção psicológica que resgate o exercício da função paterna, no sentido de propor limites corpóreos para S, e convoque esse pai a exercer sua função, aliada a uma intervenção fonoaudiológica, que permita sustentar um espaço de aquisição da linguagem. No caso de R é necessário um trabalho interdisciplinar onde a intervenção psicológica se dá ainda no nível da alienação, resgatando o laço entre mãe-bebê (Laznik & Chauvet, 2016); uma intervenção sensório-motora se fez necessária na tentativa de dessensibilizar certas regiões corpóreas que causam desconforto, como a audição, bem como sensibilizar outras regiões que lhe permitam ter uma consciência corporal melhor para interagir no mundo por meio da diminuição das sobrecargas desordenadas de excitação, na expressão efetiva e confiável (Laznik, 2016).

 

Conclusão

Pelo viés da psicanálise e da teoria enunciativa, buscou-se analisar o brincar de dois sujeitos com sinais de risco psíquico, bem como verificar seu desenvolvimento cognitivo e de linguagem. O objetivo do estudo foi verificar se tal análise permite verificar características particulares de um sujeito quando este apresenta risco psíquico para o autismo e para a psicose.

Considerando o objetivo de analisar qualitativamente a relação entre psiquismo e linguagem, a partir do brincar, em dois sujeitos de 24 meses com presença de risco psíquico de naturezas diferentes, acredita-se que a análise dos casos de R e de S puderam demonstrar pontos importantes a serem considerados para tal distinção, bem como se pensar a utilização de protocolos de avaliação de linguagem e cognição tradicionais, a partir de um olhar singular de cada sujeito, relacionando seus resultados ao processo de constituição subjetiva e linguística, ancorado nas teorias psicanalítica, enunciativa e semiótica.

 

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Recebido em junho/2018 – Aceito em janeiro/2019.

 

 

1 Na retomada de seu caso aos três anos, em uma avaliação clínica mais detalhada, observou-se que R não possuía dificuldade em ouvir, mas em escutar. A depender das condições de interação demonstrou domínio linguístico muito próximo de sua idade.

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