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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.24 no.2 São Paulo maio/ago. 2019

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v24i2p178-181 

DOI: 10.11606/issn.1981-1624.v24i2p178-181

EDITORIAL

 

Sándor Ferenczi e a criança nos adultos

 

Daniel KupermannI

IPsicanalista, Professor-Associado do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: danielkupermann@gmail.com.

 

Se fosse preciso condensar em uma única frase o sentido das contribuições do psicanalista húngaro Sándor Ferenczi para a psicanálise e, de modo geral, para as disciplinas que se ocupam das práticas de cuidado em nossa cultura, ela certamente seria "raspem o adulto e vocês encontrarão a criança", como lemos no ensaio "Transferência e introjeção" (Ferenczi, 1909/1991, p. 98).

Um leitor mais íntimo do pensamento freudiano poderia dizer que essa ideia já estava presente no cerne da teoria psicodinâmica da etiologia das neuroses – o infantil sobrevive no adulto: fantasias sexuais, desejos e defesas frente ao desamparo. É verdade, e justamente por isso preferimos afirmar que Ferenczi é, ao longo de grande parte do seu percurso, o principal interlocutor de Freud; seu "paladino e grão-vizir secreto", como nos recorda Sabourin (1988). No entanto, a partir do resgate da problemática do trauma, no final da década de 1920, a concepção acerca do que sobrevive da criança em cada adulto se torna absolutamente decisiva para as quatro vertentes que constituem um pensamento autoral em psicanálise: para a teoria da constituição subjetiva e para a psicopatologia que lhe é correspondente; para a teoria da clínica; e para a ética segundo a qual o psicanalista dirige seus tratamentos. Vejamos brevemente as ressonâncias do gesto ferencziano em cada uma dessas vertentes.

No ensaio "O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estágios" (Ferenczi, 1913/1992a) já se encontra a ideia de que o aparelho psíquico, no processo de adaptação à realidade objetiva e ao mundo dos objetos merecedores do seu investimento libidinal, preservaria necessariamente o germe da onipotência experimentada seja no útero materno, seja na vivência primordial de satisfação repetida alucinatoriamente pelo bebê. Para o aparelho psíquico a coincidência de suas necessidades vitais com a presença do objeto que as satisfaz originaria a "onipotência alucinatória mágica" da qual deriva o princípio de prazer, força motriz do movimento psíquico. Onde a experiência de onipotência – jamais abandonada, mesmo pelo adulto, convém ressaltar – não tem lugar, estaremos diante de um evento traumático que tem como consequência a adaptação submissa a uma realidade acachapante promovida pelo que Ferenczi nomeou identificação com o agressor. Para o autor não há oposição inexorável entre realidade e criação, entre cultura e pulsão/desejo, concepção que ganha corpo e consistência com a publicação de "Adaptação da família à criança", marco da "virada de 1928" segundo a qual Ferenczi revoluciona o campo psicanalítico abrindo o caminho para o pensamento das relações de objeto, do qual Michael Balint e, principalmente, Donald Winnicott seriam os maiores expoentes ao longo do século XX (cf. Kupermann, 2019).

De fato, em "Adaptação da família à criança" (Ferenczi, 1928/1992b, p.4) encontramos uma segunda sentença bastante eloquente do pensamento ferencziano: "O nascimento é um verdadeiro triunfo, exemplar para toda a vida". Seu alvo é a segunda teoria da angústia proposta pouco antes por Freud (1926[1925]/1980), que prega que o sofrimento psíquico tem sua origem no estado de desamparo (Hilflosigkeit) constitutivo da subjetividade humana.

Ferenczi não deixou de reconhecer que a ameaça de abandono por parte do cuidador produz as primeiras experiências de angústia vividas pelo sujeito, sendo também, posteriormente, a fonte do poder do superego herdado do complexo de Édipo. Porém, concebe que as relações estabelecidas entre o bebê e a criança com seus cuidadores estão inseridas em um campo relacional indispensável, formulando o que se pode designar como ambientalismo psicanalítico.

Assim, o nascimento é um triunfo – e não apenas o protótipo de toda angústia de separação – porque, de um lado, os aparelhos respiratório e digestório do bebê estão formados, permitindo a vida extrauterina; de outro, porque a família cuida para que o ambiente seja o mais adaptado – leia-se também o menos intrusivo – possível às necessidades do infans (o leitor poderá facilmente reconhecer aqui a influência de Ferenczi sobre Donald Winnicott). A hospitalidade seria, portanto, o primeiro princípio para uma ética do cuidado em psicanálise. E nesse quesito, somos todos primordialmente estrangeiros dependentes da hospitalidade parental e familiar. Ao longo da vida, continuamos dependentes de um meio suficientemente maleável para acolher os modos de expressão da nossa singularidade. Isso vale não apenas para as relações interpessoais, mas também para as instituições de cuidado da nossa vida social, com destaque para a Escola, o Hospital e a Justiça.

Ao se perguntar sobre as condições para o infans aceder à linguagem, Ferenczi (1933/1992) atribui à criança uma "linguagem da ternura", lúdica e experimental, com o poder de expressar seus desejos e de invocar os objetos de satisfação. Uma linguagem efetivamente evocativa, eficaz para a produção de sentido – desde que na presença de um outro disponível para o compartilhamento afetivo. A linguagem da ternura não se reduz, assim, à representação de uma ausência ou de uma falta sendo, sobretudo, apresentação (Darstellung), efeito da potência de um encontro intersubjetivo.

A consequência clínica de sua concepção de linguagem levou Ferenczi a ampliar o campo transferencial para além da atualização dos afetos referentes às fantasias inconscientes infantis, e a questionar o primado da interpretação vigente na psicanálise do seu tempo. Ao formular o conceito de "empatia" (Einfühlung), melhor traduzido por "sentir dentro" (significando sentir o analisando em si), Ferenczi nos remete à dimensão estética da clínica por meio da qual a linguagem da ternura própria a cada analisando é capaz de produzir o sentido singular para a sua existência. Seja na clínica com crianças, seja na clínica com adultos, compete ao analista falar com a criança que habita cada adulto e mesmo cada criança que comparece no setting – ainda que o adulto ou a criança estejam clivados do seu núcleo sensível e, assim, aparentemente inacessíveis. Nesses casos, é a empatia – como modalidade de escuta, forma de comunicação e fator terapêutico – que permite o resgate e o reconhecimento da expressão silenciosa do analisando (cf. Pimentel & Coelho Junior, 2009).

Dessa maneira, ao recorrer à sensibilidade do analista para o sucesso do empreendimento clínico, Ferenczi promove o questionamento acerca das competências necessárias para que alguém se ofereça a escutar o outro, seu sofrimento, suas angústias traumáticas (que tendem a despertar o horror também no analista) e, ainda, sua potência criadora. Afinal, é a escuta sensível do analista que possibilita qualquer narrativa clinica por parte do analisando. Nesse sentido, Ferenczi (1928/1992c) formula a "segunda regra fundamental" da psicanálise: a análise do próprio psicanalista. Temos, assim, que o terceiro princípio para uma ética do cuidado em psicanálise é a saúde do analista, representada por sua disponibilidade sensível para a escuta do testemunho da dor do seu analisando.

O ambientalismo de Ferenczi, consequência de seu resgate da problemática do trauma e suas incidências sobre as subjetividades, o levou a se ocupar de todas as situações nas quais a dissimetria inerente às relações intersubjetivas tende a produzir intrusões e violências. Destas, o paradigma reside nas relações de poder existentes no encontro entre os adultos e as crianças; não apenas nas relações familiares, mas também nas relações pedagógicas. De fato, a figura da criança aparece no título de quatro dos nove principais ensaios publicados por Ferenczi no período final da sua obra, caracterizado pelo seu interesse pelos eventos traumáticos.

Desse modo, a explicitação de que a psicanálise está inserida no campo da ética do cuidado contribuiu para a interação com outras disciplinas e para intervenções nas diversas instituições da nossa vida social dedicas ao cuidado das crianças, com destaque para as escolas, os hospitais e o judiciário.

Nesse dossiê o leitor de Estilos da clínica encontrará artigos representativos das ressonâncias provocadas pelo pensamento de Sándor Ferenczi nas nossas concepções de cuidado com a criança. São ensaios voltados à clínica psicanalítica com crianças e adolescentes e à clínica com a criança que habita cada analisando adulto; à interface da psicanálise com o campo da educação; e ainda um ensaio metapsicológico abordando aspectos decisivos da teorização ferencziana da pulsão de morte. Acreditamos que os trabalhos que o compõem transmitem uma visão de conjunto das principais contribuições do pensamento de Ferenczi para a compreensão do que é uma criança e dos cuidados que a ela deveriam ser dedicados em uma cultura interessada na promoção da saúde mental. Uma iniciativa capaz de fazer justiça à morte pelo silêncio (Todschweigen) infligida durante décadas pelo establishment psicanalítico àquele que era conhecido como o enfant terrible da psicanálise.

 

Referências

Ferenczi, S. (1991). Transferência e introjeção. In S. Ferenczi, Psicanálise I (A. Cabral, trad., pp. 77-108). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1909)         [ Links ]

Ferenczi, S. (1992a). O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estágios. In S. Ferenczi, Psicanálise II (A. Cabral, trad., pp. 39-54). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1913)         [ Links ]

Ferenczi, S. (1992b). Adaptação da família à criança. In S. Ferenczi, Psicanálise IV (A. Cabral, trad., pp. 1-14). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1928)         [ Links ]

Ferenczi, S. (1992c). Elasticidade da técnica psicanalítica. In S. Ferenczi, Psicanálise IV (A. Cabral, trad., pp. 25-36). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1928)         [ Links ]

Ferenczi, S. (1992). Análise de crianças com adultos. In S. Ferenczi, Psicanálise IV (A. Cabral, trad., pp. 69-83). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1931)         [ Links ]

Ferenczi, S. (1992). Confusão de língua entre os adultos e a criança. In S. Ferenczi, Psicanálise IV (A. Cabral, trad., pp. 97-106). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1933)         [ Links ]

Freud, S. (1980). Inibições, sintomas e ansiedade. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 20, pp. 107-201). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1926[1925]         [ Links ])

Kupermann, D. (2019). Por que Ferenczi?. São Paulo: Zagodoni.         [ Links ]

Pimentel, P. K. A., & Coelho Jr., N. (2009). Algumas considerações sobre o uso da empatia em casos e situações limite. Psicologia Clínica, 21(2), 301-314. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-56652009000200004.         [ Links ]

Sabourin, P. (1988). Ferenczi - paladino e grão-vizir secreto (V. Ribeiro, trad.). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

 

 

1. O presente trabalho contou com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Brasil).

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