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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.24 no.3 São Paulo Sep./Dec. 2019

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v24i3p482-496 

10.11606/issn.1981-1624.v24i3p482-496

ARTIGO

 

O brincar como experiência intersubjetiva de comunicação no psicodiagnóstico interventivo infantil

 

El jugar como experiencia intersubjetiva de comunicación en el psicodiagnóstico que interviene en la niñez

 

Playing as intersubjective experience of communication in the interventional psychodiagnosis with children

 

 

Cidiane Vaz GonçalvesI

IDocente da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E- mail: cidianevaz@gmail.com

 

 


RESUMO

O psicodiagnóstico infantil é uma prática avaliativa que busca promover a compreensão das experiências intrapsíquicas, intersubjetivas e socioculturais da criança. Neste cenário, o brincar se institui como modo de comunicação da criança com o examinador e como recurso para a observação de elementos constitutivos de seu mundo relacional. O brincar, apesar de comum aos diferentes modelos de avaliação infantil, se mostra atrelado a concepções teóricas e técnicas bastante diferenciadas. Neste artigo são apresentadas e discutidas as diferenças entre os paradigmas do psicodiagnóstico tradicional e o interventivo em suas relações com o brincar e com a comunicação durante o processo avaliativo.

Palavras chave: psicodiagnóstico interventivo infantil; comunicação; intersubjetividade; brincar.


RESUMEN

El psicodiagnóstico infantil es una práctica evaluativa que busca fomentar la comprensión de las experiencias instrapsíquicas, intersubjetivas y socioculturales del niño. En esta escena el jugar se instituye como modo de comunicación del niño con el examinador y como recurso para la observación de elementos constitutivos de su mundo relacional. El jugar, a pesar de común a los diferentes modelos de evaluación infantil, se muestra vinculado a concepciones teóricas y técnicas demasiado distintas. En este artículo se presentan y se discuten las diferencias entre los paradigmas del psicodiagnóstico tradicional y el que interviene en sus relaciones con el jugar y con la comunicación mientras el proceso evaluativo.

Palabras clave: psicodiagnóstico que interviene en la niñez; comunicación; intersubjetividad; jugar.


ABSTRACT

Child psychodiagnosis is an evaluation practice that seeks to promote understanding of intrapsychic, intersubjective and sociocultural experiences of the child. In this scenario play is established as a way of communicating the child with the examiner and as a resource for observing constitutive elements of their relational world. The play, although common to the different models of child evaluation, shows itself linked to very different theoretical and technical conceptions. In this article, the differences between the paradigms of traditional and interventive psychodiagnosis in their relationship with play and communication during the evaluation process are presented and discussed.

Keywords: child interventional psychodiagnosis; communication; intersubjectivity; play.


 

 

Introdução

O psicodiagnóstico com crianças é marcado por peculiaridades em relação ao trabalho avaliativo com sujeitos de outras faixas etárias. De modo diverso dos adultos ou dos adolescentes, que utilizam mais frequentemente a comunicação verbal como via de expressão, a criança nem sempre consegue transmitir seus sentimentos e/ou aflições ao interlocutor através das palavras. Nesse sentido, o brincar tem sido mencionado por autores que abordam o psicodiagnóstico (Arzeno, 1997; Cunha, 2007; Hutz, Bandeira, Trentini & Krug, 2016) como uma ferramenta útil para a compreensão das comunicações de aspectos do mundo interno da criança, da dinâmica familiar e de outras questões relacionadas ao seu cotidiano. Cabe salientar que o psicodiagnóstico pode ser realizado a partir de diversas abordagens teóricas. Neste trabalho será enfatizada a abordagem psicanalítica e as contribuições das noções de comunicação e de intersubjetividade para esse campo.

O psicodiagnóstico infantil enquanto processo investigativo tem por objetivo promover a compreensão das experiências idiossincráticas da criança constituídas por aspectos intrapsíquicos, intersubjetivos e socioculturais. O brincar, nesse contexto, constitui-se como ferramenta fundamental e útil para a investigação do mundo relacional e contextual da criança, favorecendo a comunicação dela com o psicólogo, deste com a criança, e dela consigo mesma. De uma perspectiva intersubjetiva, o brincar pode ser compreendido não apenas como modo de expressão infantil, mas sobretudo como via de comunicação entre a dupla — criança e o analista. A concepção de comunicação, marcada por um viés relacional, construída a partir do que é viabilizado subjetivamente pela dupla que brinca, não tem sido abordada por autores considerados referências clássicas na elaboração psicodiagnóstica, mesmo aqueles com orientação psicanalítica como Ocampo, Arzeno e Piccolo (1995) e Arzeno (1997). Nesses trabalhos a ênfase é dada sobre a brincadeira e a utilização do brinquedo, vistos como ferramentas úteis para a avaliação de aspectos do funcionamento subjetivo, sendo o brincar como processo primordial e constitutivo do psiquismo e fonte de comunicação com o mundo, pouco explorado. Essa postura teórica frente ao brincar parece se sustentar pela influência das proposições teóricas e técnicas de Melanie Klein, que marcam significativamente a produção destes textos e as orientações técnicas neles contidas.

Frequentemente, a observação das brincadeiras infantis é apontada como uma ferramenta capaz de promover a compreensão da dinâmica de funcionamento emocional, incluindo as fontes de ansiedade e as estratégias defensivas, no momento em que a avaliação é realizada. Nesse sentido, as brincadeiras elaboradas pela criança são entendidas como comunicações indiretas, cabendo ao psicólogo o papel de observador com participação limitada e de intérprete. Essa perspectiva, particularmente defendida por Ocampo et al. (1995) e Arzeno (1997), conforme mencionado anteriormente, é herdeira das contribuições de Klein (1927/1970) sobre a brincadeira. Para a autora, a brincadeira expressa de forma abundante as fantasias da criança, sendo, portanto, dotada de caráter simbólico. Apesar da ênfase no caráter simbólico e comunicativo presente nas brincadeiras infantis, parte-se do princípio de que o papel do analista é favorecer a emergência desses conteúdos emprestando-lhes meios para a sua representação. Dessa perspectiva, toda comunicação produzida pela criança diz respeito à organização particular do seu mundo interno, não sendo enfatizados os aspectos criativos possibilitados pelo encontro que se estabelece entre criança e analista. Apesar disso, essa compreensão tradicional tem sido significativamente modificada na atualidade, sobretudo com a prática do psicodiagnóstico interventivo (Barbieri, 2010; Sales & Tardivo, 2017) cuja ênfase recai sobre a relação criança-analista e sobre as comunicações construídas por eles e entre eles ao longo do processo.

Tendo em vista as significativas diferenças entre os paradigmas dos chamados psicodiagnóstico tradicional e o psicodiagnóstico interventivo, este trabalho tem por objetivo discutir as relações entre o brincar e a comunicação no psicodiagnóstico interventivo infantil a partir de um ponto de vista fundamentalmente intersubjetivo. Para tanto, foram feitas referências às ideias de autores que trabalham com o psicodiagnóstico infantil e de outros que trazem contribuições para a clínica com crianças, sendo este artigo organizado em três categorias: Psicodiagnóstico tradicional e interventivo, na qual são explicitadas as diferenças entre os dois paradigmas; Comunicação e brincar no psicodiagnóstico interventivo infantil, em que é apresentada a importância do brincar e da comunicação para o modelo interventivo de psicodiagnóstico com crianças; e Brincar como experiência intersubjetiva de comunicação, na qual a brincadeira é apresentada como via de comunicação entre a dupla.

 

Psicodiagnóstico tradicional e interventivo

De acordo com Arzeno (1997), o psicodiagnóstico é um processo investigativo, que busca produzir conhecimento a respeito do funcionamento subjetivo — consciente e inconsciente — dos sujeitos avaliados a partir do uso de técnicas, como a entrevista psicológica, o desenho livre e a observação das atividades lúdicas, e do uso de testes, particularmente dos projetivos. Aos resultados dos testes podem ser incluídas a observação e a escuta de questões próprias à dinâmica familiar, social e cultural, além da análise da transferência e da contratransferência, conforme descrito por autores com orientação psicanalítica (Arzeno, 1997; Ocampo et al., 1995). Além disso, o psicodiagnóstico teria algumas funções fundamentais: permitir a realização de diagnósticos, ampliar o processo de investigação abarcando aspectos dissociados e inconscientes, favorecer a comunicação e avaliar o andamento do tratamento. Abordar a temática do psicodiagnóstico envolve grande complexidade, uma vez que a própria definição de psicodiagnóstico não é unívoca, mesmo entre psicanalistas, abarcando diversos sentidos, critérios e compreensões teóricas. Ademais, o processo busca promover articulações entre diferentes instrumentos, disciplinas e paradigmas epistemológicos nem sempre articuláveis entre si (Junior & Ferraz, 2001).

Apesar de não se tratar de um procedimento voltado para fins de tratamento psicoterápico, o psicodiagnóstico pode se constituir como um procedimento terapêutico tendo em vista, sobretudo, os efeitos da escuta e do vínculo sobre a subjetividade dos clientes atendidos. Essa proposta de aliança entre a avaliação e a intervenção está colocada no escopo do psicodiagnóstico interventivo, descendente do psicodiagnóstico compreensivo (Trinca, 1984), que concebe as dinâmicas intrapsíquicas, intrafamiliares e socioculturais como forças em interação, que podem produzir sofrimento e desajuste, mas que também podem ser potencializados em favor da saúde psíquica (Barbieri, 2010). Segundo esse entendimento, a trama que compõe as várias dimensões da vida emocional confere um significado idiossincrático para a experiência do indivíduo e para o seu sintoma, que só é possível de ser compreendido através do vínculo e da comunicação singular estabelecida com o analista em cada encontro. Para Trinca (1984), o psicodiagnóstico compreensivo envolve o desenvolvimento de uma relação empática, a partir da qual se torna possível conhecer parte do funcionamento psíquico do paciente, que se atualiza em cada sessão. Nessa perspectiva de psicodiagnóstico, o instrumento norteador do processo é a entrevista psicológica em seu caráter intersubjetivo na medida em que o que será produzido em cada sessão diz respeito ao que se passa na interseção entre duas visões de mundo e de redes de sentido idiossincráticas, tendo os testes um papel secundário. Desse ponto de vista, é a partir da entrevista que o processo será organizado, incluindo a escolha de instrumentos que possam se mostrar mais adequados à medida que tenham potencial para favorecer a comunicação entre a dupla (Barbieri, Jacquemin & Alves, 2007; Paulo, 2009).

A contribuição de Trinca (1984) sobre o psicodiagnóstico compreensivo foi fundamental para a emergência de novas perspectivas no campo da avaliação psicológica clínica, como é o caso da apresentada por Barbieri (2009), que define o psicodiagnóstico interventivo como um procedimento que visa aliar investigação e intervenções desde o início do processo. Nesse modelo, intervenção e investigação são aspectos indissociados, uma vez que a escuta e o vínculo produzem efeitos que podem ser, por si só, terapêuticos. Além disso, são realizadas intervenções como explicitações de sentimentos, conexões entre aspectos dissociados e interpretações no momento da realização de entrevistas e aplicação de testes. Essas intervenções se constituem como pequenas devolutivas oferecidas em todas as sessões, e não apenas no seu final, conforme era feito tradicionalmente por outros profissionais de orientação psicanalítica, por exemplo, Ocampo e Arzeno.

O psicodiagnóstico interventivo vem sendo destacado como interessante modelo de assistência às crianças, pois auxilia o profissional na compreensão psicodinâmica e favorece intervenções durante o processo avaliativo e permite a evolução do quadro desde as consultas iniciais, favorecendo mudanças nas condições subjetivas e sintomáticas (Milani, Tomael & Greinert, 2014). Um precursor da aliança entre avaliação e intervenção com crianças foi Winnicott (1964-68/1994), criador das Consultas Terapêuticas. Esse autor também é um dos grandes responsáveis pela perspectiva do brincar, apresentado a partir de seu viés constitutivo e comunicativo (Vaz-Gonçalves, Magalhães & Féres-Carneiro, 2018).

No modelo tradicional, o psicodiagnóstico era organizado a partir de etapas em função dos objetivos e dos recursos técnicos e metodológicos utilizados: entrevistas iniciais, levantamento de hipóteses iniciais, escolhas dos instrumentos, aplicação dos instrumentos, levantamentos e síntese das informações e entrevista de devolução (Arzeno, 1997; Ocampo et al., 1995). Essas fases ainda se mostram úteis, entretanto não se constituem como forma de organização no modelo interventivo, sendo questionadas em sua premissa. Dentre as críticas que podem ser feitas ao modelo tradicional, cita-se a busca por uma suposta separação e neutralidade na relação paciente-analista, que limita a atuação do analista, uma vez que ele acaba não considerando suas contribuições na composição dos fenômenos subjetivos produzidos em cada sessão. Esse quadro seria tão ilusório e equivocado quanto considerar a transferência dissociada da contratransferência.

No psicodiagnóstico interventivo não há uma organização sequencial, com passos rígidos a serem seguidos, assim como o número de sessões não é predeterminado. Além disso, o analista deve proporcionar ao paciente a possibilidade, por meio da vivência emocional, de retomar sua continuidade de ser, sendo de extrema importância que analista possa ser vivenciado e sentido pelo paciente como dotado de um suposto saber sobre o sofrimento (Barbieri, 2009; 2010). Trata-se, portanto, de um procedimento cuja base de sustentação é construída no vínculo paciente-analista e na escuta clínica.

Barbieri (2010, p. 511), ao abordar o psicodiagnóstico interventivo de orientação psicanalítica, compartilha com o psicodiagnóstico compreensivo alguns eixos estruturantes, como a tentativa de elucidação dos significados latentes das perturbações e sintomas, a inclusão da dinâmica familiar inconsciente na composição da trama fantasmática do paciente, a seleção de aspectos nodais para a compreensão dos focos de angústia, bem como as fantasias e as estratégias defensivas. Além disso, inclui-se, necessariamente, a escuta clínica e a subjetividade do analista.

Para Barbieri (2010), a adoção desses eixos permite alcançar a compreensão da pessoa em sua singularidade, o que torna possível a realização de intervenções. Apesar de os estudos normativos fornecerem dados sobre o desenvolvimento típico que podem agregar informações ao processo, o objetivo do trabalho nesse tipo de psicodiagnóstico não é verificar o quanto determinado padrão de funcionamento se aproxima ou se afasta da média. Nesse processo, o objetivo final é favorecer a criança e sua família com a possibilidade de dar continuidade à experiência de ser análoga ao que foi descrito por Winnicott (1964), quando aborda as condições para a emergência e para o entrave ao sentimento de existir em oposição a experiência do falso self. Acrescenta-se a essas considerações que todo o processo de avaliação deve contar com a comunicação de aspectos da subjetividade do paciente ao analista, mas deve se constituir, sobretudo, como um processo que permita ao paciente comunicar-se com seus próprios aspectos inconscientes e/ou dissociados. Esse processo não depende apenas da expertise do analista, sendo muito mais dependente de movimentos internos que colocam em marcha o desejo do paciente para se conhecer e os recursos internos para tal.

 

Comunicação e brincar no psicodiagnóstico interventivo infantil

A palavra comunicação é derivada do termo latino communicare, que significa partilhar, participar algo, tornar comum. A partir dessa definição, observa-se que a comunicação é um fenômeno fundamentalmente intersubjetivo, articulado num espaço de tecitura dos vínculos e onde se dá a partilha de elementos conscientes e inconscientes. A comunicação pressupõe a presença de um outro que possa acolher os conteúdos a fim de que eles sejam pensados, falados e significados. Comunicar-se, nesse sentido, envolve a presença de um outro ou mais de um outro (Kaës, 2011), nos quais os conteúdos comunicados possam ressoar e ser retornados de forma metabolizada para o seu emissor. É a partir da comunicação transformada e significada na relação com o analista que o sujeito pode vir a compreender os seus próprios processos subjetivos e seu sofrimento. A comunicação, assim, mantém estreita relação com as possibilidades de ter acesso aos próprios processos mentais que se externalizam durante o encontro, mas que só adquirem sentido através do vínculo.

Ao reconhecer a comunicação como fenômeno e processo de natureza fundamentalmente intersubjetivos, torna-se necessário tomá-la como fruto de operações psíquicas que ganham existência não apenas na interioridade e no campo intrapsíquico individual, mas que só se torna possível a partir dos vínculos tecidos em territórios subjetivos comuns, partilhados e, ao mesmo tempo, promotores de criações para cada um. Nesse sentido, essa concepção de comunicação será fortemente marcada pela noção de apelo ao outro (Freud, 1895/2003a), evidenciando a necessidade da existência de um outro atento, sensível e provedor, para que as falas, os gestos, as sensações e as emoções adquiram sentidos e possam, de fato, produzir transmissões, significações e compreensões. Assim, trata-se de um fenômeno que será construído a partir das contribuições psíquicas dos sujeitos engajados no vínculo, contribuições essas marcadas, por sua vez, pelo conjunto de vozes, desejos, representações e não representações recebidos como legado ao longo das gerações.

A comunicação se estende para além das palavras, ultrapassando, muitas vezes, as possibilidades de nomeação, podendo até ser silenciosa, como bem destaca Winnicott (1967/1975b). Para o autor, a comunicação é um fenômeno partilhado e fundamentalmente silencioso, sobretudo no início da vida. Para ele, "as coisas mais importantes que uma mãe faz com o seu bebê não podem ser feitas por meio de palavras" (Winnicott, 1967/1975b, p. 41). Nesse sentido, a comunicação recai não apenas sobre as palavras, mas envolve a empatia, as experiências emocionais e o silêncio.

Ao pensarmos o psicodiagnóstico, verificamos que muitas comunicações estabelecidas entre a criança e o analista se constituem sob a primazia da empatia e do silêncio, não menos verdadeiras e atuantes que aquelas estabelecidas pelas palavras e pelas ações. Nesse sentido, a concepção de comunicação como apelo ao outro (Freud, 1895/2003) marca a concepção apresentada neste trabalho e parte do entendimento de que é somente na presença de um outro atento, sensível e provedor que expressões como falas, gestos, sensações e emoções adquirem o caráter de comunicação. Essa condição é fundamental para diferenciarmos o que chamamos de expressões para o que estamos nomeando como comunicação, fenômeno sempre perpassado pela intersubjetividade. No modelo interventivo de psicodiagnóstico infantil que está sendo proposto, favorecer o acolhimento de falas, gestos e brincadeiras a fim de que ganhem o estatuto de comunicação deve ser o objetivo prioritário do trabalho.

Tendo o psicodiagnóstico infantil por objetivo viabilizar a compreensão de aspectos da dinâmica intrapsíquica e relacional da criança, os analistas, a fim de alcançá-lo, realizam prioritariamente entrevistas com os pais e fazem o uso de recursos lúdicos, como brinquedos e jogos. Esse procedimento é frequentemente denominado de entrevista lúdica ou hora do jogo diagnóstica, conforme a nomenclatura fornecida por Aberastury (1978). Essa psicanalista entendia que, além dos aspectos transferenciais, a criança seria capaz de estruturar, através dos brinquedos, a representação de seus conflitos básicos, suas principais defesas e fantasias de doença e cura, deixando evidenciados, já nos primeiros encontros com o psicólogo, aspectos do seu funcionamento mental.

Durante a hora do jogo diagnóstica, o analista oferece à criança todo o material lúdico disponível em seu ambiente de trabalho, estimulando que ela brinque como bem desejar. Cada entrevista lúdica é uma experiência nova, marcada pela singularidade da dupla e que desempenha um papel de grande importância no processo de avaliação psicológica com crianças (Arzeno, 1997; Satiel, Krug, Bandeira & Arzeno, 2012).

Durante o psicodiagnóstico infantil, o material lúdico deve ser apresentado à criança em caixas ou armários, com tampas ou portas abertas, deve ser diversificado, para atender, na medida do possível, a todos os gostos, sexos, idades e interesses. Os materiais mais comuns são: lápis preto e colorido, papel, tesoura, cola, massa de modelar, argila, tintas e pincéis, além de brinquedos, por exemplo, casa de bonecos, animais domésticos e selvagens, blocos de construção, carros e equipamentos domésticos. Apesar do entendimento comum sobre a utilização do brincar como técnica útil no atendimento de crianças, as concepções teóricas e metodológicas sobre o brincar apresentam diferenças significativas.

Arzeno (1997), uma importante referência para o psicodiagnóstico brasileiro, assinala que o papel do analista durante o psicodiagnóstico infantil, particularmente durante a entrevista lúdica, é o de observador não participante. Para ela, o analista deve ter durante a sessão um papel passivo. Contudo, conforme a autora, essa não participação tem limites, pois existem crianças que, ao chegar, já solicitam que o analista desempenhe um papel complementar em suas brincadeiras. Nesse caso, o analista deve estimular a interação da criança com o material lúdico, respeitando e acolhendo, de forma que ela se sinta segura e aceita.

A premissa que sustenta essa compreensão é pautada, como mencionado anteriormente, nas ideias de Klein (1927/1970). Para a autora, no atendimento com crianças deveriam ser disponibilizados diversos tipos de pequenos brinquedos, como carrinhos, bolas, animais, e materiais, como barbante, cola, lápis, tesoura e água. Segundo essa perspectiva, nos brinquedos que são disponibilizados pelo analista, a criança projeta parte de seus sentimentos e emoções em relação às suas experiências vitais e, com isso, muitas exteriorizações que não seriam expressas por palavras podem ser transmitidas a partir das brincadeiras (Silva, 2010). Cabe destacar que a ênfase, nessa corrente de pensamento, recai sobre o brinquedo enquanto ferramenta capaz de servir de tela projetiva das fantasias e afetos da criança, e não no brincar, como estabelece Winnicott (1975a ; 1975c) Nessa concepção, a brincadeira é pensada em seu caráter instrumental, que pode ser colocada a serviço da compreensão do analista, tornando-o capaz de formular interpretações. Além disso, mostra-se bastante evidente a ideia de neutralidade, tendo os brinquedos função correlata à metáfora do receptor telefônico, apresentada por Freud (1912/2003b).

Apesar do posicionamento da autora, cabe trazer à discussão a proposta de Winnicott (1964- 68/1994), quando aborda o brincar e mesmo o uso de recursos como o Jogo do Rabisco (Squiggle Game) de um ponto de vista diametralmente oposto ao de Arzeno (2003), já que o considera em seu caráter relacional e comunicativo. Winnicott (1964-68/1994) relata que o Jogo do Rabisco é uma forma de comunicação, um meio de entrar em contato com o si mesmo da pessoa que joga. Nas palavras do autor: "É simplesmente um método para estabelecer contato com um paciente infantil" (Winnicott, 1964-68/1994, p. 231). Para ele, toda proposta lúdica visa estabelecer o contato e é sempre uma produção criativa compartilhada, marcada pela intersubjetividade da dupla. Cabe ressaltar que as propostas desse autor se revelam bastante afinadas às ideias sustentadas no modelo interventivo de psicodiagnóstico. De acordo com o autor, o brincar está sempre a serviço da comunicação consigo mesmo e com os outros. Além disso, é no brincar que a realidade pode ser vivida de forma criativa, dando a quem brinca a sensação de existência e vivacidade (Winnicott, 1975a; 1971/1975c)

Ainda que caiba ao psicólogo o silêncio, este tem uma existência que adquire consistência a partir da relação que se desenvolve no espaço terapêutico. A não participação terá lugar apenas se ela fizer parte da brincadeira e da dinâmica em jogo. Mesmo nessa condição de imobilidade e de silêncio, o analista é sempre participante; manter-se imóvel, silencioso e observador integra sua participação na dinâmica relacional estabelecida, e é a partir dela que alguma diferença e mudança podem ser introduzidas. A partir dessas contribuições, destaca-se que os sentidos que emergem no jogo têm relação com as comunicações da criança ao analista, mas também com a capacidade do analista para acolher essas comunicações e transformá-las, reafirmando o brincar como jogo compartilhado.

O psicodiagnóstico infantil tradicional, desde o seu início, abarcou as contribuições de Freud e Klein. Freud (1920/2003c) ressaltava a importância do brincar, pois, para ele, nesse momento a criança pode sair da passividade diante dos elementos do mundo externo e de sua própria fragilidade para o controle através da brincadeira. Para Klein (1927/1970), precursora da análise com crianças, o brincar se constitui como a linguagem típica da criança e, quando falta a palavra, expressa tudo, sendo, portanto, uma via de acesso ao seu inconsciente. Para ela, no setting analítico, toda atividade, além das palavras e cada aspecto do comportamento, oferecem um fio para a compreensão do que acontece na mente da criança. Seguindo esse entendimento, a autora reforça que o brincar é a via régia para o inconsciente da criança, assim como é o sonho dos adultos. Ela relata que o jogo é o verdadeiro trabalho da criança, algo com o qual representa continuamente suas fantasias, mesmo as mais arcaicas, e que lhe permite comunicar-se, controlar as angústias e elaborar seus conflitos. Satiel et al. (2012) corroboram a concepção de Klein, afirmando que as crianças predominantemente usam o brincar como forma de manifestar seus estados mentais.

Ferro (1995), apoiado nas ideias de Winnicott, Stern e Bion, afirma que o jogo nasce na relação com a mãe quando cuida da criança. Esses jogos iniciais caracterizam-se por sons, balbucios e verbalizações que subentendem profundos intercâmbios comunicativos. São também acompanhados pela troca das recíprocas identificações projetivas, através das quais transitam estados emocionais e afetivos, que se encontram na direção criança-mãe, e graças à rêverie materna, o seu lugar de reconhecimento, bonificação e transformação. O conceito de rêverie materna foi cunhado por Bion em 1959 e se refere à capacidade de simbolizar e transformar aspectos brutos oriundos de sensações e não representações em representações ricas de sentidos (Lisondo, 2010). Além do caráter simbolizador da rêverie, destaca-se também sua natureza afetiva e tranquilizadora que é fundamental para que o bebê tenha condições de integrar aspectos de sua mente e pensar seus pensamentos. Ferro (1995) destaca também a relação entre o brincar e os contos de fada em dois aspectos: a insaturabilidade e a trama afetiva. A insaturabilidade diz respeito à possibilidade oferecida pelos jogos e pelos contos em oferecer um substrato não fechado que permita à criança preenchê-los, em momentos diferentes do próprio crescimento ou de diferentes estados emocionais, com significados diversos. Já a trama afetiva se refere à relação que se estabelece entre a criança e o narrador ou com aquele que com ela brinca. De acordo com ele, não é no texto narrado, mas na espessura afetiva e emocional que se cria, se vive e se ativa, com quem conta a história, algo transformador oriundo das mais profundas fantasias da criança. A partir das premissas que sustentam o modelo interventivo de psicodiagnóstico, o brincar pode ser pensado não apenas em seu caráter instrumental, sendo valorizado como comunicação, já que se constitui como via de contato e de compreensão de aspectos que emergem do vínculo entre a dupla em cada encontro.

Para sustentar essa premissa, a noção de intersubjetividade mostra-se fundamental. Essa noção parte da proposição que o psiquismo se constitui a partir de sua relação com o outro e/ou muitos outros. Sendo assim, a dimensão intrapsíquica só adquire sentido a partir daquilo que toma emprestado e que recebe como herança de seus muitos outros parentais, sociais e fantasmáticos (Kaës, 2011).

René Kaës (1997), psicanalista francês, trouxe notáveis contribuições para a articulação da teoria psicanalítica a uma concepção intersubjetiva. Segundo o autor, ao contrário do que fora sustentado por tanto tempo por muitos analistas, a psicanálise freudiana nasce fundamentada em uma concepção intersubjetiva do sujeito do Inconsciente, requerendo a intersubjetividade como condição constitutiva da vida psíquica humana. Trata-se, portanto, de uma premissa que considera o grupo como precedente ao sujeito do grupo, que não pode fazer-se sua causa ou efeito sem se alienar nele. Para o autor, o sujeito é um efeito do grupo que nasce a partir do olhar do outro, dada a sua condição de prematuridade e desamparo. Assim, para o sujeito humano, o grupo é sustentáculo e estrutura de enquadramento para o narcisismo. Para advir, o sujeito precisa, necessariamente, submeter-se ao outro ou a outros, sendo que "essa sujeição ao grupo se fundamenta na inamovível rocha da realidade intersubjetiva como condição de existência do sujeito humano" (Kaës, 1997, p. 276). Cabe acrescentar que a comunicação, desse ponto de vista, se coloca como veículo da transmissão, na intersubjetividade, garantindo a continuidade da vida psíquica ao longo das gerações.

Seguindo os argumentos de Kaës (1997), constata-se que o sujeito do grupo se constitui como sujeito do Inconsciente segundo duas determinações convergentes: a primeira deve-se à sua submissão ao conjunto (família, grupos, instituições, massas etc.), e a segunda é tributária do funcionamento próprio do Inconsciente no espaço intrapsíquico (Kaës, 1997, 2011). O grupo que precede o sujeito humano, representado inicialmente por alguns de seus membros, o sustenta e o mantém numa matriz de investimentos e de cuidados, predispondo signos de reconhecimento e de significações. Também apresenta objetos, oferece meios de proteção e de ataque, traça vias de realização e fomenta a comunicação dos limites, das proibições e dos lugares que devem ser ocupados (Aulagnier, 1979).

De acordo com Kaës (1997), a submissão do sujeito do Inconsciente ao conjunto intersubjetivo de sujeitos do Inconsciente impõe à sua própria psique uma exigência de trabalho. Dessa constatação deriva a noção de trabalho psíquico intersubjetivo, que supõe não somente uma determinação extraindividual na formação e no funcionamento de certos conteúdos do aparelho psíquico, mas diz respeito às condições nas quais o sujeito do Inconsciente se constitui. O trabalho psíquico intersubjetivo admite como hipótese fundamental que o sujeito, na sua singularidade, adquire aptidão para significar e interpretar, para receber, conter ou rejeitar, ligar e desligar, transformar e representar objetos, e emoções a partir das contribuições do outro. Trata-se, portanto, de um trabalho psíquico de transformação, possível a partir das contribuições de um outro ou de mais de um outro, que se mostra fundamental para a constituição da subjetividade (Fernandes, 2003).

Para Kaës (1997), o grupo cumpre funções fundamentais na estruturação da psique e na determinação de posições subjetivas, uma vez que todo sujeito nasce como herdeiro, servidor e beneficiário de uma cadeia de subjetividades que o precede e da qual se torna contemporâneo. Essa cadeia subjetiva veicula discursos, sonhos e conteúdos recalcados, fazendo com que cada sujeito seja, ao mesmo tempo, parte constituída e constituinte desses conjuntos. Essa concepção fundamenta-se em uma lógica dialética que considera o sujeito do grupo e o grupo como as duas faces da mesma moeda.

As contribuições de Kaës (1997) vão ao encontro do pensamento de Ogden (1994), no que diz respeito ao conceito de intersubjetividade primordial, que pressupõe uma situação na qual as subjetividades se constituem mutuamente, de forma que não há anterioridade dos sujeitos individuais em relação à intersubjetividade nem o inverso. O que está envolvido na formação da intersubjetividade é um nível da existência e da experiência ainda pré-representacional e até mesmo pré-pessoal, no qual não se pode e não se deve tentar determinar, pela impossibilidade da tarefa, o que pertence a cada um dos sujeitos.

Nesse contexto, cabe salientar que a inclusão da questão da intersubjetividade no arsenal psicanalítico é historicamente recente e não se dá sem debates e divergências (Coelho-Junior, 2012). Diante de uma comunidade psicanalítica que focalizou por décadas o funcionamento psíquico de um ponto de vista intrapsíquico, a passagem explícita do eixo de trabalhos psicanalíticos para a dimensão intersubjetiva produz muitas tensões. As divergências se dão, sobretudo, pelo receio de que o uso indiscriminado do conceito retire a ênfase clínica e teórica dos trabalhos psicanalíticos da dinâmica intrapsíquica, dos conflitos do inconsciente e da sexualidade e passe para "uma área etérea e pouco precisa da dimensão relacional" (Coelho, 2012, p. 8).

Coelho-Junior (2012) aponta que Winnicott reafirma uma mudança de ênfase que já havia sido iniciada por Ferenczi e Balint, na década de 1940. Essa mudança seria caracterizada, de um lado, por transformações na técnica clássica — com a relevância dada à alteridade do terapeuta e à noção de ambiente, à inclusão da dimensão contratransferencial e às mudanças no trabalho interpretativo — e, de outro, por novas formulações teóricas que passaram a abarcar conceitos que indicavam a necessária inclusão do outro como objeto (externo) e como elemento constitutivo do psiquismo. Tal mudança englobou também as formas de comunicação não verbal em análise, as angústias e limites de pacientes borderlines e a atenção aos períodos pré- verbais da infância. Essas ideias se mostram interessantes para discutir e repensar as propostas teóricas e técnicas no psicodiagnóstico interventivo infantil. Neste trabalho serão apresentadas noções de Winnicott sobre alguns caminhos a serem percorridos pela dupla a fim de que o brincar, além de uma experiência constitutiva da criança, ganhe o caráter de comunicação.

 

Brincar como experiência intersubjetiva de comunicação

Quando abordamos o psicodiagnóstico interventivo com crianças, a figura de Winnicott se destaca, uma vez que foi um dos primeiros psicanalistas de crianças que buscou adaptar a sua técnica em favor de um contato genuíno, marcado pelo ritmo e pelas possibilidades de cada cliente, além de levar em consideração aspectos relativos ao vínculo parental e questões sociais. As consultas terapêuticas surgem como proposta possível ao atendimento da grande demanda de assistência psicológica, às dificuldades práticas e financeiras para arcar com uma psicanálise tradicional, além dos muitos casos que, apesar das dificuldades apresentadas, não eram indicados para uma psicanálise ou uma consulta psiquiátrica nos moldes clássicos. Tendo em vista esses elementos, a pergunta feita por Winnicott, que é contundentemente atual, dizia respeito ao mínimo que poderia ser feito já na primeira consulta para que o crescimento e o desenvolvimento emocional pudessem ser retomados.

Lescovar (2004, p. 45) assinala que as consultas terapêuticas, ou em outros termos, a exploração integral das primeiras entrevistas, "representam uma nova possibilidade de avaliação, intervenção e ajuda psicológica, em que o encontro analítico se respalda basicamente numa comunicação significativa entre os membros do encontro". A possibilidade de viabilização deste trabalho se torna possível, dentre outras questões, pelas colocações por parte da criança de aspectos potenciais de si que necessitam de um outro para que se efetivem e para que o amadurecimento possa seguir o seu curso. Nesse contexto de busca por comunicação, o brincar se constitui como elemento fundamental.

Winnicott (1975a), ao abordar o brincar, apesar de considerá-lo uma forma de comunicação da criança com o terapeuta, busca evidenciar a criança que brinca e o brincar em si como experiência emocional constitutiva. Para ele, a brincadeira é universal e se relaciona diretamente com a saúde. Segundo sua compreensão, o brincar é sempre uma experiência criativa, de continuidade espaço-tempo e uma forma básica de viver. A partir dessas premissas, o brincar pode ser considerado uma forma de comunicação com os outros mas, fundamentalmente, uma forma de contato consigo mesmo.

Para Winnicott (1975a, pp. 75-76), o brincar está diretamente relacionado à criação e às comunicações com os próprios estados afetivos a partir da mediação de um outro. Nesse sentido, adverte os terapeutas a terem cuidado para não consumir com interpretações tempo precioso que o paciente poderia utilizar para criar. Ele enfatiza que, numa consulta terapêutica, o momento mais significativo é aquele em que a criança surpreende a si mesma, e não o momento de uma interpretação arguta por parte do analista. Para ele:

A interpretação fora do amadurecimento do material é doutrinação e produz submissão. Em consequência, a resistência surge da interpretação dada fora da área de superposição do brincar em comum de paciente e analista. Interpretar quando o paciente não tem a capacidade para brincar, simplesmente não é útil, ou causa confusão. Quando existe um brincar mútuo, então a interpretação, segundo os princípios psicanalíticos aceitos, pode levar adiante o trabalho terapêutico. Esse brincar tem de ser espontâneo, e não submisso ou aquiescente, se é que se quer fazer psicoterapia.

Nesse sentido, interpretar se mostra, consonante com as ideias do autor, tão importantes quanto não interpretar. Assim, até as devolutivas feitas com o paciente precisam ser afinadas ao ritmo do paciente e ao que ele suporta compreender. Mesmo nessa perspectiva avaliativa- interventiva, as intervenções só fazem sentido se ajudam o paciente a descobrir ele próprio, algo de si. Intervenções fora dessa dialética produzem, para Winnicott (1975a), invasão, submissão e, acrescento, violências.

Para o autor, "quando um paciente não pode brincar, o psicoterapeuta tem de atender a esse sintoma principal, antes de interpretar fragmentos de conduta" (Winnicott, 1975a, p. 71), pois brincar exige a experiência de confiabilidade. Segundo ele, a comunicação que pode surgir a partir da brincadeira só se dá na medida em que a presença do terapeuta, como figura confiável, concede ao ato de brincar a qualidade de comunicação. Winnicott entende que, sendo o brincar universal, uma criança que consegue brincar o faria independentemente da presença de um analista e, sendo assim, a brincadeira só ganha a dimensão de comunicação porque uma relação se estabelece, havendo um interlocutor interessado em acolher, compreender e estabelecer um diálogo com o que lhe é apresentado pela criança. É justamente a busca por comunicação, não apenas por parte da criança ou do analista, mas de ambos, que o brincar pode ganhar a possibilidade de se tornar comunicação e ter efeitos terapêuticos.

Apesar de este trabalho não dizer respeito ao processo psicoterápico, cabe o questionamento acerca dos fechamentos produzidos durante o psicodiagnóstico, principalmente quando o analista se detém na busca de informações puramente objetivas ou não permite que o brincar seja de fato uma experiência criativa. Assim, em que medida o processo de psicodiagnóstico, quando corresponde a interesses que não os da própria criança relativos ao seu desenvolvimento e à descoberta de aspectos de seu próprio mundo relacional, não estaria produzindo submissão da criança a processos que são estranhos a si? Acreditamos que o processo de psicodiagnóstico pode ser, de fato, um espaço-tempo criativo que conduz a expressão de questões originais que permitem à criança conhecer seu mundo interno, comunicar-se e se desenvolver. Entretanto isso só pode se dar quando as preocupações que norteiam o psicodiagnóstico não se restringem à busca de informações objetivas, sobretudo para aplacar a angústia dos pais, das instituições e até do próprio analista. Nesse sentido, quando vivido como experiência intersubjetiva, o brincar pode favorecer o processo de comunicação não apenas da criança para o analista, mas também entre eles e, sobretudo, da criança consigo mesma, permitindo-lhe se surpreender com possibilidades de vínculo e de trocas afetivas até então não pensadas.

Mazzolini (2001) assinala que uma das coisas que mais se destacam nas instruções dadas por Winnicott acerca da aplicação do brincar na situação terapêutica refere-se à maneira como ele orienta que seja proposta a situação lúdica. Ele ressalta que o fator mais importante, quando aplicava o jogo, era a sua flexibilidade. Advertia que, se a criança quisesse desenhar, conversar, brincar com brinquedos, cantar, fazer bagunça ou qualquer outra atividade, ele permitia isso, ficando livre para se adaptar aos desejos dela. Winnicott sugere que o terapeuta que vai utilizá- lo faça o mesmo, e não fique preso a regras muito rígidas. Cabe ressaltar que brincar e se entregar ao jogo pode ser algo muito difícil devido aos processos de resistência não apenas do paciente, mas também do psicólogo, que pode se sentir bobo, infantilizado ou ansioso para coletar dados que considere objetivos e consonantes com a ideia de avaliação psicológica como uma compilação de informações acerca da criança e seu desenvolvimento. Winnicott (1967/1975b), em suas considerações sobre o brincar, ressalta que as crianças brincam com mais facilidade quando a outra pessoa pode estar livre para se entregar ao jogo. Essa observação nos remete imediatamente para o trabalho analítico que deve ser feito com os próprios analistas a fim de que consigam brincar e permitam a seus pacientes, sejam eles adultos, sejam crianças, viverem essa experiência criativa. Poder contar com um suporte terapêutico pessoal torna-se, então, fundamental para o êxito no trabalho com crianças tanto no psicodiagnóstico quanto em situações de psicoterapia.

 

Considerações finais

Apesar de a brincadeira e o brincar serem propostas comuns no psicodiagnóstico infantil, o seu significado, função e manejo diferem consideravelmente, dependendo da concepção de psicodiagnóstico que esteja sendo desenvolvida. Neste trabalho buscou-se apresentar duas grandes concepções de psicodiagnóstico — a tradicional e a interventiva — evidenciando as grandes diferenças entre uma e outra no que diz respeito à concepção sobre o brincar nas avaliações clínicas infantis. Além disso, buscou-se apresentar um possível desdobramento na perspectiva interventiva de psicodiagnóstico a partir das noções de comunicação e de intersubjetividade.

Do ponto de vista defendido neste artigo, o brincar assume um lugar fundamental, pois constitui-se não apenas como uma comunicação da criança com o examinador, mas como um momento criativo e de liberdade em que, na presença de alguém atento e acolhedor, pode se transformar em um espaço de conhecimento sobre o próprio mundo interno e de seus sentidos que se manifestam por sintomas e sofrimentos.

Entretanto, para que essa possibilidade de comunicação viabilizada pelo vínculo possa acontecer, é necessário que duas concepções centrais sejam problematizadas. A primeira delas diz respeito à própria ideia de avaliação; enquanto avaliar crianças significar simplesmente compilar o máximo de dados possíveis a fim de que hipóteses diagnósticas sejam confirmadas ou refutadas, todo o caráter criativo e interventivo da avaliação ficará inviabilizado. Ainda que a coleta de informação, o levantamento de dados e a utilização de testes sejam importantes no manejo de uma avaliação infantil, sua utilização deve fazer sentido para a criança avaliada, de modo que ela própria possa descobrir as informações importantes acerca de si. Nesse sentido, espera-se que a criança seja ativa no processo e que ela possa ser ajudada a compor significações acerca de um conhecimento que lhe pertence, mesmo que não possa ainda ser formulado claramente. Alinhada a essa premissa, a avaliação deve ser, antes de tudo, um momento de facilitação das comunicações com o examinador e com aspectos do mundo interno da criança, que se mostram, até então, desconhecidos para ela.

A segunda concepção, que dessa perspectiva é reformulada em relação ao psicodiagnóstico tradicional, diz respeito ao papel do psicólogo. Desse ponto de vista o psicólogo é sempre participante, mesmo que sua atuação seja silenciosa e pouco ativa. O psicólogo intervém com sua subjetividade, seu olhar, sua escuta e sua forma de responder à presença da criança. Assim, o que vier a ser desenvolvido diz respeito não apenas aos aspectos e conteúdos representados pela criança em suas brincadeiras, mas também marcado pela forma como esses conteúdos ressoam no examinador e são por ele devolvidos. Seu lugar deve ser ocupado sem a pretensão de ser detentor de um saber sobre o outro, mas de poder colocar-se à disposição para caminhar junto e ajudar esse outro a desvendar os enigmas que carrega consigo, estejam eles representados em sintomas, em angústias e/ou sensações que ainda não consegue representar nem compreender. Trata-se, portanto, de um processo vivo, criativo, dinâmico, intersubjetivo, partilhado. Nesse espaço, o brincar e as brincadeiras só podem ganhar sentidos de comunicação a partir da relação e do vínculo.

 

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Recebido em fevereiro/2019 – Aceito em novembro/2019.

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