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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.24 no.2 São Paulo maio/ago. 2019

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v24i2p231-245 

DOI: 10.11606/issn.1981-1624.v24i2p231-245

DOSSIÊ

 

A pulsão de morte no primeiro Ferenczi: quietude, regressão e os primórdios da vida psíquica

 

La pulsión de muerte en el primer Ferenczi: quietud, regresión y los primordios de la vida psíquica

 

Death drive in the first Ferenczi: a quiet state, regression, and the beginnings of psychic life

 

 

Eugênio C. Dal MolinI; Nelson Coelho Jr.II; Renata U. CrombergIII

IPsicanalista, Docente do Centro Universitário Filadélfia, Londrina, PR, Brasil. E-mail: eecdm@yahoo.com
IIPsicanalista, Professor-Doutor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: ncoelho@usp.br
IIIPsicanalista, Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: renatauc@uol.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo procura expor e discutir o uso que Ferenczi faz da ideia de pulsão de morte, ainda na década de 1910.  Apresentamos a história e o contexto da utilização da ideia entre os primeiros psicanalistas e, em seguida, argumentamos que a primeira hipótese do analista húngaro sobre a pulsão de morte procurava relacionar um estágio de onipotência incondicional, característico, a seu ver, da vida intrauterina, com um estado de quietude originário, uma tendência à regressão e uma concepção do narcisismo primitivo. Cada um desses aspectos é problematizado junto à teoria freudiana. Ao final, fazemos uma análise crítica da hipótese à luz das postulações de outros autores.

Palavras chave: Ferenczi; pulsão de morte; regressão; quietude


RESUMEN

Este artículo busca exponer y discutir el uso que Ferenczi hace de la idea de pulsión de muerte, aún en la década de 1910. Presentamos la historia y el contexto de la utilización de la idea entre los primeros psicoanalistas y, a continuación, argumentamos que la primera hipótesis del analista húngaro sobre la pulsión de muerte buscaba relacionar una etapa de omnipotencia incondicional, característico, a su ver, de la vida intrauterina, con un estado de quietud originario, una tendencia a la regresión y una concepción del narcisismo primitivo. Cada uno de estos aspectos es problematizado junto a la teoría freudiana. Al final, hacemos un análisis crítico de la hipótesis a la luz de las postulaciones de otros autores

Palabras clave: Ferenczi; pulsión de muerte; regresión, quietud


ABSTRACT

This article seeks to present and discuss Ferenczi's use of the idea of a death drive in the 1910s. We present the history and context of the use of the idea among the first psychoanalysts, and then argue that Ferenczi's first hypothesis on the death instinct sought to relate a stage of unconditional omnipotence, characteristic, in his view, of intrauterine life, with an original state of quietness, a tendency to regression and a conception of primitive narcissism. We then compare each one of these aspects with the Freudian theory. In conclusion, we make a critical analysis of the hypothesis using the ideas of other authors.

Keywords: Ferenczi; death drive; regression; quietness


 

 

Nos anos 1920, Ferenczi fez duas referências a um conjunto de ideias de sua lavra, desenvolvido na década anterior, e que teria criado solo fértil para algumas das elaborações teóricas expostas por Freud (1920/2010c) em Além do princípio do prazer.

 

Antes de Além...

A primeira dessas referências é de caráter privado e encontra-se em uma carta endereçada a Groddeck no natal de 19211. Em meio a uma ampla variedade de confidências, Ferenczi conta que esteve aquartelado na cidade de Papa por oito meses durante a Primeira Guerra, entre 1915 e 1916. À época, sentia-se inibido quanto ao trabalho intelectual, embora julgasse ter uma "valiosa teoria" (Fortune, 2002, p. 10) em mãos. A teoria era a de que "o desenvolvimento genital evoluiu como uma reação da parte dos animais à ameaça de desidratação enquanto adaptavam-se à vida na terra" (Fortune, 2002, p. 10). Embora a elaboração da teoria fosse uma constante durante esses anos, Ferenczi relata que não conseguia colocá-la no papel, a despeito de ser capaz de descrevê-la a Freud, Rank, Abraham e Jones. Mesmo antes do período em Papa, prossegue na carta, "desenvolvi minhas visões filosóficas na frente de Lou Salomé, que mais ou menos correspondem àquelas de 'Além' [do princípio do prazer], embora tenham acabado de um jeito diferente" (Fortune, 2002, p. 10). Na carta a Groddeck de 1921, Ferenczi sintetiza a teoria que serviu de mote para a escrita de Thalassa (Ferenczi, 1924/2011b), lembra-se de como teria exposto seus germes para alguns colegas, especialmente para Lou Andreas-Salomé, em Munique2, e relaciona suas ideias de antes e durante a Primeira Guerra com as que Freud (1920/2010c) apresenta em Além do princípio do prazer.

A segunda referência do analista húngaro ao conjunto de ideias data de 1926, e é feita no ambiente muito mais público de um artigo comemorativo. A passagem encontra-se no texto "Para o 70.o aniversário de Freud": 

Preconizei um dia, já lá vão muitos anos, que a pulsão de morte talvez pudesse explicar tudo. A minha confiança em Freud fez-me inclinar diante de seu julgamento negativo – até o dia em que foi publicado Além do princípio do prazer, obra na qual sua teoria do jogo recíproco da pulsão de vida com a pulsão de morte explica certamente melhor a diversidade dos fatos psicológicos e biológicos do que a minha concepção unilateral o fizera na época (Ferenczi, 1926/2011c, p. 425-426).

Lemos sobre "Visões filosóficas" que correspondem, e, consequentemente, em alguma medida, poderiam ter antecipado, àquelas expostas em Além...; e lemos sobre uma teoria em que "a pulsão de morte talvez pudesse explicar tudo". A que Ferenczi está se referindo, especificamente?

Neste artigo, que é parte de uma pesquisa mais longa que desenvolvemos em conjunto, buscamos retraçar criticamente as primeiras postulações ferenczianas sobre a pulsão de morte e discutir de que modo elas formam uma hipótese que apresenta de maneira original alguns dos aspectos que mais tarde Freud desenvolveria ao elaborar sua concepção da pulsão de morte. Como não é nosso objetivo acompanhar minuciosamente o percurso histórico do conceito pulsão de morte entre os primeiros psicanalistas, restringimo-nos a sumarizar, por meio de alguns poucos apontamentos não exaustivos, o que o campo psicanalítico havia produzido em relação ao conceito antes de Ferenczi utilizar o termo pela primeira vez.

Na segunda metade da década de 1900, durante as reuniões das quartas-feiras, Adler defendia continuamente a existência de uma pulsão de agressão autônoma3 (Adler, 1908; Bos, 1996; Nunberg & Federn, 1976). A ideia recebeu a crítica de Freud de modo restrito, durante as sessões de discussão (Nunberg & Federn, 1976), e abertamente, no caso do Pequeno Hans (Freud, 1909/2015). Na mesma frente, no dia 24 de abril de 1907, tanto o termo como a ideia de pulsão de morte – como Todestrieb e como Tânatos, em posição conflituosa, mas complementar à pulsão de vida, e a Eros – foram utilizados por Wilhelm Stekel (Bos and Groenendijk, 2007; Clark-Lowes, 2010; Numberg e Federn, 1976, p. 195 e 196).

Também numa quarta-feira, dia 29 de novembro de 1911, Sabina Spielrein apresentou à Sociedade Psicanalítica de Viena o trabalho "A destruição como origem do devir" (Cromberg, 2014), publicado em forma de artigo no ano seguinte, no Jahrbuch. No texto, a autora utilizou o termo "instinto (Instinkt) de morte" uma vez, e argumentou, em síntese, que "a morte é necessária para a criação da vida (...). O que impulsiona a transformação e a construção (criação), diz ela, é a pulsão de destruição" (Cromberg, 2014, p. 225). A ideia de uma pulsão de destruição, sob a pena de Spielrein, desenvolvia elementos encontrados posteriormente na conceituação freudiana da pulsão de morte; entre eles o papel central, biológica e psiquicamente, da destrutividade nos processos mentais. Nesse mesmo correr de anos, 1911-1912, Stekel (1911) discutia sonhos que procuram simbolizar a morte e afirma que, onde esta se revela, também se manifesta a pulsão de vida.4 A ideia volta a aparecer em suas mãos ao escrever sobre "A psicologia da dúvida" (Stekel, 1912), com o uso do termo pulsão de morte para designar aquilo que entraria em conflito com a pulsão de vida (Cf. Bos, 1996).  Não longe desses assuntos, ainda no ano de 1912, em uma reunião na casa de Freud em que Lou Andreas-Salomé esteve presente, Ferenczi argumentara em favor da ideia de uma Todestendenz, "tendência de morte", a qual Freud mostrou-se contrário (Avello, 2006).  Pouco mais de um mês após essa reunião, em 28 de outubro de 1912, Ferenczi enviou a Freud uma carta na qual fala sobre a ideia de escrever um texto a respeito dos "estágios de desenvolvimento do 'órgão da realidade' (falta de necessidade = onipotência, magia dos gestos, magia das palavras, senso de realidade" (Brabant, Falzeder and Giampieri-Deutsch, 1993, p. 420).

O conceito de pulsão de morte não era uma panaceia buscada por todos os psicanalistas à época, mas, ao fim de 1912, alguns dos mais atentos já estavam familiarizados com a expressão e com algumas noções que se lhe tornariam próximas. A partir daqui, acompanharemos a primeira versão de Ferenczi sobre o tema.

 

1913

O ano seguinte, 1913, começa de modo acelerado. Em fevereiro, Freud já lera o texto sobre os estágios de desenvolvimento do 'órgão da realidade', anunciado poucos meses antes por Ferenczi, e envia suas críticas. Ferenczi, por sua vez, oscila entre adoecimentos físicos, que receberam os mais variados diagnósticos, e entre sua relação amorosa com Gisella e Elma Palos. Ambos os homens planejam conjuntamente as férias de verão, assim como as reações às últimas publicações de Jung, que, na opinião dos dois, afastavam-se do campo psicanalítico. Entre junho e julho, parte do assunto tratado na correspondência ganha as feições de Ernst Jones, que chega a Budapeste para realizar sua análise com Ferenczi. Quando a análise termina, em primeiro de agosto, o analista húngaro contava 40 anos. Duas semanas mais tarde, Ferenczi viaja ao encontro da família Freud, na Itália; depois, Abraham soma-se ao grupo. Em setembro, o petit comité dirige-se ao quarto congresso de psicanálise, em Munique. De lá, Freud segue para Roma, e Ferenczi fica mais um dia e meio na cidade alemã, na companhia de Lou Andreas-Salomé (Brabant, Falzeder and Giampieri-Deutsch, 1993). A permanência estendida em Munique não foi desimportante.

Ainda em setembro de 1913, no dia 25, Ferenczi senta-se à escrivaninha e escreve a Jones: "Já tenho, há muito tempo, sentido falta de notícias suas, e, portanto, gostaria de abordá-lo como um (em primeiro lugar, é claro, gerando interesse) agente de fermentação, perturbar sua paz (instinto de morte), e forçá-lo a dividir comigo mais uma vez alguns dos eventos pessoais e outros, que dizem respeito a nossos interesses mútuos" (Eros, Szekacs-Weisz and Robinson, 2013, p. 17, grifos nossos).  Os editores da correspondência Ferenczi/Jones fizeram a gentileza de apresentar um fac-símile da primeira página da carta. Lê-se o termo claramente, Todestrieb, entre parênteses, relacionado à ideia da paz que pode ser perturbada. Em meio a outras notícias, Ferenczi conta sobre o dia e meio a mais em Munique, e acrescenta que Lou o forçara a "desenvolver – isto é, a colocar no papel as ideias sobre a pulsão de morte. Esse parece ser o trabalho dela" (Eros, Szekacs-Weisz and Robinson, 2013, p. 18, grifo nosso). A própria Lou Andreas Salomé escreveria mais tarde sobre o interesse na pulsão de morte pensada por Ferenczi como "procedendo da condição original do bebê no útero como a condição prazerosa de paz despida de desejos" (Andreas-Salomé, 1964, apud Eros, Szekacs-Weisz and Robinson, 2013, p. 21n12). Embora o uso do termo nesses contextos pareça-nos um pouco solto, não podemos deixar de vê-lo como um primeiro esforço ferencziano de elaboração sobre o que entendia como pulsão de morte, e de como esta se ligava a certa concepção sobre os primórdios da vida psíquica.

Concentremo-nos agora no papelório de 1913. Temos a nossa frente o artigo "Estágios do desenvolvimento do sentido de realidade", em que a expressão Todestrieb não aparece. No texto, Ferenczi (1913/2011a) procura organizar um crescente de estágios que vai do funcionamento exclusivo do princípio do prazer a outros com maior premência do princípio de realidade. A passagem de um estágio a outro envolve uma maior consideração pelo mundo externo – por suas características, suas imposições, respostas e variações – e, consequentemente, uma sequência de golpes na onipotência (primeiro do bebê, depois da criança) que se vê confrontada, cada vez mais ao longo do desenvolvimento, com um meio menos afeito à concordância com os desejos individuais. Nas palavras do húngaro, o senso de realidade desenvolve-se devido a "uma série de sucessivos impulsos de recalcamento (...) pela necessidade, pela frustração que exige a adaptação, e não por 'tendências para a evolução' espontâneas" (Ferenczi, 1913/2011a, p. 59). Ferenczi desenvolve a postulação de Freud (1911/2010a), exposta em "Dois princípios do funcionamento psíquico", a respeito de um estado em que o bebê, sob os cuidados da mãe, seria capaz de entregar-se inteiramente ao princípio do prazer e ignorar o mundo externo. Vejamos a origem dessa ideia.

Ao escrever o Projeto de uma psicologia, Freud (1895/1995) supõe a existência de toda uma gama de incitações ao organismo cuja fonte é interna e que só cessam "sob condições determinadas que têm de ser realizadas no mundo externo" (p. 11), por meio de ações específicas. Tais ações, de busca por descarga da excitação, demandam por si mesmas um aumento na quantidade (Q) de excitação interna, de energia de mobilização, o que coage o sistema nervoso – e mais tarde, o aparelho psíquico – a "abandonar a tendência originária para a inércia, isto é, para nível = 0" (1895/1995, p. 11). A tendência originária para a inércia – leia-se, para a descarga total da excitação, visando Q = 0 – precisa modificar-se, de modo que o indivíduo possa realizar as ações específicas, necessárias à vida, com o menor dispêndio de energia ou mantendo a quantidade (Q) de energia em um nível constante. O princípio de evitação do desprazer, gerado pelo aumento tensional, e de busca pelo prazer, de diminuição da quantidade de excitação interna no aparelho psíquico, aparece como oriundo tanto da tendência à inércia quanto do princípio de constância.

Em 1911, Freud retorna à mesma suposição. Entre as experiências psíquicas do recém-nascido, contar-se-ia um "estado de repouso psíquico" que foi "inicialmente perturbado pelas exigências imperiosas das necessidades internas" (Freud, 1911/2010a, p. 111, grifo nosso). Nada de novo para o leitor moderno, que, além dos textos publicados até aquele momento, teve acesso ao Projeto, de 1895. Não era o caso de Ferenczi. Em sua opinião, a organização descrita por Freud, em 1911, como uma "ficção", poderia ser encontrada, de fato, quando consideramos o "período da vida passado no corpo da mãe. Nesse estágio", acrescenta, "o ser humano vive como um parasita do corpo materno. Para o ser nascente mal existe 'um mundo externo'; todos os seus desejos de proteção, de calor e de alimentação estão assegurados pela mãe" (Ferenczi, 1913/2011a, p. 48).

Quando colocada ao lado das ideias apresentadas por Freud até então, a hipótese de Ferenczi regride temporalmente o ponto inicial de observação ao considerar a existência pré-natal, e retira de cena, ao menos em seu momento inaugural, tanto as necessidades internas como as ações específicas que, mais tarde, poderiam satisfazê-las. Ficamos frente ao que Freud chamara de "estado de repouso" em sua forma mais primitiva, e ao que se poderia supor como sendo suas características: o feto no útero não teria a necessidade de agir, seja sobre o que lhe é interno, seja sobre o ainda indiferenciado "externo", porque não lhe caberia alterar nada em si ou no ambiente, por meio de qualquer ação para sua própria manutenção. O resultado dessa conjectura é uma versão sobre o princípio da vida psíquica na qual impera a sensação de onipotência. Ferenczi chama a esse estado de "Período da onipotência incondicional" (1913/2011a, p. 49). Como a continuidade da própria vida, nessa leitura, não está propriamente a cargo do feto, mas da gestante, a definição de onipotência proposta pelo húngaro não é a da sensação ou crença de que os desejos e pensamentos ganham forma no mundo externo, mas a de um estado em que se tem "a impressão de ter tudo o que se quer e de não ter mais nada a desejar. É o que o feto poderia pretender no que lhe diz respeito, já que possui constantemente tudo o que lhe é necessário à satisfação de suas pulsões, portanto, nada tem a desejar, é desprovido de necessidades" (Ferenczi, 1913/2011a, p. 48-49).

Em termos de economia psíquica, poderíamos nos perguntar em que medida essa hipótese concorda com as postulações freudianas de uma tendência à inércia, de um princípio de constância, e do próprio princípio do prazer. Também poderíamos nos perguntar se é importante que concorde, mas seríamos levados numa direção que ainda não é a nossa. A rigor, no quadro do pensamento freudiano até então, se não há evitação do aumento tensional, nem diminuição na quantidade de excitação, não caberia falar ainda em princípio do prazer. O que Ferenczi parece descrever com sua hipótese é um funcionamento em que reina a constância tensional e sobre o qual, podemos acrescentar a nosso cargo, se incide uma tendência à inércia, ela o faz enquanto meta original obscura, rapidamente obstruída pela interação plena e contínua do feto com a mãe. Continuemos texto adentro, antes de retomarmos esse ponto mais à frente.

O idílio intrauterino não seria sempre total, e nem duraria eternamente. Ferenczi faz questão de destacar, em nota, que dificuldades e acidentes na gestação podem demandar do feto a necessidade de agir, de "efetuar um trabalho" (1913/2011a, p. 49, nota 8), o que daria fim, ainda antes do nascimento, ao período da onipotência incondicional. Via de regra, porém, é o nascimento que desperta, em sua leitura à época, a necessidade desprazerosa de ação e o primeiro afeto de angústia. Quando observamos o recém-nascido, acrescenta Ferenczi, "temos a impressão de que ele [o bebê] não está nada encantado com a brutal perturbação ocorrida na quietude isenta de desejos que desfrutava no seio materno, e até mesmo deseja, com todas as suas forças, reencontrar-se nessa situação" (1913/2011a, p. 49). O meio que recebe o recém-nascido, as pessoas encarregadas de seu cuidado, procura instintivamente reestabelecer condições próximas àquelas experimentadas no útero materno: protege-o contra estímulos externos de toda ordem e procura mantê-lo satisfeito. Mesmo com todos esses esforços, o bebê encontra-se numa nova situação depois da "perturbação desagradável que subitamente ocorreu, em virtude do nascimento, na situação de satisfação de que usufruía até então" (Ferenczi, 1913/2011a, p. 50). Esse novo estado, supõe, levará ao "reinvestimento alucinatório do estado de satisfação perdido", que fora a "existência tranquila no calor e na placidez do corpo materno" (1913/2011a, p. 50). A tarefa de alucinar o estado anterior de satisfação – de quietude desprovida de desejos – seria capaz de manter a sensação de onipotência após o nascimento, uma vez que o meio cuidador procura agir em consonância com o que o bebê alucina. A criança "é levada a sentir-se na posse de uma força mágica, (...) é capaz de concretizar todos os seus desejos mediante a simples representação de sua satisfação" (Ferenczi, 1913/2011a, p. 50). Abre-se, desse modo, um segundo período, de "onipotência alucinatória mágica", em que basta a representação para recriar a situação de satisfação. Quando, após a primeira perturbação, a necessidade desaparece devido ao encontro da alucinação com a presteza do meio, o bebê é capaz de dormir. De acordo com Ferenczi, "O primeiro sono é, portanto, a reprodução bem-sucedida da situação intrauterina que preserva, tanto quanto possível, das situações externas, com a provável função biológica de concentrar a totalidade da energia nos processos de crescimento e regeneração, sem ser perturbado por uma tarefa exterior a realizar" (1913/2011a, p. 51).

Para nossos propósitos, não é necessário que acompanhemos os demais estágios discutidos pelo autor;5 já temos o bastante para seguir.

 

Sobre armadilhas

Até aqui encontramos uma hipótese arranjada como uma arapuca para pegar três pássaros de bela plumagem e tamanhos distintos, mas que fica com a portinhola aberta. A primeira ave apanhada diz respeito à consideração de que a vida intrauterina – em condições normais de atmosfera e pressão – envolve uma existência marcada pela sensação de onipotência anterior à emergência do desejo e à experiência de diferenciação entre o que é interno e o que é externo; leia-se: por um estado em que as necessidades são supridas conforme aparecem e imediatamente, de modo que são desnecessários tanto o ato de desejar, que surge com a não satisfação, como a diferenciação interno/externo. Essa condição inaugural de "quietude" localiza-se, dentro dos limites desse contexto teórico, antes de qualquer ímpeto para a ação psíquica.

A segunda ave presa pela hipótese é bem mais volumosa e decorre da seguinte ideia: se a vida intrauterina consiste numa existência com tal natureza harmoniosa6, após o nascimento o psiquismo desenvolver-se-ia nas linhas de uma tendência à regressão ao estado de quietude e paz sem desejos experimentado anteriormente, procuraria restabelecê-lo sempre que possível. É neste ponto que se encontra a postulação de que o estado de quietude, ou de paz, só seria rompido devido a uma pressão externa (um "agente fermentador") que convoca, provoca, exige uma adaptação do (e causa uma ação no) ente7 que, até então, teria preferido ficar como está. Foi esse aspecto da hipótese, em especial, que mereceu a citação de Freud em Além do princípio do prazer.

De acordo com Figueiredo (1999), trata-se de uma citação que revela o caráter parasitário-ambíguo das notas de rodapé freudianas sobre o pensamento de Ferenczi. Lemos, em Além..., no corpo do texto: "Tanto o desenvolvimento superior como a regressão poderiam ser consequências de forças externas que impelem à adaptação, e o papel dos instintos poderia limitar-se, em ambos os casos, a reter como fonte interna de prazer a mudança imposta" (Freud, 1920/2010c, p. 209). Segue-se uma chamada de nota, na qual o húngaro é citado: "Por um outro caminho, Ferenczi chegou à possibilidade da mesma concepção" (1920/2010c, p. 209n19). Dois pontos, abre aspas: "Se seguirmos esse raciocínio até fim, será preciso considerar a existência de uma tendência para inércia ou para a regressão, dominando a própria vida orgânica; a tendência para evolução, para a adaptação, etc. dependeria, pelo contrário, unicamente de estímulos externos" (Ferenczi, 1913/2010a, p. 60n23, grifos nossos). Uma nota de rodapé sobre uma nota de rodapé.

Tanto na graça feita na carta de 1913 a Jones, quanto no texto sobre os estágios do desenvolvimento do sentido de realidade, que lhe é contemporâneo, vemos as penas das duas aves que já apresentamos e que respondem pelo uso solto que Ferenczi fez então do termo Todestrieb. Haveria um estado de inação, de quietude ou "repouso" que é sustentado por um meio originalmente não invasivo, não exigente, e provedor (o primeiro pássaro). Esse mesmo meio, capaz de sustentar a quietude, entretanto, não poderá fazê-lo infinitamente: ele demandará respostas, reações, ou desadaptar-se-á, estimulando o ente a deixar a passividade radical que o domina. Mesmo fadada a terminar após a estimulação externa, em consequência desta, a existência do estado de quietude original poderia ser identificada mais tarde – as penas da segunda ave – na tendência de retorno alucinatório a condições em que nada precisaria ser desejado e nada precisaria ser feito. A dinâmica é análoga a um Zugzwang de xadrez, em que quem é forçado a mover-se, a agir, não deixará de lamentar o fato e ansiar por uma situação em que o jogo volte a lhe ser tão favorável como era antes da obrigação de mover-se. 

Mais de dez anos depois do artigo sobre os estágios do desenvolvimento do sentido de realidade, Ferenczi ainda conservará o pássaro da regressão bem preso entre as mãos. Reencontramos o movimento de regressão ao estado intrauterino como um aspecto central em Thalassa (Ferenczi, 1924/2011b). Esse texto longamente gestado – como vimos, grande parte do desenvolvimento das ideias ali contidas data dos anos 1910 – merece ser pareado ao artigo de 1913, e, a nosso ver, localizado no contexto das preocupações teóricas do primeiro Ferenczi. Para Figueiredo (1999), Thalassa é um livro povoado de "uretralidade", com trechos que geram certo "constrangimento" (p. 203).  Rudnytsky (1996) considerou-o "scientific rubbish", com um argumento que "acentua a perspectiva falocêntrica de Freud" (p. 5); e o próprio Ferenczi avaliá-lo-ia, anos depois de sua publicação, como "produto de pura especulação" (Brabant and Falzeder, 2000, p. 400). De toda forma, em Thalassa, o coito, o sono e a morte são descritos enquanto modos de "satisfação da pulsão de retorno ao corpo materno e ao oceano, ancestral de todas as mães" (Ferenczi, 1924/2011b, p. 326). O movimento regressivo, descrito em 1913, ganha extensão, é generalizado a toda a vida orgânica e explicitamente nomeado como "pulsão de retorno". Mesmo "O desejo edipiano" poderia ser lido, de acordo com Ferenczi, como "a expressão psíquica de uma tendência biológica muito mais geral que impele os seres vivos ao retorno ao estado de repouso que desfrutavam antes do nascimento" (1924/2011b, p. 293).

Como bem observou Gondar (2017), nesses momentos de sua teorização, Ferenczi recorre a Nietzsche, e o faz porque encontra no filósofo "os elementos teóricos que lhe indicam a possibilidade de pensar a subjetividade sem reduzi-la a oposições" (p. 170). Não se trata, para o húngaro, de um vitalismo que rejeitará a pulsão de morte – como estamos vendo, o conceito é caro a Ferenczi – mas de uma posição monista (i.e., materialista), no que diz respeito à relação mente-corpo (Gondar, 2017). "Talvez", lemos em Thalassa ,

a morte "absoluta" nem exista; talvez o inorgânico dissimule germes e tendências regressivas; ou talvez até Nietzsche tivesse razão quando disse: "Toda a matéria inorgânica provém da orgânica, é matéria orgânica morta. Cadáver e homem". Nesse caso, deveríamos abandonar definitivamente o problema do começo da vida e imaginar todo o universo orgânico e inorgânico como uma oscilação perpétua entre pulsões de vida e pulsões de morte... (Ferenczi, 1924/2011b, p. 356-357).

Para Avello (2006), em passagens como essa o húngaro demonstra sua insatisfação com a natureza da dualidade proposta por Freud. Linha próxima de leitura é adotada por Gondar (2017), para quem, a essa altura da obra ferencziana, o que temos é a defesa de que "Não há diferença de natureza entre Eros e Thanatos; o que há são diferenças de ritmo num movimento vital mais amplo" (p. 170). De modo semelhante, para Figueiredo (1999), o que encontramos em Thalassa é uma "lógica pós-dualista" (p. 188): o coito, por exemplo, é a descarga de uma tensão, mas também a satisfação da pulsão de retorno ao corpo materno, e, também, de retorno ao oceano que Ferenczi supõe estar na origem da vida. O que entra em jogo nessa lógica, e que aqui nos interessa ao avaliar as aves presas pela hipótese ferencziana de 1913, é a manutenção de um campo de equilíbrio entre uma tendência regressiva "de morte" (que remete tanto à filogênese quanto à ontogênese, e cuja forma ontogênica primeira seria o estado de quietude intrauterino) e uma tendência progressiva "de vida", cuja origem estaria na impossibilidade de total e absoluta inatividade frente a um ambiente que, por revelar-se não continuamente harmonioso com o ente, é estimulante e traumático.

Essa dimensão ambiental e sua relação com o conceito de narcisismo, ainda em 1913, são aspectos que Ferenczi não abandonará. São eles que dão forma à terceira ave presa pela hipótese sobre a pulsão de morte que estamos acompanhando.

 

A terceira ave

Na hipótese de Ferenczi, como vimos, o paradigma da tendência regressiva seria o sono. Este "nada mais é senão uma regressão periódica e repetida ao estágio de onipotência alucinatória mágica e, por esse intermédio, à onipotência absoluta da situação intrauterina" (1913/2011a, p. 51), o que já fora também o primeiro sono do bebê. Se o primeiro sono é uma reprodução da situação intrauterina, capaz de preservar o ente das "situações externas", ou seja, da necessidade de interação com algo experimentado enquanto externo, diferente, e agitante, e, além disso, o sono posterior consiste numa regressão periódica a esse estágio, o que Ferenczi termina por descrever, sem utilizar o conceito, é algo próximo ao que Freud chama de narcisismo primário, primitivo. Para sermos exatos, trata-se de uma das versões sobre o narcisismo primário, que Freud defende em alguns momentos. Vamos a eles.

Nas Conferências introdutórias, Freud (1916-1917/2014a) reapresenta o narcisismo como um "estado geral e primordial" (p. 550) a partir do qual se desenvolve o amor objetal, mas que não é excluído por este. Essa mesma natureza de "estado geral e primordial" do narcisismo seria retomada noutros termos dez anos mais tarde e relacionada à vida intrauterina. Em Inibição, sintoma e angústia, Freud argumenta que não poderíamos atribuir ao feto uma experiência subjetiva de separação da mãe durante o nascimento porque ela "é completamente desconhecida, como objeto, do feto completamente narcisista" (1926/2014b, p. 71). Durante o nascimento, prossegue alguns parágrafos à frente, "O feto não pode notar senão um distúrbio na economia de sua libido narcísica" (1926/2014b, p. 75). Enquanto nestas passagens os adjetivos "narcisista" e "narcísica" indicam uma qualidade da libido, ou do ente em relação àquilo que é capaz de investir libidinalmente, na passagem das Conferências o que temos é a apresentação hipotética de uma condição originária de indiferença quanto ao mundo externo. Este, uma vez que é ignorado, não demandaria inicialmente qualquer investimento. O sono seria um ponto de encontro exemplificável entre a modalidade narcísica de investimento e o posterior estado regressivo que a permite, como lemos claramente em "Complemento metapsicológico à teoria dos sonhos":

Somaticamente, dormir é uma reativação da estadia no ventre materno, preenchendo-se as condições de repouso, calor e ausência de estímulos; e muitas pessoas retomam, dormindo, a posição fetal. O estado psíquico de quem dorme se caracteriza pela retração quase total do mundo que o cerca e a cessação de todo interesse por ele (Freud, 1917/2010b, p. 152).

O sono e o sonhar constituiriam movimentos de regressão (temporal, tópica e dinâmica) no percurso de desenvolvimento do Eu e, paralelamente, da libido. Para Freud (1917/2010b), durante o estado do sono, a libido chega "até a instauração do narcisismo primitivo; a primeira [de desenvolvimento do Eu] chega ao estágio da satisfação alucinatória do desejo" (p. 153). O desejo de dormir é descrito como uma tentativa de recolher todos os investimentos do Eu, dirigidos ao mundo externo, buscando instaurar um "narcisismo absoluto (...) [que] pode ter êxito apenas parcial, pois a parte reprimida do sistema Ics não acompanha o desejo de dormir" (1917/2010b, p. 156). Se por um lado estamos assim explicitamente no campo das hipóteses freudianas sobre o primitivo, o originário, e o absoluto, por outro pisamos no terreno das estratégias, mais ou menos tardias, para evitar o sofrimento.

Em O mal-estar na civilização, Freud observa que o isolamento intencional de um indivíduo para longe de seus pares é a medida mais acessível contra o sofrimento oriundo das relações humanas. A "felicidade que se pode alcançar por essa via é a da quietude. Contra o temido mundo externo o indivíduo só pode se defender por algum tipo de distanciamento, querendo realizar sozinho essa tarefa (1930/2010d, p. 32). Outra estratégia contra o sofrimento seria dominar "as fontes internas da necessidade", ao modo dos iogues, dando fim à vida pulsional. "Tendo-se conseguido isso", entretanto, "também qualquer outra alternativa foi abandonada (e a vida, sacrificada), e novamente se adquiriu, por outro meio, apenas a felicidade da quietude" (Freud, 1930/2010d, p. 34).

Ambas as estratégias contra o sofrimento – o isolamento e o domínio das fontes internas de necessidade – envolvem um afastamento da "vida", na medida em que buscam aproximar o indivíduo do estado de quietude, caracterizado pela ausência de necessidades e desejos e pela indiferença ao ambiente. Ambas constituem retraimentos narcísicos, tentativas de retorno ao próprio, exercícios de desligamento e fechamento às eventuais exigências de ação e movimento características das relações com o meio externo e com o próprio corpo. A vida, aqui, é caracterizada pela demanda de trabalho, pela agitação e pelo barulho. A mesma consideração já fora expressa em Além do princípio do prazer, onde são as pulsões de vida que "se apresentam perturbando a paz, trazendo tensões [internas] cuja eliminação é sentida como prazer, enquanto" as pulsões de morte, "parecem realizar seu trabalho discretamente" (Freud, 1920/2010c, p. 238, grifo nosso). Nessas passagens, as palavras "quietude" e "paz" relacionam-se a situações, inaugurais ou tardias, de isolamento narcísico e distanciamento da "perturbação" causada pelas pulsões de vida. Estamos no mesmo campo terminológico e conceitual utilizado por Ferenczi em 1913.  

Â É o momento de uma síntese. A hipótese sobre a pulsão de morte que acompanhamos no primeiro Ferenczi relacionava 1) um estado, caracterizado pela quietude sem necessidades ou desejos, logo, que não demanda nem a atividade nem a distinção interno/externo; 2) uma tendência para regredir a esse estado, uma tendência de retorno ao "próprio", leia-se, para o reestabelecimento da constância tensional experimentada quando do provimento, pelo meio, de tudo o que é necessário à existência; e 3) uma localização temporal para aquilo que, mais tarde, Freud chamaria de narcisismo primitivo, absoluto, e cuja forma primeira (ficcional para Freud, de fato, para Ferenczi) seria a vida intrauterina.

Dissemos que a portinhola dessa arapuca fica aberta; chegou a hora de vermos o porquê.

 

Sobre portinholas

Os conceitos, como os pássaros, não caem sobre o nosso colo; para trabalhá-los, é melhor tê-los, mesmo que temporariamente, ao alcance da mão. A hipótese do primeiro Ferenczi, que procura tratar da pulsão de morte apanhando as ideias sobre um estado de quietude ou paz, uma tendência à regressão e uma condição narcísica inicial, não resiste ao movimento interno das aves na arapuca – as relações entre os conceitos – e nem à consideração pausada sobre a natureza da vida intrauterina. Noutras palavras, o que deixa a portinhola da hipótese aberta são suas dobradiças, a saber: o papel dado à atividade, a leitura sobre a natureza da dinâmica ente-ambiente nos primórdios da vida psíquica, o uso do termo "de morte" (na carta a Jones e, mais tarde, em Thalassa ) para qualificar uma tendência regressiva, e o fato de Ferenczi tomar como algo observável um estágio do funcionamento psíquico que é – e não poderá deixar de ser – de caráter especulativo.

Hoje contamos com informações seguras a respeito da existência de considerável atividade por parte do feto durante a vida intrauterina. Essa atividade não é causada somente por estímulos externos, de modo reativo, mas exibe também uma natureza espontânea, que é observável, por exemplo, em exames de ultrassonografia que revelam o feto chupando o próprio dedo ou interagindo com o cordão umbilical e com a placenta (Piontelli, 1992; Prat, 2007). Mesmo no caso da fonte de estimulação ser "externa" (lembrando que tomamos o ente, nesse momento, como estando em interação com um ambiente que ainda não é percebido como externo ou diferente), os estímulos táteis, cinestésicos, sonoros, gustativos e visuais são elementos que tanto formam como são formados na (e pela) coexistência do feto e da gestante. Aqui nos parece mais apropriado recorrer a uma imagem de Winnicott: "Se tomarmos como analogia uma bolha", escreve o psicanalista inglês,

podemos dizer que quando a pressão externa está adaptada à pressão interna, a bolha pode seguir existindo. Se estivéssemos falando de um bebê humano, diríamos "sendo". Se, por outro lado, a pressão da bolha for maior ou menor que aquela em seu interior, a bolha passará a reagir à intrusão [impingement]. Ela se modifica como reação a uma mudança no ambiente, e não a partir de um impulso próprio. Em termos do animal humano, isto significa uma interrupção no ser, substituída pela reação à intrusão. Cessada a intrusão, a reação também desaparece, e pode haver, então, um retorno ao ser (Winnicott, 1988/1990, p. 148).

Na analogia da bolha, que pretende ilustrar a vida fetal e, no limite mais simples, a vida em qualquer idade, encontramos algo muito próximo das imagens utilizadas por Freud e Ferenczi para descrever os primórdios da vida psíquica, mas se nota algumas variações. De início, dentro e fora contêm a mesma pressão, são distinguíveis ao observador externo, mas não às partes envolvidas – especialmente, não ao interior da bolha. Qualquer impacto externo causará mudanças em sua forma, mas nem todo impacto será intrusivo; leia-se, romperá seu contorno. A leitura winnicottiana atribui à figura um movimento interno com dois aspectos, ela progride, amadurece, e, paralelamente, tende a dirigir-se ao que a cerca. Na eventualidade de que "a adaptação ativa [do ambiente] seja quase perfeita (...). O movimento do próprio indivíduo (talvez o movimento real da espinha ou a perna dentro do útero) descobre o ambiente" – encontra-o e dá a ele uma tonalidade própria – "Isto, repetido, se transforma num padrão de relacionamento" (Winnicott, 1988/1990, p. 149) sadio. Se quisermos utilizar o termo "quietude" nesse contexto, como Ferenczi o fez, em 1913, talvez fosse mais apropriado referirmo-nos a um estado de quietude que pressupõe momentos de agitação espontânea, de atividade e "trabalho" saudáveis, que não encerram o estágio de onipotência incondicional. Tais momentos, na verdade, questionariam mesmo a concepção desse estágio como envolvendo algo da ordem de uma passividade radical. 

Pode ocorrer de não ser a bolha, ou o ente, que força o contato, mas o ambiente. Em termos tanto freudianos quanto ferenczianos, se o estímulo externo for forte o suficiente para romper os contornos protetivos, teremos um trauma. Em termos winnicottianos, "Isto merece o título de intrusão. O indivíduo reage à intrusão que é imprevisível, por não ter relação alguma com o processo vital do próprio indivíduo" (Winnicott, 1988/1990, p. 149, grifo nosso). Leia-se: o impacto do meio externo sobre o indivíduo, quando alheio ao processo maturacional, é vivido como um ataque que demanda reação.8 A nosso ver, somente nesses casos seria pertinente falarmos em uma necessidade desprazerosa de ação que daria fim ao estado prévio de quietude "agitada". A utilização do termo "pulsão de morte" nesse contexto mereceria ainda outra consideração, de ordem econômica. 

Lembrando a referência de 1926 feita pelo húngaro à sua própria concepção da Todestrieb, anterior a Além do princípio do prazer, poderíamos dizer que a hipótese de 1913 sobre o tema da "pulsão de morte", que se prolonga em Thalassa , não era capaz de "explicar tudo", mas avançava alguns elementos importantes. Durante o período de onipotência incondicional, encontramos em ação não só o princípio de constância, mas também um estado que originalmente condicionaria a tendência regressiva em favor da ausência de variações tensionais. Caso procuremos o que Freud, em 1920, chamou de pulsão de morte, notaremos que o cerne da noção passa por algo semelhante, mas não igual, de fato, ao que Ferenczi considerou, ainda em 1913, como o estado de quietude, passível de ser atribuído à vida do feto.

Em 1920, encontramos mais de um eixo mobilizador para a criativa conceituação freudiana da pulsão de morte. O que está em jogo é a compulsão à repetição, e como esta insiste em reproduzir aquilo que nunca foi prazeroso ou mesmo que foi doloroso; mas também são as ideias a respeito do retorno ao inorgânico; de uma nova posição para a agressividade e para a destrutividade; da diferença entre energia livre e energia investida (e como a primeira, ao ser ligada, converte-se na segunda); de uma reorganização dos princípios de funcionamento psíquico e do conflito pulsional. Se pudemos localizar parcialmente a existência de alguns desses eixos já antes de 1920 (em Adler, Stekel, Spielrein, Ferenczi e no próprio Freud), a criativa conceituação de Freud não deixa, por isso, de chamar a atenção.

Como escreve Mezan (2013), a repetição em Além do princípio do prazer é utilizada "como um princípio transcendental" (p. 258), na acepção kantiana, ou seja, "como condição a priori de possibilidade e de limites de um fenômeno" (Mezan, 2013, p. 258n8). Nessa leitura, "A regressão, forma exterior da repetição, acaba por conduzir o ser vivo à condição inorgânica de que partiu, ou seja, a morte repete o estado anterior ao nascimento" (Mezan, 2013, p. 260), que seria o inorgânico. No texto de Ferenczi de 1913, por outro lado, se coubesse o uso da palavra "morte", como o húngaro faz na carta a Jones, este não chegaria a envolver o inorgânico, mas ofereceria, como ponto último da tendência de regressão, o estado de ausência de necessidades e desejos suposto no período de onipotência incondicional. É por essa via que se aproximam o desenvolvimento posterior das ideias de 1913, que Ferenczi realiza em Thalassa, por exemplo, e o eixo da ligação da energia livre presente em Além do princípio do prazer.

De acordo com Figueiredo (1999), "A questão da ligação das energias livres (Bindung) não está presente de forma explícita no texto de Ferenczi" (p. 166) de 1924, como também não estava no artigo de 1913, mas

a questão do próprio está: o retorno ao seio materno é fundamentalmente um retorno à origem do próprio quando este formava Um com seu entorno. Ora, este formar Um, este estado de quietude e proteção, é também condição de redução máxima de energias livres. O que diferencia Freud e Ferenczi neste particular é que Freud focaliza uma dimensão estrutural do próprio – o estado da circulação energética, a formação da crosta, a acumulação da reserva interna, etc. – enquanto Ferenczi insiste na dimensão ambiental – o meio intrauterino, a maternagem, etc. que são também, em última instância, as mais primitivas proteções e as mais originais reservas de vida de que dispõe o feto e o recém-nascido. (Figueiredo, 1999, p. 166-167).

A indiferenciação, a não distinção entre ente e ambiente, cria um campo de redução tensional porque, levando a ideia à frente, o meio em que circula a energia encontra-se ampliado e conta com a proteção e a complacência do ambiente na tarefa de dar vazão à carga gerada pelas energias livres. Esse movimento de redução do nível de energia, cabe lembrar, não traz Q a zero, mas procura mantê-la, in extremis, constante.  Rigorosamente, como bem destaca Laplanche (1970/2006), "um princípio do zero e um princípio da constância são irredutíveis um ao outro" (p. 173). Uma vez que não cabe falar em ausência de excitação na vida fetal ou no começo da vida pós-natal (em Q=O), a postulação ferencziana de 1913 sobre a Todestrieb é mais, como vimos, sobre o movimento regressivo da Trieb a um estado de constância tensional e à sensação de onipotência incondicional, e menos sobre der Tod; que só ganharia uma forma mais clara no pensamento do autor anos depois.

Parece-nos que uma avaliação dessa ordem pode ter respondido pelo recuo do húngaro em utilizar, ainda no artigo de 1913, o termo Todestrieb, como fizera na carta a Jones. O tema, entretanto, não abandonará suas preocupações; e a hipótese que encontramos no primeiro Ferenczi não será sua última palavra sobre a pulsão de morte.  Isso, porém, já é outra história.

 

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Recebido em maio/2019 – Aceito em julho/2019.

 

 

1 Nossa atenção a essa referência deve-se à preciosa leitura do contexto, do conteúdo e da intertextualidade de Além do princípio do prazer (Freud, 1920/2010c) e de Thalassa (Ferenczi, 1924/2011b) realizada por Luis Cláudio Figueiredo (1999) em Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi.
2 Na carta a Groddeck, Ferenczi fala que a conversa com Lou ocorreu em 1914, veremos abaixo que o ano da conversa foi 1913.
3 De maneira específica na sessão de 3 junho de 1908, que dará origem ao artigo "Der Agressionstrieb im Leben und in der Neurose" (Adler, 1908)
4 Para a reação de Spielrein ao texto do colega, Cf. Cromberg, 2014, p. 283-284
5 Para uma apresentação cuidadosa dos demais estágios, Cf. Mezan, 2002.
6 Elaborando a seu modo essa ideia de Ferenczi, Balint (1958; 1969/1992) descreve um nível ou área da mente, que chama de área de criação, em que há "mistura harmoniosa" (1969/1992, p. 66) entre o indivíduo e o ambiente.
7 A escolha do termo "ente" deve-se à necessidade de descrever uma forma de existência anterior ao estabelecimento de qualquer divisão que permitiria falarmos seja de uma tópica Inconsciente/Consciente, seja de uma estrutura formada por Id, Eu e Supereu.
8 Para uma discussão pormenorizada dessas ideias, Cf. Dal Molin (2018).

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