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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.24 no.1 São Paulo enero/abr. 2019

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v24i1p111-120 

DOI: 10.11606/issn.1981-1624.v24i1p111-120

ARTIGOS

 

Direção de tratamento para um "corpo-espinho": considerações sobre o desejo de analista*

 

Dirección de tratamiento para un "cuerpo-espín": consideraciones sobre el deseo del analista

 

Direction of the treatment for a "hedge-body": considerations on the desire of the analyst

 

 

Fernanda Cintra do Prado Pereira BonilhaI

IPsicóloga e acompanhante terapêutica. Aprimoramento profissional em Diagnóstico Diferencial na Infância pela Divisão de Educação e Reabilitação dos Distúrbios da Comunicação da Pontifícia Universidade Católica (Derdic/PUC-SP). Especialização em Psicologia Clínica pelo Centro de Atenção Psicossocial da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), São Paulo, SP, Brasil. E-mail: febonilha@gmail.com

 

 


RESUMO

O desejo de analista é uma questão fundamental à psicanálise e preciosa àqueles que se iniciam em sua prática. Este trabalho se debruça sobre o desejo de analista a fim de encontrar uma direção de tratamento para uma criança psicótica. Diante do imperativo ético de o analista se abster de seu desejo próprio frente ao analisante, haveria uma especificidade do desejo de analista na clínica com crianças e, particularmente, com crianças autistas e psicóticas?

Palavras-chave: desejo de analista; psicanálise com crianças; autismo; psicose infantil.


RESUMEN

El deseo de analista es una cuestión fundamental al psicoanálisis y valiosa para aquellos que se inician en su práctica. Este trabajo examina el deseo de analista con el objetivo de encontrar una forma de tratamiento a un niño psicótico. Ante el imperativo ético del analista abstenerse de su propio deseo frente al analizante, ¿habría una especificidad del deseo de analista en la clínica con niños, más específicamente con niños autistas y psicóticos?

Palabras clave: deseo de analista; psicoanálisis con niños; autismo; psicosis infantil.


ABSTRACT

The desire of the analyst is a fundamental issue to psychoanalysis and precious to those who are in the beginning of their practice. This paper explores this desire with the intent to find a direction of treatment for a psychotic child. Before the analyst ethical imperative to abstain their own desire vis-a-vis with the analysand, would there be certain specificity on the desire of the analyst in a clinic with children, particularly with autistic and psychotic children?

Keywords: desire of the analyst; children's psychoanalysis; autism; child psychosis.


 

 

Este trabalho discute o desejo de analista, diferenciado do desejo do analista, na clínica psicanalítica, a partir do atendimento de uma criança na Clínica Escola da Divisão de Ensino e Reabilitação de Distúrbios da Comunicação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Derdic/PUC-SP). O desejo de analista, função executada pelo analista, é aqui tomado como distinto do desejo do analista, aquele que a pessoa do analista aprende a identificar em sua própria análise. Haveria uma especificidade do desejo de analista na clínica do autismo e da psicose infantil?

Da angústia vivida na clínica e da paralisia que por vezes ela provoca surgem questionamentos sobre a prática (Rassial, 2004). O desejo de analista assim como o desejo do analista são centrais à ética da técnica da psicanálise e fundamentais a quem se inicia nela. Concernem à postura do analista e à função que ele exerce na direção do tratamento. Através do desejo de analista, o analista é convocado a repensar sua prática junto a cada novo analisante e a cada sessão de um mesmo analisante.

O desejo de analista se desdobra em um estilo (Goldenberg, 2004). Ao estar ciente de seu desejo próprio – o da pessoa, lugar onde toca a angústia no encontro com o Outro – o analista encontra um estilo de atuação, configurado a partir do que cada analista se dispõe a escutar. Embora o estilo diga respeito a cada analista, este é sempre balizado pelo papel do morto, política de falta-a-ser através da qual a pessoa do analista não aparece na análise, se abstém e abre espaço para o aparecimento da fala e, assim, do desejo do sujeito (Lacan, 1958/1998).

Os impasses vividos junto à Luísa, nome fictício, uma garota de quatro anos atendida entre março de 2016 e abril de 2017, assim como a novidade de minha atuação clínica diante da conclusão do curso de Psicologia e da busca pela construção de uma prática psicanalítica, tornaram a necessidade de se debruçar sobre esta temática imperativa. Luísa apresentava questões na relação com seu corpo e no contato com o Outro. No início do atendimento, diversas situações provocaram angústia, me levaram à paralisação e à impossibilidade de fazer alguma intervenção – situações essas que impulsionaram a escrita deste trabalho.

 

Corpo despedaçado

Luísa chegou à clínica da Derdic em agosto de 2015, aos 3 anos e 3 meses. Nas entrevistas iniciais com os pais, ficou evidente que a história de Luísa era encoberta por diversos fatos ocorridos na família, o que dificultava a construção de uma narrativa sobre a filha por parte deles, bem como localizá-la no discurso deles. Diziam lá estar pelo fato de Luísa não falar, ou "falar a língua dela", o que justificavam pelo curto freio da língua, explicação que, segundo a mãe, haviam recebido de uma fonoaudióloga. Procuravam atendimento no setor de fonoaudiologia. Apesar deste desejo da família, a avaliação da equipe da instituição priorizou o atendimento psicológico, visto que questões relativas ao laço social se impunham como centrais à direção de tratamento e ao desejo de Luísa de falar para se comunicar.

Nos primeiros atendimentos chamava a atenção a facilidade com que Luísa aceitava meu convite, sendo eu ainda desconhecida, para entrar na sala. Dava-me a mão enquanto andávamos no corredor e, durante a sessão, me abraçava repentinamente, gesto que não se inseria no contexto das sessões. Ela mimetizava jogos simbólicos: ninava uma boneca após dar a ela de mamar ou utilizava um estetoscópio para ouvir o próprio coração e o meu, assim como outros brinquedos da caixa de médico, um a um, demonstrando suas funções. Importante destacar a mimetização em contraposição à construção de narrativas que pudessem ser compartilhadas, no que diz respeito ao brincar com um Outro, o que não ocorria. Em outros momentos, a menina que aparentemente brincava de boneca ficava muito desorganizada frente a uma frustração, como quando não era atendida, ou ao final de uma sessão, ao se opor a guardar os brinquedos. Nestes momentos, ela se descabelava, gritava, mordia e batia na analista.

"Utilidade" é um significante que dizia de Luísa o que se desvela em diversas situações de seus atendimentos. Ferramentas médicas com certa utilidade predeterminada, mas que não constituíam um jogo; de forma semelhante, o Outro existia quando atendia suas vontades – ordenava que eu abrisse tintas, pegasse folhas, me sentasse, mas precisava ser destruído quando não lhe era útil. Utilizava-se também da linguagem de uma maneira muito própria e tirânica com relação ao que ela desejava, mas sua fala não se inseria como discurso, por vezes remetendo a sons de um pássaro.

Em uma dada sessão, Luísa encontrou um espelho dentre os demais brinquedos. Pegou-o, olhou-se, fez uma careta, pegou meus óculos, colocou-o em seu rosto ao contrário e gritou. Eu estava sentada no chão e ela em pé tentava me atravessar com o espelho como se eu não estivesse ali. O olhar que me atravessava não encontrou em meu olhar a possibilidade de construção de uma unidade corporal, de forma que Luísa se despedaçou no espelho. O resto da sessão ganhou um tom angustiante. Ela ficou agitada, gritava, corria pela sala, pegou uma caixa de carimbos do armário e virou-os no chão. Pegou um dos carimbos e batia-o mecanicamente numa folha estendida no chão, mostrei a ela como fazia, mas ela relutou em me deixar fazer; disse "Não!", muito claramente. Então bateu com o carimbo várias vezes no papel, batia a minha mão, como se ela fosse também carimbo em uma ação repetida e indiscriminada. O que era carimbo, o que era mão? Depois virou uma caixa com algumas cartas no chão. Queria virar um jogo e eu disse "Chega!", pois ela já havia virado as cartas e os carimbos, "vamos guardar as cartas primeiro?". Ela fez que sim com a cabeça e chorou um choro doído, provocando-me o ímpeto de abraçá-la. Detive-me; não sabia por onde fazê-lo. Será que ela suportaria um abraço? E se a invadisse? E se ela me agredisse?

 

"Corpo-espinho"

Semanas depois, a mãe foi chamada a entrar na sala para conversar sobre as faltas das últimas semanas. Neste dia, Luísa quis sair algumas vezes, correu até a recepção. Por fim convidou a mãe para fazer pinturas e depois pegou um grande bolo de massinha no qual espetou vários bastões de giz de cera. Montou algo que remetia a um porco-espinho. A mãe logo nomeou: "Olha, você fez um porco-espinho!". Em uma brincadeira, me aproximei e fiz um ato falho: "Ah, esse porco-espinho vai espetar a minha mãe!" – quando tinha a intenção de dizer mão. O ato falho deste último fragmento, enquanto interpretação inconsciente, ofereceu um subsídio importante para a direção do tratamento, retomado adiante.

A forma indiscriminada como Luísa se oferecia a outrem, enquanto objeto, bem como a forma utilitária com que se apropriava dos objetos e se relacionava com a analista – rechaçando-a quando não era atendida ­–, aponta para a hipótese diagnóstica de psicose infantil. Importante ressaltar que a hipótese diagnóstica em psicanálise se sustenta na transferência com o analista e tem a finalidade única de orientá-lo na direção do tratamento.

 

Do desejo de analista à ética do fazer analítico

O desejo de analista é função primordial para que uma análise ocorra, pois é ele a sustentação para o desfilar significante (Lacan, 1958/1998). Freud (1912/2010) apontou que o analista deve seguir o modelo do cirurgião que deixa de lado todos os seus afetos e até mesmo sua compaixão, a fim de levar a operação analítica a cabo da forma mais competente possível. Assim, manteria sua vida afetiva protegida e daria ao analisante "o maior grau de ajuda que hoje podemos dar" (p. 155). Complementa-o Lacan (1958/1998): "ele [o analista] é tão menos seguro de sua ação quanto mais está interessado em seu ser" (p. 593-594).

É na transferência e a partir daquilo que ela convoca que o analista encontra a direção do tratamento. Contudo, os sentimentos do analista não entram em jogo em um processo analítico, pois ele se situa em uma política de falta-a-ser, estratégia unívoca na condução de uma análise, na qual existe apenas um sujeito dividido, de forma que ao analista cabe o lugar de morto (Lacan, 1958/1998).

Segundo Freud (1912/2010), para se tornar analista, seria necessário passar por um processo de purificação analítica – se submeter a um tratamento para que a própria escuta do sujeito se desembarace de seus complexos, o que faria do desejo de analista o resultado de sua análise, enquanto capacidade profissional para desempenhar este ofício (Petri, 2008). Lacan (1958/1998) irá além com esta questão. Deverá, segundo ele, haver um ponto de virada na análise didática, em que a articulação de todas as demandas postas neste processo, principalmente a de tornar-se analista, esgota seu prazo. A análise por si não basta. É preciso haver uma mudança na economia de desejo para que o analista seja tomado por um desejo mais forte do que os desejos que poderiam estar em causa e que lhe permitiriam abdicar de seu ser na análise de outrem. Um analista só se autoriza a si mesmo após ter se dado conta da falência objetiva de sua própria análise (Rassial, 2004).

Na clínica da neurose, ao oferecer escuta ao analisante, o analista possibilita que este lhe direcione uma demanda. Inicialmente, esta demanda se manifesta como implícita – demanda de ser curado, de ser revelado a si mesmo, de tonar-se ele mesmo analista. Contudo, a oferta da escuta cria uma demanda intransitiva, a qual não implica em nenhum objeto, de modo que ao analista cabe sustentar a incompletude para esta demanda – a falta (Lacan, 1958/1998).

A demanda endereçada ao analista instala nele o sujeito suposto saber, operação que produz um Outro, o qual teria um saber. Este seria um equívoco, pois todo saber está no sujeito e diz respeito ao seu inconsciente, mas um equívoco necessário à formação de um campo estruturado com relação à fala e à significação, e que se apresenta como pergunta. Por contiguidade a esta operação, é dever do analista produzir um giro que subverta o suposto saber e possibilite ao sujeito questionar-se e encontrar-se com sua própria falta, primeiramente, de saber, o que torna possível a abertura da cadeia significante. É aí que se verifica a possibilidade de engajamento do sujeito em vir a saber da realidade de seu inconsciente (Dál-Col, 2005).

Se a demanda se caracteriza como apelo de complementariedade ao Outro, o desejo traz à tona o lugar da falta e articula o sujeito à cadeia significante e, portanto, à fala. A ética na psicanálise supõe no analista a sustentação de um desejo prevenido, que não se cola à demanda. Desejo que se constitui, então, em um desejo de que haja análise e de que, por conseguinte, haja desejo (Costa, 2009). Como nos adverte Lacan (1958), "toda resposta à demanda na análise conduz a transferência à sugestão" (p. 641).

De acordo com Soler (1994), cabe ao analista ocupar o lugar de objeto causa de desejo, objeto a, em menção àquilo que Lacan nos ensina no Seminário 11 (1964/2008). Na medida em que a castração incide, instala-se uma lacuna que possibilita um retorno da pulsão em circuito, uma vez que sua satisfação é sempre parcial. O objeto a refere-se ao resto da instauração da falta; o objeto caído, à falta constituinte. Dentre os quatro componentes da pulsão – impulso, alvo, objeto e fonte –, o objeto não é objeto de desejo e sim objeto causa de desejo. Este é, por sua vez, uma fantasia que sustenta o desejo – sustenta o vazio que ele pressupõe, de modo que a pulsão o escamoteia. Ao ocupar o lugar de objeto causa de desejo, o analista passa a ser suporte para este vazio e possibilita ao sujeito dizer de seu próprio desejo através do desfilar significante, como apresentado.

A impossibilidade da satisfação completa através do encontro com um objeto permite ao sujeito um reencontro com o núcleo da constituição subjetiva, enquanto falta no campo do desejo, a partir do qual ele deve se reconhecer em um lugar vazio de representação e onde se encontra o caminho para a cura. Cabe ao analista aceitar sua própria falta – falta em saber ­– para que possa ocupar o lugar de analista intermitentemente como questão, renovando este lugar sempre como causa (Dál-Cól, 2005). O lugar do analista é o lugar da ignorância (Lacan, 1958/1998).

Todas estas considerações acerca do desejo de analista apontam para uma determinada ética enquanto mandamento técnico. De acordo com Goldenberg (2004), não existe ética universal da psicanálise, uma vez que esta iria na contramão daquilo que ela propõe – o resguardo do desejo inconsciente como possibilidade de o sujeito se posicionar de maneira ética frente à própria existência, o que, reiteramos, concerne a cada sujeito e à singularidade de seu desejo (Petri, 2008).

Para Goldenberg (2004), a ética é um estilo de cada analista, isto é, a possibilidade de oferecer uma determinada escuta, atravessada pelo desejo de analista, para que se produza um determinado saber sobre o desejo, e não a escuta. O fazer do analista está alhures de um saber já construído e advém, portanto, de um saber que se constitui a partir da escuta do analisante pelo inconsciente do analista.

 

Haveria uma especificidade do desejo de analista na clínica com crianças?

A proposição freudiana de neurose infantil, ou a afirmação de Dolto (1984, citado por Bernardino, 2004) "os desejos não têm a idade da certidão de nascimento" (p. 58), nos lembra que tomar um sujeito em análise, seja ele adulto ou criança, é escutar seu infantil. De acordo com Rassial (2004), não há uma especificidade do desejo de analista na prática psicanalítica com crianças, contudo nela o analista é constantemente interrogado em seu desejo e deve se haver com isso para garantir a direção do tratamento. Assim como Goldenberg (2004), Rassial (2004) dá ênfase ao estilo do analista como ponto-chave da atuação e reforça que na prática com crianças este estilo fica evidente, uma vez que não se pode "refugiar-se em um modelo de tratamento-padrão, substituindo o estilo por truques técnicos" (p. 26). A prática com crianças pede o corpo do analista em sua concretude e, por isso, a intervenção muitas vezes se dá em forma de atos. A não resposta à demanda, por exemplo, não se dá por abstenção, mas por um ato que pode necessitar da fala.

Segundo Bernardino (2004), há uma dificuldade maior de fazer o desejo de analista operar junto à criança, uma vez que seu lugar enquanto sujeito é ainda frágil. A criança ainda necessita da encarnação do Outro por parte de um adulto que exerça esta função para que ela possa enunciar seu desejo, o que a difere de um adolescente, que enquanto analisante pede a validação de sua posição desejante. Soler (1994) afirma que não é o analisante que é diferente, mas aquilo que se tem para analisar, visto que a relação da criança com o sintoma ou com o real é diferente da do adulto. Esta autora (1994) nos coloca a seguinte questão: "O analista pode enfrentar qualquer relação com o real e, mais precisamente, o desejo de analista pode operar sobre qualquer estágio do ser?" (p. 9).

Para Soler (1994), é necessária uma criança já sujeito para que haja análise em seu stricto sensu. Neste sentido, o diagnóstico estrutural se faz fundamental. Ora, a psicanálise nos ensina que um sujeito não se faz de prontidão. Uma criança a princípio não é um sujeito, mas objeto de um Outro. Como afirma Soler (1994), "toda criança é para sua mãe uma aparição no real de um objeto de sua existência" (p. 9). Será o reconhecimento por parte da criança da submissão da mãe a um Outro que possibilitará também à criança um encontro com um Outro atravessado pela castração e, desse modo, seu advir enquanto sujeito.

De acordo com a autora, quando a criança é já sujeito do significante, o analista deverá, assim como na análise de adultos, ocupar o lugar de objeto causa de desejo e acompanhá-la até sua possibilidade de entrar no período de latência, de modo a deixar a questão da diferenciação sexual em aberto, o que distingue e distancia a falta estruturante do encontro real com alguma forma de gozo. A análise das crianças-sujeito – aqui entendidas como aquelas marcadas pela castração – deve sempre deixar algo em aberto, o que pressupõe uma posição da criança ainda não decidida quanto ao gozo. Neste caso, o fim da análise se dá com a possibilidade de o sujeito entrar na adolescência, momento em que poderão aparecer questões existenciais (Rassial, 2004).

De outro modo, a criança-objeto, ou criança-gozo, seja ela autista ou psicótica, e aqui tomamos como referência a não incidência da castração, terá na análise a possibilidade de reviver a operação significante, ou ainda, a análise será o espaço em que se poderá produzir o que não teve lugar, chamado corte, separação, negativação ou furo. Tal prática deverá engendrar um efeito-sujeito que efetue uma defesa contra o Real. Soler (1994) denomina esta prática como psicanálise invertida, na medida em que é uma operação que age partindo do Real em direção ao Simbólico e criando um efeito de negativação, diferentemente, portanto, da psicanálise convencional com adultos neuróticos que visa a travessia do Simbólico e do Imaginário em direção ao Real da pulsão. Junto a estas crianças, não há senão o lugar do Outro primordial que o analista deverá ocupar. Nas palavras de Lacan (1969/2003), faz-se necessário evocar que não há transmissão simbólica sem a implicação de um "desejo que não seja anônimo" (p. 369).

Ora, a psicanálise se detém na escuta do sujeito, seja ele o sujeito da neurose, seja o sujeito da psicose. Ainda assim, a distinção de Soler (1994) entre criança-sujeito e criança-objeto nos é cara na medida em que elucida o fato de crianças autistas e psicóticas se tomam na relação com o Outro como objeto, o que nos oferece subsídios para a construção do posicionamento do analista na clínica com estas crianças. Além disso, se Bernardino (2004) afirma que o sujeito da criança é ainda frágil, Soler (1994) nos lembra de que sujeito é sempre efeito significante.

A experiência com crianças fascina e horroriza. A questão sobre o desejo de estar na posição de psicanalista de crianças se recoloca a cada analisante que chega e, mesmo, a cada nova sessão de um mesmo analisante. O analista deve se questionar ativamente sobre sua "vocação" para tratá-las, a fim de afastar-se da busca por um encontro bem-sucedido com elas enquanto sintoma. Reiteramos a importância da análise do analista, espaço no qual ele poderá identificar as motivações conscientes e inconscientes que o convocam nesta prática, sobretudo, com crianças (Descamps, 1994, citado por Bernardino, 2004).

Soler (1994) também dá ênfase à formação do analista, que é constituída por estudo teórico, análise pessoal e supervisão. Ela aponta este tripé como fundamental à ocorrência da modificação subjetiva pela qual o analista poderá sustentar o desejo de analista, lugar de abnegação subjetiva e inalcançável àqueles demasiadamente recobertos por sua fantasia fundamental.

Petri (2008), a partir de sua preocupação com aquilo que se transmite em psicanálise, discute como é possível ser parceiro da criança sem se tornar seu mestre; em nossas palavras, sem gozar às custas dela. Tal pergunta ganha ênfase especialmente quando nos deparamos com uma criança que se toma como objeto e que, na transferência com o analista, convoca à repetição desta mesma relação ao mesmo tempo em que seu tratamento pede a encarnação de um Outro primordial, como já apontado.

Esta autora dá ênfase ao duplo lugar do analista na clínica com crianças, quais sejam: o semblante de objeto a e Outro. Quanto ao primeiro, ao sustentar um desejo vazio, ao não demandar, ao encarnar um adulto que não ocupa lugar de mestre, que não ensina e não dá orientações, produzirá na criança uma inquietação: "o que quer ele, então, de mim?". A partir desta pergunta, haveria a possibilidade de a criança localizar seu desejo como diferente do que interpretou como desejo do Outro, para então destacar-se dele, como também sustenta Bernardino (2004).

Ao mesmo tempo, na transferência com a criança, o analista é chamado a encarnar o Outro, devendo entrar com seu próprio corpo, com sua história e seu desejo, podendo ocupar este lugar sem se deixar tomar por ele. Segundo Berenguer (1994, p. 50, citado por Petri, 2008), "mesmo que o desejo de analista não seja um desejo particular, seu lugar é particular a cada caso. Essa singularidade não supõe fazer do analista um sujeito, mas uma maneira para diferenciá-lo do Outro" (p. 158).

A psicanálise se propõe à transmissão do inevitável da falta, esta como resultante da extração do objeto a. Com a criança não é diferente. Os pais transmitem a falta a partir de suas posições fantasmáticas, ou seja, da forma com a qual se arranjaram com a incompletude da condição humana. O analista também transmite esta falta. Ao oferecer um lugar vazio de desejo, dá notícias à criança de tal incompletude quando aqueles têm dificuldades em fazê-lo (Petri, 2008). A partir deste Outro que não demanda e que não goza dela, portanto, de um Outro barrado (Zenoni, 2000), a criança pode se deslocar das demandas do Outro parental, o que poderá promover uma resposta fantasmática própria por parte dela, entendida também como saída de uma paralisação sintomática para a retomada de sua constituição subjetiva. Esta última poderá ser articulada aos elementos que resultam da transmissão simbólica operada pelo Outro parental. É nesta retomada que o analista pode atuar como parceiro do analisante, pois na medida em que pode sustentar junto a ele sua lógica desejante, lhe dá a possibilidade de advir a partir de produções singulares.

 

Articulações teórico-clínicas: retorno à prática clínica

De que forma se sustenta o desejo de analista a partir da experiência de horror, a que muitas vezes este encontro nos convoca?

No caso de Luísa, o significante porco-espinho denuncia alguns aspectos de seu atendimento, coroando de maneira interessante aquilo que buscamos ilustrar sobre a transferência nos fragmentos clínicos. Contudo, primeiramente, é importante fazer menção ao "corpo-espinho" de Luísa, que apresentava questões orgânicas como alopecia1, desvio na coluna e sindactilia2, assim como constantemente adoecia. As faltas às sessões eram recorrentes por febre, gripe, infecções, internações e era comum o relato de seus pais de que estava medicada com antibióticos.

Notamos ainda o aspecto "espinhento" da transferência. Os fragmentos clínicos demonstram a dificuldade de aproximação com ela: a sensação de que "não havia por onde" abraçá-la e o ataque e o rechaço quando contrariada. Além disso, o significante "porco-espinho", junto ao significante "mãe" contido em meu ato falho "vai espetar a minha mãe!", nos lembra de que não era somente Luísa quem armava esta carapuça espinhenta, mas era também sua mãe e seu pai, que, na medida em que não tinham suas demandas atendidas – diagnóstico fechado e nomeado, e atendimento fonoaudiólogo –, se esquivavam das tentativas da equipe de implicá-los no tratamento da filha.

Em uma nota de rodapé de "Psicologia das massas e análise do eu", Freud (1921/2011) traz uma alegoria de Schopenhauer na qual alguns porcos-espinhos se aproximavam bastante para não morrer de frio, mas logo sentiam os espinhos um dos outros e então se afastavam. Diante da necessidade de aquecimento, repetiam a aproximação, até que eram obrigados a se afastar pelo sofrimento que causavam uns aos outros. Por fim encontraram uma distância suficiente que os permitia se aquecer sem que se machucassem. Freud se utiliza de tal alegoria para apontar o mal-estar intrínseco ao encontro com o Outro e com a civilização, sendo este também constitutivo. Tal mal-estar se escancara quando estamos diante de questões no laço social, impostas ao autismo e à psicose infantil.

Junto a Luísa, o desejo de analista se encontrava nesta distância entre os porcos-espinhos. Era preciso estar suficientemente próximo a ela para que o desejo operasse como desejo de que houvesse tratamento, ao mesmo tempo em que era preciso garantir uma distância que me protegesse do rechaço, ou ainda, de atuar o rechaço a que ela convocava no sentido da transferência, atuação que desfaria a possibilidade de tratamento. Não se tratava de uma distância física, mas de uma proximidade mediada por um anteparo – o desejo de analista, que me resguardava para que eu pudesse efetuar minha função.

Garantir que a função operasse como desejo de que a análise acontecesse pressupunha não atender ao rechaço que a transferência convocava, bem como abster-se quanto à demanda dos pais para que Luísa falasse, por exemplo. Apostar também que ela possuía um tempo próprio para estar na sala de atendimento e deixá-la sair marcando sua falta, ao invés de insistir para que ela permanecesse, ainda que existisse a demanda da família e, por vezes, da instituição de que ela se tratasse, liberou a analisante da demanda excessivo do Outro, favorecendo o tratamento.

Com relação ao Outro primordial, sua encarnação foi invocada quando reconhecida a necessidade de abraço e contenção do corpo, por exemplo, que não se efetuaram pela eminência do rechaço. Nesta passagem, eu ainda buscava uma distância possível para estar com Luísa, mas aqui também nos propomos a pensar se a analista podia de fato executar uma função primordial, a qual apaziguasse o desamparo da pequena analisante. Como então fazê-lo? Vale problematizar os efeitos de um abraço sobre um sujeito cuja relação com o Outro e com o corpo era tão peculiar; talvez, de fato, ela não suportasse um abraço, ainda que a intenção deste fosse conter seu corpo despedaçado pelo espelho. De forma semelhante, nos indagamos a posteriori se junto a alguém que se negava ao uso da palavra, a expressão "chega!", diante da desorganização da sala, poderia ser substituída por um gesto da analista que marcasse um convite a um outro fazer conjunto e que apaziguasse Luísa.

Em outras passagens, quando agredida, "Chega, você me bateu!", há algo do Outro da analista que aparecia quando esta era convocada em sua própria pele, de maneira literal. Foi interessante desdobrar tal intervenção, apontando que havia um Outro que submetia a todos: "Aqui na Derdic ninguém bate!", o que liberava a pessoa do analista de imprimir um desejo próprio ou tirânico para em contrapartida colocar-se como Outro barrado, possível parceiro da analisante (Zenoni, 2000).

A partir destes posicionamentos da analista, surgiu a possibilidade de iniciar um trabalho de recorte para o corpo de Luísa, que aos poucos ficou mais organizado. Detemo-nos em tirar por infinitas vezes as roupas das bonecas; desenhamos primeiro o contorno do meu corpo em uma folha de papel craft; e, passadas algumas semanas, pudemos contornar o corpo de Luísa, onde ela pôde desenhar olhos, nariz, boca e cabelo. Surgiram jogos constituintes: Luísa iniciou brincadeiras de esconde-esconde em que podia alternar com a analista, ora a se esconder dela ora a procurá-la. Daí se desdobrou também o interesse pelo limite físico da sala, colocava a analista para fora e depois a chamava para entrar novamente, seu corpo, melhor definido pelo contorno empreendido pela análise, podia ocupar espaços diversos do corpo da analista.

 

Considerações finais

Sustentar o lugar vazio de desejo e a não resposta à demanda do sujeito são pontos que convergem à ética do fazer analítico, que se direciona para a possibilidade de o sujeito dizer de seu próprio desejo em sua história singular. Na clínica com as crianças e, mais especificamente, com aquelas que apresentam questões no contato com o Outro há um desafio maior. Em tais situações urge a necessidade de o analista encarnar o Outro para a criança, a partir de um desejo não anônimo, a fim de possibilitar seu engendramento, uma vez que ela está completamente capturada no imaginário parental. Encarnar o Outro pressupõe a presença ativa do analista, convocado constantemente em atos (Rassial, 2004), mas também em seu desejo particular. O analista paga não somente com palavras, mas também com sua pessoa e seu próprio corpo (Lacan, 1958/1998).

O caso de Luísa é exemplar na medida em que tal convocação é constante. Seja diante do "corpo-espinho" que rechaça aquele que se aproxima ou que se opõe a ela, seja diante da necessidade de apaziguamento e contenção, consequência de seu despedaçamento. Cabe-nos, então, perguntar sobre a possibilidade de o analista, ou de cada analista com sua escuta singular, se fazer parceiro e se emprestar com esta intensidade a tais funções junto a estas crianças, levando em consideração seu próprio percurso de análise, de supervisão e sua história pessoal.

 

Referências

Bernardino, L. M. F. (2004). O desejo do psicanalista e a criança. In L. M. F. Bernardino (Org.), Psicanalisar crianças: que desejo é esse? (pp.57-70). Salvador, BA: Álgama.         [ Links ]

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Recebido em maio/2018  –  Aceito em fevereiro/2019.

 

 

* Este artigo apresenta considerações elaboradas na monografia de mesmo título, orientada pelas professoras Carina Arantes Faria e Ana Carolina Afonso Lima Dias e apresentada em dezembro de 2016 como requisito parcial para aprovação no curso de Aprimoramento Profissional “Os impasses na linguagem e suas manifestações psicopatológicas na constituição subjetiva”, realizado em Diagnóstico Diferencial na Infância pela Divisão de Educação e Reabilitação dos Distúrbios da Comunicação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Derdic/PUC-SP).
1 Doença inflamatória que provoca queda de cabelo, causada por fatores genéticos e participação autoimune, podendo ser agravada por fatores emocionais. Cf. http://www.sbd.org.br/dermatologia/cabelo/doencas-e-problemas/alopecia-areata/22/
2 Anormalidade embriológica que resulta na visível união entre dois ou mais dedos das mãos ou dos pés.

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