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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.25 no.1 São Paulo Jan./Apr. 2020

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v25i1p48-62 

10.11606/issn.1981-1624.v25i1p48-62

DOSSIÊ

 

Adolescentes "filhos da migração" e o Estado: apontamentos envolvendo psicanálise e educação no contexto francês

 

Los adolescentes "hijos de la migración" y el Estado: notas sobre el psicoanálisis y la educación en el contexto francés

 

Teenagers "children of migration" and the State: notes on psychoanalysis and education in the French context

 

 

Gabriel Inticher BinkowskiI

IPsicanalista. Pós-Doutorando em Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: gabriel.binkowski@gmail.com

 

 


RESUMO

Circunscrevo nesse trabalho algumas das características e impasses vividos por adolescentes oriundos de famílias migrantes na França. Esses jovens são frequentemente colocados num espaço social fronteiriço, notadamente na sua experiência na Educação Nacional, essa se constituindo como uma série de dispositivos de transmissão tanto de conteúdos escolares quanto de modos de vida e de cultura que são ligados a uma certa ideia republicana de sociedade ocidental. Pensamos aqui a educação como uma cultura à parte, que oferece modos de ser, agir, pensar, sentir, além de toda uma miríade de representações e conteúdos de valor antropológico. Isso, por vezes, se choca com outras valências culturais, linguísticas e identitárias vividas e trazidas por esses adolescentes que costumam viver uma espécie de cisão entre mundos e espaços subjetivos tão diferentes entre aqueles de casa e do campo social (via educação). Tais questões são aqui tratadas por meio de nossa experiência como profissional de saúde mental na França, trazendo dois casos que foram acompanhados e que retratam os dramas do adolescer em situação transcultural.

Palavras chave: transcultural; migração; educação; adolescência; psicanálise.


RESUMEN

Circunscriberemos en este trabajo algunas de las caracteristicas e impases vividos por adolescentes oriundos de familias de inmigrantes en Francia. Estos jovenes acabam siendo puestos en un espacio social fronterizo, especificamente en la experiencia de la Educación Nacional, destinada a transmitir una serie de dispositivos y contenidos escolares, maneras de vivir y cultura, estrechamente vinculado a una determinada concepción republicana de sociedad occidental. Pensamos aqui, la educación como una cultura diferente, que ofrece modos de ser, actuar, pensar, sentir además de transmitir una serie de representaciones y de contenidos de valor antropologico. Ésto, a veces, entra en choque con otros valores culturales, linguisticos y de identidad vivídos y traídos por los adolescentes que, acostumbran vivir una especie de escision entre mundos y espacios subjetivos tan diferentes, entre aquellos del hogar y los del mundo social (via educación). Tratamos de estas cuestiones, a través, de nuestra experiencia como profesional de la salud mental en Francia, trayendo dos casos que acompañamos y que retratan los dramas del sufrimiento en situación transcultural.

Palabras clave: transcultural; migración; educación; adolescencia; psicoanálisis.


ABSTRACT

In this work, we circumscribe some of the characteristics and impasses experienced by adolescents from migrant families in France. These young people end up being placed in a frontier social space, notably in their experience in National Education, this constituting itself as a series of devices for transmitting both school content and ways of life and self-culture that are linked to a certain idea republican society. We think here of education as a separate culture, which offers ways of being, acting, thinking, feeling, in addition to a whole myriad of representations and content of anthropological value. This sometimes clashes with other cultural, linguistic and identity values experienced and brought by these teenagers who usually live a kind of split between worlds and subjective spaces so different between those at home and the social field (through education). We deal with these issues through our experience as a mental health professional in France, bringing two cases that we follow and that portray the dramas of adolescents in a cross-cultural situation.

Keywords: transcultural; migration; education; adolescence; psychoanalysis.


 

 

A intenção neste artigo passa por circunscrever algumas das problemáticas que foram privilegiadas por autores da psicanálise e da clínica transcultural na França nas últimas décadas quanto às questões elencadas pelo campo da clínica e das práticas psicossociais e educativas com adolescentes filhos de migrantes na França. É necessário mencionar que o campo da chamada pedopsiquiatria (o que equivaleria à nossa saúde mental para crianças e adolescentes) na França é bastante vasto, cobrindo práticas de diferentes campos profissionais, dispositivos de acolhimento e intervenção com variantes regionais e com uma diversidade importante de orientações teóricas. No entanto, escolho como solo conceitual a psicanálise e as práticas próximas da clínica transcultural (e algumas de suas variantes, seja a etnopsiquiatria, a psicologia intercultural) por conta de uma série de experiências profissionais em instituições que se orientavam por esses paradigmas.

É importante salientar que a Educação Nacional é uma das prioridades históricas da República Francesa, prioridade que foi renovada ao longo de todo o século XX e nesse novo milênio. Há, no entanto, que se calcar entre os pilares da educação tal como pensada pelo Estado francês e seus operadores algo que remonta a chamada Terceira República (regime republicano vigente entre 1870 e 1940, ou seja, da época pós-guerra franco-alemã e da saída de cena de Napoleão III até o começo da Segunda Guerra Mundial). Foi um período de grande alargamento da educação escolar, decalcando alguns mitos da escola da França republicana que permanecem ainda um tanto vigentes.

Esses "mitos fundadores" da escola republicana se compõem como sistema de crenças dispostos no funcionamento das escolas, e se configuram como suporte do discurso constituinte para aqueles que trabalham no fronte da educação (Giraud, 2006). Eles seriam: igualdade, ascensão social, o papel libertador do saber e a laicidade. Esses constituem os elementos basais sobre os quais a escola traçaria uma espécie de programa de reprodução subjetiva.

Apesar de uma certa caducidade dessa compreensão da função da educação, o que posso indicar, tendo exercido como psicólogo-clínico em diferentes instituições para crianças e adolescentes na França, e também como pesquisador e docente universitário nesse mesmo país, é que há uma certa compreensão de um lugar social da escola e da educação na sociedade francesa. Com efeito, a educação é obrigatória para toda criança e jovem presente em território francês até os 16 anos de idade e o Estado mantém diferentes dispositivos e profissionais que velam para que isso se cumpra com rigidez. Isso fica evidente nas demandas feitas por diferentes profissionais da educação, como educadores, professores, orientadores pedagógicos, e também da justiça, que recorrem às redes de atenção psicossocial quando o projeto pedagógico do Estado falha com alguma criança ou adolescente. As dificuldades escolares, de aprendizagem ou comportamento são colocadas lado a lado com as dificuldades de manutenção do laço entre o sujeito aprendente e os diferentes dispositivos de educação mantidos pelo Estado e que têm no coração de seu funcionamento um certo ideal de inscrição do sujeito no laço social republicano.

Tal problemática, a das dificuldades escolares, parece se intensificar ainda mais para com os adolescentes "provenientes da imigração" ("issus de l'immigration"), como se costuma dizer. É evidente que há também problemáticas prementes à infância, seja em relação à apropriação linguística do francês, ou mesmo a uma certa rotina escolar que costuma ocupar de forma bem expressiva o tempo e a vida das crianças, com atividades escolares, esportivas, lúdicas e outras modalidades de formação que costumam ser intensas, durando até dias inteiros. Contudo, privilegio neste artigo os jovens por conta de certas problemáticas que vêm se destacando nos campos da psicanálise, da educação e da clínica transcultural, a saber, as psicopatologias do laço social, do corpo e do espaço, o radicalismo religioso, os desvios comportamentais e transgressões da Lei.

A hipótese que sustento, parte do pressuposto que os espaços da educação do Estado francês, pensados para ser uma miríade de dispositivos de transmissão de conteúdo sem falhas, através da uniformidade, acabam sendo palco para sintomas, mal-estares e condutas de risco que funcionam como estigmas do sofrimento psíquico em jovens de segunda ou de terceira geração (no caso, jovens filhos ou netos de imigrantes que chegaram à França, e que possuem, ou não, a nacionalidade francesa1). Essa hipótese vai ao encontro da maneira com o que vem sendo pensado na construção de serviços de acolhimento e acompanhamento psicológico de jovens na França, com o sofrimento psíquico encarado também como um questionamento desses jovens frente a uma sociedade na qual sua identidade é constantemente interrogada (Skandrani & Bouche-Florin, 2009). É por esse desfiladeiro que traçaremos esse escrito.

 

Adolescência: destino, transgressão, transmissão

Adolescência é uma expressão ausente enquanto verbete dos dicionários de psicanálise. Bem entendido, o termo foi se popularizando mais ao longo da segunda metade do século XX, nos mais diferentes setores da cultura e em diferentes países, ficando por vezes colado a outros conceitos guarda-chuva, tais como juventude ou puberdade. No entanto, há um discurso em torno do fenômeno adolescência que carrega definições e meandros jurídicos, psicológicos, sociológicos, culturais e até mesmo psicanalíticos.

A psicanálise, como disciplina, avança sempre em direção a objetos não-hegemônicos, ou seja, objetos "novos". Foi assim com a histeria e com objetos como a pedagogia, as artes, a religião, que já compunham ramos de investigação desde Freud, como tudo aquilo que trabalha "interiormente" os analisandos (Lajonquière, 2017). Por conta disso e de suas modalidades de investigação dos pilares e dos porões da vida psíquica (e social), Freud chegou mesmo a sentenciar, em seu prefácio para o livro de August Aichhorn, Juventude abandonada: "a criança se tornou o objeto principal da pesquisa psicanalítica" (Freud, 1925/2003, p. 3216, tradução nossa).

Se a psicanálise do infantil (de todo neurótico) pôde levar à gênese de uma psicanálise de crianças com Melanie Klein e Anna Freud, foi com autores como Donald Woods Winnicott, Maud Mannoni e Françoise Dolto, entre outros, que se pode pensar e praticar uma psicanálise com crianças e com jovens. Uma das discussões que já atravessava os autores supracitados, sendo constantemente reatualizada por Jacques Lacan e que ainda segue nos dando muito pano para a manga, é de que há uma correlação entre mal-estar (na cultura) e algo que seria da ordem do declínio da função paterna (Lacan, 2001). Esse marco se mostra como central para esse campo que aqui privilegio, que é o da relação entre adolescência e educação, tendo sido até mesmo objeto temático importante já presente na obra do próprio Aichhorn, inaugural para pensar psicanálise e educação, na qual defende-se a ideia do pedagogo como substituto de pai. Logo, há algo em torno de conflito, mal-estar, transmissão e destino onde invariavelmente chegamos ao pensar sobre o que seria adolescência.

Contudo, chegar até uma noção clara do que é a adolescência e pensá-la pela via da psicanálise ainda não é um caminho tão plano assim, visto que a ética e a epistemologia psicanalíticas defendem um sujeito sem predicados. Portanto, o que é possível defender é que devemos tomar a adolescência como uma resposta sintomática para um tempo específico da sexualidade, no caso, o que chamamos de puberdade (Oliveira & Hanke, 2017). Tomando-a como uma resposta, acompanhamos as pistas que já foram deixadas por Freud, que, seguindo a tese de François Sauvagnat (2009), consagrou boa parte de sua obra àquilo que hoje chamamos de adolescência, já que muitas vezes ao falar sobre crianças e infância, Freud estaria, na verdade, se referindo a adolescentes e à adolescência, esse tempo que é o da resposta psíquica aos efeitos somáticos e psíquicos da puberdade. O Complexo de Édipo passa, então, a ser considerado como um conflito de gerações, uma vez que ele é vivido sempre por mais de uma parte, no caso, em formação triangular, afetando psiquicamente todos os envolvidos.

Nesse sentido, falar em adolescência é levar em conta uma construção recente que marca uma direção de experiência onde o sujeito vai colando em si certos signos da cultura, a fim de atravessar três momentos em que ele é exposto ao seguinte, conforme aponta Jacques Alain Miller (2015): a saída da infância (viver as metamorfoses da puberdade e o corpo do Outro como objeto), a diferença dos sexos (experimentar certas tendências do próprio corpo púbere e pós-púbere, vivendo as marcas da diferença para com o outro sexo) e a imiscuição do adulto na criança (um momento de reconfiguração narcísico no qual o adulto antecipa-se no jovem). Esse combo de experiências marcaria uma época de semblante, como diria Lacan, onde artifícios da cultura são usados e oferecidos a fim de que o real da diferença dos sexos e da morte não se faça presente.

Seguindo nessa linha investigativa, pensamos aqui a adolescência como esse combo de ofertas que marca corpo, realça certas marcas biológicas, modula o desejo e confronta constantemente o sujeito com uma certa ideia de destino, no caso, a própria adolescência. Nesse tempo de desconstrução do infantil (em suas marcas corporais e nos objetos de desejo prototípicos desse período), as dimensões do social e do cultural ganham muito relevo, pois compõem esse campo linguageiro simbólico-imaginário que serve de recurso tanto para as manutenções e continuidades experienciais como para aquilo que se configura enquanto modelo de ruptura e transgressão.

O sujeito que vive a adolescência na própria pele se identifica à sociedade em suas semelhanças e diferenças, reinscrevendo seu desejo no laço social (Vanier, 2016). É, portanto, um tempo de encontro com as experiências de continuidade e de ruptura no laço social, naquilo que se constitui como sendo as experiências de sofrimento da cultura (Gurski & Pereira, 2016). O conceito de cultura e das problemáticas inter e transculturais ganha, então, relevo nessa investigação na medida em que a cultura pode ser definida enquanto um processo de oferecimento e de apropriação, numa realidade coletiva que se traduz através de crenças, representações, valores, normas, ritos, nuances de comportamento e até mesmo pelos modelos de sofrimento e de adoecimento (Balkaïd & Guerraoui, 2003).

Todavia, o que ocorre quando há tantas diferenças culturais entre o que se transmite (ou o que se deixa de transmitir), entre a família e a sociedade onde cresce uma criança e um adolescente? Que tipos de rupturas e até mesmo de transgressões se passam? Ao escutar famílias, crianças e jovens migrantes na França, era patente que o período da adolescência colocava em cena sintomas e nós subjetivos referentes às trajetórias migratórias familiares, às diferenças culturais e religiosas e também a tudo aquilo que implica as identificações e decantações identitária. Com efeito, a Educação Nacional francesa é fundamentada pelo objetivo de oferecer tanto um lugar de vida para crianças e adolescentes como também um lugar de transmissão de saberes e de um certo registro cultural, o que é em grande parte inconsciente (Delalande, 2007). Além disso, se trata de um sistema onde o aprendente é colocado no centro de um plano de formação, com possibilidades de classes especiais segundo suas dificuldades, e também de reorientações educativas, que vão desde momentos de escolha entre um percurso mais científico ou outro mais literário (no caso do ensino médio) ou mesmo de reorientações mais radicais, como direcionar uma criança para uma formação profissionalizante um tanto cedo, caso haja dificuldades de adaptação à escolaridade padrão.

Tais questões e discussões se acentuam entre os adolescentes "filhos da migração", os quais vêm frequentemente de famílias com organizações nucleares mais duras, envolvendo às vezes pais com múltiplas esposas (é comum encontrar migrantes africanos que possuem uma esposa e uma família na França e outra na África), além de fazerem parte de famílias onde a religião tem um lugar central na organização da vida. Porém, devemos destacar que há outros conflitos e transgressões que são iminentes em grande parte das famílias com as quais trabalhei: muitas vezes, ao chegar na adolescência, um jovem migrante de segunda geração (ou seja, nascido na França, de pais imigrantes) vive uma espécie de clivagem entre o mundo doméstico e o da escola e da rua, entre diferentes línguas, concepções do que é um jovem, um homem, uma mulher, do que esperar de seu futuro, de como viver sua sexualidade, etc. Ademais, são comuns os fenômenos de crispação identitária, como pais que tentam enquadrar seus filhos seja pela via da religião ou de outros ritos por vezes violentos, como o da mutilação genital feminina (Ahovi & Moro, 2010).

Na sociedade francesa e em suas mais diferentes instituições e nos dispositivos de gestão de pessoas e processos, a noção de integração tem um peso muito grande. Assim, toda a diferença, notadamente a cultural, é pensada como passível de ser integrada (até mesmo de forma imperativa). Aqui falamos desde o acolhimento de crianças com condições especiais na escola, de portadores de necessidades especiais nos locais de trabalho, do acesso de imigrantes aos mais diferentes dispositivos da sociedade.

Há de se realçar que a integração é, na sua base, uma doutrina militar advinda do período napoleônico, de integração das populações conquistadas. Inscrita na legislação do país, a integração acaba funcionamento de modo performativo: com força interpretadora e apelo à crença, como provocava o filósofo Jacques Derrida à propósito da força da lei (Derrida, 2007). Ora, sem maiores parênteses históricos ou filosóficos, chamo a atenção para o poder aculturador da Educação Nacional francesa, que é pensada para ser uma miríade de dispositivos de transmissão de conteúdos, claro, e também de todo um conjunto imaginário, simbólico e semântico para que um sujeito se pense. Isso acaba por fomentar aquilo que Marie Rose Moro (2002), fazendo menção de pensadores como Lévi-Strauss, denuncia como sendo o perigo da uniformidade: o projeto de tornar-se cidadão (mandato da educação nacional) termina sendo um destino de rupturas e transgressões, impedindo que aspectos identitários outros estejam disponíveis para a confecção da subjetividade do jovem.

Cabe, por fim, diferenciar a noção de "diferenças culturais", citada acima, daquilo que, em Freud, temos como cultura-civilização. Como proposto por Assoun (2001), a construção freudiana de uma noção de realidade psíquica serve para delinear a configuração de um aparelho psíquico em seu movimento entre o pulsional e o cultural, com as exigências que a civilização impõe acabando sempre derrotadas pelo sintoma ou pelo mal-estar. Ora, seguindo com Assoun, o mérito do discurso freudiano fora de romper com discursos ideológicos de normas e patologias para revelar que a neurose se encontra na cultura como o verme está na fruta, qual seja, como parte de seu amadurecimento. O diagnóstico proposto pelo freudismo abarca esse reconhecimento da arbitrariedade desse par cultura-civilização, sendo que as exigências e seus recalques condensam um tempo histórico de organização de homens em um determinado lugar.

Por isso, quando lançamos mão da noção de "diferenças culturais", tentamos englobar essa riqueza antropológica da psicanálise de olhar para o ser humano e apostar numa certa universalidade do funcionamento psíquico, como tanto insistiu Georges Devereux. Evidentemente, esse desejo de universalismo, pela psicanálise, carrega consigo a semente do evolucionismo, do etnocentrismo e mesmo do eurocentrismo e de um patriarcalismo falocêntrico. Contudo, isso não retira da psicanálise suas valências de compor com um esforço de leituras antropológicas que tentam captar o funcionamento e a organização das sociedades, das culturas e de seres humanos a partir de seus disfuncionamentos, de seus sintomas e, consequentemente, do mal-estar. A partir da temática que aqui escolho abordar, a adolescência, se evidencia toma-la como uma das zonas da subjetividade mais propícias para se experimentar essa quebra de compromisso entre psiquismo e cultura. Muitos adolescentes, em sua singularidade de vida, de tradições familiares e culturais, acabam logo sendo confrontado às arbitrariedades do social e da cultura, vivendo com intensidade, na própria pele, modalidades de mal-estar que contam sua história.

 

O adolescente entre múltiplas culturas, filiações e destinos

O adolescente precisa dar conta da questão das origens não tendo mais como recurso único as teorias sexuais infantis, tampouco o romance familiar. A sociedade francesa possui certos arranjos antropológicos onde o  sujeito é constantemente recolocado  numa posição onde algumas de suas marcas identitárias são insipidamente assinaladas: sua classe social, sua religião, o status de sua profissão, suas ascendências étnicas, sua língua materna (ou o fato de que o francês não é sua primeira língua). Diante disso, um adolescente filho de pais imigrantes vive se depara inúmeras vezes com eventos de desautorização social, encontrando na sociedade

referências pejorativas e redutoras àquilo que faz parte de sua construção de si, de suas narrativas e dramas de origem, como é o caso no racismo, no preconceito e nos efeitos de discursos coloniais ainda tão vigentes.

Ser filho de pais imigrantes passa a compor não apenas parte de um registro imaginário (como uma constelação de imagens culturais e sociais atreladas seja à sua suposta cultura de origem, seja a seu lugar na sociedade francesa), mas também entra como algo da ordem da filiação, qual seja, simbólica, não apenas no registro das estruturas do parentesco que vêm da cultura, mas também pelo fato de serem "filhos da migração" (issus de la migration).

Os "filhos da migração" ficam assim desalojados de paternidade, haja vista que há um excesso de imaginário, social, quanto à sua origem migratória e às diferenças culturais da mesma.

Há algumas décadas são realizadas pesquisas que investigam essa "filiação" de crianças e jovens provenientes de famílias migrantes. Se, por um lado, algumas crianças e jovens tiram benefícios suplementares dessas filiações plurais (bi ou mesmo plurilinguismo, possibilidades narrativas compostas de várias modalidades para falar e pensar em si, ambientes familiares ricos e estimulantes quanto às diferenças culturais, etc.), outros jovens acabam por sofrer consequências de percursos migratórios parentais violentos, vulnerabilidade psicossocial, impossibilidade de jogar entre universos culturais múltiplos etc. (Moro, 2006).

Já nos anos 1990, a mídia nacional francesa cobria revoltas juvenis da banlieue, a região metropolitana de Paris, como algo que seria relacionado às supostas dificuldades de integração à sociedade de jovens oriundos da migração, reduzindo a importância de outras questões sociais e econômicas. Com efeito, já na vitória da seleção francesa na Copa do Mundo de 1998, realizada na própria França, alguns emergentes sociais ganharam as manchetes do mundo, com uma equipe cujo slogan era o conhecido "Black, Blanc, Beur" (preto, branco e "beur", que faz referência aos jovens nascidos em famílias de Magrebinos do Norte da África, no caso, Argélia, Marrocos e Tunísia, países com longa e tensa história colonial com a França; "beur" é uma inversão da palavra árabe, a-ra-be se tornando a-ra-beu, cujo contração vira "beur"2).

Por anos, discutiu-se a forma com que a campanha da seleção francesa foi utilizada pela política e, assim, acabou se tornando uma espécie de marco cultural para um pretenso desejo de maior integração na sociedade francesa, com a vitória servindo para vislumbrar um encorajamento do modelo de integração da sociedade francesa, em algo que teria sido uma espécie de "parênteses encantado" (Gastaud, 2007). Ora, os encantamentos duram pouco. O que se viu nos anos subsequentes foi um aumento dos episódios de revolta dos jovens dos ditos "bairros difíceis" (quartiers difficiles), sendo o ano de 2005 aquele que viu uma das temporadas de maior revolta e violência por parte de jovens.

De cara, entre o final dos anos 1990 e o começo dos anos 2000, havia quanto a essa temática uma grande divisão entre autores que seguiam uma perspectiva psicanalítica mais tradicional e outros que se inclinavam a discussões relativas aos campos da etnopsiquiatria, da psicologia intercultural ou da clínica transcultural. Essas três expressões, aliás, dizem de diferentes perspectivas para pensar a relação entre psiquismo e cultura e representam escolas e autores que lidam distintamente com questões como a participação dos componentes culturais do sofrimento psíquico, as concepções etnológicas de mal-estar e de vida psicológica, o lugar dos dispositivos tradicionais no cuidado. O que podemos particularmente salientar é que todas as escolas guardam uma concepção de inconsciente que é ligada à psicanálise e mantêm uma certa filiação teórica com a obra de Georges Devereux (1908-1985)3.

Um volume que me parece um tanto emblemático do conservadorismo de alguns psicanalistas para tratar do tema é Y a-t-til une psychopathologie des banlieues? (uma tradução direta seria "Há uma psicopatologia da banlieue?), organizado por Jean-Jacques Rassial a partir de um colóquio realizado na Université Paris 13 em 1996. Contanto com autores bem reconhecidos do campo psicanalítico (alguns lacanianos inclusive), a obra vai apresentando a hipótese de que esse tipo de estrutura geográfica, social e econômica, onde jovens, em grande parte de origem imigrantes, crescem em espaços quase de "banimento" (o ban- da palavra banlieu aqui se prestava a esse tipo de jogo de palavra), funciona como metáfora da modernidade e do mal-estar do declínio da função paterna.

Seriam, portanto, jovens banidos, porém, não apenas do acesso aos dispositivos de reparação social, mas também do campo simbólico, da Lei, sendo marcados social, cultural e psiquicamente como tipos paradigmáticos dos adolescentes da atualidade (Lesourd, 1998): eles sofreriam por conta de referências adultas fluídas e desencontradas, vivendo na relação com as instituições do Estado, como a justiça e a educação, sintomas de uma espécie de pane do Outro, o que lhes lega poucos espaços de construção subjetiva diferentes da psicopatologia e do gozo no próprio corpo, seja pelas delinquências, pelas adições e modalidades de passagem ao ato. Em suma, o que marca essa hipótese é que os jovens de origem migrante seriam radicalmente confrontados com o mal-estar do contemporâneo por não estarem sob os auspícios da proteção da função paterna. Resta-lhes, em última instância, o recurso à psicopatologia e à marginalidade social.

É evidente que não podemos mais considerar que os psicanalistas e profissionais do campo psicossocial na França ainda tenham uma visão tão retilínea dos processos do adolescer entre jovens de origem imigrante vivendo nessas regiões desfavorecidas. Por isso, sinalizamos que havia antigamente um contraste bem mais grave entre autores que seguiam uma perspectiva transcultural (ou da etnopsiquiatria ou psicologia intercultural) daqueles que sustentavam uma leitura mais "estritamente" psicanalítica.

Hoje em dia, considero que já há uma impregnação muito maior das discussões sobre as questões relativas à cultura, etnia, multilinguismo, etc., entre profissionais que se formam no campo psi e da subjetividade. Até mesmo entre os campos da etnopsiquiatria e do transcultural já não é tão fácil encontrar certos radicalismos como aqueles que outrora forjaram as grandes polêmicas da etnopsiquiatria, como as discussões públicas de Tobie Nathan com o sociólogo Didier Fassin ou com a psicanalista e historiadora Elisabeth Roudinesco (ver em Fassin, 2000 e Nathan, 2001).

Grosso modo, Nathan sustentava que a suposta cultura de origem deveria ser tomada como principal recurso de reparação psíquica de sujeitos imigrados, tanto em seus recursos terapêuticos (os dispositivos tradicionais e religiosos de tratamento dos mais diferentes males) como em seus aspectos linguísticos e filiativos, os quais deveriam ser cultivados no país de acolhimento de forma profilática. Além de problemático do ponto de vista ético, haja vista que tomar o sujeito pela sua cultura é uma prática de assinação identitária, isso também renega a evidência psicanalítica de que o sujeito está em constante conflito com a sua cultura.

Alienar um sujeito à uma suposta cultura de origem também nega que as culturas são mutantes e altamente permeáveis. Assim, fica ainda mais difícil sustentar a ideia de uma suposta cultura de origem para crianças e jovens oriundos de famílias imigrantes, já que suas referências a uma (ou mais de uma) cultura de origem costumam ser múltiplas: é comum que jovens de origem africana, por exemplo, passem as férias escolares no país de origem de seus pais, convivendo com familiares de suas idades que já possuem referências culturais bem mais ocidentalizadas.

Dando cabo a essa discussão, é importante mencionar que algo que seria próprio daquilo comumente chamado de clínica transcultural é o pensar acerca das pluralidades e diferenças culturais como uma riqueza para esses sujeitos, seja porque muitos vivem desde cedo em mais de uma matriz linguística e que são levados a circular por universos culturais com variações antropológicas muito grandes. É inegável, contudo, que isso muitas vezes vem acompanhado de algo que fora citado mais cedo nesse artigo: périplos migratórios delicados, exposição a radicalismos culturais e/ou religiosos, experiências de racismo e estigmatização identitária, e inúmeras possibilidades de situações em que o sujeito se vê confrontado aos desfiladeiros da subjetividade, gerando impasses das mais diversas ordens.

Tais impasses se dão a ver na escola, nas ruas, em serviços hospitalares (lembrando que os serviços de saúde mental na França são, em sua maioria, ligado a hospitais responsáveis por distritos sanitários, por isso, quando falamos em "cenas no hospital", estamos nos referindo a serviços homólogos a Centros de Atenção Psicossocial, Hospitais-Dia, Ambulatórios variados, dentre outros dispositivos de acolhimento, atendimento e convivência, como as Maisons des Adolescents). Algumas dessas cenas serão apresentadas na derradeira parte deste escrito.

 

Algumas cenas entre a escola, a rua e o hospital, entre o passado, o presente e o futuro

Crescer em situação transcultural é estar rodeado de inúmeras ofertas de representação de si e do outro, de composições simbólico-imaginárias que podem ser tanto convergentes quanto divergentes. Frequentemente, as modalidades pelas quais certas sociedades tradicionais e certos grupos de pertencimento pensam aquilo que é uma criança, uma mulher, o sexo, etc., entram em colapso quando confrontadas com outras racionalidades culturais (Moro, 2010).

Esse colapso também é muitas vezes provocado por algumas situações singulares, como violências vividas em alguma geração anterior à criança ou ao jovem, ou quando há desarranjos numa organização  familiar,  em  algo  que  sinalize  um abismo  muito  grande  entre  certos elementos fantasmáticos daquilo que os pais pensam sobre um jovem e aquilo que o mesmo vive no cotidiano. Escolhi apresentar dois casos a partir da singularidade vivida por esses adolescentes nos impasses com sua experiência de adolescer e com aquilo que viviam enquanto jovens que enfrentavam a pergunta da suas origens e da diferença cultural, do mundo dos pais e antepassados e de referências culturais, sociais e educativas por vezes tão rígidas como aquelas encontradas na sociedade francesa.

São vinhetas compostas a partir da metodologia proposta por autores como Carneiro (2018), que, a fim de pensar a pesquisa no campo cruzado entre psicanálise e educação, aposta que composições entre casos múltiplos são proponentes na nomeação de mal-estares que atravessam a cultura e o social, guardando ao mesmo tempo a valência para aberturas contextuais de cada caso e, ainda, para que se possa pensar a singularidade de cada sujeito perante o Outro. No cenário clínico que apresento ao leitor, se trata de encontrar em jovens de origem migrante as marcas da experiência de cada um para com a Educação Nacional francesa e como essa, através de seus dispositivos, atores, de sua malha jurídico-ideológico, participou da forma como esses jovens se interrogaram sobre suas origens durante o processo do adolescer.

 

Sherif: entre a violência da Lei e o recontar que reordena

O primeiro caso que escolho para trazer, em algumas cenas, é o de Sherif (nome fictício), jovem que encontrei numa estrutura de acolhimento de adolescentes (Maison des Adolescents) da banlieue parisiense. Ele tinha 17 anos e meio na época, e passa a frequentar o serviço por ordem judiciária, algo que fora estabelecido pelo magistrado responsável por julgar e acompanhar casos de menores na cidade. Sherif nasceu na República Democrática do Congo, antigo Zaire. Ainda na primeira infância, ele e sua mãe fugiram do país depois da detenção do pai por motivos políticos. Isso se deu em meados dos anos 1990, tendo o menino vivido com a mãe na região parisiense por dois anos antes de um reencontro com o pai. Sherif relata não ter qualquer lembrança da vida no país natal. Durante o período de afastamento do pai, a família não teve qualquer notícia do mesmo, sendo que, numa conversa com nossa equipe, a mãe chegou em determinado momento a confessar que tinha perdido as esperanças de reencontrar o esposo com vida.

Quando chegou no serviço para acompanhamento educativo, psicológico e social, Sherif já carregava consigo uma longa ficha corrida de transgressões. Tudo começou quando ele tinha 13 anos e quebrou um vidro da janela (de sua escola) ao ser obrigado pelo professor de matemática a ir até a lousa para escrever a resposta de um problema. No ano seguinte, roubou o aparelho de telefone do conselheiro pedagógico e, poucos meses depois, foi pego com uma pequena quantidade de maconha, também dentro do estabelecimento escolar. Por fim, aos 17 anos, ele e dois colegas teriam cometido alguns roubos, sendo que num deles um colega acertou um senhor com uma faca. O crime se deu a um quarteirão do colégio onde os jovens estudavam. O juiz que acompanhava o caso resolveu manter o jovem por alguns meses num centro de reabilitação, e foi aí que um colega educador, ligado ao serviço de acompanhamento psicológico, mas funcionário da Educação Nacional, começou a intervir no caso, com visitas ao local de internação e depois com a participação do jovem e de sua família em consultas de clínica transcultural4.

Com o passar das sessões, o foco foi saindo de Sherif e indo para a fala de seus pais, ambos extremamente solícitos, decididos e de palavra firme. No princípio, o discurso deles era de forte decepção pelas transgressões do filho, muito embora houvesse a sensação, entre nossa equipe, de que havia ainda uma certa retórica um tanto defensiva da parte dos genitores. Sherif pouco falava, até que um dia desatou a chorar logo no começo da sessão. Quando perguntamos sobre esse choro, a mãe começou a lembrar de um choro de alegria que vivera quando do reencontro de seu marido: por acaso, no metrô parisiense, eles se cruzam e começam a gritar e se abraçar, depois de dois anos de separação, - Sherif era apenas uma criança. Foi uma história com final feliz, muito embora o que viria logo depois deixou a todos bastante tocados.

O pai de Sherif resolveu contar sobre sua prisão. Quando distribuía folders de seu partido político, ele fora detido junto com alguns companheiros, permanecendo num quartel que ficava numa antiga escola e passando dois dias sem água ou comida. Em seguida, todos foram levados até a frente de uma sala de aula para contar sobre as atividades políticas. Ao se negaram a dar maiores detalhes, tiveram de ficar nus num paredão e foram molhados com uma mangueira de onde a água saía com grande pressão. Enquanto nos contava das cenas de humilhação e desespero, aquele senhor chorava copiosamente, dizendo que seu mundo tinha ali se partido, já que os homens de uniforme que lhe torturavam era as pessoas da lei, "como confiar na lei depois disso?", repetiu três vezes. Na sequência, ele e seus colegas ainda teriam apanhado e alguns tiveram o ânus penetrado com um cassetete.

Subitamente, algo pareceu fazer sentido para as equipes de profissionais: havia algo da figura da Lei que, por conta de um traumatismo vivido pelo pai, parecia fazer sintoma em Sherif. Além das inúmeras referências à Lei e à escola (o quartel ficava numa antiga escola da cidade), Sherif parecia ter vivido uma passagem ao ato que respondia a um traumatismo de seu pai: ser levado à frente de todos para contar algo, algo que soava injuntivo. O próprio jovem repetia constantemente não entender seu próprio comportamento, sendo que a espiral de violência em que escorregava lhe parecia uma sequência de enigmas. Como tínhamos um contato frequente com a vara responsável pelo caso, o juiz era bem próximo do educador e, com autorização do rapaz e da família, pudemos transmitir algumas dessas cenas ao magistrado. Quando Sherif completou 18 anos, ficou decidido que sua pena final seria junto à biblioteca municipal, onde acabou, durante seis meses, cuidando da reorganização dos livros que haviam sido devolvidos pelos leitores. Em suma, os atos transgressivos de Sherif levaram toda família a encarar um tanto da violência vivida pelo pai, numa narrativa que era conhecida apenas pela esposa, mas que provocava efeitos tanto em nosso paciente como ainda em seus irmãos nascidos na França.

 

Jennifer e a radicalidade de ser adolescente

Jennifer (nome fictício) foi um caso que acompanhei em um hospital diferente do de Sherif. Nascida na França, ela tinha pais provenientes do Mali. Pouco falava a língua da família, apesar de ir passar as férias de verão no país africano quase todos os anos. Na época em que nos encontramos, entre seus 15 e 16 anos, voltou transformada de uma dessas viagens. Lá, nos país da família, passava o tempo com primas e também com a outra esposa do pai, que tinha, por sua vez, outra filha da mesma idade de Jennifer. Logo nas primeiras semanas de aula daquele ano, Jennifer se mostrou muito violenta com as colegas, além de não ter voltado para casa em algumas noites.

Uma crise de ansiedade a levou a ser hospitalizada no setor de urgências do hospital. Essa crise se deu durante o intervalo de uma aula, quando a garota retira a calça e mostra a vagina para algumas de suas colegas. Quando a recebemos junto com a família, a diretora do estabelecimento escolar e uma responsável pedagógica, havia muita coisa a ser contada e discutida. Havia uma série de mal-estares em relação ao comportamento de Jennifer e seu aproveitamento escolar. De parte da escola, era evidente uma pesada cobrança para que o pai da jovem assumisse uma posição mais forte em relação à evolução pedagógica dela, o que contrariava frontalmente as posições culturais da família: para os pais, assim como ocorre em muitas famílias de países da África, a responsabilidade por acompanhar a educação escolar de um filho cabe exclusivamente à mãe, que vive um fracasso de suas funções quando há alguma intervenção do pai, ou alguma convocação escolar em que ambos os pais precisam se apresentar.

Ao longo de meses de consultas, seja atendimentos grupais, sessões individuais com a jovem ou entrevistas com os pais, pude ir desenovelando uma história bastante sombria. Com efeito, Jennifer parecia sempre voltar das férias muito ligada à família local e à outra esposa do pai. Contudo, daquela vez, entre os 15 e os 16 anos, ela presenciou uma discussão entre algumas tias sobre seu futuro: elas discutiam se ela teria capacidade de ficar no país e de ter um marido, haja vista que seria tão ocidentalizada e pouco afeita à disciplina. Foi quando ouve de uma tia: "por isso é que eu concordo com a excisão". Um detalhe clínico importante: Jennifer relatou que as tias falavam em francês, "como se eu tivesse que estar escutando e entendendo para me sentir ameaçada". Na época desses atendimentos, entre 2016 e 2017, houve uma campanha de publicidade que ficou bem conhecida, capitaneada pela associação Excision Parlons en. Em cartazes que estamparam inúmeras paradas de ônibus da região de Paris, se via um desenho de uma menina recebendo uma passagem de avião de uma mulher e a sombra de um bisturi ensanguentado ao fundo, nas mãos da mulher que entregava a passagem. Ao centro do cartaz, lia-se "Tu pensais partir en vacances?" ("Achava que você ia viajar de férias?").

Jennifer contou os eventos vividos na família com alguma exaltação, sem dar maiores precisões. No entanto, havia outros evidentes mal-estares em relação às diferenças culturais e como ela vinha vivendo-as. Além de estar na época de fazer a demanda pela nacionalidade francesa, a jovem também tivera uma primeira experiência sexual com um rapaz que conhecera durante uma deambulação noturna5. Nessa situação, a equipe teve de ouvir cada vez mais a mãe da paciente, sua incompreensão para com as diferentes experiências e conflitos que a filha vinha vivendo, e mesmo as dificuldades dessa senhora em entender algumas das escolhas que se colocavam diante de sua filha: o que ia da preparação para uma formação profissionalizante até as conversas com uma educadora da escola sobre a vida sexual. Nesse período, eu e outros colegas do serviço pouco víamos Jennifer, e acabávamos fazendo um trabalho de acolhimento dessa angústia que os pais viviam para com as diferenças do percurso entre essa filha e sua irmã mais velha, nascida no Mali, mas que, ao viver na França, havia desenhado para si uma vida mais compreensível para os pais: se mantinha muçulmana e portava véu, escolhera uma formação em enfermagem, tinha uma circulação social mais limitada e respeitava as tradições. Quando a equipe voltou a acolher novamente Jennifer em diferentes espaços do serviço, ela parecia já ter recomposto um pouco de sua vida depois de alguns meses num lar de acolhimento para jovens em conflito com a família. Lá ela convivera com outros adolescentes com dificuldades parecidas com as suas e que tinham cometido algumas transgressões da Lei. Ao comentar sobre seus atos no começo do ano escolar, dizia que não entendia nada do que estava acontecendo, apenas que sentia um enorme peso em "ter de deixar os pais".

Florence Guignard (2015), psicanalista suíça, afirma que a clínica com adolescentes é uma clínica invertida, de trabalho de luto e de renúncia ao primeiro objeto de investimento. No luto, o sujeito deve recorrer a recursos simbólicos que são próximos de mecanismos de defesa arcaicos (clivagem, recusa, projeção identificatória, idealização do objeto). Foi o que se pode acompanhar com Jennifer: sua experiência com as diferenças culturais e a radicalidade das mesmas – ser adolescente no Mali, ser adolescente na França – a expuseram a vivências desencontradas e opostas.

Quando trabalhávamos com a equipe escolar que conhecia a situação há anos, era possível perceber o acúmulo do mal-estar na jovem, o que acabou eclodindo na crise de angústia que se seguiu ao episódio em que ela mostra seu órgão sexual para uma colega que, por fim descobrimos, havia provocado com a pergunta: "E aí, já fizeram a excisão em você lá no Mali?". Ademais, é interessante pensar nessa confusão de ideais de eu impostos e oferecidos à jovem: entre o ideal de eu de uma menina vivendo na França, experimentando encontros sexuais e desejando coisas impossíveis para uma jovem que devia responder a um ideal de eu encarnado nas escolhas da irmã, de uma vida onde certos preceitos tradicionais poderiam funcionar no mundo atual. Pode-se pensar aqui em algum tipo de clivagem do eu, algo que permitiria uma compreensão de alguns fenômenos psicopatológicos observados na situação.

 

Considerações finais

A adolescência é um encadeamento de momentos de projeções, ideações, recuperação de passados, confrontos com experiências do presente e reencontros com objetos de amor e de ódio, do agora e de outrora. Enfim, o fenômeno adolescente é uma segunda edição da prematuridade humana, um luxo de nossa civilização, onde os sujeitos têm uma lacuna suficientemente grande de tempo, e de ideais, para viver e reviver a demasiadamente humana experiência do desamparo fundamental (Guignard, 2015). Trata-se de algo que alguns autores chegam a tomar como sendo um novo período de latência (Kernier & Cupa, 2012), onde desconstrói-se o infantil a fim de incorporar novas peles ao próprio corpo, essas já incrustradas de signos da cultura e também pelas experiências de limites às quais cada um se vê confrontado. Essa hipótese, de um segundo tempo de latência, encontra eco nas pesquisas de Georges Devereux (Moro, 2002 e 2010) a propósito da distinção entre o infantil (uma constatação antropológica que seria, para Devereux, universal) e o pueril (aquilo que, sobre a infância, varia entre as culturas, a partir da forma com que uma criança vai se desenvolvendo, sendo olhada e subjetivada a partir de suas interações, experiências, etc.). Diante disso, seguindo Kernier & Cupa (2012), há uma ampliação do tempo de retorno do Complexo de Édipo na adolescência tal como corrente no ocidente e em certos lugares do oriente, havendo uma maior quantidade de caminhos (de subjetivação e de constituição de sintomas) para que jovens não se confrontem com certos muros da castração, esses sendo demarcadores experienciais e temporais da vida adulta. Assim, para esses autores, temos uma hipótese para tratar da ampla gama de fenômenos de  despossessão  do  próprio  corpo,  de  efração  de  envoltórios  psíquicos  e,  portanto,  de confrontação de limites que, pela via do sensorial, atrasam, ou melhor, distanciam aquilo que seria uma construção de um corpo sexuado. Estaria nesse excesso de experiências de limite um dos rastros para a hipótese de um segundo período de latência, o que, contudo, saliento que, nesse artigo, é exposta apenas a título de exploração teórica, acompanhando o pensamento dos autores supracitados.

Continuando, essas experiências de limite têm como cenários as instituições construídas pelo social para gerir o desamparo humano: família, escola, justiça, etc. Nesse artigo, foi privilegiada a exposição de algumas das questões que aparecem em adolescentes "filhos da migração" na França, os quais vivem seguidamente essa experiência do adolescer na relação com um sistema educação bastante forte e que é pensado como uma instituição cheia de dispositivos de gestão de crianças e de jovens, gestão essa que trata de incorporá-los a uma cultura nacional.

No caso de minhas experiências profissionais, que se deram nesses contextos de educação e de saúde mental, se tentou apresentar alguns dos impasses, mas também das possibilidades e riquezas passíveis de serem encontradas nessas situações. Ora, a subjetividade é inerente aos jogos de linguagem instaurados em dispositivos societários (Lajonquière, 2006). Tais jogos de linguagem são cenários culturais em si, pois trabalham com o objetivo de instaurar culturas de si para aqueles que os vivem. Por conta disso, é importante que nós, psicanalistas e profissionais da subjetividade, tenhamos bem claro que estamos em realidades que são transculturais, pois lidamos correntemente com a diferença de cultura.

Os casos aportados envolvem o fenômeno da migração, o que, assim, coloca em cena, de forma paradigmática, a multiplicidade de jogos linguareiros de experiências e culturas de si. Isso deve ficar mais claro nos próximos tempos, com formas de vida cada vez mais conectadas, digitais, envolvidas em diferentes línguas e linguagens, e que, nisso, também expõem a modalidades de experiência extremas, passíveis de serem vividas com violência e com maiores dificuldades de se elaborar toda e qualquer diferença. São situações de desfiladeiro, algo para o qual já se chamou a atenção na seção introdutória desse artigo, quando se sinalizou que o sofrimento psíquico usa como cenários os lugares de vida e de cultura para marcar as suas singularidades. No caso dos adolescentes "filhos da migração" na França, vê-se um cenário com certas similaridades ao que já se começa a acompanhar em alguns centros urbanos brasileiros nos últimos anos: as migrações escancaram certos elementos fundamentais da subjetividade de uma população, naquilo que nela há de riqueza, mas também de seus nós e impossibilidades.

 

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Recebido em dezembro de 2019 – Aceito em março de 2020

 

 

1 Diferentemente do que ocorre no Brasil ou em outros países onde a nacionalidade é também conferida pelo jus solis (lei do solo), um indivíduo só é cidadão francês ao herdar a nacionalidade (jus sanguini, lei do sangue) ou por naturalizar-se. Por conta disso, muitos jovens nascidos na França e que falam muitas vezes apenas o idioma francês só podem fazer a requisição da nacionalidade aos 16 anos, depois de anos de escolaridade obrigatória na Educação Nacional.
2 As inversões de palavras são bem comuns entre jovens na França, no que é chamado de verlan, ou seja, "à l'envers". Um exemplo bem corrente é a expressão une femme (uma mulher), que se transforma em une meuf, ou fou (louco) que se transforma em ouf.
3 Para uma apresentação sucinta desse autor, sugiro a leitura de uma breve introdução que fiz a um de seus escritos para a revista Lacuna (Binkowski, 2018).
4 Nesse tipo de atendimento, o paciente é recebido por um grupo de terapeutas de formação profissional e teórica variadas, sendo acompanhado muitas vezes por familiares, amigos e também por profissionais de outros serviços e instituições que atuam diretamente na situação e que acharam de bom grado trabalhar alguns elementos culturais que podem estar entravando a compreensão do caso. Essas consultas costumam ser mensais e duram entre duas e três horas, contando, preferencialmente, com a presença de um intérprete que possa falar a língua materna (ou a língua de escolha) do paciente, mesmo se o mesmo fale correntemente o francês. Considera-se que a presença da língua materna possa ativar uma espécie de espaço terceiro e de intimidade nesse dispositivo que, em sua base, tenta emular o funcionamento de uma consulta de tipo tradicional (como se dá com um curandeiro ou outra autoridade religiosa e moral em comunidades tradicionais). Com o desenrolar das sessões, o que ocorre é uma espécie de negociação de demanda: ouvimos os profissionais de outras instituições sobre as dificuldades de entender o caso e ouvimos o/os paciente(s), tentando explorar a compreensão de suas dificuldades, as possíveis interpretações culturais e mágico-religiosas que carregam consigo, etc. Os co-terapeutas que participam desse tipo de dispositivo devem possuir formação em métodos de trabalho de clínica transcultural e etnopsiquiatria.
5 Na França, a idade do consentimento é de 15 anos.
Revisão gramatical: Nadia Berriel
E-mail: nadiaberriel@hotmail.com

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