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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.25 no.2 São Paulo maio/ago. 2020

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v25i2p000264-279 

10.11606/issn.1981-1624.v25i2 p000264-279

DOSSIÊ

 

O laço social contemporâneo a partir da experiência adolescente

 

El lazo social contemporáneo a partir de la experiencia adolescente

 

The contemporary social bond through the adolescent experience

 

 

Fernanda CanavêzI; Leonardo CâmaraII

IProfessora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: fernandacanavez@gmail.com
IIPós-doutorando Bolsista pelo Programa Nacional de Pós-Doutorado da CAPES, Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. RJ, Brasil. E-mail: lcpcamara@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo busca ressaltar a perspectiva construída e situada da adolescência na psicanálise, contrapondo-a à visão naturalizante. A partir das descontinuidades advindas da passagem da modernidade para a contemporaneidade, indica a necessidade de se pensar sobre as especificidades da experiência adolescente no contexto atual. Argumenta-se que a experiência adolescente é um ponto privilegiado para investigar os impasses relativos ao laço social contemporâneo, uma vez que seus laços podem ser considerados horizontalizados. Por fim, são discutidas as possibilidades de se intervir no mal-estar apresentado pelo sujeito adolescente, apostando na identificação dos atores do mundo adulto que o relegam à condição moratória, bem como na sua escuta como sujeito desejante para além de tal visada adultocêntrica.

Palavras chave: adolescência; psicanálise; laço social; contemporaneidade.


RESUMEN

El presente artículo busca resaltar la perspectiva construida y situada de la adolescencia en el psicoanálisis, contraponiéndola a la visión naturalizante. A partir de las discontinuidades derivadas del paso de la modernidad a la contemporaneidad, indica la necesidad de pensarse sobre las especificidades de la experiencia adolescente en el contexto actual. Se argumenta que la experiencia adolescente es un punto privilegiado para investigar los impasses relativos al lazo social contemporáneo, ya que sus lazos pueden ser considerados horizontalizados. Por último, se discuten las posibilidades de intervenirse en el malestar presentado por el sujeto adolescente, apostando por la identificación de los actores del mundo adulto que lo relegan a la condición moratoria, así como en su escucha como sujeto deseante más allá de tal objetivo adultocéntrico.

Palabras clave: adolescencia; psicoanálisis; lazo social; contemporaneidade.


ABSTRACT

The present article seeks to highlight the constructed and situated perspective of adolescence in psychoanalysis, as opposed to the naturalizing view. From the discontinuities arising from the passage from modernity to contemporaneity, it indicates the need to think about the specificities of adolescent experience in the current context. It is argued that the adolescent experience is a privileged point to investigate the impasses related to the contemporary social bond, since its ties can be considered horizontal. Finally, we discuss the possibilities of intervening in the malaise presented by the adolescent subject, betting on the identification of the actors of the adult world that relegate him to the moratorium, as well as on his listening as a desiring subject beyond this adult- centric perspective.

Keywords: adolescence; psychoanalysis; social bond; contemporaneity.


 

 

Hoje percebo que ninguém olha a gente na rua. Nossa dor, nosso vício, nosso vexame, é tudo muito distante dos outros (Martins, 2018, p. 79).

A adolescência sempre atraiu olhares atentos no movimento psicanalítico, o que atesta a profusão de trabalhos dedicados a tratar da experiência adolescente, desde a sua própria emergência como conceito (Calligaris, 2000), a partir desse referencial. A referida monta de pesquisas sobre o tema também concorre para uma multiplicidade de perspectivas, dentre as quais é possível sinalizar a tensão entre uma visada que acabaria por afirmar certa tônica naturalizante e a que ressalta com radicalidade o caráter construído da adolescência. No que diz respeito à perspectiva naturalizante, a adolescência estaria inequivocamente associada à determinada leitura acerca da puberdade, ficando a primeira refém da maturação de predicados corporais associados ao corte etário que marcaria a segunda. Já na abordagem passível de ser caracterizada como construcionista, as marcas corporais são invariavelmente interpretadas socialmente, de modo que toda e qualquer afirmação sobre a adolescência deve ser marcadamente situada, circunscrita aos seus tempos e espaços, ao sujeito que a enuncia.

Desse modo, ganha relevância a problematização de uma adolescência pretensamente universal e anistórica, dando lugar a seu caráter múltiplo, sempre no plural: adolescências. O presente artigo busca ressaltar a perspectiva construída e situada da adolescência na psicanálise, justificando a necessidade de se pensar sobre as especificidades da experiência adolescente na contemporaneidade e, em especial, sobre as possibilidades de se intervir no mal-estar apresentado pelo sujeito adolescente. Adolescências, no plural, no contexto brasileiro, na cidade do Rio de Janeiro, em suas fraturas e encantos mil. Experiência adolescente que conserva distâncias daquela apresentada por Freud em suas elaborações sobre o desenvolvimento da sexualidade na Europa à época moderna (Freud, 1905/1996). Experiência adolescente de Geovani Martins, premiado autor carioca que ganhou expressão em uma das edições da Festa Literária das Periferias (FLUP), autor da epígrafe que abre/inspira este texto.

 

Coordenadas históricas

Para sustentar a premissa da desconstrução da visada naturalizante acerca dos cortes etários, é possível recorrer ao historiador francês Philippe Ariès (1960/1981), para quem as demarcações responsáveis por especificar diferentes fases da vida só se tornaram possíveis no período chamado de modernidade. Contrapondo-se às sociedades pré-modernas (ditas tradicionais) que o antecederam, o mundo moderno pode ser caracterizado pela passagem da tradição e da razão teológicas à hegemonia científica. No plano político, ocorre a derrocada da monarquia absolutista – de poder divino –, substituída pelo que viria a constituir o Estado- nação, de inspiração democrática. Em termos econômicos, a passagem à modernidade é coroada pela ascensão do liberalismo, o qual é intimamente dependente da noção de um indivíduo livre, autônomo e responsável pelos seus atos. Instaura-se, assim, a cultura individualista no Ocidente, para acompanhar Dumont (1993) em sua proposição do individualismo como o valor que funda a sociedade moderna.

O indivíduo passa a figurar como personagem principal de uma sociedade regida pela razão científica, devendo ser gestado com cuidado no seio da família nuclear burguesa, célula (do Estado) responsável por tratá-lo com esmero, tarefa em que é auxiliada pelas instituições disciplinares, com destaque para a escola e para a medicina. Individualismo, razão científica, família nuclear burguesa e escolarização compõem, assim, o cenário em que são inventadas as categorias de infância e, por conseguinte, de adolescência. Cumpre destacar a divisão social do trabalho à luz do recorte de gênero e sua íntima associação com o capitalismo e o controle dos corpos pelo Estado nesse contexto (Federici, 2004/2017), influência de que a categoria de adolescência não passou ao largo. O trabalho doméstico ganha o predicado feminino, ao passo que ao homem adulto cabe se lançar na arena pública em atividades que são escalonadas como mais relevantes. A eclosão da puberdade e suas diferenças de acordo com o gênero são fortemente marcadas pelas representações sociais destinadas a homens e mulheres, realidade que a perspectiva naturalizante busca subsumir sob o pretexto de justificativas hormonais1.

Segundo Coutinho (2009), o termo adolescência surge nos dicionários em 1850, tendo sido ao longo do século XIX que a concepção de adolescência ganhou expressividade. Nesse momento, no entanto, a adolescência estava referida a um breve momento que logo era ultrapassado em direção à idade adulta. Trata-se de uma época em que o adulto (racional) era tido como um ideal a ser perseguido, parâmetro desejado ao qual todos deveriam se conformar. Os mais jovens ansiavam conquistar sua autonomia e aceder à condição de adulto, o que se expressava, por exemplo, na estética que fazia recair o termômetro do gosto refinado em vestimentas mais sérias e menos coloridas: a sobriedade era tida como parâmetro de refinamento que marcava o predicado da adultidade.

No século XX, todavia, a adolescência é alçada a um estatuto de mais valor, a ponto de Ariès (1960/1981) caracterizá-lo como o século da adolescência. Essa é também a indicação do psicanalista Contardo Calligaris (2000), italiano radicado no Brasil, responsável por afirmar a adolescência como mito inventado no século XX, sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial. O autor retoma a vida norte-americana algo massificada do pós-guerra, em que os adultos deixaram aos adolescentes a tarefa de sonhar com o que eles, seus pais, não podiam mais. Os adolescentes tornaram-se depositários das frustrações dos adultos, ficando-lhes reservada a possibilidade de extrapolar a vida estandardizada, nem que fosse no plano da fantasia – algo similar ao que acontecera anteriormente com a criança. No entanto, ao contrário da infância, cuja idade se afastava sobremaneira daquela de seus pais, os filhos adolescentes permitiam uma identificação, por assim dizer, mais imediata. Trata-se da passagem de um mundo que tinha o paradigma do adulto como ideal para aquele em que, ao contrário, é a pretensa liberdade associada à adolescência que se torna uma referência.

 

A construção da categoria adolescência: para além do viés naturalizante

No momento supradito, ganham destaque os discursos que se ocupam tanto da infância quanto da adolescência – em que pese o forte viés naturalizante, aludido inicialmente –, os quais revestem até hoje o campo da chamada Psicologia do Desenvolvimento, que ganhou força já no final do século XIX. Com efeito, os campos da Educação e da Psicanálise despontaram, de maneira ainda mais enfática já no século XX, com a exaltação de discursos dedicados à adolescência – sobretudo uma adolescência que seria considerada "normal", de acordo com determinados atributos que deveriam estar sob controle de um mundo gerido por adultos. Essa tônica parece se fazer presente ainda hoje, conforme ilustram os exemplos levantados por Ana Bock (2007) em investigação de livros sobre a adolescência dedicados a pais e educadores.

Para ilustrar esse forte viés naturalizante, é possível citar o livro de autoria dos psicanalistas argentinos Arminda Aberastury e Mauricio Knobel, com o sugestivo título Adolescência normal (Aberastury & Knobel, 1970/1981), que ganhou bastante popularização à época de sua publicação. A naturalização da adolescência como etapa de vida que pressupõe determinadas características parece estar fortemente associada à concomitância da experiência da adolescência com aquela da puberdade. A última responde pelo momento de eclosão dos caracteres sexuais secundários, da qual decorreria a aptidão para a reprodução. Seria, então, a reprodução o grande parâmetro para orientar as divisões etárias. Aberastury e Knobel servem para ilustrar como o viés naturalizante se fez presente nas abordagens sobre a adolescência até mesmo no campo da psicanálise, seara em que se observa comumente a tentativa de problematização de qualquer resquício de certo reducionismo biologicista, como permite depreender a postulação do conceito de pulsão como desvio do instinto, para retomar o próprio Freud.

Se os psicanalistas acima aludidos estiveram a serviço de reforçar o caráter pretensamente natural da adolescência, em especial nas décadas de 1970 e 1980, há outras perspectivas capazes de indicar a tentativa de desconstruir a visada universal-naturalizante dessa experiência. É o que se pode verificar no relato da antropóloga estadunidense Margaret Mead, publicado em 1928, portanto muito antes dos psicanalistas acima elencados, a respeito de suas observações em uma ilha do Pacífico Sul, onde não teriam sido constatados os predicados que comumente são atribuídos à adolescência, dentre os quais o conflito e a rebeldia (Mead, 1928). As afirmações de Mead foram alvo de muita polêmica, despertando posicionamentos ferrenhos em defesa do caráter pretensamente "natural" dos predicados adolescentes, como os de Freeman, debate ao qual remetemos o leitor (Côté, 2000).

O mesmo pode ser dito a partir do trabalho de outro psicanalista, Erik Erikson, que, no final da década de 1960, se ocupou da tarefa de expor a crise da adolescência como um efeito de seu tempo (Erikson, 1972/1968). A crise da adolescência carregaria em si uma crise ainda mais ampla, aquela da modernidade. Erikson, aliás, foi o primeiro a se utilizar do termo "moratória" para se referir à adolescência, concepção que persiste até os dias atuais. Moratória é um termo originariamente jurídico referente a uma suspensão ou a um prazo extraordinário, em geral vinculado a pagamentos de dívidas. Mostra-se profícuo para o esclarecimento da experiência do sujeito adolescente, pois esse já não mais se apresenta como uma criança indefesa e desprovida dos recursos para o completo ingresso no mundo adulto – crianças não estão aptas à reprodução, nem podem se responsabilizar por sua completa autonomia –, muito embora a ele não seja concedido o livre acesso à experiência da adultidade. É como se o adolescente estivesse algo apto para o exercício de todas as potencialidades gestadas ao longo da infância rumo ao mundo dos adultos, muito embora esses mesmos adultos o peçam para esperar mais um pouco. Sob esse prisma, a adolescência pode ser definida como um período de moratória, uma suspensão da entrada na adultidade imposta a um sujeito fisicamente adulto.

Marcada que é pela leitura que os adultos impõem ao sujeito adolescente, a condição moratória da adolescência ilustra de maneira inequívoca seu caráter socialmente construído. Pode-se associá-la a inúmeros fatores de ordem política, econômica e cultural, de maneira que ganha evidência a associação direta entre a própria construção da adolescência e o alargamento do período de escolarização, adiando o ingresso desses sujeitos no mercado formal de trabalho. Além disso, vale salientar a manutenção dos mesmos sob a tutela da família, no âmbito privado, e demais dispositivos disciplinares, como a escola. Ao adolescente é reservado o predicado da falta de maturidade; no entanto, o acesso à posição de adulto maduro lhe é barrado, o que acaba por fomentar, de maneira tautológica, a imaturidade da qual é acusado, na medida em que não se exercita na condição de autonomia (Castro, 2008). Os ideais da infância estão ruindo, impelindo o adolescente a referenciais outros presentes na cultura, muito embora ainda esteja restrito à alçada da família e de seus substitutos, a eles precisando se reportar.

É assim que ganha corpo o conceito de adolescência como um trabalho psíquico bastante peculiar que é imposto ao jovem na saída da infância. Esse trabalho parece decorrer menos das transformações fisiológicas que estão associadas à puberdade e mais de uma determinada condição social experimentada pelo sujeito adolescente, motivo pelo qual se afirma, neste artigo, a proposição da adolescência como experiência. Dada a corriqueira associação da puberdade com a adolescência, faz-se mister traçar suas diferenças: "A puberdade seria o fenômeno biológico pelo qual, de maneira generalizável, deveriam passar os seres humanos, onde ocorreriam mudanças físicas e fisiológicas a partir da ação dos hormônios (...) Teríamos assim que a puberdade é universal, enquanto a adolescência é histórica, porque circunscrita a determinado tempo e lugar" (Carneiro, Ribeiro & Ippolito, 2015, p. 179). Em termos etários, cabe indicar o corte evidenciado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que estabelece o período da adolescência para os sujeitos entre 12 e 18 anos de idade (Lei 8.069, 1990, 13 de julho).

O ingresso na experiência da adolescência poderia ser marcado, de maneira mais ou menos evidente, pela eclosão da puberdade. É preciso, no entanto, considerar o risco de naturalização desse processo. Sendo assim, a questão da saída da adolescência parece mais esclarecedora: isso porque não se conta com marcadores específicos que sejam capazes de caracterizar o seu fim. Aliás, a quase ausência de rituais específicos de passagem da infância à vida adulta na cultura ocidental só reforça o caráter de construção da adolescência. É justamente em decorrência da ausência desses marcadores que uma passagem como a experiência da adolescência foi inventada: é possível forjar sua entrada a partir da puberdade, embora não se possa afirmar com certeza sua conclusão, especialmente quando o contemporâneo está em pauta, assunto a ser tratado posteriormente.

Para auxiliar na definição de adolescência, é possível ainda acompanhar autores franceses, a exemplo de Jean-Jacques Rassial (1997), que a consideram como um momento de passagem – socialmente determinado – da família ao social. Trata-se, segundo Rassial (1997), de um momento lógico, e não cronológico. Conforme antevisto, momento esse em que os ideais da família parental começam a ruir, operação fundamental para que o adolescente possa buscar outros ideais na cultura, passando do espaço privado para o público, onde elegerá referenciais alternativos que comporão seu projeto identificatório na construção de si. Seguindo a mesma direção, Christian Hoffmann (2004) enfatiza o trabalho de luto inerente à adolescência, uma vez que é preciso abandonar referenciais importantes do universo infantil. Em última instância, a adolescência consiste em um trabalho de luto da potência narcísica, antes associada ao casal parental ou a seus substitutos.

A propósito, é possível evocar o texto freudiano Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar (1914/1976), em que o pai da psicanálise se dedica a traçar considerações sobre sua própria adolescência, momento em que seus ideais parentais são enfraquecidos, reservando espaço para a construção de novos referenciais. No texto em questão, o que está em pauta é a centralidade da escola nesse processo. Seja como for, como mito, momento de passagem ou trabalho de luto, a adolescência coloca em pauta, de modo irremediável, a problemática do laço social, já que indica a ponte que liga os primeiros referenciais àqueles compartilhados na cultura.

 

A elaboração do laço social

Para trazer à discussão a temática do laço social, convém retomar brevemente dois textos de Freud em que ela é abordada, quais sejam, Totem e tabu (1913) e Psicologia das massas e análise do eu (1921). No primeiro deles, Freud expõe sua versão sobre a constituição das democracias modernas por meio da composição de um mito da chamada horda primeva (Freud, 1913[1912-13]/1974). Esse mito busca figurar a passagem de uma sociedade regida pela força, marcada pelo lugar de exceção tirânico do chefe da horda, para a comunidade fraternal regida pela Lei. É a insatisfação dos irmãos com as benesses usufruídas exclusivamente pelo pai da horda que os leva a matá-lo, parricídio que instaura acentuado sentimento de culpa e, por conseguinte, a interdição da tentativa de assumir novamente o lugar da exceção. Os irmãos culpados podem viver agora "democraticamente", sob permanente vigília para que a tirania (da exceção) permaneça afastada. A figura do desamparo também comparece nesse mito para explicar o laço entre os irmãos: o apoio mútuo se faz necessário, de modo que é preciso renunciar às inclinações agressivas e sexuais em prol da construção de ideais em comum. É o vínculo com o pai da horda – agora mantido simbolicamente como lei –, e, na sequência, o vínculo com um ideal pactuado coletivamente, que garante o laço social entre os irmãos e, em última instância, a própria sociedade.

Em adição, o texto freudiano sobre as massas (Freud, 1921/1976) explica o laço social a partir de dois eixos principais: o primeiro destaca a relação com o líder ou com um ideal partilhado por todos, respondendo por um laço verticalizado; o segundo considera a horizontalidade das identificações entre os que partilham desse mesmo ideal. O laço com um ideal é, desse modo, fundamental para a manutenção das identificações que daí decorrem. Assim sendo, a versão freudiana do laço social trata da importância do ideal para a manutenção de uma sociedade: ideal pactuado socialmente e, acrescente-se, ideal com o qual o sujeito adolescente vai se deparar de maneira mais imediata na passagem do ambiente familiar, privado, para o espaço público.

A passagem adolescente implica, portanto, o abandono da dimensão totalitária dos ideais da infância – passagem do eu ideal ao ideal do eu –, para a incorporação de ideais outros, ideais esses que serão encontrados na cultura. Nesse sentido, vale aventar a própria adolescência nos termos da elaboração do laço social, alçando ao primeiro plano tal problemática como forma de abordar a experiência adolescente. Para além das modificações fisiológicas decorrentes da puberdade, parece residir justamente aí a dimensão conflitiva tão marcante na adolescência.

"Aborrecentes", diriam alguns adultos, mais afastados do vigor da adolescência, remetendo à dimensão de revolta e inquietação comumente associada à experiência adolescente. A narrativa adulta sobre essa experiência pode recair em desqualificação, para não dizer "patologia", em se tratando do risco dos rótulos diagnósticos sempre presentes no campo psi – posicionamento que parece mascarar a passagem tão importante para a tomada de lugar na cultura, a qual se reedita cada vez mais e a cada dia, quer se esteja mais ou menos remetido ao que se convencionou chamar de adolescência. Isso porque a adolescência comporta um inquietante paradoxo: por um lado, o luto dos referenciais que vigoraram na infância propicia um ganho de liberdade, posto que marcado por certa fluidez identificatória; por outro, a passagem do ideal familiar para aquele da cultura vem associada a um inequívoco desamparo, gerando uma angústia que pode se tornar efetivamente perturbadora.

Essa maleabilidade identificatória aponta para uma existência fluida, o que leva Coutinho (2009) a considerar o adolescente como um sujeito errante. Errância capaz de explicar a marca do tribalismo (Maffesoli, 1987/1998) que reveste os agrupamentos adolescentes, algo instáveis e organizados por relações marcadamente horizontais. O "vazio" (de acordo com a perspectiva adultocêntrica) que esse sujeito experimenta – o qual deverá ser preenchido pelos ideais presentes na cultura – parece se acirrar no contemporâneo, marcado que é por uma pulverização e enfraquecimento dos ideais em comparação com a modernidade que o teria antecedido.

 

A adolescência no contemporâneo

Antes de passar a uma discussão pormenorizada sobre a experiência adolescente no contemporâneo, convém situar os termos em que esse predicado está sendo empregado. A modernidade pode ser caracterizada, à luz do que se busca discutir aqui, como uma época marcada por ideais com mais consistência do que aqueles em voga atualmente2. Com efeito, embora não se contasse mais com a autoridade investida diretamente por direito divino – conforme o paradigma da monarquia absolutista nas sociedades tradicionais –, o Estado-nação, na esfera política, e a figura do pai, no âmbito familiar, eram herdeiros diretos do pater potestas romano, instaurando um referencial que deveria ser seguido sem grandes questionamentos. Na passagem para a pós-modernidade, contemporaneidade ou modernidade tardia3, observou-se uma série de movimentos de contestação do patriarcado, seja em sua versão no âmbito privado, seja na arena pública. Os movimentos feminista e gay são legítimos representantes de tal contestação, dos quais é possível destacar o mais recente movimento transexual, que se mostra contundente na crítica que endereça não apenas aos pilares do patriarcado, mas também a uma cristalização identitária que parta de uma perspectiva naturalizante.

Do ponto de vista político-econômico, o que está em pauta é o enfraquecimento definitivo do Estado-nação em favor da livre circulação do capital (no que alguns chamam de neoliberalismo), bem como a ascensão da cultura do consumo – essa muito relevante para a compreensão da adolescência no contemporâneo4. O que aí se revela é a desmontagem dos direitos decorrentes das lutas sociais pós-Segunda Guerra Mundial, reservando ao Estado apenas a tarefa de intervir quando o mercado não cumpre a contento sua regulação, associada à exaltação de uma liberdade que seria irrestrita, indispensável para levar o consumismo às suas últimas consequências.

É possível circunscrever esse estado de coisas à saída da Segunda Guerra Mundial, com sua revivescência, do ponto de vista estético-cultural, nos anos 1960, com os movimentos libertários, a contracultura, o advento do anticoncepcional e até mesmo da calça jeans (Coutinho, 2005). O epicentro dessas transformações foram os EUA, potência de protagonismo na construção de uma narrativa de um novo mundo livre das amarras da tradição europeia. Solidificam-se, nesse movimento, os ideais de liberdade e de autonomia. Aliás, seguindo as pistas da autora (Coutinho, 2005), é possível afirmar que a tríade individualismo, liberdade e autonomia faz girar a roda do contemporâneo. O sujeito deve escolher o seu próprio destino, escolha essa que deve ser invejada pelos demais, projeto no qual os reluzentes objetos de consumo devem comparecer. É assim que se assiste a um processo de enfraquecimento dos referenciais de outrora ou a sua pulverização, perspectivas intimamente associadas. É como se não fosse mais possível contar com coordenadas tão precisas e garantidas passíveis de servir de norte ao sujeito contemporâneo.

As psicanalistas Claudia Garcia e Luciana Coutinho (2004) referem-se a um tipo bem específico de individualismo no contemporâneo, marcado pela experiência de desenraizamento, de errância, posto que associado à perda de referências simbólicas que teriam caracterizado a modernidade: "a figura de um indivíduo errante, sem amarras e à deriva, como paradigmática dos novos contornos que o individualismo assume em nossa época" (Garcia & Coutinho, 2004, p. 131).

A condição de estar desmapeado, que fora associada à experiência da adolescência, desde sua constituição, como categoria social e conceito, parece hoje se estender para todos, sem estar circunscrita a determinada faixa etária. Como consequência quase imediata, a adolescência passa a vigorar como um ideal para o sujeito contemporâneo. O termômetro da adolescência, ao qual todos devem se conformar hoje, nada mais é do que o sintoma da pulverização dos ideais sociais que muito parecem refletir sobre o laço social contemporâneo.

 

Adolescência como ideal

A experiência da adolescência coloca em pauta aquela com a qual todos, de uma maneira ou de outra, se veem confrontados hoje. E mais: a liberdade associada ao sujeito adolescente devido à condição moratória a ele imposta constitui objeto de desejo do mundo dos adultos. Essa é a realidade que faz com que alguns autores afirmem uma persistência da adolescência hoje, em uma espécie de passagem ao mundo adulto de outrora que não chega a se concluir. Uma verdadeira teenagização da cultura, para usar uma expressão de Maria Rita Kehl (1998).

De acordo com Calligaris (2000), a adolescência acaba consistindo em um grande sonho de liberdade para o adulto, uma vez que, "por tentar dispensar a tutela dos adultos, a rebeldia adolescente se torna uma encenação do ideal cultural básico. Por esse motivo, as condutas adolescentes em todas as suas variantes se cristalizam, se fixam e se tornam objeto de imitação" (p. 57). Aqui, é interessante notar, mais uma vez, a mistura explosiva entre o ideal da adolescência e cultura do consumo. É que os adolescentes, em seu esforço de substituição dos primeiros referenciais parentais, buscam a constituição e a inclusão em grupos outros, muitas vezes marcados apenas por alguns traços em comum (como o uso de determinado tipo de vestimenta ou o gosto compartilhado por dado grupo musical). Estão criadas as bases para o estabelecimento de certos imperativos que fazem com que esses grupos se tornem grupos de consumo comercializáveis (Calligaris, 2000). Na esteira do ideal cultural no contemporâneo, a adolescência é alçada ao posto de fantástico argumento promocional.

Dessa maneira, a experiência do sujeito no contemporâneo – associada ao individualismo de errância – parece tornar ainda mais problemática a passagem do adolescente (por definição um sujeito errante) da vida infantil à adulta. Por exemplo, não há ritos de passagem precisos capazes de definir a chamada passagem adolescente. A adolescência funciona, portanto, como experiência privilegiada para investigar os impasses relativos ao laço social contemporâneo. Destarte, a investigação da adolescência permite ir mais além de uma pretensa faixa etária ou mesmo categoria social: é como se, através da experiência adolescente, o laço social contemporâneo ficasse (escancaradamente) em evidência. O adolescente seria, dessa maneira, o "sujeito contemporâneo por excelência" (Coutinho, 2009, p. 7). Em adição, a experiência adolescente pode ser deveras oportuno para problematizar a visão de mundo adultocêntrica, lançando luz sobre a potência das saídas que esses sujeitos vêm construindo para a angústia ocasionada pelo suposto vazio do enfraquecimento dos referenciais.

Extrapolando a visada pessimista (e adultocêntrica) sobre a adolescência e, em última instância, sobre o laço social no contemporâneo, a psicanalista Luciana Coutinho (2005) se propõe a investigar os grupos constituídos pelos adolescentes hoje. Segundo a pesquisadora, há uma predominância de grupos espontâneos, que muitas vezes não contam com um líder específico, nem leis muito definidas. Os grupos espontâneos giram em torno de um laço fraternal socializante que escapa tanto do privatismo dos laços familiares quanto das instituições disciplinares, como a escola, que estabelecem regras que devem ser seguidas pelos adolescentes. Nesse sentido, é digno de nota o uso que adolescentes vem fazendo de plataformas de trocas de mensagens, como o WhatsApp, e demais redes sociais, um verdadeiro espaço-tempo para formas de socialização peculiares. Para exemplificar, é possível mais uma vez citar o compartilhamento de experiências que gravitam em torno da prática de autolesão, uma espécie de identificação pelo sintoma que reúne muitos grupos de adolescentes atualmente (Brandão & Canavêz, 2018). Um laço que parece mais imediato, algo mimético e insubmisso à verticalidade do laço com o líder.

Coutinho (2008) recusa a ideia de que o laço social estaria esgarçado hoje; alternativamente, na adolescência é possível identificar uma tentativa de elaborar os impasses relativos ao laço social no contemporâneo. Seguindo as indicações de Maria Rita Kehl (2000), ao contrário do laço social marcadamente verticalizado, tal como encontrado no mundo moderno, o que está em pauta aqui são experiências fraternais sustentadas pelos laços estabelecidos horizontalmente por seus membros. Ademais, Kehl (2000) aponta que a adolescência é o período por excelência das formações fraternas, dadas as características da passagem que implica. Não seria a fraternidade, portanto, o teor principal do laço social na contemporaneidade, marcado pela horizontalidade e não mais pela alusão a uma transcendência? É possível asseverar que os adolescentes, "em suas fratrias, podem assumir diversas posições frente ao sintoma social, ou seja, tanto podem perpetuar o encobrimento da castração propagado pela cultura através de laços totalitários, quanto podem buscar parceiros para reafirmar e reinventar referências simbólicas mais satisfatórias" (Coutinho, 2005, p. 23). Os laços estabelecidos pelos adolescentes no contemporâneo permitem, nesse sentido, extrapolar o autoritarismo do laço social verticalizado corrente na modernidade, abrindo possibilidades mais criativas.

É o que se oferece a ver, por exemplo, no fenômeno das ocupações de instituições educacionais que marcaram o estado do Rio de Janeiro no ano de 2016. O que se destacou nas ocupações das escolas estaduais e municipais foi o protagonismo dos estudantes nas reivindicações em defesa da instituição escolar. Isso porque se tornou "samba de uma nota só" sustentar que esses estudantes são descompromissados e desinteressados em relação à educação formal. Fazendo frente a esse discurso, o levante estudantil não só evidenciou que esses adolescentes podem ter autonomia para o embate na arena pública – e em defesa da escola –, como também descortinou que estão interessados na educação formal, muito embora indiquem que ela deva passar por reformas.

Segundo Coutinho e Andrade (2017), as ocupações propiciaram a circulação dos lugares cristalizados que os jovens ocupavam anteriormente nas escolas, promovendo "novos laços sociais e novas posições discursivas nas relações já estabelecidas" (p. 51), isto é, promovendo uma reconfiguração do laço social ao recriarem "espaços de trocas de saber e de construção de laço social, nos quais o estudante não se coloca submisso à produção de saber cientificista, mas como um sujeito desejante, propondo e assumindo novos pactos sociais" (p. 60). Seguindo os rastros deixadas pelos próprios adolescentes em suas reivindicações é que se pode falar então sobre modos de intervenção, em se tratando desses sujeitos.

 

Modos de intervenção: para além da moratória

Atualmente já se encontram descrições de diversas modalidades de intervenção dirigidas ao sujeito adolescente, até mesmo em função do destaque que a experiência da adolescência parece evidenciar no contemporâneo. No multifacetado campo da psicanálise, essas também podem ser encontradas em diferentes abordagens e versões: seja na clínica individual mais tradicional, seja na abordagem em grupos – a qual pode se dar tanto nos moldes clínicos mais clássicos, quanto em diferentes dispositivos (como os encontrados da Saúde e na Educação). Os referidos modos de intervenção serão doravante abordados a partir de alguns apontamentos que os perpassam, independentemente de suas especificidades. Sendo assim, a particularidade da presente argumentação é aquela da própria experiência da adolescência.

Em relação aos modos de intervenção, a experiência do sujeito adolescente preconiza a atenção a alguns aspectos. Em primeiro lugar, dada a sua condição moratória, a intervenção junto a adolescentes deve considerar os diferentes atores do mundo do adulto que ainda situam o adolescente nessa suspensão, característica que comparece, portanto, como estrutural. O segundo aspecto decorre do primeiro, na medida em que se traduz na ética associada à escuta do sujeito adolescente, independentemente de onde e como essa se dê. Refere-se à exigência de escutar o adolescente para além da condição moratória a que é relegado. Trata-se, por isso mesmo, de escutá-lo como sujeito desejante, portanto implicado em seus atos, facilitando a criação de laços que propiciem sua passagem da vida familiar àquela na cultura.

No que diz respeito ao primeiro aspecto, muito se pode aprender com a clínica que se dedica ao acompanhamento de crianças e adolescentes, em especial em relação à demanda inicial. Isso porque essa demanda é, geralmente, endereçada pelos adultos que se dedicam aos cuidados desses jovens. São os pais, responsáveis ou demais adultos que estão no convívio diário com os adolescentes, os principais a demandarem uma escuta qualificada para esse público. Dessa constatação advêm duas considerações principais: em primeiro lugar, a necessidade de, não raras vezes, incluir também esses sujeitos na intervenção, convocando-os tantas vezes a ressignificar o lugar inicial em que colocaram o adolescente (indisciplinado, rebelde, desatento, hiperativo, fracassado), na tentativa de superar a cristalização dessas posições para que o adolescente possa ocupar lugares outros. Foi assim, a propósito e a título de ilustração, que se organizaram grupos de reflexão com professores de escolas cujos adolescentes eram considerados "violentos" (Canavêz & Oliveira, 2014).

Muitas vezes, a construção de uma demanda genuína por parte do sujeito adolescente deve contemplar a desconstrução da demanda inicial de outrem, operando um deslocamento do modo como o adolescente é enunciado para a sua própria enunciação de si. Em outros termos, um deslocamento do modo como o adolescente é falado para o modo como ele vai se falar, apresentar sua narrativa no processo de construção de si, construção do(s) seu(s) lugar(es) na cultura.

Além disso, esse aspecto abre espaço para se considerarem os modos de intervenção tanto no campo da clínica mais tradicional, quanto naqueles outros em que os adolescentes circulam. Destaca-se a possibilidade de intervir também na escola, pois é nesse espaço que os adolescentes passam grande parte do tempo, sendo também o dispositivo privilegiado onde procedem, de maneira ainda mais intensa, à passagem da família ao social. De fato, costuma ser na escola que o adolescente encontra e convive, diariamente, com seus amigos; e é nesse convívio que ele encontra um continente em seu processo gradativo de saída do seio da família. Assim, a escola constitui um palco privilegiado para sua elaboração do laço social, agora em um espaço que extrapola o âmbito familiar.

Se a escola evidencia todo esse destaque em se tratando do sujeito adolescente, é importante que a intervenção não caminhe, no entanto, no sentido de reforçar o discurso mais hegemônico dessa instituição sobre o adolescente. De maneira análoga, parece cada vez mais importante atentar para a criação de espaços de circulação de falas/significados que extrapolem a dimensão já instituída – e tantas vezes cristalizada – que se encontra na escola. O exemplo das ocupações também é bastante ilustrativo nesse quesito, indicando a necessidade de reinvenção dessa instituição que ainda carrega coloridos deveras modernos e, como tais, mais distantes do que o adolescente espera hoje da educação formal. Nesse sentido, vale citar experiências de pesquisa- intervenção, conforme indicadas por Lucia Rabello de Castro e Vera Besset (2008), que têm lugar nas escolas.

Essas podem se dar, por exemplo, por meio de grupos de reflexão com a função de promover espaços alternativos de fala que permitam ressignificações e o efeito terapêutico para os sujeitos participantes em função da possibilidade de falar em espaços outros. Vale lembrar que as instituições educacionais são comumente marcadas por forte viés disciplinar, tornando propícias intervenções que promovam o intercâmbio entre diferentes segmentos da comunidade escolar, com o deslizamento entre as identidades que assumem nesse contexto (Coutinho & Carneiro, 2012)

No tocante ao segundo aspecto, ou seja, à exigência de extrapolar a condição moratória atrelada à condição adolescente, é importante que as modalidades de intervenção, quaisquer que sejam elas, não reforcem a condição de tutela que acaba sendo a mais hegemônica nos discursos sobre esses sujeitos, desde a própria construção do conceito de adolescência, conforme exposto anteriormente. Sendo assim, é importante que se tome o adolescente como sujeito desejante. A intervenção deve lhe permitir uma elaboração dos discursos que se erigem sobre ele no seio familiar e, em adição, na cultura. Deve fomentar a elaboração do laço social a partir do protagonismo do adolescente, de uma construção singular de si e dos laços que estabelece com os demais. As intervenções que se ocupam do sujeito adolescente devem, assim, extrapolar a condição moratória a ele atrelada, posicionando-se como discurso de resistência face à homogeneização que faz recair nesses sujeitos o predicado da imaturidade, da falta de responsabilidade, da impossibilidade de falar de si e por si. A experiência adolescente parece estar "muito distante dos outros", como aponta o texto de Geovani Martins (2018). Que as perspectivas adultocêntricas presentes em nossas teorias possam dela se aproximar cada vez mais.

 

Considerações finais: quem olha a gente?

Buscou-se afirmar a importância de perspectivas histórica e socialmente situadas a respeito da adolescência no campo da psicologia e da psicanálise como alternativa à visada naturalizante que tanto se faz presente, ainda hoje, nesse contexto. Para ressaltar o caráter construído da categoria adolescência, o caminho da modernidade até a contemporaneidade foi revisitado, culminando com a apresentação dos impasses relativos à experiência adolescente no contemporâneo.

Extrapolando a narrativa adultocêntrica sobre a adolescência que a toma pelo negativo – desprovida de maturidade, de razão, de recursos para falar de si e por si –, buscou-se visibilizar as adolescências, no plural, como experiências de subjetivação que, inclusive, muito podem dizer a respeito do laço social na contemporaneidade. Para conseguir enxergar essas adolescências, é preciso que o campo psi enderece um olhar efetivamente contemporâneo para estas, desembaraçado dos modelos de infância e de adolescência que emergiram a partir da retórica moderna.

Desse modo, não apenas será possível enxergar as adolescências, mas também os demais modos de subjetivação que são característicos de nossa cultura, de nossas especificidades locais, os quais mostram não estar tanto de acordo com os modelos que se importa sem tantas críticas, seja da Europa ou os Estados Unidos. Quem olha a gente em nossa própria produção de saberes e práticas de intervenção?

 

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Recebido em julho de 2019 – Aceito em abril de 2020.

 

 

1 Para exemplificar a incidência do recorte de gênero na experiência adolescente contemporânea é possível mencionar a suspeita de que a autolesão seja mais frequente no sexo feminino. Embora não haja consenso nas pesquisas (Giusti, 2013) profissionais da Saúde e da Educação alertam para o fato de que há uma preponderância das adolescentes que se cortam, o que supomos estar vinculado aos imperativos colocados por certo ideal de corpo feminino, dentre outras forças que concorrem para esse fenômeno (Canavêz & Herzog, 2020).
2 Afirma-se a leitura de Foucault (1997) acerca da modernidade como projeto de mundo europeu, de forma que, para além de cortes historiográficos mais tradicionais, pode persistir (e persiste), a despeito da incidência da passagem do tempo cronológico. Desse modo, assim como Agamben (2009) descreveu a contemporaneidade como atitude, também a modernidade se revela tão ou mais pregnante nos dias de hoje nos termos de uma atitude eurocêntrica da qual nem sempre escapam, vale lembrar, as perspectivas psi.
3 Para uma discussão detalhada sobre a questão terminológica consultar Birman (2006).
4 Ainda que os recortes de classe social, gênero e raça não adquiram centralidade no presente artigo, é importante tê-los em conta quando se lança mão da relação entre cultura de consumo e invenção da categoria de adolescência. Isso porque esta costuma ser associada, em especial nas teorias desenvolvimentistas do campo psi, a uma adolescência bastante específica: branca, ocidental, cisgênera, heterocentrada e provida de recursos materiais. Portanto, trata-se de uma narrativa sobre a adolescência marcadamente circunscrita e que escapa amplamente das adolescências situadas em nosso país, conforme denuncia a epígrafe de Martins (2018). Para uma discussão sobre adolescências situadas que extrapolam a abstração de uma categoria pretensamente universal, sugerimos os trabalhos de Lima (2018) e Taquette (2010).
Revisão gramatical: Leandro Rodrigues Alves Diniz
E-mail: leandroradiniz@gmail.com

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