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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.25 no.2 São Paulo maio/ago. 2020

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v25i2p297-312 

10.11606/issn.1981-1624.v25i2 p297-312

ARTIGO

 

A transferência na clínica psicanalítica com adolescentes

 

La transferencia en la clínica psicoanalítica con adolescentes

 

Transference in psychoanalytic clinic with adolescents

 

 

Luciana Carla Lopes de AndradeI; Charles Elias LangII

IPsicóloga clínica, professora do curso de Psicologia do Centro Universitário Tiradentes, Maceió, AL, Brasil. E-mail: landrade.lc@gmail.com
IIProfessor associado do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas, Maceió, AL, Brasil. E- Mail: charles.lang@ip.ufal.br

 

 


RESUMO

No presente artigo, apresenta-se uma leitura sobre a transferência na clínica psicanalítica de adolescente a partir de Freud e Lacan. Na clínica escuta-se o que é ser adolescente e se depara com um longo trabalho deste jovem por uma elaboração da falta no Outro. A partir do conceito de transferência em Freud, como a resistência mais poderosa ao tratamento, e do conceito de transferência em Lacan, apresentando o conceito de Sujeito Suposto Saber, traz-se uma vinheta clínica para ilustrar e discutir a transferência na clínica psicanalítica de adolescente. Entende-se, portanto, que a transferência é uma ferramenta necessária e fundamental para trabalhar na clínica e, no tocante à clínica de adolescente, o papel do analista é construir novas referências simbólicas para que o jovem possa se sustentar fora da família e encarar o seu desejo.

Palavras chave: adolescência; transferência; discurso; psicanálise.


RESUMEN

En el presente artículo se presenta una lectura sobre la transferencia en la clínica psicoanalítica de adolescente según Freud y Lacan. En la clínica escuchamos lo que es ser un adolescente y nos encontramos con un largo trabajo de ese joven por una elaboración de la ausencia en el Otro. A partir del concepto de transferencia en Freud, como la resistencia más poderosa al tratamiento, y del concepto de transferencia en Lacan, presentando el concepto de Sujeto Supuesto Saber, se presenta una viñeta clínica para ilustrar y discutir la transferencia en la clínica psicoanalítica de adolescente. Se entiende, por lo tanto, que la transferencia es una herramienta necesaria y fundamental para trabajar en la clínica y, con respecto a la clínica de adolescente, el papel del analista es construir nuevas referencias simbólicas para que el joven pueda sostenerse fuera de la familia y a enfrentar su deseo.

Palabras clave: adolescencia; transferencia; discurso; psicoanálisis.


ABSTRACT

This paper examines transference in psychoanalytic clinic with adolescents, based on the works of Freud and Lacan. In the clinical treatment we listen to what it is to be a teenager and we come across a hard work of this young patient towards an elaboration of the lack in the Other. From the concept of transference in Freud – as the most powerful resistance to treatment – and the concept of transference in Lacan – who presents the concept of "subject supposed to know" – a clinical vignette is presented to illustrate and discuss transference in psychoanalytic clinic with adolescents. It is understood that transference is a necessary and fundamental tool for the clinical treatment and that the role of the analyst is to build new symbolic references so that adolescents may be able to support themselves outside of the family and to face their desire.

Keywords: adolescence; transference; discourse; psychoanalysis.


 

 

O presente trabalho resulta das leituras e discussões desenvolvidas em um curso de especialização voltado para os problemas do desenvolvimento da infância e da adolescência. A instituição responsável apresentou sua trajetória de formação teórica e clínica durante o curso, e, a partir daí, desenvolveu a proposta de pensarmos a clínica e a formação profissional de maneira interdisciplinar, ao preconizar que cada profissional teria condições para trabalhar os aspectos estrutural e instrumental. Nessa perspectiva, pudemos entender o instrumental como uma ferramenta da qual se vale para efetuar a compreensão de como se dão os aspectos estruturais do sujeito (Coriat & Jerusalinsky, 1982/1996). A partir disso, a psicanálise surgiu como a promoção de uma aposta no surgimento de um sujeito, em crianças que apresentam algum problema no desenvolvimento psíquico.

O tratamento psicanalítico foca na constituição do sujeito do desejo e fornece à criança a formação de redes significantes e, consequentemente, a entrada no circuito simbólico. Auxiliar a criança a executar tarefas rotineiras como arrumar o quarto, fazer a tarefa de casa, vestir-se ou tomar banho não é suficiente para que a criança se perceba no mundo e se constitua no campo da linguagem. O mais eficaz, ao menos como tem sido analisado em diversas redes e centros de atendimento à infância e à adolescência, tendo a psicanálise como referencial, é a proposta de um desencadeamento do sujeito do desejo, possibilitando que ele se perceba como integrante de uma família, dotado de singularidades constitutivas.

A partir destas bases, a escolha dos temas transferência e adolescência pretende articular as experiências de atendimentos clínicos com adolescentes. Perguntas-guias como O que é a adolescência?, O que é ser adolescente no século XXI?, Qual relação transferencial se estabelece na clínica com adolescentes?, possibilitaram repensarmos tanto os primórdios quanto os fundamentos da clínica psicanalítica com esta clientela. Os relatos clínicos de Freud constituíram uma referência teórica e clínica, destacando-se o Caso Dora (Freud, 1905/2016a) e Uma Jovem Homossexual (Freud, 1920/1996), em que ambas as pacientes têm por volta de 18 anos. Embora Freud não as considerasse como adolescentes – à época o termo adolescente ainda não tinha uma semântica própria – foi através destes dois casos clínicos que se deram as primeiras análises empreendidas com jovens. Desde então, é possível perceber como a psicanálise tem se debruçado sobre a clínica, de um modo geral, e como a relação transferencial tem se dado entre o analista e o analisante.

O presente trabalho pretende compreender como se constrói a transferência na clínica com adolescente, considerando que a chegada da puberdade introduz "as mudanças que levarão a vida sexual infantil à sua configuração definitiva normal" (Freud, 1905/2016b, p. 121). Em outras palavras, com o advento da adolescência o sexo aparece tanto no corpo, através das mudanças corporais, quanto nas descobertas, diante e na relação com o corpo do outro. Dessa forma, o adolescente se depara com questões que poderão ajudá-lo a rearranjar posições e escolhas perante a sexualidade (Alberti, 2004). Neste enfrentamento com a sexualidade e com o sujeito de desejo, o adolescente poderá apresentar suas diversas facetas e seus diversos lugares, construídos no campo do Outro.

Ser adolescente é, para o campo social, e de um modo genérico, o tempo em que o jovem ainda não é reconhecido como adulto. Ao buscar os elementos que definem a adolescência, o psicanalista Contardo Calligaris, no livro A adolescência (2000), destaca o termo adolescência como moratória1, cuja semântica pertence ao campo jurídico: moratória seria um adiamento do prazo estipulado pelo pagamento de uma dívida. O adolescente, ora visto como uma criança, ora como adulto, ou um adulto a vir a ser, encontra-se num limbo, pois não está pronto para enfrentar as adversidades e as implicações da vida adulta e, ao mesmo tempo, não é mais a criança, sonho dos pais. Portanto, pode-se pensar que a adolescência, como moratória, seria um adiamento do prazo para tornar-se adulto. O adulto empresta a possibilidade de o adolescente ser um adulto, exigindo responsabilidades, mas ainda lhe nega um lugar na vida adulta.

O conceito de adolescência só surgiu no início do século XX, e tomou destaque após a Segunda Guerra Mundial (Calligaris, 2000). Tornou-se mais visível durante a década de 1950, época em que as demandas sociais obrigavam o sujeito a se dar conta de seu próprio comportamento, desafiador e paradoxal, determinando-lhe trilhar seu caminho e adotar os ideais da sociedade de então. Ecoam até hoje na clínica, de um modo geral, as vozes adolescentes de então, em "discursos inflamados sobre a conturbada relação com os pais, as primeiras paixões, as grandes decepções, os ideais em plena construção" (Gutierra, 2002a, p. 1). Nessas falas escutamos os vestígios de um longo caminho do que é ser adolescente e que pode assim ser sintetizado: "1) um longo trabalho de elaboração de escolhas e 2) um longo trabalho de elaboração da falta no Outro" (Alberti, 2004, p. 10).

Durante a infância, o sujeito recebe dos pais e da família, dos educadores e dos que o cercam, indicativos do seu lugar de pertencimento no mundo. Na adolescência tem-se uma exigência cultural da sociedade de que o mais importante é manter essas referências, mas agora com a separação dos pais da infância. Trata-se de um novo lugar, "no sentido de afrouxar em cada indivíduo, especialmente no jovem, os laços com a família, que eram os únicos decisivos na infância" (Freud, 1905/2016b, p. 147). O adolescente é obrigado a fazer escolhas, a não ficar dependente da idealização dos pais de outrora.

Sabe-se que toda criança idealiza seus pais e que isso é uma operação necessária. Mas o crescimento traz a possibilidade de fazer escolhas, e a percepção gradual das falhas dos adultos, de modo que esse olhar (idealizado) permite o processo de separação das identificações com os pais, constituídas durante a infância, e que tomarão outro entorno durante a adolescência. No entanto, a identificação primária permanece fundamental na constituição de um sujeito no enfrentamento com o desejo. Freud chamava isso de descoberta do objeto: "enquanto os processos de puberdade estabelecem o primado das zonas genitais, efetua-se do lado psíquico a descoberta do objeto, que já era preparada desde a primeira infância" (Freud, 1905/2016b, p. 142).

O contato com o corpo materno, no início, está vinculado às primeiras satisfações sexuais. Mas este corpo materno não está desde o princípio separado de si, para a criança. Só depois, com a perda desse objeto de amor, a criança percebe que este corpo, agora separado, lhe trazia satisfação. A partir disso a criança terá a noção de que toda relação amorosa se passa com um outro. Portanto, a "descoberta do objeto é, na verdade, uma redescoberta" (Freud, 1905/2016b, p. 143).

Quando um adolescente é trazido para um atendimento, ele está sendo trazido para um espaço adulto e fora de seu círculo imediato. Se a transferência é o conceito fundamental para a clínica psicanalítica, a questão do encontro com este adulto fora da família (o analista), a questão da perda do objeto, da redescoberta do objeto e de que toda relação amorosa necessariamente passa por um outro, passam pela transferência. E definir, então, o que é a adolescência, e a transferência adolescente, tornam-se questões prementes.

 

A transferência em Freud: a resistência mais poderosa ao tratamento

A palavra "transferência" pertence ao vocabulário do cotidiano brasileiro. Quando dizemos, por exemplo, que vamos transferir dinheiro para outra conta bancária, ou que seremos transferidos de um emprego para um outro, ou da sede para alguma filial, seja por motivo familiar ou de trabalho, sabemos o que estamos dizendo e sabemos que podemos ser compreendidos. Do latim transferentia, a palavra transferência significa "troca de um lugar pelo outro; remoção, mudança" (Houaiss, 2010, p. 765). Mas Freud não escreveu em latim, e a palavra é uma tentativa de traduzir para o português um termo alemão. É a partir dessa tradução do conceito freudiano que pretendemos começar a pensar a palavra transferência na clínica psicanalítica, até revelar seu estatuto de conceito fundamental para compreender o processo analítico e a construção da relação analista/analisante.

Freud inicia Sobre a dinâmica da transferência (1912/2017a, p. 107) com um objetivo em mente: "esclarecer como necessariamente a transferência se desencadeia durante um tratamento psicanalítico, e como ela assume o papel já conhecido durante o tratamento". Sabe-se, desde então, que a transferência é da ordem da singularidade e, portanto, cada sujeito, em sua análise, posiciona-se de um modo único ante o seu analista. Contudo, Freud pôde perceber, em sua experiência clínica, que nos indivíduos neuróticos a transferência era mais intensa, e que ela surgia como "a mais forte resistência contra o tratamento" (Freud, 1912/2017a, p. 109, itálico do autor).

Em Análise fragmentária de uma histeria (1905/2016a), Freud apresentava o caso de sua jovem paciente Dora; neste, ele aborda o termo transferência pela primeira vez. Dora era uma jovem de 18 anos quando Freud começou a atendê-la, em 1900, mesmo ano em que publicou A interpretação dos sonhos. Este caso começou a ser escrito em 1901, sendo publicado em 1905. Sabe-se, através do acesso às cartas de Freud a Fliess, que o tratamento durou cerca de três meses.

No texto, aparece uma passagem que pode ser considerada uma das primeiras sobre o conceito de transferência:

Quando, no tratamento psicanalítico, surge uma série de pensamentos corretamente fundamentada e irrepreensível, pode haver um momento de embaraço para o médico, que o paciente aproveita para perguntar: "Isso é tudo verdadeiro e certo, não é? O que você mudaria no que lhe falei?". Mas logo se percebe que tais pensamentos, inatacáveis pela análise, foram usados pelo paciente para esconder outros, que querem se frustrar à crítica e à consciência. (Freud, 1905/2016a, p. 209)

É na elaboração de um caso clínico com uma jovem que nos é mostrada a articulação freudiana entre a transferência e a resistência. A transferência, na clínica freudiana, compreende o lugar em que o analisante coloca o seu analista no processo analítico, transferindo sentimentos com relação às figuras familiares, ou seja, transfere, na figura do analista, a imago paterna, materna ou fraterna. Para Freud, ele o dirá anos mais tarde, a transferência não seria apenas de ordem consciente, mas também construída por ideias que foram retidas ou que são inconscientes (Freud, 1912/2017).

Nessa lógica, o que seria a transferência servindo como meio de resistência, ou a transferência a serviço da resistência? Para Freud, a transferência ocorre quando o paciente transfere algo do material patogênico para a figura do analista. No entanto, ela se produz através de resistências, como pudemos evidenciar no trecho acima, dito por Dora: "Isso é tudo verdadeiro e certo, não é? O que você mudaria no que lhe falei?". (Freud, 1905/2016a, p. 209). A censura, na fala da paciente, expressa uma autocensura, ao considerar-se a indignação de Dora frente ao comportamento repugnante do pai.

O pai de Dora, na fala da jovem, teria um caso extraconjugal, com uma senhora que cuidava dele durante o período em que esteve doente e mudou-se de cidade com a família. Neste período, a mulher, que também era casada, passava a maior parte do tempo dedicada a cuidar do pai de Dora, já que sua mãe tinha outras ocupações mais importantes. Em contrapartida, e durante este período, Dora ficava aos cuidados do marido da senhora, o senhor K.. Este, por sua vez, demonstrava um desejo amoroso/erótico pela menina. Nesta situação, Dora sentia-se como um objeto de trocas: enquanto o pai era cuidado pela senhora, para compensar a sua ausência, o pai de Dora a entregava aos cuidados do Senhor K.; se o pai tinha um caso com a mulher do Senhor K., logo o senhor K. poderia desejar algo semelhante com ela. E o Senhor K. estaria, também, sendo compensado pela tolerância dele para com as relações entre sua mulher e o pai de Dora. No entanto, se confrontado, o pai de Dora recusava-se a aceitar isso, demonstrando-se, inclusive, horrorizado frente a esta afirmação, defendendo-se e jamais admitindo que faria isso com a filha, como também dizendo que seu amigo era incapaz de tais intenções. Dora, que nutria um grande apreço e amor pelo pai, mesmo que censurasse suas falhas, não admitia para si mesma os possíveis sentimentos de tristeza ou raiva que sentia pelo mesmo. Por esse motivo mantinha uma posição de autocensura, já que não admitia tais sentimentos. Aos poucos Freud foi separando aquilo que era da ordem da realidade, dos fatos, e o modo como os pacientes interpretam esta realidade na construção transferencial. Logo, o que se diz não é, necessariamente, o que é. O que se diz no tratamento é de uma outra ordem.

Freud prossegue com o seguinte raciocínio: "Mas logo se percebe que tais pensamentos, inatacáveis pela análise, foram usados pelo paciente para esconder outros, que querem se frustrar à crítica e à consciência" (Freud, 1905/2016a, p. 209). Nesse trecho, insinua-se a ideia de resistência, quando Dora começa a usar pensamentos que não podem ser atacados pelo analista, em troca de esconder fatos ocorridos em sua relação com o pai. Essa posição de Dora demonstra uma defesa possível de ser percebida na transferência. O indivíduo começa a se deparar com o material reprimido e, assim, dá início a um novo combate: "todas as forças que causaram a regressão da libido irão se levantar como 'resistências' contra o trabalho, para conservar esse novo estado" (Freud, 1912/2017a, p. 111-112).

Compreendemos, então, que a transferência promove o aparecimento das resistências, o que implica, no trabalho analítico, superar essas resistências. Para isso, cada ato do sujeito deve ser tomado na relação transferencial. Sobre isso, podemos contar com a seguinte citação de Freud:

Quanto mais tempo durar um tratamento analítico e quanto mais claramente o paciente reconhecer que apenas distorções do material patogênico não oferecem proteção contra o descortinamento, com mais coerência se utilizará daquele tipo de distorção que aparentemente lhe oferece as maiores vantagens: a distorção através da transferência. Essas relações seguem na direção de uma situação em que finalmente todos os conflitos precisam ser resolvidos no terreno da transferência. (Freud, 1912/2017a, p. 113-114).

Toda deformação, sofrida pela resistência, aparece na experiência clínica ainda de modo mais intenso, devido à relação transferencial e ao sujeito perceber o quão difícil é escapar das evidências do inconsciente. Desse modo, a resistência na análise freudiana torna-se uma ferramenta útil e necessária para descobrir, "a partir das ocorrências [Einfälle] livres do analisante, aquilo que ele não conseguia lembrar. Através do trabalho de interpretação e da comunicação de seus resultados ao paciente" (Freud, 1914/2017b, p. 151), o trabalho da resistência demonstra uma dificuldade do sujeito em recordar uma cena. Daí resulta, na escuta psicanalítica, o trabalho de desvendar a cena, fazer o paciente recordar, repetindo-a. Neste ato, de recordar, mas sem saber que está recordando, o analisante repete uma cena ou uma postura. Por exemplo, o analisante costuma esconder dos seus pais o que faz durante o dia, e diz que costuma sempre falar a verdade para o outro ou que não admite mentiras; mas, em vez disso, comporta-se da mesma maneira com o analista, mentindo ou escondendo algo. Isso ocorre na transferência, e o analista deve estar preparado para descobrir o que leva o paciente a agir ou a reagir de tal maneira. Sendo assim, é possível ao sujeito o trabalho de elaboração.

 

O Sujeito Suposto Saber e a transferência em Lacan

O início de toda a discussão sobre a transferência passa, necessariamente, pelos escritos clínicos de Freud pois, ao desvendá-la, ele descobriu esta "outra cena" que é o inconsciente. O paciente fala de alguma coisa, mas, simultaneamente, também fala de uma "outra coisa". Em Freud a transferência é tanto resistência quanto repetição inconsciente do sujeito, tendo em vista que na relação transferencial é possível perceber sentimentos, pouco importa se positivos ou negativos, que impedem o avanço do trabalho, e que também se repetem, por exemplo. Através da repetição, certos sentimentos e lembranças são transferidos para a figura do analista. Então, estes sentimentos, positivos ou negativos – ou mesmo ambivalentes – que aparecem no presente de uma sessão, e que por vezes são dirigidos à pessoa do analista, são também repetições de sentimentos de outras épocas. Esta é a chave para a compreensão do amor de transferência.

Na clínica lacaniana, o conceito de transferência é modificado. No Seminário, livro 8, Lacan (1960-1961/2010) leva Freud um passo adiante ao afirmar que a transferência não é apenas repetição. Para ele, a repetição se dá na cadeia significante inconsciente, ou seja, no discurso, como constitutiva do sujeito que fala. É através do discurso que podemos conceber a metonímia e a metáfora, constituintes da posição de desejo do sujeito. O inconsciente é um terceiro no circuito da fala, em que há o analisante, o analista e o Outro, que é definido para nós como lugar da fala.

Lacan vai adiante com essa afirmação ao sublinhar que o fenômeno da transferência é manejável pela interpretação, como também é necessário para a realização da rememoração do sujeito (Lacan, 1960-1961/2010). A ordem da repetição, a que Freud se refere no texto Lembrar, repetir e perlaborar (1914/2017b), para Lacan, faz parte do presente, ou seja, se o passado é rememorado, é porque está no presente e, para tal, existe na transferência. Portanto, a transferência se manifesta nesse presente, que é uma reprodução, uma presença em ato, em que o sujeito não é um ser assujeitado e passivo aos fenômenos da transferência, mas articulado aos efeitos do inconsciente.

Seguindo a lógica da transferência, em que o passado é uma presença em ato, Lacan (1960- 1961/2010, p. 220) questiona: "por que é preciso que o sujeito repita, perpetuamente, uma significação?". Se, por um lado, o passado ressurge no presente, por outro, podemos entender a necessidade da repetição, que não é uma simples ação, sem responsabilidade, mas sim uma repetição da ordem do inconsciente, ou seja, da ordem do desejo.

Se estamos falando da ordem do desejo e, portanto, das leis do inconsciente, a repetição, na transferência, não é uma simples duplicação do passado, como uma reprodução automática. Se, na relação transferencial, ocorre a repetição de um discurso, de uma lembrança ou de um ato, devemos ler e interpretar essa ação como um produto sob os efeitos da cadeia da ordem significante. Essa repetição, lida na ordem do discurso, apresenta uma lógica, uma verdade do sujeito, o que obriga o analista a escutar o discurso do analisante sem buscar afirmações verdadeiras ou falsas. Com a descoberta do inconsciente, Freud apontou o seu lugar no universo da linguagem e descobriu "que não há somente dois valores de verdade: o verdadeiro e o falso; descobriu que há um terceiro valor de verdade que chamou de 'em falso'... falta de verdade ou falso, a isso a verdade lhe falta" (Jerusalinsky, 2011, p. 13). Tudo o que é dito é escutado como verdade, além do que seja verdadeiro ou falso. Um exemplo disso são as formações do inconsciente: o sonho, o sintoma, o chiste e o ato falho. Sobre o ato falho, quando se comete uma troca de uma palavra por outra, ou quando se ouve uma palavra que deveria ser outra, isso é escutado como uma operação do inconsciente, como efeito do inconsciente na linguagem.

Assim, Lacan nos diz:

Tudo o que sabemos sobre o inconsciente, desde o início a partir do sonho, nos indica que existem fenômenos psíquicos que se produzem, se desenvolvem, se constroem para serem ouvidos, portanto, justamente para este Outro que está ali, mesmo que não se o saiba. (Lacan, 1960-1961/2010, p. 221)

É esse saber que se sabe, mesmo que não se saiba, que Lacan denominou de Sujeito Suposto Saber.

"A transferência é um fenômeno em que estão incluídos, juntos, o sujeito e o psicanalista" (Lacan, 1964/2008, p. 225). É desse modo que Lacan começa a parte I do capítulo XVIII do Seminário, livro 11, e com essa frase é possível pensar-se o lugar de saber do analista, uma vez que o sujeito deposita, neste lugar, nesta função, um saber sobre seu próprio inconsciente. Na clínica lacaniana o que mantém a transferência é o lugar do sujeito suposto saber, ocupado pelo psicanalista. Suposto saber, pois "nenhum psicanalista pode pretender representar . . . um saber absoluto" (Lacan, 1964/2008, p. 226). Outro sentido é que o sujeito supõe que o psicanalista tem um saber sobre o seu inconsciente, mas o papel do analista, neste sentido, é de fazer papel de semblante com o sujeito, na função de fazer com que o sujeito se atenha às formações do seu inconsciente e construa seu saber sobre ele. Para Lacan, o saber não está no psicanalista, mas no sujeito.

As suposições do analista ajudam a revelar o inconsciente do analisante. Para Lacan, "nada fazemos a não ser dar à fala do sujeito sua pontuação dialética" (Lacan, 1953/1998b, p. 311). A própria existência da transferência se dá na relação, em que o analista ocupa o lugar do sujeito suposto saber, provocando o surgimento do sujeito do inconsciente. "Articula-se aí a função simbólica do conceito de sujeito suposto saber" (Pisetta, 2011, p. 66), que ocupa o lugar do Outro.

Para Lacan, o inconsciente é regido pelas leis da linguagem, e a constituição do sujeito suposto saber na transferência se dá, sobretudo, no Outro. Na clínica lacaniana, a transferência não é da ordem da dicotomia analista/analisante, como é costumeiramente visto nas teorias psicoterápicas, em que a relação ocorre na lógica cartesiana sujeito/objeto, interno/externo, indivíduo/social. Lacan sustenta uma posição em que a lógica da psicanálise não se estabelece, como teoria e como clínica, em dualidades. O inconsciente é tecido pelas leis da linguagem e, como tal, constituído por uma cadeia de significantes, articulada pelo sujeito, pelo psicanalista e pelo Outro, que vem a falar a partir de um posicionamento subjetivo (Pisetta, 2011).

Assim nos perguntamos: como, na clínica de adolescente, ocupar o lugar de analista, de objeto da transferência, compreendendo que a adolescência é um fenômeno presente no discurso do sujeito?

Passemos a uma vinheta clínica na tentativa, se não de responder à questão, de ao menos colocá-la em relevo.

 

Vinheta Clínica

O adolescente que chega ao consultório, seja por necessidade da família ou da escola, depara-se com outro adulto que pode parecer, a princípio, como mais um que não compreende nada ou aquele que exercerá um papel de autoridade. Entre todos os adultos que poderá ter encontrado em buscas por tratamentos – pais, professores, médicos –, o psicanalista não é, necessariamente, um outro mas, mais um. Mais um adulto. O início, ou não, de uma análise, depende muito do enlace ou do desenlace deste primeiro encontro: qual a posição do psicanalista nesta situação, tão comum na clínica?

Um jovem de 13 anos veio ao consultório, junto com a mãe e o tio. A mãe decidiu trazê-lo à consulta depois de saber de um episódio em que o filho beijou um amigo. Isso gerou a suspeita na mãe de que o filho fosse homossexual, seguida de aflição e decepção, principalmente do pai. A mãe contou, aos prantos, toda a história. Depois de uma conversa com os três, observa-se que o jovem pouco falou; não levantou o olhar, nem mesmo comentou o que a mãe e o tio disseram.

Durante a sessão escuta-se a mãe e o tio, e tenta-se, à medida que eles falam, colocar o garoto na cena, mas sem muito sucesso, pois ele parece retraído diante do que se diz a seu respeito. Ao final da entrevista, sugere-se conversar com o garoto no próximo encontro, a sós, para que assim se abra um espaço à sua fala. Os familiares concordam, e o garoto aceita o convite. Na semana seguinte, José – o pseudônimo que escolhemos – comparece e inicia-se uma conversa sobre diversos assuntos: escola, amigos, música, sua relação com os pais. Nada tratou sobre o episódio que a mãe relatou, e com isso se pode pensar que "o desejo do adolescente não é ... nem ser compreendido, nem ser curado; sua demanda é ética" (Rassial, 1999, p. 169), ou seja, fala de um lugar e, neste lugar, demanda ser escutado. Dessa forma, o convite para conversar, a sós e com ele, tem por objetivo oferecer espaço, apoio e amparo, tendo em vista que esta fase da vida se dá sob condições que levam ao afrouxamento de vínculos familiares (Freud, 1996a, 1996b, 1996c, 2016b).

Inicialmente, tentou-se construir um vínculo com o garoto, buscando-se falar sobre seu cotidiano e sobre o que gosta de fazer. A cada sessão trazem-se assuntos relacionados à tecnologia, bandas e cantores de que gosta, sobre aviação (um assunto de que diz gostar bastante), mostra alguns vídeos do YouTube, ao tempo que a conversa segue e algumas intervenções são permitidas. À proporção que fala sobre seus gostos e preferências, ele mesmo percebe o quanto gosta de coisas variadas, e diz: "Eu não tinha percebido que gostava de tanta coisa. E eu gosto de conversar com você porque posso falar o que eu quiser". Ele ouve como resposta: "Sim, aqui você pode falar o que quiser. Esse espaço é seu. E o que mais gostaria de dizer?". Aos poucos, percebe-se o início de uma relação transferencial, pois há um endereçamento da sua fala.

No decorrer das conversas, toca-se no que a mãe falou e sobre o que ele achou da fala da mãe. Logo em seguida, começa a chorar e diz que não quer machucá-la ou magoá-la. "O que poderia magoá-la?". Ele diz: "Ela acha que gosto de meninos. Não quero gostar de meninos". Pergunta-se: "e você gosta de meninos?". Responde: "Não sei".

Com o objetivo de esboçar um laço transferencial com o adolescente, principia-se por buscar colocá-lo em cena, através da fala, para que possa falar de suas demandas e de seu sintoma, que pode não ser o mesmo dos pais. Como Lacan nos disse: "o inconsciente é um saber enquanto falado ... A fala, é claro, define-se aí por ser o único lugar em que o ser tem um sentido." (Lacan, 1975/2003, p. 561).

Em outra sessão, conta como foi a separação dos pais e relata que, desde esse fato, quando tinha oito anos, passou a dormir na cama da mãe. Segundo ele, foi a pedido dela, para lhe fazer companhia. Aqui se formula uma questão a que ele deve responder: ele é o substituto do pai? Busca-se apresentar uma castração, algo que permita dizer que ele não é o substituto do pai, nem mais uma criança; que é um garoto, que seu corpo está se modificando e que tanto a mãe quanto ele precisam de privacidade.

Para Rassial,

Este corpo muda de estatuto essencialmente porque a genitalidade ocupa uma posição dominante para o sujeito: por um lado, o ser humano só conquista sua identidade na pertença a um dos dois sexos, numa lógica que pode ser dita fálica, porque funda uma dissimetria entre "os que teriam" e "os que não teriam"; por outro lado, é o outro que detém o poder de reconhecer neste corpo um corpo genitalmente maduro, desejável e desejante. A possibilidade da relação sexual é considerada como testemunho desta transformação da puberdade. Se a imagem do corpo está sujeito às perturbações de diversas 'castrações'(...) não se trata apenas de um reajuste, mesmo difícil, da imagem na adolescência, mas sim de uma modificação do valor mesmo do corpo, tal qual funcionava para a criança: o portador do olhar, privilegiado, não é mais um dos pais, mas um semelhante cujo desejo está ele mesmo engajado. (Rassial, 1999, p. 18-19)

Essa citação ajudou-nos a pensar que, neste caso, a mãe não faz operar a castração em um corpo que está mudando. É fora de casa, com um colega, que ele busca essa castração, ou seja, um olhar que modifique aquele corpo sexual que está a se constituir.

Esse amor materno impedia José de descobrir o real de seu corpo. Percebia que havia um excesso nessa relação, o que era prejudicial porque o tornava incapaz de "renunciar temporariamente ao amor ou satisfazer-se com uma medida menor dele." (Freud, 1905/2016b, p. 145). Este excesso e este fora-de-lugar (substituo paterno) careciam ser ditos. Renunciar a este amor e ocupar um outro lugar significa a entrada na puberdade. É nesta época que ocorre o afrouxamento dos laços com a família, já que ocorre o desprendimento da autoridade dos pais.

Com isso, percebe-se que o baixo peso é, também, um sintoma de José. Aos 13 anos apresenta o peso de uma criança de nove anos. Diz que fez tratamento hormonal e que não continuou porque o remédio deixou de ser fornecido pelo governo e a família não tinha condições financeiras para arcar com o tratamento. Relata também que passa horas sem comer, que não sente fome ou, quando sente fome, já se passaram muitas horas. Acrescenta que só faz duas refeições por dia.

Esse contexto ajuda a compreender como o garoto está produzindo um sintoma no corpo e por que isso ocorre dessa maneira com José. Realizam-se algumas entrevistas com os pais, em alguns momentos com eles juntos, em outros individualmente. A mãe sempre comparece, mas o pai tem dificuldades. Para os pais, especialmente para a mãe, o que mais preocupa é a possível homossexualidade do filho. Quanto a isso, a analista não fala muito, mas diz que o que a preocupa mais é o baixo peso do garoto. A mãe assevera estar preocupada, mas não é a queixa dela. O pai demonstra estar mais preocupado e conta que, na semana em que o filho está com ele, prepara comida e o convida para comer juntos na mesa. José mora com a mãe, e nos finais de semana fica com o pai, que é casado e tem uma filha de um ano de idade.

Para José, há um conflito na relação com os pais. Sua relação com a mãe é de medo de que ela renuncie ao seu amor e, de algum modo, responde a essa demanda. José ainda não está pronto, pois não tem a garantia do amor do Outro. Portanto, de alguma maneira tem de responder a essa demanda mediante um sintoma (baixo peso, corpo de criança).

Apesar de a mãe intervir de diversos modos e, claro, sem perceber ou sem a intenção consciente de colocar em risco a saúde do seu filho, o pai de José intervém em diversos planos. Aqui é possível perceber que há um interdito do pai. Ele faz o filho comer, prepara a sua comida, arruma a mesa para a refeição e chama o filho para comer juntos. Percebe-se que "o pai se liga à lei primordial da proibição do incesto" (Lacan, 1957-1958/1999, p. 174). Desse modo, o pai de José se liga a um pai significante, que faz operar a metáfora da castração. Pela via simbólica, ele intervém na relação incestuosa da mãe e do filho e marca um lugar na vida do filho.

Sabe-se que "nosso corpo se situa não a partir de sua anatomia, mas a partir da representação no desejo do outro" (Jerusalinsky, 2011, p. 44). Neste caso, o desejo do outro materno é que o menino não cresça, que aquele corpo não se sexualize. Essa demanda do Outro, o fantasma, coloca o sujeito a responder de algum modo, e a resposta é produzir um sintoma sério, o baixo peso, que pode prejudicar a sua saúde. Portanto, no plano da estruturação do adolescente, ante a demanda materna, o garoto não consegue negar e produz um sintoma. A perda de peso pode indicar uma negação ou uma defesa para entrar na adolescência. "No plano do humano, tudo é possível, justamente porque não é na anatomia que se decide a marcação da diferença. Isso se chama sexuação, e nisso se articula o plano do imaginário que faz recorte no corpo e o situa no plano de representação... como respondendo ao desejo do outro. Isso se chama identificação" (Jerusalinsky, 2011, p. 45).

Nesta relação com a mãe produz-se um traço narcísico; o menino só se reconhece a partir da imagem que a mãe ordena. No ponto da identificação, no registro do imaginário, na ordem especular estrutura-se o Eu. Para Lacan, o tu se estrutura no desejo do outro (Lacan, 1949/1998a). José produz um sintoma para ser reconhecido pelo olhar do outro materno. A clínica psicanalítica busca compreender o fenômeno da adolescência considerando esse processo e suas implicações subjetivas. Para tal é preciso compreender o que se passa na transferência com adolescentes.

 

A transferência na clínica com adolescente

Durante a escrita deste trabalho, deparamo-nos com a terminologia que utilizamos: a clínica com adolescente. Seja na literatura psicanalítica, seja nos congressos profissionais, lemos ou ouvimos clínica com adolescentes ou clínica de adolescentes. Ao utilizarmos uma ou outra preposição (de ou com), conferimos um sentido diferente à temática deste trabalho. Ao falarmos clínica de adolescentes, sugerimos dois sentidos: primeiro, que existe uma clínica específica para a categoria adolescente; e segundo, que o adolescente é uma ferramenta do trabalho clínico ou que esta categoria faz parte de uma posse ou autoria da escolha do profissional. Já o termo clínica com adolescentes apresenta a preposição com, cujo sentido expressa união, relação. Neste sentido, achamos mais adequado para o propósito do nosso trabalho citar clínica com adolescentes. Sabemos que a clínica psicanalítica é a do sujeito do inconsciente e que não existe uma clínica psicanalítica para cada categoria, como também que os estudos psicanalíticos têm mostrado uma especificidade sobre o tempo da adolescência. Porém, não escutamos a pessoa simplesmente que vem até nós, e sim o sujeito do inconsciente, que está sob os efeitos da linguagem, sob os efeitos de um discurso de uma época e de uma cultura. Assim, pensamos na relação entre dois sujeitos – o analista e o analisante –, ambos sujeitos do inconsciente, e que o analista, propriamente, faz operar com o analisante a escuta do inconsciente.

A mais importante realização dessa fase é o desligamento da autoridade dos pais. Freud escreveu que a barreira contra o incesto "é, antes de tudo, uma exigência cultural da sociedade... e por isso atua, com todos os meios, no sentido de afrouxar em cada indivíduo, especialmente no jovem, os laços com a família, que eram os únicos decisivos na infância" (Freud, 1905/2016b, p. 147). Em relação à autoridade dos pais, o adolescente é convocado a tomar uma posição, o que torna este momento um dos mais significativos e dolorosos para o púbere. É necessária uma posição de oposição para o avanço das gerações. O que seria do jovem se estivessem satisfeitos os pais idealizados na infância? Não haveria superação e esse jovem corresponderia a uma fixação infantil.

Sônia Alberti (2004, p. 10) escreveu que a "adolescência é antes de mais nada: 1) um longo trabalho de elaboração de escolhas e 2) um longo trabalho de elaboração da falta no Outro". Essa elaboração de escolha se dá porque o adolescente teve alguém de que ele pôde escolher lançar mão ou não. Na clínica, é comum o analista constatar que na adolescência há um longo trabalho de elaboração de escolhas. Entretanto, para se fazer uma escolha, é preciso uma referência que, neste caso, é a presença dos pais. Ao longo de sua infância, o adolescente teve referências dos pais, da escola, do entorno etc. E essas referências continuarão ao longo da vida. A diferença é que elas se tornam parâmetros que guiarão o adolescente em seus processos de escolha. Tais escolhas de darão em via de mão dupla, de adesão ou de separação. Ao permitirem processos de separação, essas referências permitem

a definitiva incorporação do Outro da infância de maneira que o sujeito não seja mais tão dependente da idealização dos pais da sua infância. Toda criança idealiza de alguma forma seus pais, mas à medida que ela cresce, percebe aos poucos as suas falhas, de forma que o terreno vai se preparando para o processo de separação da adolescência. (Alberti, 2004, p. 14)

A fala dos adolescentes numa situação transferencial e analítica deve presentificar que ele já pode tomar decisões, escolher o que quer fazer, mesmo que tenha dúvidas, e que ele pode fazer suas escolhas sem buscar a permissão dos pais. Nesse momento, ocorrem as reações adversas dos filhos. Para os pais, isso pode soar como rebeldia ou falta de respeito. Neste caso, não são os filhos que se separam dos pais, mas os pais que passam a se sentir abandonados. Há pais que suportam esse sentimento; há pais que não o suportam.

Freud, em Sobre a dinâmica da transferência, observa que as "peculiaridades da transferência... não foram apenas as representações de expectativas conscientes, mas também as retidas ou inconscientes que produziram tal transferência" (Freud, 1912/2017a, p. 109). Vimos que o sujeito do inconsciente é aquele que sofre os efeitos da fala; "se há realmente algo que caracteriza o sujeito é o fato de ele necessariamente exercer-se nos diferentes discursos como sujeito do desejo" (Alberti, 2004, p. 14). Se o sujeito é efeito da linguagem, buscamos compreender qual o lugar do adolescente na clínica psicanalítica e como é possível a construção e a formulação da demanda. Para entendermos um pouco mais isso, apoiamo-nos na leitura de Freud e a de Lacan e salientamos uma observação de Lacan: "a transferência não está aí como em qualquer outro lugar, mas desempenha uma função inteiramente particular" (Lacan, 1953- 1954/1979, p. 54, itálico do autor). É nessa função, inteiramente particular, que procuramos escutar os adolescentes.

Outra possibilidade, construída inicialmente na relação transferencial, é a posição do psicanalista como cúmplice do sofrimento e das aventuras do adolescente.

Como diz Gutierra,

em relação à clínica, temos, sustentando o Discurso do Analista, como hipótese que a psicanálise de adolescentes deve ter enquanto direção específica a oferta de um espaço onde se possibilite a construção de um laço social fundado de um lugar sexuado e discursivo próprios. (Gutierra, 2002b, p. 4)

A citação assevera que a direção da análise parte desse princípio, de sustentar o discurso do analista, ou seja, de ter a falta como agente, aquele que opera em todo o discurso, opondo-se a toda vontade de dominar (Lacan, 1969-1970/1992), seja no atendimento de adolescente, seja no de adultos.

De acordo com Rassial (1999, p. 159), o trabalho do analista com o adolescente perpassa uma dimensão simbólica: "se a adolescência é realmente o momento do trabalho de luto e da 'compreensão dos adultos', o analista deve, desde o início da cura, aceitar que um dia vai ter de ser rejeitado pelo adolescente"2. O autor acresce: "o adolescente põe em jogo imediatamente o 'ser' do analista e sua capacidade de ouvir diferentemente do que os adultos de seu meio" (Rassial, 1999, p. 159). É diante da presença do analista que o adolescente pode construir ou elaborar uma posição subjetiva, sabendo que de onde ele fala o analista estará ali, na escuta, a sustentar e a suportar o seu desejo. Entretanto, o adolescente também pode colocar o analista em posição de não compreensão, dirigir-se a ele como um adulto que nada compreende.

No capítulo Posição e papel do psicanalista na cura do adolescente, Rassial (1999) apresenta três lugares em que o adolescente poderá colocar o analista na relação analítica: como um adulto, como um cúmplice e como um mestre.

Na primeira posição, o analista considerado como um adulto, "o adolescente só reconhece ao analista a mesma posição que a de qualquer adulto, igualmente rejeitado como incapaz de entender o que quer que seja de sua demanda" (Rassial, 1999, p. 162). Essa posição exige um cuidado especial que o analista deve ter em relação à escuta nas entrevistas preliminares. O adolescente, geralmente, não busca diretamente um tratamento. Suas questões são, primeiramente, escutadas pela família, pela escola ou pelo médico. Antes de chegar ao analista, o adolescente passou por outros adultos e, todos eles, provavelmente, apresentaram uma escuta que o adolescente, em seguida, rejeitou. O analista de depara com esta rejeição no mutismo (o que se observou na primeira consulta com José) ou até mesmo pelas faltas às sessões. Pode-se superar essa posição do adolescente reconhecendo este lugar como legítimo, sem interrupções ou frases prontas, como "assim não dá, você tem que pedir ajuda" ou "é preciso se responsabilizar pelo que faz". O analista não deve ocupar uma posição moralista. Pelo contrário: o discurso do analista exige tomar a falta como agente, em alguns momentos mantendo o silêncio, em outros sustentando o silêncio do adolescente, o que permite ao jovem não ser reduzido a uma impotência. Assim poderá se deparar com as questões e, por fim, produzir um saber.

Outro lugar em que o adolescente pode situar o analista é como um cúmplice. Ao se compadecer do sofrimento do adolescente, o analista deve estar atento às possíveis armadilhas do tratamento. O adolescente pode compreender que o analista apoia sua dor e tomar, assim, a relação analítica como uma relação de iguais, com fraquezas egoicas compartilhadas. Rassial explicita quando a contratransferência toma esse perigoso e delicado rumo:

Em face do que aparece como enfraquecimento do eu [moi]no adolescente, como novo questionamento do narcisismo, o analista fracassa certamente quando visa produzir apoio identificatório, sustentando, com sua pretensa força, com seu pretenso equilíbrio, o adolescente fraco; mas fracassa da mesma forma, ao inverso, quando partilha com o adolescente da mesma fraqueza egóica. (Rassial, 1999, p. 164)

Essa armadilha só é possível de se evitar quando a atitude do profissional é sustentada por sua própria análise e supervisão (Rassial, 1999), a fim de que se busquem os fatores inconscientes que desencadeiam tal posição. Em outras palavras, o tripé formador da psicanálise – análise pessoal, supervisão e estudo teórico – produz os efeitos éticos do desejo do analista, entendido este como o resultado de sua própria análise.

Por fim, o adolescente pode situar o analista como um mestre, e induzi-lo a assumir tal papel. Este é um dos lugares mais perigosos que o analista pode assumir: primeiro, porque é o mais difícil de diferenciar da sua posição de analista e, segundo, porque o adolescente, com sua aptidão para construir ideias e teorias abstratas, exige ou demanda do analista que ele evoque uma verdade. O analista não deve ser aquele que tem a verdade, mas aquele que supõe um saber, que deixa questões abertas e que leva a uma posição de saber ao adolescente. O analista deve seguir da "ética da suposição, que faz fundo à prática analítica" (Rassial, 1999, p. 165).

O lugar de sujeito suposto saber permite ao analista não subestimar o analisante colocando o seu saber sob o domínio do saber do outro. A "não-resposta, particularmente difícil com o adolescente, não é redutível a um 'calar-se', que pode, pelo contrário, colocar o analista como mestre infalível" (Rassial, 1999, p. 165).

 

Considerações finais

O estudo da transferência na clínica de adolescente ajuda a compreender os diferentes lugares de endereçamento ao analista já presentes nas primeiras consultas com o adolescente, bem como a singularidade de cada posição. O psicanalista não toma a adolescência como uma passagem anátomo-fisiológica, cronológica, determinada pelo desenvolvimento, mas sim como uma operação psíquica, da ordem da temporalidade e da ordem da estruturação psíquica do sujeito ‒ a adolescência como uma passagem da condição infantil, do lugar que ocupa na família, à construção de laços sociais. Desse modo, a adolescência permeia os três registros ‒ Real, Simbólico e Imaginário ‒ de um modo particular e singular.

O Real nos ajuda a perceber as elaborações do adolescer, da passagem do corpo infantil a um corpo em plenas transformações, ocorridas na puberdade. Isso exige do adolescente um trabalho de reconstituição da sua imagem corporal no plano Imaginário. A imagem da infância, organizada através do olhar do outro, sofrerá mudanças, implicando novas referências imaginárias. Essas transformações e a reconfiguração imaginária se farão presentes de modo marcante na transferência, através do olhar do analista e do seu próprio olhar, o que terá consequências no decorrer do tratamento clínico. Através da transferência o adolescente encontrará suporte para dar conta dessas novas configurações de sua imagem, pois é na fala, no Simbólico, que essas mudanças poderão ser reelaboradas e tomadas como fundamentais para a constituição psíquica. É o Simbólico incidindo no Real e no Imaginário.

É no Simbólico, nessa costura entrelaçada entre o Real e o Imaginário, que o adolescente tomará suas referências e poderá situar seu sintoma. Neste sentido, Rassial mostra a importância da transferência na clínica com adolescente, compreendendo que a

adolescência é, sem dúvida, um passe e, como tal, encontra o passe do analista, quando ele usou sua história de analisante. Mas com uma diferença significativa: sem a análise e salvo exceções, a adolescência "passa por si só", passa em direção a um devir adulto, certamente acompanhado de um recalcamento, mas em direção a uma normalidade socialmente aceitável. Paradoxalmente, o analista seria aquele que permitiria ao adolescente não se tornar um adulto "normal". (Rassial, 1999a, p. 172)

Para concluir, o analista, utilizando a transferência, se ocupará de sustentar o trabalho de construção de novos Nomes-do-Pai. Além das referências imaginárias da família, tão questionadas pelo adolescente, o analista terá o papel de ajudar a construir novas referências simbólicas que o ajudem a se sustentar fora da família e a encarar o seu desejo.

As palavras finais, tomamos em uma passagem do Seminário de Lacan sobre os Nomes-do- Pai: "aqui não podemos mais escapar à questão: para além daquele que fala no lugar do Outro e que é o sujeito, o que há cuja voz é assumida pelo sujeito a cada vez que fala?" (Lacan, 2005, p. 71). Dar voz ao adolescente pode significar uma passagem menos conflitante e mais interessante para o mesmo e com efeitos menos catastróficos para o adulto que está por vir.

 

Referências

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Recebido em janeiro de 2020 – Aceito em abril de 2020.

 

 

1 Termo cunhado por Erik Erikson (1902-1994) para tratar da adolescência como uma das fases do desenvolvimento humano em que a formação da identidade começa a tomar outras instâncias. A adolescência como moratória seria um período em que o jovem se descobre nas relações psicossociais e passa a refletir sobre os tipos de compromisso que gostaria de assumir.
2 É o mesmo destino de toda transferência que se atinge no fim da análise.
Revisão gramatical: Sidney Wanderley de Lopes Lima.
E-mail: sidneywanderley@yahoo.com.br

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