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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.25 no.2 São Paulo maio/ago. 2020

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v25i2p190-192 

10.11606/issn.1981-1624.v25i2 p190-192

EDITORIAL

 

Clínica ampliada

 

 

Rinaldo VoltoliniI

IDocente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP), São Paulo, SP, Brasil. E-mail: rvoltolini@usp.br

 

 

O ano de 2019 marcou o centenário do texto de Freud "Linhas de progresso na terapia analítica" (1919/1996). Aniversário pouco repercutido, que não faz jus à envergadura do texto, mesmo que ele tenha conhecido um destino modesto entre os próprios psicanalistas. Modesto talvez porque Freud tenha escolhido com ele abandonar um pouco suas questões mais candentes acerca do lugar da psicanálise no mundo, com relação à ciência, à religião, à Filosofia, momentos em que se punha a delimitar o que a psicanálise é, para se dedicar, neste texto, a se perguntar o que ela será?

O que torna este texto especial, mesmo sui generis, em sua obra, é que nele Freud coloca a questão do alcance social da terapia analítica. Sua preocupação parte de uma constatação elementar: a desproporção entre a extensão do sofrimento psíquico no mundo e os limites do tratamento analítico nos consultórios. Nesta conta que não fecha – há muitos mais neuróticos do que analistas para cuidar deles – Freud reconhece as dificuldades intrínsecas de acessibilidade à análise; definitivamente, nas condições do tratamento padrão, a psicanálise não é nem nunca será um tratamento de massa. Para atenuar o sofrimento psíquico, ela propõe um caminho tortuoso, dispendioso, difícil de compreender para muitos, uma aventura com destino incerto, sendo que outras ofertas são mais tentadoras, mesmo até mais eficazes dentro de uma perspectiva pragmática, geralmente aquela subsidiada pelo Estado.

Se o reconhecimento de sua clínica não tende a ser universal, a validade de suas explicações o é, pelo menos para Freud como para todos os que seguiram o curso aberto por sua teorização. Curiosa e importante observação, com consequências sobre a reflexão freudiana sobre o futuro da psicanálise: será na força e na universalidade da teoria, mais do que na eficiência da clínica, que a psicanálise se assentará no futuro. Não que esse futuro eliminará a clínica analítica, mas as "novas condições" (Freud, 1919/1996, p.181) – termo que Freud alude sem deixar muito claro do que se trata – a obrigarão a se reinventar sem abandonar o rigor de sua teoria.

Visionário, Freud parecia prever o que hoje não é difícil constatar. Na universidade, por exemplo, a psicanálise conheceu uma inserção centrífuga, e não centrípeta, ou seja, ela aparece mais compondo o currículo de formação de outros profissionais – psicólogos, pedagogos, médicos, linguistas, sociólogos etc., do que num curso pensado para uma formação de analistas, sonho de Freud e tentativa de Lacan que nunca se concretizaram. Nas redes de saúde pública, onde um tratamento de massa é oferecido, a psicanálise aparece entranhada na concepção de alguns dispositivos de trabalho, estes mesmos sem o compromisso nem a métrica do tratamento padrão.

Lacan soube retomar bem a inspiração presente nessa assertiva de Freud e dar a ela um tratamento teórico condizente. Propôs os termos de psicanálise em intensão e extensão. Mais célebre entre os analistas do que este texto de Freud, este binômio não faz senão retomar e aprofundar a inspiração freudiana. O futuro da psicanálise não seria sua expansão, mas sua extensão! É alargando sua palavra no mundo – extensão - e não reproduzindo seu setting em todo o tecido social – expansão – que a psicanálise encontraria seu futuro, ou não encontrará nenhum.

A tarefa do analista seria a de salvaguardar para que esta extensão não seja esgarçamento, para que as formas da psicanálise estar no mundo – mundo que varia historicamente – ainda tenham algo da psicanálise. Partitivo que desapareceu da língua portuguesa o da – assim como se diz bebeu do vinho e não o vinho – indica que a psicanálise não é da ordem do esgotável, pelo menos não enquanto houver falantes. Sua forma clínica original pode ser superada por força das novas condições do mundo, mas não sua razão de ser.

O que os leitores encontrarão neste dossiê intitulado Clínica ampliada é um interessante exercício dessa extensão. Questões próprias a uma agenda pública, tais como, adoção, impasses gestacionais, problemas da adolescência, educação precoce nas instituições, vicissitudes da parentalidade de filhos autistas, etc. dão matéria aos textos que se seguem.

O que eles têm em comum é que o disparador destas questões não foi a fala singular de um paciente em tratamento, mas o agenciamento delas a partir de uma chave coletiva: "A"s mulheres com perdas gestacionais, "A" educação precoce, "A" adolescência, "O"s pais de autistas, etc. Aqui um risco em relação à assertiva de Freud sobre a extensão da psicanálise: o de perder o rigor da teoria. De fato, o risco é grande dada a tentação que este coletivo, presente no termo "A" pode carregar de um efeito de generalização que romperia com a questão da singularidade, tão definidora da démarche psicanalítica. Faz parte das "novas condições" do mundo esta generalização, fim da subjetivação em prol das subjetividades. Um sujeito-objeto é o que reclama nossa sociedade atual. Salvaguardar algo da psicanálise neste contexto é marcar a divisão do sujeito: se ele é um adolescente não é qualquer um adolescente, se ela é uma mulher grávida não é qualquer uma mulher grávida.

Note-se, que a singularidade que a psicanálise põe em primeiro plano não é a mesma que a da psicologia. Para esta última cada um é um, para a psicanálise o cada um é dividido, ou seja, não é um, mas muitos que falam através desse um: a psicanálise reconhece a diferença entre o um que conta e o Um que unifica.

O leitor decidirá se os autores foram bem sucedidos. Em todo caso não há dúvidas de que se trata de textos que toparam o desafio da extensão da psicanálise, aquele desafio que mantém algo do clínico – a psicanálise em intensão – na intervenção do analista. Uma extensão que compreendeu que setting e análise não são sinônimos e que salvar o primeiro nada garante da preservação da análise.

 

Referências

Freud, S. (1996). Linhas de progresso na terapia analítica. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 17, pp. 171-181). Rio Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1919).

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