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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.24 no.3 São Paulo set./dez. 2019

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v24i3p471-481 

10.11606/issn.1981-1624.v24i3p471-481

ARTIGO

 

As problemáticas na diferenciação entre mães e filhas: um estudo de caso

 

Las problemáticas en la diferenciación entre madres e hijas: un estudio de caso

 

The problems in the differentiation between mothers and daughters: a case study

 

 

Marina J. Abud da SilvaI; Marina F. R. RibeiroII; Daina BittarIII

IPsicóloga do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: marina.abud02@gmail.com
IIDocente do Instituto de Psicología da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: marinaribeiro@usp.br
IIIEstudante de Psicologia. Instituto de Psicología da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: daina.bittar@usp.br

 

 


RESUMO

O presente trabalho visa investigar as dinâmicas psicológicas das relações entre mães e filhas, utilizando como base a perspectiva psicanalítica. Mais especificamente, buscou-se compreender as problemáticas existentes quando há um grau elevado de indiferenciação entre a menina e sua mãe. Para isso, realizou-se uma articulação entre um estudo de caso e conceitos da psicanálise que fundamentam as cenas clínicas apresentadas. O estudo de caso concretizou-se a partir de um atendimento psicológico de uma criança que apresentava importantes sofrimentos oriundos de uma dificuldade de separação da figura materna. Assim, pretende-se fornecer uma melhor compreensão a respeito das vicissitudes de uma relação simbiótica com a mãe e as consequências de tal para a constituição da vida psíquica da mulher.

Palavras chave: psicanálise; mãe; filha; mulher; feminilidade.


RESUMEN

Este trabajo pretende investigar cómo la dinámica psicológica de las relaciones entre madres e hijas, como base de la perspectiva psicoanalítica. Más específicamente, pretendemos comprender los problemas que pueden surgir en una relación altamente indiferenciada entre madre e hija. Por lo tanto, se pretende proporcionar una mejor comprensión de la relación simbiótica con una madre y sus consecuencias para la constitución psíquica de las niñas. A partir de este estudio de caso, se lleva a cabo una discusión en línea con nuestros conceptos teóricos constructivos que diferentes autores del psicoanálisis han realizado sobre el tema de la transmisión de la feminidad entre madres e hijas.

Palabras clave: psicoanálisis; madre; hija; mujer; feminidad.


ABSTRACT

This work aims to investigate how the psychological dynamics of relations between mothers and daughters, as a basis the psychoanalytic perspective. More specifically, we intend to comprehend the problems that may emerge in a highly undifferentiated relationship between mother and daughter. Thus, it is intended to provide a better understanding of the symbiotic relationship with a mother and its consequences for the the girls psychic constitution. Departing from this case study, a discussion is carried out in line with our constructive theoretical concepts that different authors of psychoanalysis have made on the subject of the transmission of femininity between mothers and daughters.

Keywords: psychoanalysis; mother; daughter; woman; femininity.


 

 

Esse artigo apresenta um estudo de caso realizado a partir do atendimento psicanalítico de uma menina, Mirela1. O atendimento em questão se deu durante um período de dois anos, entre os 5 e 7 anos da criança. A hipótese defendida aqui é de que os sofrimentos apresentados por essa paciente estariam relacionados com uma grande dificuldade de realizar a diferenciação necessária entre ela e sua mãe.

Diante disso, a trajetória proposta por esse trabalho é a seguinte: inicialmente, forneceremos um resumo do caso clínico, apresentando o estado inicial em que a essa paciente se encontrava quando chegou para análise e as principais questões que apareceram ao longo do atendimento. A partir disso, discutiremos o conceito de ilusão simbiótica, cunhado por Hendrika Halberstadt- Freud, visando melhor compreender o aspecto simbiótico das relações entre mães e filhas, tal como no caso clínico em questão. Além disso, traremos o conceito de cilada narcísica de Eric Bidaud, para mostrar como as suas elaborações sobre a anorexia são relevantes para a compreensão do caso, apontando para um comum e preocupante desdobramento deste tipo de relação mãe-filha. Abordaremos, também, o conceito de império do mesmo, de Jacques André, mostrando de que maneira esse autor reflete acerca das relações entre mães e filhas, e como essas reflexões ajudam a pensar o caso clínico. Por fim, traremos as elaborações de Marina F.R. Ribeiro, revelando como a hostilidade pode empreender a separação entre mães e filhas, de forma que, no caso clínico, o aparecimento do ódio na relação transferencial aponta para a possibilidade de uma maior diferenciação entre mãe e filha e, consequentemente, um desenvolvimento psíquico da feminilidade mais saudável para a paciente2.

 

Método

O método é um estudo de caso a partir do atendimento psicoterapêutico realizado no Centro Escola do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Para tanto, utilizou-se as anotações realizadas após cada sessão com a paciente, além dos registros de conversas com a mãe, com o pai e a com a escola. A partir disso, selecionou-se vinhetas clínicas desse atendimento que contribuíam, de forma ilustrativa, para a compreensão a respeito das questões psíquicas produzidas quando uma relação entre mãe e filha não suporta a diferenciação necessária entre ambas. Para fundamentar teoricamente o caso clínico, faz-se uso de conceitos da psicanálise que tratem sobre o tema da transmissão da feminilidade entre mães e filhas.

 

Resumo do caso clínico

Logo na primeira sessão realizada unicamente com Mirela, a analista já pôde perceber aspectos significativos da vida psíquica da menina. Durante o atendimento, repetidamente Mirela dizia temer que a mãe, Aline, estivesse escutando atrás da porta, pedindo extremo sigilo sobre o que era conversado naquele espaço. Mirela falou que caso seus pais soubessem o que ela estava dizendo, todos eles morreriam, mostrando-se muito angustiada com essa possibilidade. Mirela, então, contou que não gostava do pai, chamando-o de "louco", "ladrão" e "muito chato", já que ele havia jogado fora a espada com a qual ela brincava com a mãe. Por outro lado, disse que gostava muito da mãe, que elas eram grandes amigas, e que apreciava estar sempre na sua presença. Mirela falou sobre momentos de intimidade entre as duas, nos quais a criança e a mãe trocavam "lambidinhas", revelando que Aline a deixava dar "mamadinhas" em seu peito sem o pai saber. Mirela prosseguiu contando que a mãe dormia em seu quarto, não por um pedido seu, mas sim porque a mãe não queria dormir com o pai, já que ele "deitava em cima dela, e ela (Aline) não gosta disso". Quando indagada sobre como ela se sentiria caso a mãe decidisse dormir com o pai, Mirela respondeu que também não gostaria que isso acontecesse.

Trago, a título ilustrativo, essa primeira sessão com Mirela, pois esse relato apresenta importantes conteúdos que se desenvolveram mais intensamente ao longo dos dois anos de análise. A partir das queixas trazidas por Aline e do que foi exposto desta sessão, é possível perceber que existia uma dificuldade de separação entre mãe e filha, que pareciam ter estabelecido um pacto mútuo, no qual Mirela deveria permanecer no lugar de bebê, e Aline só poderia existir enquanto mãe.

 

Ilusão simbiótica

A partir do conceito de simbiose, a autora Hendrika Halberstadt-Freud (2001), ao propor uma reflexão sobre as relações entre mães e filhas, cunha o termo ilusão simbiótica em seu artigo "Electra Cativa. Sobre a simbiose e a ilusão simbiótica entre mãe e filha e as consequências para o complexo de Édipo".

Ela inicia seu texto afirmando que toda menina tem duas tarefas principais para realizar, a fim de se tornar uma mulher independente e emocionalmente equilibrada: separar-se, de forma suficiente, da imagem materna que possui em seu consciente e inconsciente e, depois, descobrir sua sexualidade, aceitando sua identidade sexual. Assim sendo, pode-se afirmar que separação e sexualidade caminham lado a lado na construção da feminilidade na mulher, de modo que o desenvolvimento sexual pode estimular a separação ou, contrariamente, o bloqueio na separação pode levar a um bloqueio no desenvolvimento sexual. Segundo Halberstadt-Freud (2001):

Para as meninas, então, podemos concluir que a separação da mãe parece ser um processo gradual e sem fim, em que identificações mútuas sempre persistem. Uma dialética contínua de progressão e regressão está sempre ocorrendo, cada passo à frente sendo ameaçado por uma tendência a retornar a padrões antigos. Uma dialética similar ocorre durante o desenvolvimento sexual da menina. (p.149)

Nos detenhamos primeiramente sobre a questão da separação. Halberstadt-Freud afirma que devido à relação objetal homossexual e à identificação com a figura materna, a menina está duplamente vinculada à sua mãe, o que implica numa maior dificuldade de separação entre elas em comparação a um filho menino. Segundo Halberstadt-Freud (2001):

O mesmo gênero, as semelhanças entre elas e a ausência de diferença sexual oferecem amplas oportunidades para mãe e filha engajarem-se numa identificação mútua sem separação. Uma tal identificação primária impede a formação de uma identidade separada e de uma individualidade." (p.145)

Uma mãe insatisfeita narcisicamente pode dificultar o processo de separação de sua filha, na medida em que ela mesma toma a menina como uma continuidade sua, uma extensão de si mesma, encarando-a como um meio de realizar os próprios desejos e tamponando, com isso, suas próprias angústias. É comum em casos como esse que a filha se torne aquela que tem de corresponder às demandas e proibições do supereu materno, tornando-se uma grande depositária do seu ideal do eu. Consequentemente, a mãe agirá de forma a mostrar-se para sua filha como indispensável, mesmo depois de não ser mais, sendo incapaz de permitir a separação.

A fala consciente da mãe indicava uma vontade de que a filha crescesse e se desenvolvesse de forma saudável, no entanto, tornou-se claro que, inconscientemente, Aline não permitia que esse amadurecimento contemplasse uma separação entre ambas. Um exemplo ilustra bem este conflito: no início dos atendimentos Aline queixava-se de que a filha apresentava muito medo de dormir sozinha. Contou que, por conta disso, passou a dormir todas as noites na bicama do quarto da filha, já que, caso ela acordasse e a mãe não estivesse lá, o desespero e angústia demonstrados pela criança eram enormes. Quase um ano de análise depois, Mirela parecia ter começado a empreender de alguma forma a separação necessária com Aline, até que chegou o dia em que a menina pediu para dormir sozinha em seu quarto. No entanto, ao invés de Aline acatar a esse pedido e estimular essa independência de Mirela, ela continuou dormindo no quarto da filha, dessa vez, com a justificativa de que seu casamento não estava indo bem e ela não queria dormir na mesma cama que seu marido, sendo, portanto, a única outra possibilidade, dormir no quarto com Mirela.

Esse relato nos mostra claramente a característica de mutualidade presente na ilusão simbiótica entre mãe e filha. Mirela apresentava uma grande dificuldade e angústia de separar- se da mãe, que eram revividas na hora de dormir, momento que implicaria ficar sozinha em seu quarto e estar em contato com seus próprios pensamentos e, portanto, com seu mundo interno. No entanto, quando Mirela avançou em seu processo de diferenciação da mãe, pedindo para dormir sozinha, o que nos parece ser um importante passo no desenvolvimento da menina, a mãe, de forma inconsciente, não permitiu que a filha empreendesse a separação que estava propondo, buscando evitar a todo custo a possibilidade de emergirem fronteiras entre as duas. Halberstadt-Freud (2001) aprofunda suas elaborações a respeito da separação:

A separação, que implica autonomia, é muitas vezes experimentada pela menina como deslealdade e como um ato de agressão contra a mãe, mesmo sem ataque à mãe em pensamento ou ato. A menina acredita - em geral acertadamente - que a mãe experimentará a separação da filha como uma traição (p.147).

Esse conflito entre manter-se como extensão da mãe ou diferenciar-se dela aparece fortemente no atendimento de Mirela. A menina demonstrava em sessão um intenso desejo de separar-se da mãe, de crescer, experimentar novas relações, ter sua sexualidade voltada para os homens, mas ao mesmo tempo, esses desejos entravam em conflito com uma grande culpa em fazê-lo. Essa culpa estava relacionada a um medo de retaliação da mãe, já que Mirela fantasiava que poderia ser punida pelo fato de seu desejo de separação representar uma deslealdade à mãe. O atendimento clínico de Mirela era marcado por diálogos sobre a questão de seu crescimento. Relatamos aqui um deles que nos parece bastante simbólico no que tange às questões dessa paciente. Mirela, durante uma brincadeira, falava sobre ter medo que seus pais morressem. A paciente disse que sua mãe já estava de cabelos brancos, e isso significava para ela que a mãe estava velha e, portanto, próxima à morte (em uma conversa com Aline, ela relevou que pintava constantemente o cabelo devido a esse medo da filha). Mirela disse que poderia evitar crescer e, consequentemente, evitar o envelhecimento e morte da mãe, se ela fizesse "bobagens", pois assim continuaria sempre criança. Contou que tinha feito uma grande "bobagem" nos últimos dias, evitando seu crescimento, já que ela continuava com 6 anos. No final dessa sessão, Mirela comentou que a parte boa em crescer seria tornar-se adolescente, e com isso, poder namorar.

Halberstadt-Freud (2001) afirma que a relação simbiótica entre mãe e filha compromete o desenvolvimento sexual na menina, pois pode ocorrer uma alienação dela com seu próprio corpo, ao senti-lo como pertencente à sua mãe, ao invés de a si própria. A esse respeito, existe um dado clínico bastante significativo em relação a sexualidade de Mirela. Antes do início de uma das sessões, a mãe se dirigiu à terapeuta mostrando-se bastante aflita com a percepção de que a filha estava masturbando-se com uma frequência "exagerada", fazendo indagações sobre como agir a esse respeito. Imediatamente, um incômodo instaurou-se no ambiente, já que Aline falava daquilo em um momento pouco oportuno, com Mirela brincando ao lado, e com outras pessoas presentes na sala de recepção escutando a conversa. De toda forma, a analista perguntou como eram esses episódios, ao que Aline respondeu que sempre que Mirela queria se masturbar, perguntava para ela: "Mãe, posso me 'espremer'?" Muitas vezes essa pergunta era feita em lugares públicos, na frente de outras pessoas, o que deixava Aline bastante constrangida.

Essa vinheta clínica nos mostra que a ilusão simbiótica existente entre Mirela e Aline se constituiu de tal forma que o corpo da menina não era tomado por ela enquanto um corpo próprio, e sim como propriedade da mãe. Interessante notar que a menina não se masturbava sozinha, ela precisava da presença da mãe, em forma de um aceite, para que fosse possível um contato prazeroso com seu corpo. Aline também mostrava compartilhar a ideia de ser parte das masturbações de sua filha, ao se colocar na posição de quem deveria fiscalizar a frequência com que esses atos aconteciam. A cena traz à tona a existência de uma cumplicidade entre mãe e filha no que diz respeito ao contato erótico da criança com seu corpo: o prazer só podia ser vivido junto com a mãe, ao depender de sua permissão.

 

Cilada narcísica

Abordaremos aqui uma das queixas trazidas por Aline no início do atendimento: a de que a filha não queria comer alimentos saudáveis, não almoçava na creche, e não comia com os talheres. Ao longo das sessões e de conversas em encontros com a mãe, se tornou claro quais eram os momentos em que Mirela de fato comia. Pela manhã, Aline levava na cama da filha leite, achocolatado e bolachas, o que ela adorava e sempre comia tudo. No entanto, na hora do almoço, Mirela estava na creche, e escolhia por não se alimentar no período em que ficava lá. No fim do período escolar, Aline buscava a filha e tinha o hábito de levar "surpresinhas" para Mirela no carro, que eram algum salgadinho ou doce que a criança costumava comer naquele próprio espaço, mostrando-se bastante alegre. Chegando em casa, na hora do jantar, Mirela costumava dar muito trabalho para comer, só aceitando o jantar quando ele era dado pela mãe em sua boca.

Diante desse relato, vale notar que essa impossibilidade de comer sem a presença materna era uma via de mão dupla: a filha recusava-se a alimentar-se quando não era a mãe que lhe oferecia a comida, e a mãe compactuava com isso, ao promover contextos sedutores para a alimentação da menina, desincentivando que ela se alimentasse de forma independente.

Essa queixa a respeito da rotina alimentar da criança, aliada ao que foi compreendido sobre a relação entre Mirela e Aline ao longo da análise, nos levantou uma preocupação diante de um indicativo de que a paciente poderia vir a desenvolver uma anorexia, pois diversos autores da psicanálise contemporânea atestam, em casos de anorexia nervosa, a significativa prevalência de relações nas quais predomina a indiferenciação entre mães e filhas. Um dos pioneiros nesses estudos, Bernard Brusset (1989), descreve de forma muito contundente a relação que as anoréxicas tipicamente estabelecem com a mãe:

A mãe é ao mesmo tempo indispensável e inaceitável, o que se poderia exprimir assim: ela representa tudo o que me causa horror e, ao mesmo tempo, não posso dispensá-la, cabe a ela responder, compreender, espero tudo dela, que ela seja Deus para mim. (p. 69).

Outro importante autor que aborda essa questão, sobre o qual nos deteremos mais profundamente, é Eric Bidaud, que introduz na psicanálise o conceito de cilada narcísica, em seu livro Anorexia: mental, ascese e mística (1998). O autor destina um de seus capítulos para falar sobre um certo destino de ligação com a mãe, típico dos casos de anorexia, cuja descrição se assemelha em muito com a observada no caso aqui relatado:

O sentimento 'estranhamente familiar' de que a intimidade sofreu um arrombamento remete à sedução exercida pela presença materna. Assim, os cuidados corporais maternos prolongaram-se com frequência muito antes, na história das jovens anoréxicas, às vezes até a adolescência. 'Não há fechadura na porta do banheiro' diz-nos uma paciente. (p.82)

Uma cena clínica que dialoga com essa ideia de uma impossibilidade de fronteiras no contato corporal, mostra como a relação da paciente com sua mãe se repete na relação transferencial com a analista. Em uma dada sessão, Mirela interrompeu a brincadeira para ir ao banheiro. Ao chegar lá, Mirela pediu insistentemente que a analista entrasse com ela e a ajudasse a se limpar, sugerindo um contato corporal mais próximo entre as duas. No entanto, sabendo que ela conseguia limpar-se sozinha, a terapeuta se manteve do lado de fora, mostrando que estava ali a ouvindo, mas que aquele momento era de intimidade dela e, portanto, não deveria ser invadido. Pensamos que ela repetiu, através da transferência, o desejo por um contato corporal que existia entre Mirela e Aline, sendo, portanto, uma ilustração de um cuidado materno íntimo que se prolonga para além do adequado. No entanto, consideramos que foi importante promover algo de novo naquela repetição, uma quebra no ciclo, em que o outro se recusa a participar desse contato prazeroso com Mirela, dando abertura para a existência de uma fronteira, uma diferenciação. Bidaud (1998) descreve a relação mãe e filha a qual nos referimos como sendo um "espelho do domínio", uma "união tissular", uma "cilada narcísica". Ele também aborda a importância do pai, de um terceiro, para um amadurecimento saudável da menina. O terceiro teria um papel fundamental em promover algum tipo de separação entre mãe e filha, em possibilitar que exista uma diferenciação que interpole essa relação. Segundo Bidaud (1998): "é pela identificação paterna que a filha escapa ao sono narcísico...se o pai desejar.... Ele (o pai) é aquele de que 'dá de si' para instalar-se entre a filha e a mãe e mostra que não está ali à-toa entre as duas" (pp. 85-88).

No caso sobre o qual nos debruçamos neste estudo, o pai mostrava-se como sendo, apesar de existente, bastante ausente em sua função paterna. Aline nos conta que ele não auxiliava nas tarefas de casa, e tampouco contribuía de forma relevante com o sustento financeiro da família. Ele não costumava ajudar nos cuidados com a filha, sendo a mãe a única responsável por levá- la na escola, médico, análise, entre outras atividades, e também por preocupar-se mais avidamente com Mirella. O pai compareceu apenas uma vez durante o trabalho analítico, quando afirmou considerar aquela terapia um luxo desnecessário. Não sabemos ao certo se o pai de fato se colocava de forma bastante ausente, não interpolando a relação entre sua filha e Aline, ou se era a mãe que não dava espaço suficiente para que isso acontecesse. A hipótese é de que os dois movimentos são prováveis.

O fundamental para que exista a função paterna é que mãe mostre desejo por outro objeto que não sua filha, oferecendo uma ruptura para o vínculo simbiótico até então estabelecido. Bidaud (1998) afirma:

A 'efetividade' do pai designa o pai detentor do pênis desejado pela mãe, e devendo oferecê- lo à filha na cena de sedução.... Desqualificado pela mãe na sua função de pai e de marido, cala-se, submete-se e faz-se esquecer ... O olhar do pai é percebido como ausência, ausência de desejo. (pp. 88-89).

Através das elaborações de Bidaud, percebemos que o pai, nesse tipo de relação, é um pai cuja função fálica é desvalorizada pela mãe e, consequentemente, pela filha também. Assim, podemos afirmar haver uma complicação no complexo de castração vivido pela menina, já que o pênis do pai não é representado psiquicamente como um objeto de desejo, contrariamente, ele é menosprezado em favor do poder materno. Devido à sua "falta de olhar" e à submissão, o pai é tido como um nada. Retomando o relato da primeira sessão com Mirela, lembremos que a menina contou que Aline dormia no quarto da filha não só porque a criança demandava, mas também porque o pai "deitava em cima dela, e ela (Aline) não gosta disso". Ou seja, a paciente parecia perceber que a mãe não desejava o pai e preferia estar com ela, desprovendo-o de sua função paterna.

O próximo autor que abordaremos nesse trabalho, Jacques André, tem uma visão a respeito da função paterna na constituição da feminilidade que vai ao encontro daquela que propõe Bidaud, sendo inclusive citado por esse último em seu texto de 1998: "a feminilidade, falando propriamente, supõe que estejam postas em relação a intrusão sedutora, traumática e fundadora da vida sexual com a penetração do pênis paterno" (1996, p. 145).

 

Império do mesmo

Jacques André, em seu texto, "Mães e filhas" (2003) elabora uma introdução bastante proveitosa para o presente estudo, pois é nela que o autor traz pela primeira vez o conceito de "império do mesmo" para abordar o tema das relações entre mães e filhas.

Trago aqui dois exemplos do caso clínico de Mirela que nos ajudarão nessa compreensão. Primeiramente, vamos abordar uma das queixas principais trazidas por Aline no início do processo terapêutico: a de que Mirela costumava pegar fotos de quando era bebê e ficar admirando-as, pedindo para que retornasse para àquela época, voltasse a ser um bebê, chegando, por vezes, a chorar e mostrar grande sofrimento por conta disso.

Como uma segunda cena clínica relevante nesse momento, relato que, em uma dada sessão, quando a analista chegou à recepção para encontrar a paciente, encontrou mãe e filha em uma posição bastante inusitada: Aline estava sentada em uma das cadeiras, e em seu colo estava Mirela, com as mãos e pernas transpassadas pelo corpo da mãe, como se estivesse agarrada. Por cima delas havia um pano que cobria todo conjunto, fazendo com que mãe e filha parecessem uma só. Quando a analista se aproximou, Mirela soltou-se do colo da mãe e começou a brincar que era um "bebê com pernas".

Essas duas cenas nos apontam para a existência de um desejo fusional entre mãe e filha, o movimento de tornar-se uma coisa só, de serem totalmente o mesmo. Na primeira cena, Mirela apresentava certa nostalgia quanto ao tempo em que era um bebê, ou seja, em estar em uma posição de maior dependência em relação à sua mãe, um período no qual não existia fronteiras entre seu próprio eu e o objeto mãe. Também vale apontar que quando se é bebê os cuidados corporais empreendidos pela mãe são mais necessários e frequentes. Mirela, portanto, parecia desejar um retorno a essa situação inicial, a um estágio de indiferenciação com a mãe, marcado por um forte erotismo e uma sensação de unicidade.

Na segunda cena clínica, o desejo fusional aparece pela posição que mãe e filha se encontravam, cobertas por um mesmo pano que as unificava, e tão próximas que visualmente pareciam ser a mesma pessoa. No entanto, com a presença da analista, Mirela mostrou a possibilidade de que uma separação existissse, descolando-se, mesmo que parcialmente, do corpo da mãe. Nesse momento, ela afirmou que era um "bebê com pernas", uma figura de linguagem que sintetiza em si a ambivalência que Mirela parecia viver: o desejo de crescer e ser independente de sua mãe (com pernas), mas ao mesmo tempo, o desejo de manter-se na relação simbiótica, indiferenciada e prazerosa que elas possuiam (ser bebê).

J. André (2003) nos apresenta a ideia de que a filha apenas consegue repetir mais do mesmo de sua mãe, se constituir enquanto uma continuidade desta, sendo impossível a construção de uma história totalmente independente de história materna, instalando-se, assim, o império do mesmo. Segundo esse autor:

Uma coisa é impor a ela o rosto de sua mãe, o rosto do passado, como o espelho do seu futuro. E mais, talvez, é nesse sentimento incontestável, que nada realmente funciona: de mãe para filha, lá nunca terá uma história, apenas um retorno do mesmo. (2003, p. 11, tradução nossa).

Segundo esse autor, o retorno ao mesmo seria devido ao fato de que quando uma mãe tem uma filha menina, ela revive questões de seu próprio inconsciente, ou seja, ela novamente depara-se com a sua própria condição enquanto castrada, o que, inevitavelmente, produz decepção. Dessa forma, a mãe, ao se relacionar com sua filha, transmite a ela, via inconsciente, seu próprio percurso de constituição de sua feminilidade e, consequentemente, as problemáticas que ela enfrentou nesse processo. Sendo depositária de toda essa forte carga do inconsciente materno, a menina só pode se constituir psiquicamente enquanto o mesmo que sua mãe.

A partir de uma fala de uma paciente que está grávida, J. André (2003) nos questiona a respeito da possibilidade de uma mãe gerar um outro ser, que seja concebido por ela, mas, ao mesmo tempo, não seja exatamente ela. E isso parece se complicar ainda mais quando esse outro ser tem o mesmo sexo biológico, ou seja, é uma menina. É diante disso que J. André afirma que, na verdade, o nascimento em si nada garante que seja produzida uma separação de fato, como um leigo poderia pensar. Pelo contrário, mãe e filha podem ainda se manter conectadas, repetindo em suas vidas mais do mesmo, por muito além do nascimento. De acordo com J. André (2003):

Onde pode vir a garantia de que o nascimento separa, que a história é possível e que a vida não será reprodução simples, quando o mesmo gera o mesmo? Na ansiedade da separação, não é, apesar das aparências, a separação que é angustiante, mas sua impossibilidade. (pp. 21-22, tradução nossa).

 

Hostilidade

Marina Ribeiro (2011) em seu trabalho: "De mãe em filha: a transmissão da feminilidade" aborda a questão das relações entre mães e filhas meninas, buscando compreender como ocorre o processo de constituição da feminilidade e seus possíveis desdobramentos, que podem ou não ser traumáticos. Essa autora segue uma trajetória de autores psicanalíticos que foi usada como inspiração para o percurso deste trabalho. Uma de suas principais formulações é de que a hostilidade poderia atuar como uma possível saída no caminho da separação entre a filha e sua mãe. E é nesse sentido que também compreendemos o caso clínico de Mirela: na medida em que ela repetia na transferência a relação simbiótica e indiferenciada que tinha com a mãe, podemos, enquanto analistas, proporcionar que haja uma mudança, no sentido de suportar a hostilidade da menina sem que isso implique na perda da relação ou na morte do outro. De acordo com Ribeiro:

Tudo faz crer que a mútua identificação entre mãe e filha, e o fato de ser uma relação sob o selo narcísico do idêntico, exigiria um esforço maior no delineamento de um "eu feminino". O matricídio simbólico faz parte, como veremos, da constituição da feminilidade nas mulheres. (p.31).

Para ilustrar essa questão, trazemos aqui uma cena clínica do atendimento de Mirela que nos mostra a presença da hostilidade na relação transferencial. Em uma dada sessão a paciente brincava que tinha o poder de transformar a analista em diversos objetos e, a cada feitiço, era feita uma imitação correspondente. Até que em determinado ponto, Mirela transformou-a em uma planta, pedindo para que ela ficasse imóvel. A menina brincou, então, que se transformava em diferentes animais que podiam morder, arranhar, amarrar. Nesse momento, Mirella narrava quais deveriam ser as reações da terapeuta, sempre no sentido de ficar vulnerável a esses ataques e demonstrar dor. Em algumas sessões seguintes, Mirella chegava pedindo para prosseguir com essa mesma brincadeira, inventando formas ainda mais complexas de "machucar" ou até de "matar", como espetar agulhas, arrancar as unhas e fazer cortes pelo corpo. Quando essas brincadeiras terminavam, geralmente com a "morte" da terapeuta, a paciente mostrava-se bastante angustiada, apresentando uma dificuldade notável em terminar a sessão. A posição da analista era de sustentar todos aqueles ataques e mostrar à paciente que ela poderia sim expressar todo aquele ódio, sem que houvesse de fato uma morte, e sem que nada se perdesse na relação entre ambas, posição diferente daquela adotada pela mãe, como vimos.

Freud já reconhece a importância da hostilidade entre mães e filhas, afirmando que a menina, ao se afastar da mãe, o faz acompanhado de hostilidade, apontando que a vinculação existente entre mãe e filha é fundamentalmente marcada pelo ódio (Freud, 1933 [1932], p. 150).

Avançando na compreensão psicanalíticas sobre as relações entre mães e filhas, Ribeiro (2011) coloca:

A hostilidade não seria somente tributária do fato de a mãe não ter oferecido um pênis para sua filha, como Freud (1933 [1932]) expressou, mas seria decorrente do desejo de possuir um refúgio, por meio de um apoio anatômico, para uma identidade separada da mãe. (p. 73)

Nesse sentido, podemos considerar que, no caso de Mirela, a precariedade da função paterna parece acentuar a relação indiferenciada entre ela e sua mãe. Dessa forma, tanto o amor quanto o ódio, ficam ainda mais intensos, visto que, em uma ligação simbiótica entre mães e filhas, proximidade e hostilidade fazem ambos parte de uma ambígua e dinâmica relação. Segundo Ribeiro (2011):

Ambos, tanto a proximidade quanto o ódio são proteções a uma dependência emocional da mãe, que poderia ser vivida como desestruturante e desorganizadora. Como já abordado, não importa se é cara (ódio) ou coroa (aproximação idílica), a moeda é a mesma: a impossibilidade de se diferenciar da mãe, pelo fato de provavelmente existir uma "falha" no objeto. (p.54)

E é sobre essas ambiguidades, isto é, entre o idílico e a hostilidade, entre o amor e o ódio, que repousa a relação simbiótica, e fundamentalmente indiferenciada, entre mães e filhas. A relação entre Mirela e Aline parece ser um bom exemplo real de como isso se constitui. Na análise, Mirela era ao mesmo tempo muito amável e carinhosa na relação transferencial, mas também podia ser bastante agressiva e provocativa. A mesma paciente que dizia que a analista era sua melhor amiga, era aquela que gritava, batia e chorava quando tinha de ajudar a arrumar a sala no final da sessão. Essa alternância revela na transferência os dois lados da moeda que existia em sua relação com a mãe: o amor e o ódio. No entanto, cabe ao analista possibilitar que esse ódio possa ser vivido enquanto uma hostilidade saudável e possível, deixando de ser um ódio que pudesse matar a mãe e, tornando-se uma hostilidade que promova a diferenciação.

 

Considerações finais

O presente trabalho almejou fornecer uma contribuição para as compreensões psicanalíticas a respeito da construção da feminilidade na mulher, especificamente, no que se refere ao papel da relação com a mãe nesse processo. Para isso, utilizou-se como método o estudo de caso clínico, com o objetivo de evidenciar a atual relevância de pesquisas nesse tema. A partir do caso, podemos perceber como conceitos de importantes autores, tais como Halberstadt-Freud, Bidaud, J. André e Ribeiro, podem ser ilustrados através de vinhetas clínicas, em uma mútua contribuição entre teoria e prática psicanalítica.

 

Referências

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Recebido em maio/2019 – Aceito em outubro/2019.

 

 

1 Tanto o nome da menina quanto o da mãe são fictícios.
2 O presente estudo se constituiu tendo como inspiração a pesquisa de doutorado de Marina Ribeiro (2011), ou seja, estamos seguindo a mesma linha de autores apresentados na tese, a saber: Bidaud, Halberstadt-Freud e J. André.

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