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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.25 no.3 São Paulo May./Dec. 2020

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v25i3p362-376 

10.11606/issn.1981-1624.v25i3 p362-376

DOSSIÊ

 

Escola e laço fraterno

 

Escuela y lazo fraterno

 

School and fraternal bond

 

L'école et le lien fraternel

 

 

Luís Adriano Salles SoutoI; Simone Zanon MoschenII

IPsicanalista. Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)/Université Paris 8. Psicólogo do CAPS Casa Aberta, Porto Alegre, RS, Brasil. Email: lasalles.souto@gmail.com
IIPsicanalista. Professora Associada do Instituto de Psicologia e dos Programas de Pós-Graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura e em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Bolsista de Produtividade CNPq, Porto Alegre, RS, Brasil. Email: simoschen@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo recupera algumas das características civilizatórias que marcaram o advento das sociedades da modernidade democrática e destaca aquele que seria o traço distintivo da escola republicana. A identificação desse traço permite confrontar as reivindicações de movimentos que atualmente afirmam a prioridade da educação familiar sobre a educação escolar e interrogar alguns dos pressupostos dos ideólogos de uma "educação para a sociabilidade democrática", que muitas vezes desconsideram que uma educação escolar comprometida com promoção da experiência democrática passa, antes de tudo, pela afirmação da escola como instituição implicada com a produção de uma filiação simbólica comum. É essa afirmação que nos permitirá vislumbrar, por fim, o limite da família no processo da transmissão simbólica que balizará o acontecimento de um sujeito interpelado na modernidade como indivíduo e como cidadão.

Palavras-chave: psicanálise; escolarização; escola republicana; democracia; pacto fraterno.


RESUMEN

Este artículo busca recuperar algunas de las características civilizadoras que marcan el advenimiento de las sociedades de la modernidad democrática para, a partir de allí, rescatar el rasgo distintivo de la escuela republicana. La identificación de este rasgo que caracteriza a la escuela soñada por la modernidad democrática permite, en un segundo momento, confrontar el argumento en el que se basan los movimientos actuales que priorizan la educación familiar por sobre la escolar y, al mismo tiempo, cuestionar algunos de los presupuestos idealistas de una "educación para sociabilidad democrática" – que, muchas veces, desconocen que una educación escolar comprometida con la promoción de la experiencia democrática se basa, principalmente, en la consolidación de la escuela como institución implicada en la producción de una filiación simbólica común.

Palabras clave: psicoanálisis; escolarización; escuela republicana; democracia; pacto fraterno.


ABSTRACT

Starting with a brief consideration on the movements that presently claim the priority of family education over school education, and those that reclaim the possibility of an education fully ran in a home territory, this paper aims to recover some of the civilizatory characteristics that mark the advent of the societies of the democratic modernity to, from this point, retrieve what would be the distinctive trait of the Republican school. The identification of this trait that distinguishes the dreamed school in the advent of the democratic modernity allows us, at a second moment, to confront the argument that serves as a basis for these movements' claims. At the same time, it allows us to question some of the assumptions from the ideologues of an "education for the democratic sociability" – who, often, end for considering that a school education committed with the promotion of the democratic experience passes, first and foremost, through the affirmation of school as an institution implicated with the production of a common filiation.

Keywords: psychoanalysis; schooling; republican school; democracy; fraternal pact.


RÉSUMÉ

Cet article vise à reprendre, en premier lieu, certains éléments civilisateurs caractérisant l'avènement des sociétés de la modernité démocratique afin d'en dégager celui qui serait le trait distinctif de l'école républicaine. D'une part, ce travail d'identification nous permet de confronter les propos des mouvements qui revendiquent, de nos jours, la priorité de l'éducation familiale par rapport à l'éducation scolaire. D'autre part, il est également nécessaire de remettre en cause quelques présupposés des théoriciens d'une « éducation pour la sociabilité démocratique » d'autant plus qu'ils ne prennent pas assez souvent en compte certains aspects importants d'une éducation scolaire engagée à la promotion de l'expérience démocratique. Au terme de l'analyse, cette étude cherche à mettre en évidence que la scolarisation liée à la sociabilité démocratique passe, avant tout, par l'affirmation d'une école considérée comme une institution orientée envers la production d'une filiation commune.

Mots-clés: psychanalyse ; scolarisation ; école républicaine ; démocratie ; pacte fraternel.


 

 

A família não quer largar o indivíduo. Quanto mais estreita a coesão dos membros da família, tanto mais eles tendem a se isolar dos outros, tanto mais difícil se torna para eles a entrada em esferas maiores da vida. A forma de convivência filogeneticamente mais antiga, existente apenas na infância, se defende contra a substituição pela forma cultural de convivência, adquirida posteriormente. O desligamento da família se torna para cada jovem uma tarefa em cuja solução a sociedade frequentemente o apoia por meio de ritos de puberdade e de iniciação. (Freud, 1930/2010, pp. 110-111).

Muito embora a democracia seja, no Ocidente, quase sempre invocada como uma espécie de Bem a ser preservado, observamos, nos últimos anos, o recrudescimento do número e da força de movimentos que manifestam publicamente sua incredulidade com a experiência democrática e que apelam, em maior ou menor medida, por uma radical "mudança de rota". Como exemplo desse fenômeno que cresce em esfera global, podemos citar a eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, em 2016: marcado por uma série de situações nas quais o então candidato republicano não hesitou em proferir insultos a mulheres, negros, mexicanos e muçulmanos, o último pleito à Casa Branca parece ter sido um divisor de águas em relação àquilo que se supunha fazer parte do decoro requerido pelo modo democrático de se viver junto.

Se nos Estados Unidos a vitória de Donald Trump coloca em risco os pilares de uma Constituição que foi concebida há mais de dois séculos em fundamentos que se pretendiam sólidos o suficiente para evitar que a jovem nação americana pudesse, algum dia, ser sequestrada por um autocrata ou por um demagogo de plantão, no Brasil, do mesmo modo, vemo-nos confrontados cotidianamente com atos e palavras de um presidente que, desde a sua eleição em 2018, não hesita em flertar publicamente - e sem qualquer constrangimento - com os princípios e os métodos do regime de exceção que vigorou no país há bem pouco tempo. Execrados por alguns e aclamados como "mitos" por outros tantos, Donald Trump e Jair Bolsonaro são, assim, duas figuras cujo destaque no cenário político atual nos faz recordar da advertência que John Adams, um dos líderes à frente da luta pela independência dos Estados Unidos, endereçou às futuras gerações da América: "Lembrem-se, a democracia não dura muito. Logo se desgasta, se esgota e assassina-se a si mesma. Nunca existiu uma democracia que não cometesse suicídio" (ADAMS, 1851, p.484). Reivindicada como o melhor dos meios para a realização de avanços civilizatórios ou associada à causa de nossos maiores fracassos políticos e sociais, o debate sobre a força e os limites da democracia e de sua institucionalidade vem suscitando, não há dúvida, as mais profundas polarizações. Vejamos como algo dessa polarização se instalou também no campo da educação e, mais precisamente, como ela se desdobra na arena em que se realiza o debate sobre as políticas curriculares para a educação básica no Brasil.

No que concerne às diretrizes que organizam as ações pedagógicas no cotidiano escolar em nosso país, temos, de um dos lados da polarização, aqueles que compreendem que a promoção da "sociabilidade"1 requerida pelos regimes democráticos de corte republicano, tal como é o caso do brasileiro, exige que questões como identidade de gênero, diversidade sexual, diversidade racial e diversidade religiosa, dentre outros, estejam presentes no cotidiano das escolas na modalidade de temas a serem trabalhados de modo transversal ao ensino dos conteúdos previstos em cada uma das disciplinas escolares. Implicados com alguns daqueles que seriam os mais urgentes desafios da vida em comum na atualidade, esses temas invocariam a abordagem, pelos docentes, de problemáticas associadas ao preconceito, à exclusão e à segregação, introduzindo no trabalho docente uma espécie de exercício de problematização das "lógicas identitárias" em sala de aula - lógicas essas compreendidas como verdadeiras forças de resistência a modos de convívio mais democráticos e inclusivos entre nós (Brasil, 2017, p. 345).

Contudo, a cada dia que passa, ficam mais notórias a visibilidade e a força política de movimentos que, institucionalizados ou não, concebem a abordagem desses temas, pela escola, como parte de um evidente e pernicioso projeto de "doutrinação" de nossas crianças e de nossos jovens. Exemplo mais significativo dos movimentos que se articulam em torno dessa denúncia, o Movimento Escola Sem Partido (MESP, 2014) luta pela "descontaminação política" e pela "desmonopolização ideológica" da educação escolar, buscando instituir mecanismos de controle sobre os conteúdos trabalhados pelos professores e sobre a forma como são conduzidas determinadas discussões em sala de aula. De acordo o MESP (2014), a forma como são abordadas questões relativas a gênero, diversidade racial e diversidade religiosa no cotidiano das escolas estaria promovendo a adesão de muitos estudantes a correntes políticas e ideológicas com as quais os docentes identificam-se, algo que levaria muitos alunos a adotar "padrões de julgamento" incompatíveis com os que lhes são transmitidos no âmbito familiar (Movimento Escola Sem Partido [MESP], 2014). Para o Movimento, o modo de se abordar temas relativos à religiosidade e às questões de gênero, em especial, deve ser decidido pelos pais ou responsáveis – aqueles a quem a Constituição Brasileira assegura o direito à "transmissão dos valores morais" aos pequenos e aos jovens (Movimento Escola Sem Partido [MESP], 2014).

Essa afirmação de que os pais ou responsáveis têm direito a uma educação que preserve os valores morais, religiosos e filosóficos da família não sustenta apenas as reivindicações do MESP, mas constitui também o pilar em torno do qual se articula a crescente demanda por uma educação exclusivamente domiciliar no Brasil2. Para muitos que atualmente requerem que o Estado brasileiro reconheça o regime de homeschooling como substitutivo à escolarização, é notório que professores das mais diversas disciplinas vêm pautando o seu fazer em "ideologias" que se chocam com a visão de mundo da família. Por essa razão, tal como propõe o Movimento Escola Sem Partido, seria preciso, por um lado, que se estabelecesse um maior controle sobre a forma como os docentes trabalham determinados assuntos em sala de aula; por outro, contudo, seria preciso dar respaldo legal aos pais que desejam retirar suas crianças e seus jovens das salas de aula com o fim de prover-lhes, no resguardo do lar, uma educação alinhada aos valores e às crenças familiares.

Reiteradamente sublinhado por esses movimentos que desejam um maior controle familiar sobre a escola ou que reivindicam até mesmo a possibilidade de desescolarizarmos a educação dos novos, o argumento de que os pais têm direito a que seus filhos recebam uma educação alinhada aos "valores" da família foi bastante destacado nas justificativas de voto de muitos dos ministros do Supremo Tribunal Federal brasileiro no julgamento que, em 2018, terminaria por rejeitar a regulamentação do homeschooling como alternativa legal à escolarização em nosso país3. Sublinhando que a demanda por uma educação individualizada e compatível com os valores da família colide com o caráter institucional da escola – a saber, uma espécie de corpo intermediário entre o indivíduo e o coletivo indispensável à democracia e à República, tal como ressaltado pelo ministro Celso de Mello –, os ministros da Suprema Corte destacaram, cada um ao seu modo, que uma educação plenamente desdobrada no resguardo do lar pode aprofundar a fragmentação da já fragmentada sociedade brasileira e insuflar, em função disso, as chamadas "bolhas sociais" nas quais "vicejam a intolerância e a segregação" (Brasil, 2018).

Reconhecemos nesses movimentos a proposição de um "familismo dilatado" para o qual o outro/Outro, condição não só da democracia, mas da própria subjetivação da cria humana, poderia experimentar um estreitamento de sua função. Por outro lado, sem deixarmos de afirmar a implicação da escola com produção das condições requeridas por modos mais alargados de convívio, ou seja, com a "sociabilidade democrática", perguntamo-nos, contudo: será que o projeto de uma escola que toma o sistemático exercício de problematização das "lógicas identitárias" como meio privilegiado para a promoção da experiência democrática não termina por incorrer – e isso a despeito de suas mais sinceras ambições emancipatórias – numa ilusão que acaba por nos desviar do urgente e necessário debate sobre a deflação do caráter institucional e simbólico da escola em nosso tempo? Para desdobrarmos algumas das reflexões que essa interrogação nos suscita, retomaremos, num primeiro momento, um conjunto de afirmações que estiveram em jogo na invenção da forma democrática de vivermos juntos – forma essa na qual uma escola pública, laica e obrigatória foi sonhada como instituição que se somaria à família no projeto da educação das novas gerações prolongando, sob determinados aspectos, a educação familiar e constituindo, sob muitos outros, determinadas zonas de corte em relação à educação primordial ofertada em âmbito doméstico. Atentando para alterações que marcam a passagem das sociedades de tradição para as sociedades democráticas – sociedades que, tal como destaca Gauchet (2009), são sociedades escolarizadas – destacaremos aquele que seria o traço distintivo da escola republicana, instituição comprometida ao mesmo tempo com a instrução dos novos e com a produção de uma filiação simbólica comum. Recuperar o sonho republicano não significa lamentar o desvanecimento de um passado em direção ao qual seria desejável retornar, mas sim colocar em curso uma operação metodológica que nos ajude a dar relevo ao impacto de uma série de transformações civilizatórias que abalam a instituição escolar a fim de destacar, então, os desafios que elas representam.

 

A secularização do Estado moderno e a laicização das sociedades da modernidade democrática

O declínio da autoridade do discurso religioso sobre as esferas de valor relativas ao Bem, ao Belo e à Verdade que marca o processo de secularização do Ocidente moderno e que fecunda o surgimento das sociedades laicizadas no final do século XVIII é muitas vezes concebido como causa do chamado declínio da função paterna – declínio esse cuja consequência maior seria o "recrudescimento dos dispositivos narcísicos de subjetivação" e o inevitável triunfo do individualismo (Batista, 2012, p. 21). Mas, como bem argumentará Batista (2012) na mesma obra – e nesse ponto podemos evocar que o argumento do autor é acompanhado de proposições estabelecidas por Kehl (2002) e Lajonquière (2000) –, esse processo não nos remete necessariamente à falência da função do pai, mas sim ao "sacrifício do estofo imaginário da tradição" que, no a posteriori, avaliamos, ensejou a oportunidade inédita para uma nova modalidade de laço social baseada, sobretudo, em dois aspectos (Batista, 2012, pp. 99-100).

O primeiro deles é relativo a uma nova forma de se habitar o tempo e nos remete ao deslocamento que a secularização dessas esferas de valor produziu sobre a forma como o mundo medieval constituiu seu projeto de futuro: tudo aquilo que no Ocidente cristão fora creditado à vida eterna em companhia de Deus passava, na era moderna, a paulatinamente se inscrever como aposta no porvir aqui mesmo na terra. Indissociado desse processo de "deflação da imagem de um futuro plenamente redimido" em companhia divina (Batista, 2012, p. 23), a secularização das esferas de valor provocou também o gradual esmaecimento da ideia de um porvir que se desdobra como cópia do passado, ou seja, de um tempo cuja flecha avança na medida em que se reeditam os modelos consagrados pela tradição. Atrelado a esses efeitos relativos a uma nova forma de se habitar o presente e de se projetar o futuro, o sacrifício do estofo imaginário da tradição ou, conforme a nos diz Kehl (2002), a quebra da unicidade do discurso do Outro, também individualizou, de modo progressivo, a relação do homem moderno com o Bem e com a Verdade. A consequência disso, note-se, foi a necessidade se buscar em outro lugar que não na palavra última do Pai as balizas para as escolhas subjetivas, movimento cuja consequência maior será a articulação de redes de interlocução horizontal (fraternas) capazes de engendrar novos e válidos "critérios de orientação" (Batista, 2012, p. 27) num contexto cultural em que o "essencialismo atemporal das ideias metafísicas" (Batista, 2012, p. 26) já não é mais capaz de articular as bases normativas para o campo da ação humana (Arendt, 2014). Pois é precisamente em torno da articulação entre esses planos, a saber, o arrefecimento de uma forma de conceber o futuro como promessa de redenção ou a partir das imagens de um passado que insistem em pressionar o porvir e se sobrepor ao inédito do acontecimento, por um lado, e a consequente aposta num trabalho coletivo de corresponsabilização pela invenção de um futuro cujas feições dependem do agir no presente, por outro, que Freud (1913/1976) concebe Totem e Tabu – narrativa mítica que nos remete à difícil situação de um sujeito (o moderno) que perde a proteção de um Pai capaz de fazer da filiação um destino. Totem e Tabu nos situa, em função disso, o posicionamento crítico de Freud à metafísica e seu pressuposto, a saber, a existência de uma ordem transcendente à qual estaria ligado o mundo humano.

 

"Totem e tabu": o mito da "invenção democrática"

Em "Totem e tabu", Freud (1913/1976) adota a hipótese de que a primeira forma de agrupamento humano foi a de uma horda governada soberanamente por um macho mais forte e nos convida a imaginar que, frente à tirania desse pai primevo, não teria restado outra saída aos filhos a ele subjugados senão a constituição de uma união proto-fraterna capaz de tornar viável o ato que nenhuma iniciativa individual teria logrado realizar: o parricídio. Enquanto o chefão detinha o monopólio de todo gozo possível na horda, os filhos estavam indiferenciados uns dos outros e não tinham motivos para experimentar qualquer conflito entre si; morto o pai, no entanto, eles se veem inevitavelmente confrontados com uma perspectiva ameaçadora: agora, o desejo de um pode colidir com o desejo de outro e os objetos de gozo de alguns podem ser, ao mesmo tempo, almejados por outros tantos. O fim dessa história é, então, evidente: aquele que for o mais forte e vencer todos os demais poderá reivindicar para si o lugar deixado vacante pelo pai assassinado, restaurando, outra vez, a horda paterna. Mas eis que, no intento de encontrar um outro destino para a vida em comum, os filhos decidem pactuar uma nova forma de se viver junto!

Essa encruzilhada com que se deparam os filhos órfãos depois da morte do pai primevo pode ser apreendida em filigranas no modo como Freud (1913/1976) destaca dois diferentes atos em seu mito. O primeiro deles implica a constituição de uma união entre os filhos submetidos aos caprichos do pai primevo e o consequente ato por meio do qual eles dão cabo à horda paterna: o parricídio; o segundo, relativo à elevação do pai real assassinado à condição de ancestral (totem) comum e espírito guardião do grupo, remete-nos ao estabelecimento de um pacto que restringe a liberdade individual entre os filhos órfãos e estabelece, em nome da responsabilidade pelo crime que os implica coletivamente, o princípio de equidade no acesso aos bens entre todos aqueles que se dispuserem a participar do modo de se viver junto na comunidade fraterna dali em diante4. É apenas nesse segundo tempo – e em função da Lei de restrição de gozo que o pacto institui – que um bando de filhos indiferenciados se transforma simbolicamente numa comunidade de irmãos desamparados5 mas ligados entre si pelo compromisso que cada um afirma perante o outro de respeitar a nova ordem por eles mesmos inventada. Ou seja, de preservar vazio o lugar deixado pelo pai.

A compreensão de que o trabalho coletivo de preservação desse lugar vazio implica uma ética fraterna é extensamente explorada por Claude Lefort em suas reflexões sobre a democracia. Para Lefort (1986), a democracia é uma invenção da modernidade e o que distingue as sociedades democráticas modernas das sociedades do Ancien Régime é precisamente aquilo que o autor denomina de "desincorporação do poder", ou seja, a instauração de uma forma de poder político suportado por uma Lei (a Constituição) que simultaneamente institui e é instituída por uma comunidade fraterna (comunidade de cidadãos). Na monarquia de direito divino, escreve Lefort (1986), o corpo do rei confere sustentação ao poder político na medida em que situa o "lugar" (imaginário) no qual se articulam os fundamentos teológico-políticos que conferem a unidade do reino. No corpo do rei, do mesmo modo, estão alojados os marcos de certeza (repères de certitude) que a invenção democrática irá então depor:

mediador entre os humanos e as instâncias transcendentes que figuravam a soberana Justiça e a soberana Razão, ele [o Príncipe] condensou em seu corpo, ao mesmo tempo mortal e imortal, o princípio da origem e da ordem do reino. Seu poder era signo de um polo não- condicionado, extra-mundano. [...] Incorporado no príncipe, o poder dava corpo à sociedade. (Lefort, 1986, pp. 27-28).

Afirmar a fraternidade como uma ética é, portanto, afirmar a responsabilidade da fratria órfã e desamparada com a preservação do lugar do pai como um lieu vide (lugar vazio), algo que exige a constante "recordação", pelos irmãos, da orfandade que os condena a um trabalho sem fim e sem descanso que não é senão o da "reinvenção de uma aliança igualitária de direitos" (Lajonquière, 2000, pp. 70-71, grifo nosso). Ou, dito de outro modo, a democracia teria a sua sorte lançada no trabalho de corresponsabilização pela invenção de um mundo cujas feições não podem ser o efeito senão da ação política - algo que não implica a perda da referência da autoridade simbólica do pai, mas um trabalho que precisará ser feito em seu Nome. É nesse sentido, pois, que Freud não poderá prescindir da referência a uma instância terceira no interminável e coletivo trabalho de "atualizarmos" o ato de invenção da comunidade fraterna uma e outra vez no curso do tempo histórico; e é por essa razão, também, que não identificaremos, na psicanálise, qualquer referência a uma "plena maioridade" dos irmãos: dependemos de um pai (totem) comum para reinventarmos tal aliança. Nessa perspectiva, a fraternidade não nos encaminha a qualquer afirmação baseada num "igualitarismo" especular, tampouco se reduz às apelações afetivas associadas ora à família de sangue, ora à família cristã, mas demarca eticamente um projeto civilizatório inédito: a proposição, na forma da lei constitucional, de dispositivos de Estado comprometidos com um projeto de vida em comum centrado no princípio da igualdade de direitos, por um lado, e, por outro, na afirmação da equidade face à Lei6 – questão absolutamente sensível no sonho republicano de uma escola laica, obrigatória, para todos e implicada com a promoção de uma filiação comum:

Com a consolidação da necessidade social da escolaridade, ou ainda, com a cristalização da 'instituição de sequestro' que definiria a escola moderna [...] a figura social do pai seguiria então experimentando um ininterrupto esmaecimento ao longo de toda a Era Moderna, o que por fim culminaria, no século XVIII, com a institucionalização da escolaridade pública sob o signo do parricídio. (Batista, 2012, p.136).

Foi precisamente em defesa dessa escola que Condorcet, filósofo e matemático que desempenhou um importante papel no desenho das políticas educacionais da emergente França republicana, proferiu um memorável discurso perante a Assembleia Legislativa francesa em meio aos acalorados desdobramentos da Revolução, no ano de 1792. Afirmando a "instrução pública" como condição da realização concreta dos ideais formulados três anos antes na Déclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen (1789), Nicolas de Condorcet (1791/1994; 1792/1989) destaca o caráter emancipatório da escolarização reconhecendo-o como via princeps do desenvolvimento da razão dos indivíduos e, por isso, como condição primeira da experiência cidadã – experiência essa que é calcada, ao mesmo tempo, na liberdade7 e na igualdade política e de condições entre os indivíduos. Segundo Condorcet , a desigualdade de instrução constitui a principal fonte da tirania, sendo vã, por isso, a declaração de que os homens são livres e iguais caso não seja possível a constituição, pelo Estado, de um dispositivo implicado em tornar popular o exercício da razão e, ao mesmo tempo, em responsabilizar-se pela correção das desigualdades que advêm da origem de cada indivíduo - correção essa que torna justa a ideia de que as futuras competições travadas entre os indivíduos na esfera pública venham a ser decididas conforme os méritos de cada um8.

Por temer, contudo, que esse projeto de escolarização em massa conduzido pelo Estado incorresse num programa de doutrinação a serviço de interesses transitórios e não republicanos, Condorcet afirma, bem ao modo de um liberal democrata, que o poder público "não pode estabelecer um corpo de doutrinas para serem ensinadas com exclusividade" (Condorcet, 1791/1994, p. 39) e "nem deve ter a autoridade para impedir o desenvolvimento de novas verdades e o ensino de teorias contrárias à política particular ou a seus interesses momentâneos" (Condorcet, 1792/1989, p. 9). Como a educação dos novos não corresponde, pois, à catequização dos espíritos em formação, a escola laica, obrigatória e para todos passará a ser controlada pela Société Nationale de Sciences et des Arts e deverá ser conduzida por homens de saber que o Estado reconhece como agentes da República (uma espécie de "guardiões das Luzes") implicados com a preservação das condições requeridas ao livre pensar – algo que depende da preservação de um espaço protegido de toda forma de dogmatismo e que seja, por isso, autônoma em relação à autoridade religiosa e aos governos de plantão. Assim, se no Antigo Regime a educação se desdobrava primordialmente conforme os interesses privados e de classe, "dentro de fronteiras intangíveis" e "sob o signo de uma verdade transcendente da qual a igreja era a depositária" (Lefort, 1999, p. 210), o processo de estatização do ensino e a consequente substituição de um corpo docente religioso por um corpo secular fará com que a instrução escolar agora precise realizar-se em nome de "princípios falíveis" e, ao mesmo tempo, "em razão do interesse público" (Batista, 2012, p. 109).

Transformada em preocupação de primeira ordem, o compromisso público com a instrução de todos se impõe, por isso, como um dos principais vetores da política do progresso baseada na difusão das Luzes: uma instrução pública elementar constitui um imperativo "sagrado" para uma nação de cidadãos. Mas a realização dessa comunidade de direito não pode ser vislumbrada como mero efeito da instrução dos novos, visto que implica, para além da "popularização" do exercício da razão, a filiação dos indivíduos particulares a um conjunto de regras referentes ao pacto democrático e republicano – ou, se preferirmos, a filiação do coletivo de cidadãos a um totem comum que simbolicamente demarca o campo dos interditos na comunidade fraterna. Essa filiação ao coletivo situa, no ideário republicano, a própria condição da individuação dos sujeitos.

Eis, nesse ponto, a ambiguidade que o sonho republicano comporta: por um lado, essa escola que a invenção democrática engendra operaria com uma noção de conhecimento ativo e metódico - e por isso individualizante, posto que centrado no sujeito da razão. Assim, o que nas sociedades de tradição se associa à incorporação/introjeção "passiva" de conteúdos e de formas (de comportamento, de pensamento, etc.) validadas pela autoridade de um passado que opera como referência do devir temporal e ao qual, portanto, as sucessivas gerações devem se reportar em atitude de deferência, a escola moderna substitui pelo "emprego de uma mediação reflexiva" sustentada por um sujeito ativo em sua aprendizagem e possibilitada pela moderna noção de método (Blais, Gauchet & Ottavi, 2014). Mas haveria, por outro lado, um conjunto de "disposições" que os sujeitos só podem adquirir por vias que não se reduzem à mera instrução. Pode-se desenhar, a partir daí, o que seria relativo a um plano de instrução laica e pública e aquilo que, por outro lado, dirá respeito a uma educação nacional implicada com a produção de um comum onde bem poderia haver somente um agregado de solipsistas dedicados a simplesmente reivindicar a livre expressão de suas individualidades. O imperativo republicano é, pois, a filiação a uma lei comum como meio de conquista do exercício da individualidade. É em relação a esse ponto, destacamos, que podemos situar a deflação simbólica do caráter institucional da escola – caráter esse que pode ficar à mercê do "familismo" que recrudesce entre nós. Motivo pelo qual poderíamos afirmar que a educação escolar situaria, pois, um tipo muito particular de relação, a saber, a relação institucionalizada entre educadores e educandos e as exigências de socialização que essa relação encarna. De acordo com Blais, Gauchet e Ottavi (2002), é sob o ângulo desse compromisso entre instrução e socialização - compreendida como a mediação que a escola exerce para a constituição do sujeito (no) coletivo - que se pode escrever a história da instituição escolar.

A socialização designa, em grandes linhas, dois aspectos. O primeiro nos remete à capacidade mais ou menos efetiva de se dominar os códigos e os jogos em torno dos códigos num determinado contexto social, ou seja, de se operar "dentro de um determinado quadro relacional" que tem regras e interdições específicas; o segundo, por outro lado, refere-se ao "efeito de integração ou de não-integração", ou mesmo de "exclusão/segregação, produzido pela inserção em uma lógica relacional" (Petitat, 2011, p. 369). Socializar-se, nesse sentido, significa adquirir as condições para poder-se habitar ou transitar (n)um contexto particular9. Nas sociedades escolarizadas, tal processo começa na família e se estende às experiências que os pequenos e os jovens desdobram na escola – as duas instituições implicadas com a socialização primária dos novos. Para situarmos um pouco melhor essa dimensão institucional da escola republicana e o modo como a socialização pela qual ela se vê responsável dirá respeito à produção de uma filiação comum, sublinhemos algumas características que diferenciam a socialização nas sociedades de tradição da socialização nas sociedades escolarizadas.

 

A socialização nas sociedades de tradição

A referência à "tradição" ou às "sociedades de tradição" designa, aqui, as formações sociais em que i) os modelos do passado operam como uma espécie de "baliza" para o acontecimento dos novos (Blais et al., 2014) e em que ii) uma espécie de força coercitiva ancestral constitui o princípio organizador do coletivo. Esse princípio, destacamos, será profundamente abalado pelas mutações civilizacionais que decorrem do surgimento das sociedades laicizadas e escolarizadas no final do século XVIII – sociedades essas nas quais uma escola obrigatória e para todos dividirá com a família a educação das novas gerações, ocupando-se, também ela, da constituição daquele conjunto de "disposições" éticas e, por que não, psíquicas, requeridas pela vida em comum na polis democrática.

Nas formações sociais regidas pela lógica da tradição, cada sujeito se encontra, desde antes de seu nascimento, virtualmente integrado a uma ordem familiar e social hierarquizada e de tal modo perene que aquilo que seria relativo à sua "individualidade" tende a ser neutralizado pelos papéis que lhe são assignados pelo lugar de seu nascimento e que são, por isso, indiferentes às vicissitudes do "seu" desejo. A tradição, escreve Blais et al. (2014), implica a obediência dos novos aos modelos e aos costumes ancestrais, colocando em jogo um conjunto de códigos e de interditos que determinam o acontecimento individual e circunscrevem a ordem a ser preservada de modo mais ou menos idêntico no devir do tempo. Num contexto como esse, a socialização dos novos passa pela partilha da vida cotidiana das crianças e dos jovens com os adultos, o que faz com que o processo de transmissão simbólica entre as gerações se desdobre primordialmente nos termos daquilo que Nóvoa (1991) concebe como uma "impregnação cultural" relativa à coexistência entre os novos e os velhos – processo que virá a ser "amplamente distinguível da intenção explícita e metódica do modo moderno de educar a infância" (Batista, 2012, pp. 100-101). De modo bastante próximo à descrição de Nóvoa (1991), Blais et al. (2014) destacam que a educação no contexto da tradição compreende a transmissão dos "códigos elementares que presidem a coexistência, toca as crenças compartilhadas e os conhecimentos de todas as ordens, do mundo natural ao universo sobrenatural", de forma que tanto o savoir-faire quanto o savoir-vivre dos novos estejam baseados sobretudo na "imitação, pelos novos, dos modelos ancestrais dos velhos" (Blais et al., 2014, p. 21). Ainda no que diz respeito à educação nas formações sociais tradicionais, não se deve deixar de destacar o fato de o discurso religioso e as construções míticas cumprirem a função de explicar por que as coisas são como são e de transmitir, aos novos, as narrativas coletivas que conferem um sentido para a vida e para a morte e que explicitam as interdições necessárias à preservação do laço social, servindo de baliza para as ações morais. Pois é precisamente a partir do modo como se dá a filiação simbólica nas sociedades tradicionais que poderemos, então, compreender as principais mutações civilizacionais que marcam o advento das sociedades da modernidade democrática e da figura do "indivíduo" – mutações essas que promoverão um conjunto de alterações na educação das crianças.

 

A socialização nas sociedades escolarizadas

Ponto de articulação entre o biológico e o social10, a família foi considerada, até meados do século XVIII, não só a base de todo processo educativo, mas também de toda organização comunitária. Mas as coisas mudaram significativamente a partir do momento em que a organização da polis democrática moderna já não podia mais ser concebida como "espelho" de uma grande família subordinada a um chefe que protege, interdita ou autoriza conforme seus princípios (Lajonquière, 2000). A partir de então, a família passa a ser o núcleo de expressão da intimidade e da afetividade face à universalidade dos princípios que regem a esfera pública, fato que terminará por obrigá-la a dividir a educação dos novos com o Estado. Obrigatoriamente.

Note-se, contudo, que a família não deixa de ser, na modernidade, a instituição encarregada por acolher os pequenos neste mundo e por transmitir a eles as chaves de um tempo-espaço que lhes é anterior e que já se encontra, por isso, estruturado simbolicamente; mas a transmissão familiar, aqui, já não é suficiente para o acontecimento do sujeito moderno – fato que confronta a família com a responsabilidade pelo desdobramento de uma primeira educação cujo horizonte deverá apontar, então, para a emancipação daqueles que, por algum tempo, ela manteve sob sua tutela. Em outros termos, a herança simbólica veiculada em primeira instância pela família já não mais poderá determinar o acontecimento de um sujeito que, doravante, terá de "decidir" o seu destino conforme o horizonte de seus interesses e de acordo com as feições de seu desejo – desde que dentro dos limites estabelecidos por um direito comum. É nesse sentido que se afirma que o sujeito das formações sociais modernas seria mais livre – e mais desamparado - do que aquele engendrado nas teias da tradição:

Nas sociedades tradicionais, a falta-a-ser era camuflada pela estabilidade das estruturas simbólicas que conferiam às pessoas um lugar, um nome e um destino referendado pela comunidade e dificilmente modificável ao longo da vida. Era mais possível a alguém representar-se como idêntico a seu nome, isto é idêntico ao nome herdado de seu pai (Kehl, 2002, p. 40).

A quebra, ou o enfraquecimento das tradições na modernidade torna esse desamparo ainda mais dramático, pois as tradições [...] são os suportes da transmissão da Lei, na interface entre o Imaginário e o Simbólico. No plano imaginário, as narrativas, lendas e mitos tinham a função de nomear a origem e a razão de ser das prescrições tradicionais, além de situar os criadores desta num passado ancestral. Desse modo, é facilitado o reconhecimento do valor particular de cada um, além de seus direitos e deveres. Tudo isso faz a função de destino para um homem: do que é objeto de escolha, do que já estava decidido antes mesmo do seu nascimento. Na interface entre Simbólico e Imaginário, a tradição oferece alguma consistência ao ser e alguma estabilidade à verdade, proporcionando sentido e direção à vida dos homens" (Kehl, 2002, pp. 68-69).

Diferentemente do que ocorre nas formações sociais regidas pela tradição, nas quais a filiação simbólica dos sujeitos passa pela transmissão, operada pela família, "de um nome, de um lugar e de um destino" que são "referendados pela comunidade e dificilmente modificáveis ao longo da vida", nas sociedades da modernidade democrática a filiação a uma ancestralidade já não pode determinar – ao menos não de modo tão imperativo – o campo de possibilidades para o acontecimento simbólico do sujeito (Kehl, 2002, p. 40). Sobre isso, destaca Gauchet:

A gravidade do passado, a força do modelo da aprendizagem, da familiarização forçada com uma intangível tradição tem, num primeiro momento e por muito tempo, ocultado o que o novo estilo de formação comportava de ruptura na determinação social de seu alvo – o sujeito racional – e o projeto implicado em seu desenvolvimento – a revelação da potencia universal no homem, e não mais simplesmente o acesso ao domínio de uma ordem dada. (Gauchet, 2009, p. 133).

Se nas sociedades de tradição a socialização fornece aos novos os meios de eles se integrarem aos lugares a eles assignados por um coletivo antes mesmo do nascimento, nas sociedades democráticas situamos, então, um deslocamento: agora a socialização terá de prover os novos com os meios requeridos a uma "individuação" cujo processo implica o laço a um coletivo que se reconhece órfão, mas não carente de pai11. Esse modo de socialização está na base da instituição escolar moderna.

Pautadas pelo princípio do contrato entre indivíduos livres e iguais, as sociedades escolarizadas impõem à família a obrigação de dividir o projeto de educação dos pequenos e dos jovens com a escola, dispositivo implicado ao mesmo tempo com instrução das novas gerações e com a transmissão, a elas, dos códigos de um mundo extrafamiliar no qual os projetos de realização pessoal precisarão se desdobrar dentro de limites impostos pelas instituições de direito comum. Destinados a entrar, com a maioridade, no mundo profissional e a participar, com o seu quinhão de contribuição, do fazer político que modela a forma do viver junto numa comunidade de cidadãos, os novos devem aprender a abstrair suas particularidades e a pautar as suas condutas conforme os tabus e os interditos pronunciados em nome de um pai "espiritualizado". A escola, então, será concebida como instituição responsável por contribuir, junto com a família, com a transmissão dos códigos desse mundo e por preparar os pequenos para nele se moverem – o que não necessariamente implica a escolarização estatal e sim um decidido controle geral e extrafamiliar da ação adulta sobre a infância (Batista, 2012). Assim, se o destino de um sujeito era, outrora, determinado sobretudo por sua filiação à tradição veiculada em primeira instância pela família, agora ele deverá ser inventado – e com toda a carga de desamparo que isso implica – num mundo que não se restringe ao quintal familiar. Afinal, escreve Lefort, "na cidade é que o indivíduo se realiza" (Lefort, 1999, p. 212). E como a senha para esse mundo já não pode ser obtida apenas de mãos familiares, ela deve chegar-lhe por meio de uma segunda filiação.

É nesse sentido que poderíamos dizer, com Gauchet, que a escolarização nas sociedades democráticas modernas desdobra-se, pois, a partir de um "ponto de articulação, por excelência problemático, entre a afirmação dos direitos individuais e a necessidade da regulação coletiva" (Gauchet, 2009, p. 130), motivo pelo qual a originalidade dessas sociedades consiste no fato de a orientação individualizante da educação não dissimular a presença de uma necessária coerção coletiva. Seria em função disso, também, que o imperativo paradoxal ao qual a escola moderna acaba por ter que responder remeter-nos ao seu compromisso em promover a filiação dos sujeitos à lei comum – condição de acesso à afirmação das diferenças que lhes constituem. Afinal, é pela produção do comum que o singular pode encontrar seu lugar. "Eis porque, retrospectivamente, a República é tão bela: ela estende o emblema disso que, com efeito, nos falta, a saber, o liame bem-sucedido, e bem-sucedido notavelmente na escola e pela escola, entre inscrição social e direito dos indivíduos" (Gauchet, 2009, p. 136).

 

Considerações de enlace

No jogo da polarização destacada no começo deste trabalho, preceitos como os do Movimento Escola sem Partido (que reivindica o controle ideológico da educação escolar e do fazer docente) e como os sustentados pela Associação Nacional de Educação Domiciliar (que reivindica a prática do homeschooling como substitutiva à escolarização obrigatória) podem ter como efeito a suspensão da função socializadora da escola: nas sociedades democráticas, o dispositivo da escolarização contribui com a preservação de uma certa zona de tensão intransponível entre aquilo que é relativo à esfera privada e aquilo que diz respeito à esfera pública. Afinal, como pensar um coletivo que já não ofereça qualquer resistência às demandas e aos caprichos inerentes às formas privadas de gozo? No outro polo, a perspectiva que aqui podemos denominar de "desconstrucionista", em que pese nossa adesão ao ideal democrático que a norteia – nossa e daqueles que comungam com o ideário republicano –, parece-nos, por vezes, tomar um caminho que a desvia de seus fins. Buscando interpor uma pausa frente à pressão que atualmente nos impele a aderir rápida e integralmente a um dos lados dessa disputa, procuramos, com esse percurso, sustentar o convite para a se deslocar o epicentro desse debate e a se erigir em seu cerne um pensamento sobre a educação para a sociabilidade democrática a partir de algumas considerações sobre a implicação da escola com a fragilidade do laço fraterno. É nesse sentido que nos parece urgente que nos perguntemos se a polarização que mapeamos não estaria nos desviando do debate sobre a deflação simbólica da escola, ou seja, sobre o estreitamento de seu caráter institucional – debate que não se restringe ao campo educacional, mas que diz respeito ao esvaziamento da esfera pública tão bem mapeado por Hannah Arendt em A Condição Humana. Com nosso percurso, quisemos levar o leitor a perguntar-se, conosco, se a discussão sobre a inclusão – ou não – de temas relativos às identidades e às diferenças no currículo como meio privilegiado para a promoção da transmissão da experiência democrática não acabaria por operar, em nosso tempo, como algo que insufla uma tensão que nos dispersa (e que nos dispensa!) do debate sobre a potência da escola em termos da promoção da democracia e da "sociabilidade" que lhe seria correspondente. Em que pese a importância de um sistemático exercício de problematização das lógicas identitárias que certamente fazem resistência a modos mais fraternos e "alargados" de convívio, será que podemos situar como necessária consequência desse exercício a promoção, pela escola, de uma "sociabilidade democrática"? Os elementos escolhidos para dar corpo a esse trabalho nos inclinam a afirmar que o horizonte da democracia fica mais próximo se formos capazes investir coletivamente numa escolarização implicada com a reinvenção da aliança fraterna – algo que, claro, exige que possamos coletivamente afirmar nossa condição de desamparo. Os preceitos dessa aliança remetem-nos tanto aos primórdios míticos de uma coletividade sustentada por um referente simbólico cuja consistência é relativa a um pacto horizontal quanto àquilo que marca o espírito das leis da polis democrática forjado sob o signo da revolução republicana (Lajonquière, 2000).

Num país com profundas feições oligárquicas, notavelmente marcado pela lógica segregadora dos condomínios e no qual os valores da República são constantemente invocados para que quase nada mude de lugar , uma afirmação de Lajonquière (1999) nos parece fundamental. Ao apontar para algumas das nossas mais caras ilusões (psico)pedagógicas, Lajonquière nos ajuda a não reduzir o horizonte da educação para a experiência democrática ao jogo das moralidades que parecem marcar nosso tempo – moralidades que podem guardar consigo a melhor das intenções. Nesse sentido, destacamos que há pelo menos um modo de incorrer nessa redução: refirimo-nos às ações educativas que partem da suposição de que há meios adequados (o currículo, os temas transversais, etc.) para se alcançar um fim desejado (no caso, o aprofundamento de uma ética fraterna, de uma sociabilidade democrática). Essa ilusão se sustenta basicamente numa desconsideração – a de que o que pode, de fato, instaurar modos mais fraternos de vivermos juntos é o compromisso da escola e de seus agentes com a veiculação das leis que fundam a polis democrática. Essas leis, tal como bem nos lembra Lajonquière (2000), não são a Lei, mas transmitem o seu espírito.

 

Referências

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Recebido em agosto de 2020 – Aceito em novembro de 2020.

 

 

1 Destacamos, aqui, a diferença entre "socialização" como noção que nos encaminha, tal como veremos adiante, ao processo por meio do qual os novos se socializam, de "sociabilidade democrática": "Entendida em sentido amplo, a democracia é uma forma de sociabilidade que penetra em todos os espaços sociais" (Brasil, 1997, p. 19). A sociabilidade democrática, aqui, é relativa a uma determinada ética balizadora da produção da partilha da esfera pública.
2 Segundo dados da Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED, 2019), organização sem fins lucrativos fundada em 2010 em torno da "defesa do direito da família à educação domiciliar", a busca pela modalidade da educação domiciliar teria crescido mais de 2.000% entre os anos de 2011 (230 famílias) e 2018 (7.500 famílias). (ANED, 2019).
3 O art. 6 das Leis de Diretrizes e Bases (Brasil, 1996) dispõe sobre o dever dos pais ou responsáveis de efetuar a matrícula das crianças em escolas públicas ou privadas; o art. 249 do Estatuto da Criança e do Adolescente afirma que os pais ou responsáveis que não matriculam os filhos em idade escolar na rede regular de ensino descumprem "dolosa ou culposamente os deveres inerentes ao poder familiar" (Brasil, 1990); já no art. 246 do Código Penal, por outro lado, encontramos a afirmação de que é crime de "abandono intelectual" deixar de prover a educação primária ao filho em idade escolar (Brasil, 1940).
4 Esse laçoque a Lei simbólica produz entre eles como efeito de uma responsabilidade compartilhada não deve ser considerado, por isso, como algo de pouca relevância quando consideramos o desamparo em que se encontram os membros da comunidade fraterna, pois é no laço que se sustentará a perspectiva de proteção mútua e de solidariedade entre eles.
5 Na presença do pai da horda, os filhos não tinham qualquer necessidade de decidir os seus destinos. O desamparo que cada membro da fratria experimenta é, pois, relativo à experiência de eles se reconhecerem como sujeitos desejantes e coletivamente responsáveis pela construção de um destino não definido pelos desígnios paternos.
6 Lembra-nos Voltolini: "equidade é uma noção de caráter eminentemente simbólico, já que exige a existência de um terceiro elemento perante o qual o eu e o tu se veem referidos" (Voltolini, 2015, p. 225).
7 Como via de realização da liberdade, a concepção de instrução, em Condorcet (1791/1994; 1792/1989), implica aquilo que a iluminista noção de autonomia coloca em jogo: ser livre significa não estar assujeitado a outrem - condição a que o indivíduo só pode aceder por meio da conquista dos meios requeridos ao livre pensar e, tal como veremos, através de sua inscrição num coletivo.
8 Corrigidas as desigualdades de origem que estão na base da competição injusta, cada cidadão deverá, então, "inventar o seu nome" na esfera pública conforme seus próprios méritos. Isso nos remete a uma universalização dos direitos e, portanto, à noção de "mobilidade social". Diferentemente da fraternidade cristã que afirma uma fratria universal – somos todos irmãos em Cristo – sem qualquer destaque para a questão da igualdade de nossas condições de vida, a concepção republicana da fraternidade baseia-se numa afirmação ética que serve de inspiração ao agir político.
9 A socialização dos novos se desdobra nas distintas modalidades de relação que as crianças e os jovens mantêm, ao longo do tempo, com os adultos e os pares que lhe são próximos (apenas para citar os meios mais convencionais de socialização, posto que seria possível também pensarmos em novas modalidades de socialização que as relações virtuais ensejam), algo que torna a noção associada não a eventos pontuais e finitos, mas a um processo que se estende no tempo.
10 Quando falamos em família, aqui, referimo-nos, na companhia de Lacan, a uma instituição cuja forma varia no tempo, mas cuja função permanece constante no curso da história (Lacan, 1938/2002). O que Lacan nos ajuda a vislumbrar com essa afirmação é que as sucessivas transformações da forma como a família se realiza no transcorrer do tempo em nada alteram aquela que é, desde sempre, a sua função primordial: a inscrição do sujeito no campo da linguagem, plataforma sobre a qual se assentarão as operações de "transmissão da cultura" (Lacan, 1938/2002, p.13). Independentemente de sua forma (e aqui podemos evocar a forma primitiva da família, na qual os laços de parentesco não se definem pelo sangue, mas como consequência de uma filiação totêmica comum; ou, ainda, a família patriarcal-nuclear, forma que se manteve como uma espécie de "célula-mãe" da sociedade burguesa ocidental por quase dois séculos, mas que vem dando lugar, em nosso tempo, a configurações que desconstroem a centralidade do modelo e da moralidade engendrada pela forma anterior), a família é, então, uma instituição cuja função persiste no tempo porque onde quer que tenha havido alguma forma de civilização humana, houve adultos que se responsabilizaram pela filiação simbólica dos novos de forma intransferível e independentemente dos laços consanguíneos entre as gerações. Sobre a variabilidade dos contornos da instituição família ao longo dos tempos, remetemos o leitor ao livro História social da criança e da família, de Philippe Ariès (1986).
11 Teríamos, nesse ponto, uma sutil mas importante diferença entre um sujeito que se "individua" inscrevendo-se num comum e o processo de um individualismo crescente que afirmará um sujeito capaz de se auto-engendrar.
Revisão gramatical: Vicente de Souza Cardoso Júnior
E-mail: vicentecardoso@gmail.com

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