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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.25 no.2 São Paulo maio/ago. 2020

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v25i2p313-321 

10.11606/issn.1981-1624.v25i2 p313-321

ARTIGO

 

Dolto, trinta anos depois: a atualidade de sua teoria e a noção de sujeito desejante

 

Dolto, treinta años después: la actualidad de su teoría y la noción del sujeto deseante

 

Dolto, thirty years later: her theory's actuality and the concept of "desiring subject"

 

 

Roberta MazzilliI; Fernanda Lima FonsecaII

IPsicanalista. Mestre em Psicanálise e Pesquisas Interdisciplinares pela Universidade Paris Diderot, França. E-mail: rb.mazzilli@gmail.com
IIDoutoranda na Université Paris Diderot (França) em cotutela com Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: fonsecafernandalima@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo é uma leitura da obra da psicanalista francesa Françoise Dolto. Nosso objetivo é resgatar a atualidade de sua teoria e de sua prática clínica, particularmente no que tange à noção de "sujeito desejante". Primeiramente, apresentamos um breve histórico dessa autora e de suas contribuições para a psicanálise e a sociedade. Em seguida, discutimos como Dolto compreendeu as primeiras experiências do bebê a partir do conceito de "imagem inconsciente do corpo". E por fim, demonstramos como a aposta de que o sujeito se manifestaria precocemente por desejos através de seu corpo abriu a possibilidade de se realizar um trabalho efetivo com a primeira infância e fez dessa psicanalista uma referência.

Palavras chave: Dolto; psicanálise; criança; sujeito; desejo.


RESUMEN

Este artículo es una lectura de la obra de la psicoanalista francesa Françoise Dolto. Nuestro objetivo es rescatar la actualidad de su teoría y de su practica clínica, particularmente en lo que se refiere la noción del "sujeto deseante". Primeramente, presentamos un breve recorrido histórico de esta autora y de sus contribuciones para el psicoanálisis y la sociedad. En seguida, discutimos cómo Dolto comprendió las primeras experiencias de lo bebé a partir del concepto del "imagen inconsciente del cuerpo". Y por fin, demostramos cómo la apuesta de que el sujeto se manifestaría tempranamente por deseos a través de su cuerpo abrió la posibilidad de realizar un trabajo efectivo con la primera infancia, lo cual ha hecho de Françoise Dolto una psicoanalista de referencia.

Palabras clave: Dolto; psicoanálisis; niño; sujeto; deseo.


ABSTRACT

This paper is an interpretation of the French psychoanalyst Françoise Dolto's work. Our aim is to recover her theory and clinical practice's actuality, especially concerning the notion of "desiring subject". Firstly, we present the author's brief biography and her contributions to psychoanalysis and to the society of her time. Following, we address how Dolto understood the baby's first experiences using the concept of "unconscious image of the body". Finally, we demonstrate how the guess that the baby bodily expresses desires prematurely has opened the possibility to develop an effective work with early childhood. This has transformed Dolto into a reference author.

Keywords: Dolto; psychoanalysis; child; subject; desire.


 

 

No ano de 2018, completaram-se trinta anos do falecimento de Françoise Dolto e, inspiradas por esta data, gostaríamos de resgatar, hoje, esta autora. Como podemos perceber a sua herança nos dias atuais?

Reconhecida como uma talentosa clínica, porém menos conhecida enquanto teórica, Dolto foi uma importante pediatra e psicanalista francesa, celebrada por haver revolucionado a maneira como escutamos e compreendemos as crianças. Acompanhando os questionamentos de seu tempo, ela continuou o trabalho iniciado pelos precursores da psicanálise com crianças como Melanie Klein, Donald Winnicott e Sophie Morgenstern1.

Dolto foi também considerada como uma das mais inventivas psicanalistas. Inventividade esta que se manifestava em seu estilo; em sua forma de pensar, marcada pela liberdade e espontaneidade; e, certamente, em suas curas. Rapidamente, seu ensino se desprendeu de um discurso acadêmico. Ela foi reconhecida por introduzir a psicanálise na vida quotidiana. De acordo com Kupfer (2006), a prática de Dolto se situa em um lugar peculiar, um cruzamento entre a pediatria, a psicanálise e a educação.

Nascida em Paris, em 6 de novembro de 1908, ela exerceu o ofício de psicanalista, desde o final de seus estudos de medicina e após sua análise pessoal com René Laforgue, em 1939, até um mês antes de sua morte, no dia 25 de agosto de 1988 (Nasio, 1995).

O seu percurso se inscreve na história movimentada da psicanálise em seu país. Assim, ela participou da construção de diferentes serviços voltados para o público infantil. Dentre eles, destacamos: as consultas de crianças do Hospital Trousseau2; a sua participação no CMPP Claude-Bernard, o primeiro de Paris3 também no CMPP Etienne-Marcel; e as consultas da Rue Cujas4, onde recebia crianças muito pequenas.

Assim como seu colega Jacques Lacan, Dolto, em sua vida, manteve-se em contínuo trabalho de elaboração clínico-teórico. Aliás, esta dupla rapidamente se afirmou como representante do freudismo francês. Dolto seguiu Lacan na criação da Escola Freudiana de Paris, fundada no ano de 1964, e acompanhava seus seminários, mantendo-se como sua interlocutora. Seu pensamento foi bastante influenciado por este psicanalista, porém, também identificamos nuances na reflexão de ambos.

Não é tarefa simples, entretanto, localizar a herança doltoniana, conforme sustentam os autores que participaram da coletânea Lire Dolto aujourd'hui, organizada por Schauder (2008). Essa herança se situaria menos no estabelecimento de um saber estruturado e acessível e mais em um posicionamento clínico completamente impregnado de uma preocupação ética. Afinal, para ela, tratava-se de considerar, antes de tudo, a dimensão desejante do filhote humano (Schauder et al., 2008).

Foi na década de setenta que Dolto experimentou um sucesso fulgurante, ao participar da emissão de rádio "lorsque l'enfant paraît5", na qual respondia questões dos pais enviadas por cartas com relação à educação de seus filhos. Nesta época, ela se confirmou como uma figura pública, marcando assim a maneira de compreender as crianças de uma geração.

Após anos de experiência, juntamente com outros profissionais, fundou a Maison Verte6: um lugar de lazer, acolhimento e escuta, voltado às crianças – do nascimento até o quarto aniversário – acompanhadas por um adulto de confiança. Desde sua inauguração, a Maison propôs-se a ser um espaço de encontro, onde o laço social seria validado como essencial para o equilíbrio de todos e onde seria restituída toda a importância à função tão particular ao humano: a palavra.

Neste espaço, as crianças poderiam vivenciar um momento de socialização, segundo o seu próprio ritmo, o qual se desenrolaria sempre na presença dos pais. Estas experiências as auxiliariam neste tempo de passagem, entre o íntimo do círculo familiar e seus primeiros passos na vida em sociedade. Além disso, a Maison Verte foi pensada para que os pequenos pudessem, eles mesmos, sustentar e desenvolver as suas questões. Essa estrutura é considerada como uma das grandes concretizações do pensamento da psicanalista e, no ano de 2019, completou 40 anos de existência.

Para compreendermos a revolução provocada por Dolto, devemos considerar que ela protagonizou uma importante transformação do estatuto da criança: de tubo digestivo, cego e surdo, que deveria ser educado, a sujeito de pleno direito – sujet à part entière, sua conhecida afirmação. Basta lembrar que, nessa época, quando os bebês deviam ser submetidos a uma cirurgia, não eram anestesiados... A justificativa? Não eram ainda conscientes e não iriam se lembrar do ocorrido. Questionava-se se sequer sentiriam dor! (Gauvain-Piquard, 2004).

Estranhamente, apesar de ter alcançado tamanho sucesso na França, verificamos que nos dias atuais o pensamento de Dolto permanece relativamente pouco difundido.

No Brasil, as primeiras traduções de obras da autora foram de livros e textos voltados ao grande público, com fins de orientação parental7. A tradução de sua obra destinada a psicanalistas foi realizada posteriormente. Hoje, são mais de 20 livros da autora e mais de 40 publicações científicas que abordam a sua contribuição teórico-clínica. Convém, também, ressaltar que o dispositivo da Maison Verte francesa inspirou experiências brasileiras, como as realizadas pelos projetos da Casa da Árvore e da Casa dos Cata-Ventos8. Ainda assim, se compararmos com outros autores como Klein ou Winnicott (http://www.bvs-psi.org.br), podemos considerar que a obra de Dolto é pouco conhecida e pouco difundida no meio psicanalítico brasileiro.

De acordo com Schauder et al. (2008), esse apagamento da obra de Dolto teria ocorrido devido a dois fatores principais: em primeiro lugar, pelo fato de que seu posicionamento apresentaria um substrato ético de difícil apreensão e, em segundo, pois a midiatização de sua figura e as suas tomadas públicas de posição em matéria de educação teriam mobilizado resistências.

Para esses estudiosos, Dolto, que soube ultrapassar o visível para se interrogar sobre o legível, permaneceu pouco ou sobretudo mal lida (Schauder et al., 2008). Este artigo propõe uma leitura desta psicanalista. Destacaremos principalmente suas contribuições acerca do trabalho com a primeira infância e abordaremos também algumas das principais críticas que Dolto recebeu, em vida e após sua morte.

 

O estatuto do bebê e da criança na obra de Dolto

Antes de prosseguir, gostaríamos de esclarecer: de que criança estamos tratando? Neste artigo iremos priorizar o infans9, palavra latina, composta do prefixo privativo "in" e do particípio presente do verbo "fari", que significa falar. Assim seria o infans, o bebê, aquele que ainda não fala.

"Tudo é linguagem" defendia Dolto, provocando concordâncias e discordâncias entre seus conterrâneos. No entanto, para a nossa presente finalidade, tomaremos esta afirmação em seu sentido mais amplo, ou seja, com o termo linguagem, a psicanalista estaria se referindo também àquela não verbal, a tudo aquilo que o bebê manifesta a partir de seu corpo, justamente quando ainda não possui outros meios para fazê-lo.

E assim chegamos inevitavelmente à obra "A imagem inconsciente do corpo", publicada em 1984, na qual a psicanalista desenvolveu, através de um entrelaçamento entre a clínica e a teoria, um de seus conceitos originais. Foi a partir do que diziam as crianças por meio de suas produções com desenhos e massa de modelar que Dolto construiu este conceito, auxiliando-a a compreender as experiências primeiras do infans.

Dolto considerava que as produções infantis são fantasmas representados. A maneira de se relacionar da criança com o mundo se dá através da sua imagem inconsciente do corpo e é, portanto, a partir dessa imagem que podemos entrar em contato com ela.

A imagem inconsciente do corpo corresponde ao traço estrutural emocional de cada ser humano. Ela é o lugar inconsciente a partir do qual se elaboram todas as expressões do sujeito; lugar de emissão e de recepção, do que Dolto chamou de emoções inter-humanas e linguageiras (Dolto, 1984).

Além disso, a imagem inconsciente do corpo é peculiar a cada criança, relacionada com a sua história e com um tipo de relação libidinal. Desse modo, a depender do estágio libidinal em que se encontra o sujeito, a imagem do corpo muda. O caso célebre da "menina da boca de mão" exemplifica. Era uma menina de 6 anos que não conseguia pegar nenhum objeto com suas mãos, como se ela não as tivesse. Dito de outro modo, era como se os seus membros superiores não estivessem integrados ao seu esquema corporal. A imagem do corpo era arcaica. Dolto interveio, assim, dizendo à garota para pegar a massa de modelar com a sua "boca de mão". Essa palavra dirigida à criança, que ainda apresentava sua percepção do palpável na fase oral, fez com que ela pegasse a massinha com sua mão e a colocasse na boca (Dolto, 1984).

Muitos são os exemplos clínicos que a autora nos revela em seu livro, enquanto complexifica ainda mais este conceito que consideramos de difícil apreensão, até mesmo paradoxal. Porém, o essencial desta noção consistiria em enfatizar a interdependência entre o sensorial e o simbólico na constituição do filhote humano (Grignon, 2002). "As palavras, para tomarem sentido, devem primeiramente tomar corpo, ser ao menos metabolizadas numa imagem do corpo relacional", sustentou Dolto (1984, p. 45).

Para a psicanalista, a mãe, o Outro primordial do bebê, por meio de uma linguagem gestual, mímica, auditiva e verbal, é também o seu primeiro interlocutor. Entre eles se inicia uma comunicação, que permite à criança construir suas imagens corporais de base, tanto funcionais quanto erógenas. Os cuidados maternos, ilustrados pela experiência da amamentação, dão às zonas de comunicação, aos orifícios do corpo, um valor de troca: é pelos sentidos sutis, ou seja, o tato, o olfato, a audição, o paladar e a visão, que o lactente organiza suas trocas significantes. Estas vivências memorizadas permitiriam que ele pudesse suportar, ainda que temporariamente, a ausência materna.

Então, desde o nascimento, essa interlocução é ritmada por encontros e desencontros. Há momentos em que o infans prova a necessidade da presença de sua mãe, mas não a encontra imediatamente. Tal situação pode provocar-lhe o choro – sua forma de exprimir o desconforto, mas também de fazer apelo para que sua mãe retorne. Esta, reencontrando a criança, procura, por meio de gestos e palavras, acalentá-lo e mediatizar o que estaria acontecendo. O contínuo dos cuidados maternos, cadenciado por estes momentos, é um motor fundamental da vida psíquica: "de ausência em presença e de presença em ausência, a criança se informa de seu ser na solidão..." (Dolto, 1981/1996, p. 215).

Concordamos com Schauder (2001) quando ele afirma que, para Dolto, a criança seria levada a superar as frustrações que lhe impõem as primeiras vicissitudes da vida, graças às palavras a ela endereçadas por aqueles que a cercam. Palavras que lhe nomeiam aquilo que percebe e que permitem uma mediatização face à ausência dos objetos de sua satisfação (pessoa, gesto, coisa, etc. ) ou à não-satisfação de uma demanda de prazer.

A mãe inicia a criança não só no aplacamento das necessidades do corpo e das tensões do desejo, mas também, por seus afagos, pelas carícias e pelas palavras que lhe dirige, no reconhecimento do pai, dos parentes e de todas as pessoas com quem fala em presença da criança. Ela a inicia, por conseguinte, na vida social (Dolto, 1981/1996, p. 242).

As palavras dirigidas ao bebê apresentam uma função simbólica e conduzem para que as demandas infantis, inicialmente da ordem da necessidade, tornem-se apelos da ordem do desejo. Para Dolto, a partir do momento em que há uma testemunha humana, o esquema corporal do bebê, que constitui o corpo em sua vitalidade orgânica, sede da necessidade, cruza-se com a imagem inconsciente do corpo, sede do desejo. É este tecido de relações que permitirá à criança se estruturar como humano, e nesta trama, como insiste a autora, o desejo transborda sempre à necessidade (Dolto, 1984, p. 63).

 

Bebê, sujeito desejante?

Reconhecemos que no entendimento de Dolto – na mesma esteira de Lacan e de Freud – o que a mãe, por meio de seus cuidados, transmite à criança ultrapassa a ordem da satisfação das necessidades.

Entretanto, como assinala Boukobza, a noção de imagem inconsciente do corpo teria complexificado o nosso entendimento acerca da constituição subjetiva, sobretudo ao abordar um estado de "desejância", neologismo empregado por Dolto para designar "aquele que está indo em direção ao estado desejante" (Boukobza, 2006, p. 84), como veremos.

A psicanalista M-E Didier-Weill destaca que aprendeu com Dolto que uma criança detém em seu corpo algo de sua história que lhe escapa totalmente (Didier-Weill, 2002). A imagem do corpo, assim como o inconsciente freudiano, seria constituída e estaria marcada por vestígios da memória e da comunicação entre sujeitos. Ela seria uma "encarnação simbólica inconsciente do sujeito desejante" e isso ocorreria "antes mesmo que o indivíduo em questão seja capaz de designar a si mesmo pelo pronome pessoal « Eu », saiba dizer « Eu »" (Dolto, 1984, p. 22, tradução livre). Neste ponto, Dolto insiste: "o sujeito inconsciente desejante em relação ao corpo existe desde a concepção" (1984, pp. 22-23, tradução livre).

Como podemos entender esta afirmação? Se para a psicanalista a criança se estrutura a partir das trocas sensoriais e linguageiras com o Outro, seria também o seu corpo garantia da expressão de um sujeito?

Esse entendimento é uma das particularidades do ensino de Dolto. Aqui, ela se diferencia da compreensão de Lacan. Afinal, se para este o sujeito se constitui, para aquela, ele estaria supostamente lá desde o princípio.

Diferentes autores exploraram esta nuance. (Golder, 2008; A. Hamad, 2008; N. Hamad, 2008; Vanier, 2008; Schauder et al., 2008). Eles indicam que embora haja um patrimônio comum entre ambos, patrimônio esse que nos forneceu as bases para se pensar o sujeito do inconsciente, existiria também uma diferença fundamental: segundo Lacan, o sujeito se inauguraria a partir de uma alienação ao desejo do Outro. Nesses termos, quem estaria "já presente" não seria o sujeito, mas o Outro. O sujeito, este é, conforme Lacan, efeito dessa alienação ao Outro, à linguagem: "Para Lacan, o Outro, o tesouro dos significantes, é a condição do sujeito, e o sujeito permanecerá para sempre elíptico representado por um significante para outro. O sujeito só existe dividido..." (N. Hamad, 2008, p 51, tradução livre).

A nosso ver, esta convicção em um sujeito desejante funcionaria como uma premissa para Dolto – ela atravessou diferentes momentos de sua obra e se fez presente em suas intervenções –, premissa esta que lhe possibilitou colocar-se frente a um bebê e, em um ato de atribuição subjetiva, escutá-lo. Entendemos que foi esta aposta que lhe permitiu intervir de maneira decisiva junto aos pequenos.

Dolto foi a primeira psicanalista que se dedicou a, de fato, falar com os bebês. Ela foi radical em sua aposta de que o trabalho com o infans era do interesse da psicanálise

Uma mágica se produz quando os pais percebem que seu bebezinho compreende a fala e que se pode falar a ele daquilo que lhe aconteceu, daquilo que se vive por ele e do que lhe concerne. (...) assim a partir disso, uma descoberta essencial: o ser humano é um ser de linguagem desde a sua concepção; existe um desejo que habita esse ser humano; existem potencialidades que nós apoiamos ou que nós negativamos" (Dolto, 1985/2009, p. 415, tradução livre, grifo das autoras).

E o que dizer do desejo?

De acordo com Winter10 (Conferência, 1 de dezembro de 2018), "desejar" corresponde a um verbo que atravessaria toda a obra de Dolto: existiria desde o momento em que vemos um ser humano nascer e iria até o momento em que o vemos morrer.

Golder ressalta que, em um de seus primeiros encontros com Dolto, esta lhe teria interrogado: "Você não acha extraordinária a maneira que as crianças têm de nos falar com os olhos?" (2010, p. 92). Ela enfatiza que apesar das palavras faltarem ao bebê, ele disporia de dois canais privilegiados para falar: os olhos e a boca, o olhar e a voz. Para ela, quando o bebê mergulha seu olhar no nosso não estaria nos demandando nada mais que lhe dar existência enquanto sujeito (Golder, 2010).

Caberia aos pais o reconhecimento desta dimensão de chamado para a qual estariam sendo convocados. Quanto aos bebês, estes seriam, para ela, aqueles que instituiriam seus pais enquanto "investigadores de significações" (Golder, 2010).

A criança não ouve indistintamente as palavras, mas percebe de início os sons e, sobretudo, não sabemos de que maneira, percebe quando se está falando dela ou de alguma coisa que lhe interessa. Quando falamos em passear, quando falamos em sair, quando falamos sobre o gato e o cachorro, animais domésticos familiares, a criança muito pequena adota uma mímica que prova que ela ouviu e que seus ouvidos estão afiados. (...) E é essa mímica, novamente cruzada com a evocação repetida dos mesmos fonemas pela mãe, que produz, na criança, tal como na mãe, a alegria reconhecida de estarem juntas em harmonia. E é assim que começa a comunicação originária do desejo. (Dolto, 1981/1996, p. 245, grifo das autoras).

Nesta perspectiva, observamos o interesse particular que o bebê apresenta pela voz humana. Na obra No jogo do desejo, Dolto enfatiza o quão precoce é o desejo do lactente de escutar outra vez as palavras da mãe, e como ele coloca todo o seu ser a serviço disto – através de seu choro, seus gritos, suas expressões, suas manifestações corporais.

Dolto abandonou radicalmente a ideia do bebê como um ser passivo, ele é um ser de linguagem e para a linguagem: ele tem apetite de comunicação. Assim, como afirma N. Hamad (2008), no início haveria desejo na medida em que o desejo é apelo à comunicação inter- humana.

Isto implica que um corpo é sempre e já um corpo de linguagem, uma linguagem não verbal é certo, mas ainda assim orientada para a troca. O corpo implica já o sujeito e demanda um para além da necessidade e da sobrevivência, ele demanda a presença do Outro materno, o Outro tutelar e o seu envolvimento numa troca estruturante. Para Dolto, a linguagem não são as palavras articuladas, é a matriz cuja sede é o próprio corpo. É de certa forma a pedreira, da onde se extrai a pedra, para lhe dar forma graças à arte do Outro, essa arte de entrar em ressonância com as emoções do infans e de utilizar as palavras adequadas .... A língua se instala quando o mediador do mundo exterior, desejando a comunicação com a criança, se compromete com todo o seu ser a receber de um modo simbólico as mímicas da criança, dando-lhe um valor de apelo (N. Hamad, 2008, p. 52, tradução livre).

Uma pequena ilustração clínica, fornecida pela própria Dolto ao descrever os primeiros anos de trabalho na Maison Verte, ajuda-nos a compreender essa discussão:

Outro dia, uma mulher veio com um bebê de menos de três meses. Ela nos disse: "Vou deixá- lo aqui; vou bem aí na frente procurar alguma coisa". Era a primeira vez que essa mulher vinha, e eu lhe disse: "Mas, senhora, não é questão disso. Você não deixará seu bebê. Aqui, mãe nenhuma deixa seu bebê". "Mas é para ir logo aí na frente!" "Pois bem, você porá a roupinha nele, irá com ele logo aí na frente e depois voltará." "Ah! Pois, então, não voltarei!" "A senhora fará como quiser, mas não deixará Fulano de tal (o bebê em questão)". No momento em que ela acabara de dizer isso, víamos o rosto do bebê todo angustiado com a ideia que sua mãe iria deixá-lo. Ela é o único ser no mundo que ele conhece e ela vai deixá- lo em um mundo desconhecido em que ela acaba de chegar há cinco minutos! Eu lhe disse: "Mas olhe seu bebê!" "Vocês acreditam? Mas é por acaso!" Ela vira muito bem... e todas as mamães presentes também, mas ela o negava, era um acaso... Eu disse ao bebê: "Você vê, sua mamãe vai embora com você; talvez ela não volte; mas ela irá com você; aqui, mamãe nenhuma deixa seu bebê". Imediatamente o bebê ficou tranquilo, olhou sua mãe e pronto. Então ela continuou com ele. No fim da tarde, ela disse às outras mães: "Pois bem, agora compreendi... É extraordinário! No momento, eu estava decidida a não voltar mais... eu acreditava que Mme. Dolto estava me atacando, mas compreendi que é no interesse do bebê... É extraordinário que um bebê entenda a linguagem. Se ele entende, se compreende? Tudo o que lhe dizemos e não dizemos. (Dolto, 2005, p. 363).

De nosso encontro com a obra e a prática de Dolto resta-nos uma convicção: a criança tem apetite de comunicação e, por mais jovem que seja, ela já possui, em si mesma, recursos para fazer chamado ao outro. Caberá a esse outro, portanto, reconhecer e interpretar o seu chamado, introduzindo-a em uma comunicação possível.

Nas palavras de Grignon (2002), a grande contribuição de Dolto à psicanálise foi o que ele chamou de imputação do sujeito. Foi ela esta que, em sua escuta, "ia até lá, aonde ainda não estava lá, mas ela sustentava, sustentou algo de um sujeito numa criança..." (Grignon, 2002, p. 33, tradução livre).

A noção de sujeito de Dolto é relevante, principalmente se observarmos a especificidade do trabalho com as crianças, em geral, e com os bebês, em particular. Afinal, como poderíamos nos dizer psicanalistas de crianças se não fizermos uma aposta no sujeito, sujeito de seu próprio desejo?

Dolto foi aquela que se arriscou a endereçar-se às crianças, em uma época em que poucos consideravam fazê-lo. Tão logo o fez, pôde recolher os efeitos de seu ato. Ela desenvolveu uma ética da psicanálise com crianças, e, a cada encontro, procurava encontrar as palavras que traduziriam, para elas, aquilo que estariam vivendo. Conforme Dolto, a criança não vai ao psicanalista para se distrair; assim como o adulto, ela vai para se exprimir em verdade. A função do analista, desse modo, seria "permitir à criança através de gestos, sinais linguageiros, aos quais acrescentamos palavras dirigidas à sua pessoa (...) para que ela advenha à sua própria compreensão daquilo que a faz sofrer" (Dolto, 1984, p. 27).

Outrossim, Dolto, ao postular um sujeito no bebê, sustenta que ele seria menos um ser passivo e totalmente dependente do que capaz de fazer apelo à comunicação e ao outro. Esse posicionamento ético é, sobretudo na contemporaneidade, fundamental. Hoje, vivemos em uma sociedade marcada por um imperativo do consumo, um educar voltado à performance e uma medicina pautada em estratégias de risco e previsão, discursos que operam a exclusão do sujeito. É verdade que esses também apresentam um olhar cada vez mais precoce ao bebê... mas, ao contrário de Dolto, colocam-no no lugar de objeto. Nós apostamos em uma forma outra de trabalho. Apostamos na escuta, no desejo, no sujeito, enfim.

Trinta anos após seu falecimento, acreditamos que Dolto permanece atual e que relê-la, hoje, seria tomar a dimensão de sua transmissão e do caminho que nos resta a percorrer.

 

Referências

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Recebido em outubro de 2019 – Aceito em maio de 2020

 

 

1 Sophie Morgenstern (1875-1940) foi a primeira psicanalista de crianças na França e supervisora de Dolto. Ela foi a percursora da utilização do desenho nas curas das crianças.
2 De 1940 a 1978, realizou no Hospital Trousseau um consultório aberto a todos os analistas que desejavam se formar na prática da psicanálise com crianças.
3 No ano de 1946, ingressou no CMPP – Centre médico-psyco-pédagogique. Em português, "Centro médico-psico- pedagógico" é um estabelecimento médico-social que propõe acompanhamento ambulatorial para crianças e adolescentes, em conjunto com os familiares. Naquela época, diferentes psicanalistas, além de Dolto, passaram pelo Centre Claude Bernard, dentre eles: Ms. Anzieu, Berge, Debesse, Diatkine, Mauco, Pontalis e Mmes. Decobert, Favez Boutonnier. Recuperado de: https://centreclaudebernard.asso.fr/historique-du-centre
4 As consultas públicas da Rue Cujasocorreram de 1985 a 1988. Nelas, Dolto recebia bebês provenientes de uma creche, que haviam sido separados de seus pais. Neste dispositivo as crianças eram tratadas por ela, na presença de um pequeno grupo de analistas experimentados, que participavam das curas. Recuperado de: http://www.dolto.fr/archives/siteWeb/bio.htm.
5 Este programa foi emitido de 1976 a 1978 pela Rádio France Inter e animado por Jacques Pradel.
6 A Maison Verte abriu suas portas em Paris no ano de 1979, fundada por uma equipe de seis profissionais: Françoise Dolto, Pierre Benoit, Colette Langignon, Marie-Hélène Malandrin, Marie-Noëlle Rebois et Bernard This.
7 Pesquisa por autor no acervo da Biblioteca Nacional. Recuperado de: http://acervo.bn.gov.br/
8 Localizadas no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, respectivamente.
9 Da palavra infansoriginaram-se as palavras "infante" na língua portuguesa e "enfant" que, na língua francesa, significa criança.
10 Intervenção de J.P. Winter "La spiritualité au risque de la psychanalyse" na ocasião da Jornada "Françoise Dolto, trente ans après", organizada pelo Espace Analytique e pelos Arquivos Françoise Dolto, Paris, 2018.
Revisão gramatical: Luzia Alves
E-mail: luziaalves613@gmail.com

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