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Estilos da Clinica

versión impresa ISSN 1415-7128versión On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.24 no.3 São Paulo sep./dic. 2019

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v24i3p380-383 

10.11606/issn.1981-1624.v24i3p380-383

EDITORIAL

 

A insustentável leveza da escola

 

 

I

IDocente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP), São Paulo, SP, Brasil. E-mail: rvoltolini@usp.br

 

 

Podemos seguir considerando a escola uma instituição? A tão conhecida e proclamada instituição escolar? A expressão instituição escolar continua a circular, isso é certo, mas a que hoje em dia ela daria nome? Para alguns, tal questão não faria nenhum sentido, uma vez que se observa a escola cada vez mais confirmada: (1) em seu vigor – apesar de muito criticada, não há ninguém que considere extingui-la ou substitui-la por outra mais eficiente –; (2) em sua extensão – nunca a escola, ou a ideia de escolar abrangeu tantas propostas como hoje: escola para crianças e jovens, para a terceira idade, para pais, para analistas etc. –; (3) em sua longevidade – nunca se prolongou tanto o tempo de vida passado na escola –; e (4) em sua utilidade – nunca a escola foi tão decisiva em termos do lugar que será reservado ao indivíduo na polis e no mercado de trabalho.

A pertinência da pergunta, entretanto, sustentamos graças à tese de François Dubet (2002) sobre o declínio da instituição, desenvolvida em seu livro Le déclin de l'institution. O autor nos ajuda a distinguir organização de instituição, e será sobre essa distinção que a tese do declínio da instituição ganhará sua pertinência e vigor.

É nessa confusão entre instituição e organização que residirá, sem dúvida, para nós, o maior dos mal-entendidos, pois se a maioria das instituições pode ser organizada, não decorre daí que todas as organizações sejam instituições, isto é, organizações engendrando uma forma particular de socialização. Ao contrário mesmo, eu defenderia a tese segundo a qual o crescimento e a complexidade das organizações participam do enfraquecimento das instituições. (p. 23, tradução nossa)

Seria, portanto, enquanto organização que a escola via cada vez mais confirmada sua pertinência e vigor, e tal confirmação viria a contribuir para seu declínio como instituição. Avancemos, de nossa parte, a tese do autor, dizendo que a diferença essencial entre a organização e a instituição está no fato de que a primeira se ocupa da ordem que a organiza enquanto a segunda se ocupa da ordem que ela organiza. Ou seja, a preocupação primeira de toda organização é seu funcionamento, seu vigor e sua perpetuação. Já a da instituição é a de promover aquilo que a erigiu como tal, que a fundou com uma função específica.

É comum ouvirmos de professores, alunos, pais e autoridades escolares, quando questionados sobre a função da escola, sua tarefa específica, responderem sem hesitação: levar o aluno a aprender. Não há dúvidas de que a escola é um lugar onde se aprende, mas gerar aprendizado não é a tarefa específica nem exclusiva da escola, já que se pode aprender na rua, na televisão, em casa, em princípio em qualquer ambiente. Aliás, a esse propósito pode-se observar que cada vez menos o sujeito aprendente é comensurável ao sujeito escolar. Se é verdade que a seu tempo a escola sucedeu a Igreja como a instituição que detém o grande capital cultural, este, hoje em dia, encontra-se sob o domínio da internet: ninguém espera mais a aula do dia seguinte para perguntar ao professor detalhes da vida no Oriente Médio, por exemplo, já que pode resolver sua curiosidade com um toque no computador e receber as informações mais variadas, deslizando sobre elas conforme seu interesse e dispensado do clima entediante que assumem algumas aulas desconectadas do interesse direto do aluno.

A tarefa específica da escola, aquela que constitui seu selo distintivo, é o estudar. Aprende- se na rua, na televisão, em casa, mas estuda-se na escola. E estudar é algo muito específico: consiste em retirar um objeto qualquer de sua circulação comum no mundo para contemplá-lo, de vários ângulos, de todos os ângulos possíveis segundo os recortes que a tradição realizou sobre ele. Se tomo uma banana, por exemplo, como tal objeto, posso estudá-la do ponto de vista da física – sua massa, seu peso – da química – seus componentes nutricionais – da geografia – as condições globais de sua produção – e mesmo até da língua portuguesa – por seus vários usos metafóricos em nossa língua. Mas para estudá-la será imprescindível que eu não a coma antes: a consumação e a contemplação se opõem; é necessário, para ser estudado, que o objeto em questão saia do ciclo de sua utilidade e vire por algum tempo um objeto a ser contemplado. Essa curiosa distância entre a escola e a realidade útil vem sendo esfumaçada nos tempos que vivemos.

Sabemos que a lógica atual que domina a escola não coloca o estudar no epicentro de seu funcionamento. As escolas e os professores não serão avaliados por sua capacidade de propor o estudo, mas sim pelo que seus alunos efetivamente aprenderam, como não cessam de comprovar todos os sistemas de avaliação vigentes. Esse deslocamento do estudar para o aprender é um dos signos do declínio da instituição escolar.

Mas como organização ela segue cada vez mais forte, reafirmando seu vigor. A questão que podemos colocar aqui, a qual os textos deste dossiê tangenciam cada um a seu modo, é sobre a dinâmica e as consequências desse declínio, pois sabemos, desde a psicanálise, que a institucionalidade é um elemento que joga um papel fundamental na organização civilizatória. Trata-se do papel de garantir a transmissão da Lei. É por isso que se diz, e não sem razão, que se vão as pessoas e ficam as instituições. O declínio da instituição não representaria, por acaso, um problema quanto à transmissão?

Parafraseando a fórmula célebre de Milan Kundera (2008): "a insustentável leveza do ser", podemos nos perguntar se a mudança do ser da escola, a queda do peso da instituição em prol da leveza da organização, não significaria problemas a sua sustentabilidade? Ou ainda, parafraseando outra fórmula célebre, desta vez lacaniana acerca dos modos de presença da psicanálise no mundo – psicanálise em intensão e em extensão –, não estaria a escola ganhando em extensão ao mesmo tempo que perde em intensão?

O leitor encontrará neste dossiê textos que tratam da escola de psicanálise junto a textos que tratam da presença de bebês e da infância na escola. O que une focos tão díspares de análise? Exatamente a questão da institucionalidade e da transmissão da Lei. O esforço lacaniano para pensar uma escola de formação de analistas, opondo-se à ideia de associação ou sociedade, termo em voga para a instituição psicanalítica, por acaso não derivou de uma preocupação com a transmissão, no caso da experiência analítica? Se ele foi retomar a ideia de escola, aparentemente pouco adequada para designar um agrupamento composto de adultos, não foi para demonstrar justamente a importância da relação com o estudo figurar no epicentro da instituição de formação em oposição à ideia corrente de reunião de psicanalistas? Trata-se em uma instituição de formação de analistas, de relação com o saber, mais do que de relação entre os membros.

Em que pese as devidas ressalvas que se tem que fazer para não correr o risco de uma comparação irresponsável e forçada entre uma escola de formação de analistas e aquela de educação das crianças e jovens, não é verdade que ambas parecem padecer de uma mesma crise da ideia de instituição? Não estariam, por exemplo, os analistas tão preocupados com um tipo de adesão às suas instituições que buscam apenas a autorização para exercer a psicanálise socialmente em vez de buscar nelas uma verdadeira formação? Não seria essa preocupação, por acaso, a mesma dos professores da escola pública que identificam em seus alunos uma relação utilitarista com a escola, na qual o que vale é a autorização que a escola dá pra possibilitar o acesso ao mercado e não o aprender? Cada uma em seu âmbito responderá de modo diferente a essa crise, mas podemos aventar a hipótese de que em ambos os casos se trata da mesma dialética entre organização e instituição.

Na ampliação de sua extensão a escola chegou aos bebês. Ou seja, não se trata mais de uma instituição assistencial para as mães que trabalham, mas, antes, para educar, desenvolver aqueles que estão em seu interior. O que aparece como uma evolução pedagógica por respeito às crianças logo encontra os vícios de uma escola que é organização. Uma escola tornada via de acesso a um lugar interessante no mercado de trabalho tomará os bebês como já inscritos numa lógica de investimento, na qual a estimulação do bebê, por exemplo, responderá mais ao imperativo de seu pleno desenvolvimento futuro do que a qualquer questão com uma transmissão intergeracional. Talvez pudéssemos pensar que a própria chegada dos bebês à escola já seria a expressão maior dessa extensão do escolar em detrimento de sua intensão. Não porque os bebês não possam se inserir numa perspectiva educacional, mas simplesmente porque são chamados a entrar numa escola sem perspectiva educacional, na qual o educacional não seria senão um efeito colateral enquanto o desenvolvimento – termo não por acaso presente também no vocabulário do economista – segue sendo a palavra de ordem e o valor maior.

Uma instituição sem instituição! Eis a fórmula com a qual se poderia pensar a escola que temos hoje. Talvez se tenha alcançado, de uma forma totalmente inusitada, o ideal exposto por Ivan Illich de uma sociedade sem escolas. Seja com os bebês, com as crianças ou com a formação dos analistas, a organização escolar, tensionada pelas ideias de eficiência e rendimento, ameaça a própria institucionalidade da escola, aquela que garante a transmissão da Lei, a especificidade de sua função, a nitidez de sua tarefa, enfim, garante seu peso no mundo. Tornada leve, sem gravidade, arrisca-se a se tornar insustentável.

 

Referências

Dubet, F. (2002). Le déclin de l'institution. Paris: Seuil.         [ Links ]

Kundera, M. (2008). A insustentável leveza do ser. São Paulo, SP: Companhia de Bolso.         [ Links ]

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