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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.25 no.3 São Paulo May./Dec. 2020

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v25i3p407-422 

10.11606/issn.1981-1624.v25i3 p407-422

DOSSIÊ

 

Segregação do desejo na "escolha" profissional e seus impasses subjetivos no trabalho docente

 

La segregación del deseo en la "elección" profesional y sus impases subjetivos en el trabajo docente

 

The segregation of desire in professional "choice" and its subjective impasses in teaching work

 

Ségrégation du désir dans le « choix » professionnel et ses impasses subjectifs dans le travail de l'enseignant

 

 

Bionor Rebouças Brandão NetoI; Maria de Lourdes Soares OrnellasII

IPsicólogo. Professor substituto no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA- Campus Salvador), doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade na Universidade do Estado da Bahia, Salvador, BA, Brasil. E-mail : bionorbrandao@gmail.com
IIPsicóloga e psicanalista. Professora Titular da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Salvador, BA, Brasil. E-mail: ornellas1@terra.com.br

 

 


RESUMO

O artigo tematiza a importância do trabalho como meio de afirmação para o sujeito em sua inscrição no circuito da construção civilizatória. Problematiza a investigação da atividade docente, convocada a um processo de ressignificação em um cenário em que as escolhas profissionais parecem cada vez mais apartadas do desejo e assentadas em promessas de satisfação desvinculadas da história de cada qual. Por meio da interrogação de fragmento de caso clínico e de comentários extraídos da internet, o objetivo do texto é lançar questões sobre os impactos do atual imperativo de gozo nas escolhas profissionais e na atuação docente. Conclui-se que a formação universitária, em um pacto com a pesquisa, precisa encontrar meios de transcender a lógica da sobrevivência e subsistência e recuperar o que se encontra na essência da palavra.

Palavras chave: trabalho e laço social; autoria docente; segregação do desejo; pesquisa; universidade.


RESUMEN

El artículo discute la importancia del trabajo como medio de afirmación del sujeto en su registro en el circuito de la construcción civilizadora. Problematiza la investigación de la actividad docente, convocada a un proceso de reencuadre en un escenario en el que las elecciones profesionales parecen cada vez más separadas del deseo y basadas en promesas de satisfacción ajenas a la historia del otro. Mediante el interrogatorio de un fragmento de un caso clínico y comentarios extraídos de internet, el objetivo del texto es plantear interrogantes sobre los impactos del imperativo actual del disfrute en las elecciones profesionales y el desempeño docente. Se concluye que la formación universitaria, en pacto con la investigación, necesita encontrar caminos para trascender la lógica de la supervivencia y la subsistencia y recuperar lo que se encuentra en la esencia de la palabra.

Palabras clave: trabajo y vínculo social; autoría docente; segregación del deseo; pesquisa; universidad.


ABSTRACT

The article discusses the importance of work as a means of affirmation for the subject in his registration in the circuit of civilizing construction. It problematizes the investigation of teaching activity, summoned to a process of reframing in a scenario in which professional choices seem increasingly separated from desire and based on promises of satisfaction unrelated to each other's history. Through the interrogation of a fragment of a clinical case and comments extracted from the internet, the objective of the text is to raise questions about the impacts of the current imperative of enjoyment on professional choices and teaching performance. It is concluded that university education, in a pact with research, needs to find ways to transcend the logic of survival and subsistence and recover what is found in the essence of the word.

Keywords: work and social bond; teaching authorship; segregation of desire; research; university.


RÉSUMÉ

Cet article a pour propos l'importance du travail comme moyen d'affirmation du sujet pour son inscription dans le circuit de la construction civilisatrice. Il problématise l'investigation de l'activité d'enseignement, convoquée à un processus de ressignification dans un contexte où les choix professionnels semblent de plus en plus séparés du désir et basées sur des promesses de satisfaction sans lien avec l'histoire de chacun. Au moyen de l'étude d'un fragment de cas clinique et de commentaires retirés d'Internet, ce texte a pour but de soulever des questions sur les impacts de l'actuel impératif de jouissance sur les choix professionnels et sur la pratique de l'enseignement. La conclusion est que la formation universitaire, en coopération avec la recherche, doit trouver des moyens d'aller au-delà de la logique de survie et de subsistance et de retrouver ce que renferme l'essence du mot.

Mots-clés: travail et lien social; devenir auteur enseignant; ségrégation du désir; recherche; université.


 

 

"Nenhuma outra técnica para a condução da vida prende a pessoa tão firmemente à realidade como a ênfase no trabalho, que no mínimo a insere de modo seguro, numa porção da realidade, na comunidade humana". Essa frase é um fragmento de uma nota de rodapé do texto "O mal-estar na civilização" na qual Freud também ressalta que a possibilidade de:

deslocar para o trabalho e os relacionamentos humanos a ele ligados uma forte medida de componente libidinais – narcísicos, agressivos e mesmo eróticos – empresta-lhe um valor que não fica atrás de seu caráter imprescindível para afirmação e justificação da existência na sociedade. A atividade profissional traz particular satisfação quando é escolhida livremente, isto é, quando permite tornar úteis através da sublimação, pendores existentes, impulsos instintuais subsistentes ou constitucionalmente reforçados. E, no entanto, o trabalho não é muito apreciado como via para a felicidade. A imensa maioria dos homens trabalha apenas forçada pela necessidade, e graves problemas sociais derivam dessa aversão humana ao trabalho (Freud, 1930/2011, p.24).

Com base nessa perspectiva, o presente escrito parte de um recorte de caso clínico e de comentários extraídos da internet para pensar o valor do trabalho para a constituição de laço social, e como a segregação do desejo na "escolha" profissional configura desafio à atividade docente em nossos tempos.

As "escolhas" por cursos universitários parecem assentadas em uma promessa de satisfação muitas vezes desvinculada da história de cada um. É como se a profissão estivesse apartada da história do sujeito, já o privasse de antemão de qualquer promessa de realização, e já previsse uma ação (caso se chegue a uma atuação profissional na área de formação) desprovida de inscrição subjetiva e balizada pela necessidade, culminando com o expurgo do desejo. É nesse momento que recai sobre o docente (aqui em especial aquele que atua no ensino superior) a necessidade de interrogar esses estudantes sobre o seu desejo e adaptar o seu fazer frente a um corpo discente em que muitos estão ali sem desejo, alguns com sérios déficits em sua escolarização, e outros que pelas condições socioculturais tendem a permanecer em estado de exclusão, visto que as políticas públicas conquistadas nas últimas décadas embora ofereçam o acesso às universidades, sozinhas, não são capazes de garantir a permanência desses estudantes no ensino superior ou mesmo de dar acesso ao saber, sem que docentes e instituições se reinventem.

Parece-nos, então, que o docente no ensino superior é, mais do que nunca, convocado a assumir a postura de autor e criador do seu fazer em uma espécie de pacto com sua função social, bem como com o resgate da função da universidade. Ocorre que podemos aqui cair em um fosso se pensarmos: e quando o próprio professor não encontra, ou não mais encontra meios de sublimação pela sua atividade profissional? Por isso revisitaremos trabalhos no campo da Psicanálise e Educação que por intermédio da modalidade de pesquisa utilizada têm ofertado caminhos de significação ou ressignificação da atividade docente.

Em atenção ao delicado momento social no qual surge o presente escrito1, levantaremos questões sobre medidas em ação que reforçam a segregação na educação em virtude das suspensões das aulas presenciais.

 

O trabalho e a justificação da existência

O trabalho cada vez mais é regido pela necessidade ou pelo anseio por estabilidade, fato que contribui para a denegação do desejo na atuação profissional.

A relação laborativa perpassa um afeto ambivalente: a operação pela qual o sujeito desloca componentes libidinais para o trabalho, conferindo-o inscrição no circuito da construção civilizatória, só alcança tal feito se o trabalho for vivenciado como gerador de satisfação. Essa díade sujeito e trabalho circula entre o desejo, as pulsões e as exigências sociais, o que contribui para dificultar o limiar de sucesso de tal operação. O laço que se articula do sujeito com o trabalho revela-se a cada tempo mais inquietante na medida em que os impasses psicossociais não oferecem lugar para a manifestação do desejo.

O modelo capitalista afeta sobremaneira aquele que faz do trabalho um ofício quando lhe retira uma libra de carne, expressão utilizada por Lacan no Seminário da Angústia, ou seja, o sujeito tem que se submeter, consentir em perder um pedaço de si, o que o torna um resto de ser, moeda de troca da relação capital-trabalho. Neste cenário, o trabalho é movido pela regra do aqui e agora, o que dificulta ao sujeito exercitar sua identidade profissional. Assim posto, a profissão passa a ser desfacelada, fragmentada, o que obstrui sua inscrição simbólica para o sujeito.

Pensemos que inicialmente um dos grandes dilemas do sujeito consiste em identificar-se ou não com o(s) desejo(s) que os pais têm sobre ele no que tange à sua carreira/profissão. Quando ocorre a identificação é ótimo no sentido de evitar delongas. Seguir a profissão desejada pelos pais sem se identificar com ela é correr o sério risco de percorrer caminhos frustrados e alienados a esse seu "destino", uma das queixas que muitas vezes povoam os divãs dos analistas. Apartar-se do desejo dos pais e conseguir construir seus próprios caminhos parece ser uma saída com efeitos interessantes. Ocorre que, com base nos construtos psicanalíticos, evidencia-se que só se é possível saber o que fomos ou o que fizemos a posteriori.

De qualquer forma, a reprodutibilidade dos processos de pensamento ultrapassam amplamente as indicações de qualidade; eles podem tornar-se conscientes a posteriori, embora o resultado de uma passagem de pensamento talvez deixe rastros com maior frequência do que as suas etapas intermediárias. (Freud, 1895/1996, p.435)

No que se refere a esse "só depois", Quinet (2009), observa, com base nas proposições lacanianas, que é por intermédio da pontuação feita pelo analista no texto do analisante, que o discurso comum é transformado em manifestação do inconsciente, bem como o sentido de uma frase dar-se-á somente após o término desta. Ao final da frase, encontra-se o sentido do início da mesma por retroação. Fato de extrema importância para a psicanálise visto que para a própria constituição do trauma são necessários dois tempos.

Na aposta de ilustrar tentativas de ressubjetivações em decorrência de ressignificações de eventos na história do sujeito, apresentaremos o fragmento de um caso clínico2 aqui intitulado: "E os meninos?". Não traremos maiores considerações sobre o caso no que se refere ao diagnóstico estrutural, direção do tratamento ou manejo clínico, visto que, para tal, seria necessário escrito específico sobre ele. A justificativa de se trazer tal recorte aqui dar-se-á em virtude de se observar o caráter de afirmação e justificação da existência que pode ser promovido pelo trabalho.

 

Fragmento do caso:"E os meninos?"

"E os meninos?" foi uma pontuação feita pelo analista em uma sessão com uma paciente que é professora da educação infantil. Certa feita, ela chegou ao consultório bastante empolgada. Tinha passado semanas envolvida em uma atividade com as crianças que culminou com uma apresentação pública para as demais classes e famílias.

Tratava-se de um desfile no qual as meninas se apresentaram usando turbantes e adereços oriundos da cultura africana.

A professora é mulher, negra, de candomblé, cresceu em um dos bairros mais violentos da cidade, viu conhecidos morrerem pela violência e pelo tráfico e, quando ela era criança, na área onde se localizava a escola que frequentava ocorriam tiroteios. Nessas ocasiões, sua professora levava as crianças para uma sala mais interna, longe de janelas, e buscava desviar a atenção das crianças do que estava acontecendo. Inclusive essa cena parece participar ativamente de sua escolha em tornar-se professora da educação infantil.

Ela mostra feliz as fotos do desfile.

Ocorre que a turma da professora é mista, porém, em todas as fotos só apareciam as meninas. O analista perguntou: "E os meninos?". A paciente (professora), meio impactada com a pergunta, diz: "Os meninos estavam lá ajudando". O analista repete: "Ajudando?". E um silêncio toma a sessão.

Essa pontuação reverberou e a professora conseguiu trabalhar nas sessões seguintes várias questões. Ela diz então que desde pequena precisou assumir uma postura muito ativa na vida, que era ela quem cuidava e resolvia tudo, que embora tivesse conseguido estudar, ingressar em uma universidade federal e passar em concursos públicos para professora em três municípios, as marcas de ser mulher, pobre, negra e de candomblé a deixavam sempre em uma postura defensiva e armada. Ela expõe que não permitiria que as meninas dela, as alunas dela crescessem com vergonha de serem quem são, mas que ao montar a atividade, mesmo ela que se dizia implicada com a questão da igualdade, do respeito às diferenças, tinha de alguma forma não olhado para os meninos.

Passado algum tempo, o analista solicita para a paciente que encaminhasse um relato do ocorrido, ela grava um áudio no aplicativo de mensagens e encaminha. Tal relato foi transcrito com permissão para utilização do mesmo para finalidades acadêmicas, de pesquisa e para publicação. Segue:

as meninas tiveram total destaque, e os meninos ficaram ali mais ou menos como meros observadores da coisa, e não tiveram um papel, um lugar de reafirmar a identidade, a autoestima, a formação da personalidade com base nas questões étnico raciais principalmente, e assim estimular a formação de uma autoestima saudável, de uma imagem positiva de si. [...] eu estava em terapia, momento que eu não tinha percebido que os meninos tinham ficado nesse lugar, que não era um lugar também igualitário com as meninas, e quando você me trouxe isso, eu percebi o quanto que eu fui desatenta e como naquele momento eu também estava gozando de um lugar que me foi negado na minha trajetória escolar, tanto que eu desfilei junto com as meninas, [...], desconsiderei que os meninos estavam naquela situação, e foi na terapia que comecei a repensar a partir dessa sua fala: "e os meninos"? A partir daí eu comecei a repensar uma série de equívocos para além daquele momento, e aí eu passei a examinar, a repensar também se as minhas práticas outras não estavam de alguma forma sendo excludentes com os meninos, [...] Pensei sobre várias coisas, vez ou outra eu estou envolvida nessas leituras, aí passei então a repensar essa questão desse feminismo negro que eu penso, eu estudo, me debruço para ler e conhecer um pouco mais e fortalecer a minha prática e discurso, e aí eu pensei também nessa masculinidade negra que agora é algo muito mais discutido, mas naquela época, dois ou três anos atrás, nem tanto. Comecei a perceber também as fragilidades na formação ético racial e de autoestima que esses meninos também passavam, já que a gente estava falando muito na ascensão e na beleza das meninas, que foi negado historicamente, que não é menos importante, mas esses meninos também precisavam repensar esse lugar de destaque. Aí no ano seguinte eu fui me debruçar a pensar em como encaixar os meninos, dando também um lugar importante nas apresentações, para além disso também nas práticas, aí no ano seguinte eu fiz uma "puxada de rede" [...] foram os meninos que fizeram, as meninas participaram juntamente com os meninos, eles tiveram lugares iguais e de destaque nas apresentações [...] percebi que trabalhei de uma perspectiva muito mais inclusiva com os meninos a partir daquele momento (informação verbal, 22 de junho de 2019).

Não garantir aos meninos um "lugar igualitário"; ter desfilado com as meninas e isso lhe servir como uma espécie de reparação com sua própria história; tornar-se professora da educação infantil; dar-se conta do apagamento dos meninos e nos anos seguintes ter conseguido não recair na mesma repetição, enfim, trabalhar essas questões destacadas são da ordem de um saber singular, de algo que não se aprende nos livros, de algo que formações docentes que não permitam a emersão do sujeito possivelmente não dão conta.

Para esse sujeito, ser professora atende a uma questão ética e não somente técnica, oferta caminhos de "resolver" pendores existentes em sua história, coloca-a em relação temporal (passado/presente/futuro).

Lajonquière (2013, p. 459) traz algo interessante sobre essa espécie de dívida que alguns professores têm com algum (ou alguns) de seus professores:

Assim sendo, quando os pais ensinamseu filho quem ele é, até certo ponto, para os outros (a começar por eles mesmos), colocando-lhe um nome que vetoriza certos ideais, como também quando uma professora ensina a Pedrinho os números, instala-se uma dívida. Tanto um quanto o outro passam a dever algo pela sua existência. Como sabemos, uma coisa é dever uma quantia x de dinheiro para um amigo e outra, muito diferente, é o preço da amizade. Com o nome e os números ocorre algo parecido: todo respeito será pouco para saldar a dívida pela existência ou, em outras palavras, o sentido que a vida pode ter acabado de ganhar.

Passemos então a pensar algumas questões sobre trabalho e profissão para esses jovens que hoje ingressam nas faculdades/universidades e os impactos dessas "escolhas" para a atividade docente. Ou mesmo para professores que não encontram no trabalho essa justificação de sua existência.

 

"Consegui 474 na média e 620 na redação dá pra Q?"

A pergunta acima foi feita por uma garota em um site chamado "querobolsa.com.br" que explica o que é o Enem3e o Sisu4, e oferta a opção de busca por universidades e cursos para que estudantes que pleiteiam o acesso à universidade possam pesquisar as notas de corte que foram utilizadas no último certame. Assim os estudantes podem ter algum parâmetro de suas possibilidades (já que as notas de corte podem mudar de um processo seletivo para o outro).

O mais interessante é que o próprio site lança um fórum para publicações dos usuários com a seguinte questão: "E aí, sua nota do Enem é suficiente?". Dito de outra forma: você foi suficiente?

Escolher uma profissão "pelo que dá para fazer" parece vincular o trabalho à condição da necessidade, expurgando assim o desejo. Independente daqueles que "escolhem seus cursos", ou seria melhor dizer "ingressam ao ensino superior" pela nota, temos também aqueles que foram melhores preparados (para os testes) em seu processo de escolarização ou aqueles resilientes (que contra todas as adversidades impostas pelas suas condições socioculturais conseguiram pontuações que os permitissem concorrer com os demais nos processos seletivos), e que optam por cursos com base nas profissões que lhes garantem maior lucratividade ou maior estabilidade.

O termo "concurseiro"5 já se popularizou. Os relatos de desumanidade por parte de profissionais médicos aparecem nos jornais com frequência. Carreiras policiais, no âmbito jurídico e na política, são cada vez mais ocupadas por perversos do que por idealistas de cunho social. Semestralmente a mídia divulga a lista de profissões mais promissoras (levando em conta a disponibilidade de vagas e remuneração). Profissionais recém-graduados em modelos questionáveis e desvinculados da aprendizagem que só a formação em ação permite ingressam em cursos de mestrado e doutorado para assim adentrarem às salas de aula outorgados por um título que não lhes confere a capacidade de articulação entre saber e conhecimento, tão necessária para atuação docente. Profissionais com carreiras já construídas em instituições públicas ou privadas também ingressam na pós-graduação stricto sensu por status ou para que com esses títulos pleitearem melhores salários, garantindo assim uma melhor aposentaria, mas em nada estão implicados com a pesquisa. Enfim, se é o desejo de saber que move o processo de ensino e aprendizagem, mas não é esse desejo que impulsiona os sujeitos no percurso de trabalho e formação, acreditamos que aquele que diz ser um profissional docente esteja em posição delicada e precise então criar algo novo em seu fazer.

Voltemos à pergunta da garota no site de bolsas: "Consegui 474 na média e 620 na redação dá pra Q?". O mais engraçado foi a resposta de uma outra garota: "Tenta administração, biblioteconomia ou alguma licenciatura... infelizmente é uma [média] baixa, mas não desanime, muita gente é desclassificada na hora da inscrição".

"[...] ou alguma licenciatura" faz lembrar de Pereira (2019, p.339) que ao analisar a questão: "Será mesmo que o magistério atual é formado pela 'seleção dos péssimos'?", observa que:

Não é de se estranhar que vários alunos menos brilhantes, ou seja, que atravessaram sua escolarização com sérios problemas pedagógicos e de aprendizagem, tendam a buscar cursos de licenciatura com menos exigências para o ingresso no ensino superior. O próprio Sistema de Seleção Unificada (Sisu) – fomentado por governos ditos populares (e ainda mantido pelos governos subsequentes) –, que vem tentando dar acesso mais democrático às universidades públicas brasileiras, pode ter colaborado para candidatos menos identificados com a profissão docente ingressarem em cursos de formação de professores. Isso pelo simples e desastroso fato de ser essa a única chance de acesso desses candidatos ao ensino público superior de qualidade; ensino historicamente seletivo e excludente.

Outra questão relevante quanto à opção profissional é perpassada pela lógica adotada historicamente pelo Brasil no desenvolvimento do seu sistema de ensino superior:

De um lado, o sistema europeu, notadamente o francês, historicamente dotado de segundo grau de alta qualidade, ofereceu a matriz justificadora de um ensino universitário de natureza profissionalizante. De outro, ainda que sem o mesmo peso de influência histórica sobre os primórdios da educação superior no Brasil, o modelo americano, consciente da parca qualidade de seu ensino médio, indicava a pertinência de um ensino universitário mais genérico, deixando a profissionalização para o nível pós-graduado. O Brasil soube escolher o pior dos dois mundos possíveis. Dotado de ensino médio bastante frágil, optou pelo modelo de profissionalização precoce, que deixou indelével rastro na sociedade brasileira durante o século XX. Meninos e meninas, de 17 anos, às vezes menos, precisam decidir se serão médicos, advogados, professores, economistas, cientistas, filósofos ou poetas, opção que lhes assombrará todo o percurso de estudos universitários. O brasileiro que vai à universidade precisa ter certeza sobre seu futuro profissional, sua escolha de campo de saber ao qual dedicará maiores esforços, quando ainda nem finalizou adequadamente sua preparação para entender o mundo das distintas ciências, dos variados saberes. O candidato à educação superior precisa saber que profissão terá, antes mesmo de claramente entender a complexidade do mundo do conhecimento. É candidato à profissão antes de ser candidato ao saber (CNE/CES nº. 329/2004, www.portal.mec.gov.br).

Essas elaborações geram impactos nas instituições de ensino superior, fato que nos convida a retomar pesquisa de Coulon (2008), na França, que em muito tem impulsionado adaptações, ajustes e reformulações nas Instituições de Ensino Superior (IES) desde o movimento de tentativa de "democratização" da educação em nível superior (estudantes de camadas populares na universidade pública). Coulon é colaborador do Observatório da vida estudantil (OVE) (UFBA e UFRB), que aponta que os estudantes de camadas populares nas universidades brasileiras enfrentam problemas semelhantes aos enfrentados pelos estudantes franceses.

Coulon (2008) observou evasão e insucesso desses estudantes de camadas populares e apontou que um desafio se instalava para a instituição (Paris-8) que passou de 7 para 27 mil estudantes de 1980 até 2000. Eram estudantes que entraram na universidade cerca de 3 anos após o término do ensino médio. Muitos já haviam tentado ingressar em outras instituições; possuíam escolaridade marcada por reprovações e baixo capital cultural. Normalmente precisavam trabalhar e estudar; eram mais velhos que os demais alunos. E, no ensino superior, tendem a repetir componentes curriculares ou mudam de curso, sendo que um percentual superior a 50% até mesmo abandona a universidade no primeiro ano. Tais estudantes apresentam histórias marcadas por fatores psicológicos tendo a impossibilidade como sintoma e já previam seu fracasso. Muitos tinham receio de que a graduação não garantisse um emprego; tinham acesso ao ensino superior, mas isso não lhes garantia acesso ao saber, e passavam por um processo delicado e que partia do estranhamento até a afiliação. É nesse percurso que a escolha profissional deixava de ser ao acaso "ver no que vai dar" e passava a pelo menos ser racionalizada, e o estudante decidia seguir determinada carreira e não fazia mais o curso apenas por uma tentativa de sobrevivência pela promoção social.

Esse é o cenário no qual o docente do ensino superior é convocado a interrogar esses estudantes sobre o seu desejo e adaptar o seu fazer não na busca de soluções prontas, mas autorizando-se a colocar o seu desejo em ato.

O conhecimento se constitui em referência ao objeto, enquanto o saber se constitui em referência ao sujeito. A maior arte do educador consiste precisamente em transmitir ambos de modo que seja possível articulá-los. Articulá-los quer dizer saber com que lógica funciona cada um desses domínios, conhecer seus pontos de oposição e seus pontos de contato [...] o saber é governado pela lógica do simbólico. O conhecimento é governado pela lógica do real (Jerusalinsky, 2019, p.28).

 

Ressignificação da atividade docente

A deterioração dos vínculos sociais que ora presenciamos6 nos faz pensar que quando a capacidade de manutenção dos laços sociais entra em risco, quando não há mais giro discursivo, a psicanálise é convocada.

Falamos de um movimento de abrangência internacional que nos convoca a repensar a pergunta feita por Roudinesco (2000): "Por que a psicanálise? ". Momento no qual a autora já lançava algumas questões: Por que consagrar tanto tempo ao tratamento pela fala, quando os remédios ao agirem diretamente sobre os sintomas das doenças mentais e nervosas, dão resultados mais imediatos? Os teóricos do cérebro-máquina não reduziram a cinzas as "quiméricas" construções freudianas? A psicanálise, nessas condições, teria um futuro?

Sobre as questões ela diz:

Longe de contestar a utilidade dessas substâncias e de desprezar o conforto que elas trazem, pretendi mostrar que elas não podem curar o homem de seus sofrimentos psíquicos sejam esses normais ou patológicos. A morte, as paixões, a sexualidade, a loucura, o inconsciente e a relação com o outro moldam a subjetividade de cada um, e nenhuma ciência digna desse nome jamais conseguirá pôr termo a isso, felizmente. A psicanálise atesta um avanço da civilização sobre a barbárie. Ela restaura a ideia de que o home é livre e que seu destino não se restringe a seu ser biológico. Por isso, no futuro, ela deverá conservar integralmente o seu lugar, ao lado das outras ciências, para lutar contra as pretensões obscurantistas que almejam reduzir o pensamento a um neurônio ou confundir o desejo com uma secreção química (Roudinesco, 2000, p.09).

Feita a devida defesa em prol da fala, voltemos à questão da intervenção de orientação psicanalítica no que tange à docência.

As dificuldades da atividade docente estão postas na realidade, e independentemente de quais sejam, nossa proposta não versa sobre reafirmá-las ou descrevê-las, mas buscar pensar sobre o que podemos fazer com isso. O que cada docente pode fazer com isso?

Quinet (2009, p. 16), em visita à obra lacaniana, nos faz perceber que a demanda de análise decorre da oferta de escuta por parte do analista, que a demanda de análise é correlata à elaboração de um sintoma analítico e que a "analisabilidade é função do sintoma e não do sujeito". Busca-se então a transformação do sintoma do qual o sujeito se queixa em um sintoma analítico; dito de outra forma, a queixa levada ao analista pelo paciente na condição de resposta (Eu sofro disso!) precisa adquirir o estatuto de uma questão para o sujeito (Por que sofro disso?), instigando o sujeito a decifrá-la. Essa transformação do sintoma que surge como significado em uma questão a ser respondida (significante) dá-se quando o analista introduz a questão do desejo implicando o sujeito em sua formação sintomática. Esse processo Lacan denominou "Che vuoi?" (Que queres?).

Esse engajamento do sujeito naquilo do que ele se queixa é correlato ao que chamamos em psicanálise de implicação subjetiva. Criar espaços que possibilitem tal implicação tem sido um dos objetivos de pesquisas no campo da Psicanálise e Educação.

Após criteriosa revisão do que em psicanálise é chamado de "declínio do Nome-do-Pai", Fagundes e Almeida (2016) discorrem em texto intitulado "A nova ordem simbólica e suas repercussões na função docente no ensino superior", sobre como temos atualmente:

uma cultura moldada pela parceria entre ciência e capitalismo, que promove a assunção do objeto e a predominância do gozo sobre o desejo. Entretanto, sabe-se que é a partir do desejo que os laços sociais são estabelecidos, que o saber é suposto, que o Outro ganha corpo (Fagundes & Almeida, 2016, p.70).

As autoras retomam seus próprios percursos como pesquisadoras para apontar "o gozo existente no contexto educativo como sendo aquilo que surge do lado do sofrimento, do mal- estar", bem como apontar que "o desejo (de saber) como o 'o único meio de barrar o gozo e percorrer o caminho enigmático no qual (o professor) escreverá sua história pessoal e profissional'" (Fagundes & Almeida, 2016, p.74).

As autoras observam a tendência à horizontalização das relações nas instituições educacionais como consequência do "declínio do Nome-do-Pai" (que enquanto significante fundamental organizava e delimitava o gozo). Falam de declínio da autoridade docente pontuando que essa tal autoridade foi mantida por muito tempo pelo ideal de saber e pelas ameaças de punições diversas.

Ocorre que essa queixa dos professores sobre o declínio da autoridade não parece ser necessariamente uma característica de nossos tempos. Pereira (2016) resgata um texto de um filósofo que viveu entre 342 e 291 a.C.:

Se nos deslocarmos no tempo, perceberemos que desde os gregos – para focar apenas na história do Ocidente – mestres e professores sempre se queixaram de não poder exercer plenamente a autoridade que a sua função lhe confere. A essa queixa soma-se invariavelmente uma boa cota de nostalgia, que os faz acreditar que em gerações anteriores pôde-se gozar de melhores chances do exercício dessa tal imaginária autoridade. Como exemplo disso, temos Báquides, de Menandro, que descreve o diálogo entre os mestres pedagogos Lydo e Philoxenus acerca de um episódio de violência no campo educativo de um jovem discípulo grego: -"Tu recebeste, por acaso, a mesma educação quando era adolescente?", indaga-se Lydo[...] A que retruca Philoxenus: -"Mas, Lydo, os costumes mudaram!". O indignado estão exaspera: -"Eu sei muito bem disso [...]. Mas agora , o pequeno não tem ainda sete anos e se lhe encostas a mão logo o menino quebra a cabeça do pedagogo com a tabuinha. Se se reclamas ao pai, o pai assim diz ao menino: "tu és digno de mim, já que és capaz de te defenderes das ofensas"; e ao pedagogo diz: "não toques no menino: ele se comportou como um valente" [...]. E como pode nessas condições exercer um mestre a sua autoridade? (Pereira, 2016, p.180).

Pereira (2016, p.180) avança nesse sentido ao observar que vivemos hoje apenas uma versão da crise de um vínculo (docente – discente) que possivelmente nunca foi efetivamente marcada pela calmaria, e que, pelo contrário, sempre foi atravessado por resistências, deserções, embates, boicotes e violências, evidenciando "quão inglória – e não heroica – foi e é essa função". E continua:

A crise de hoje é somente mais um capítulo de uma jornada pedagógica, própria do homem, que o faz, via transmissão da fala e da linguagem, inscrever-se num projeto comum de humanidade e, ao mesmo tempo, num projeto de si, fundamentalmente singular de exercício de seu desejo (e poder). (Pereira, 2016, p.180).

Tanto Pereira (2016) como Fagundes e Almeida (2016) se debruçam em suas pesquisas sobre os impasses subjetivos contemporâneos da atividade docente e utilizam-se de pesquisa-intervenção de inspiração clínica, e dos espaços de fala (conversação) como dispositivos (entre outros).

Fagundes e Almeida (2016, p.74) apontam que com o dispositivo da conversação "é possível provocar efeitos na prática do profissional participante", compreendendo que embora o ponto de partida seja a dimensão pessoal, "é a partir das mudanças promovidas nessa dimensão que as mudanças nas práticas docentes ocorrem". As autoras acreditam que "a capacidade de o professor mudar, ressignificar a sua prática está estritamente vinculada à capacidade de analisar suas próprias ações e a de seus pares".

Pereira (2019, p.334), no mesmo sentido vai falar do potencial dessa modalidade de pesquisa em "levar o professor a refletir sobre sua prática, a compreender fenômenos, a destravar identificações, a pensar ações e a elaborar-se subjetivamente".

O autor com base em suas pesquisas desde 2003 acerca da psicanálise, educação e formação de professores, postula que:

Teríamos diversos tipos de saberes como meio de gozo, ou seja, como meio de satisfação pulsional daquele que se diz ser um profissional docente. Haveria um saber-fazer como o do mestre (que parece estar alienado ao seu sintoma de saber fazer o outro fazer); um saber- saber como o do universitário (que se espera em levar o saber enquanto conhecimento ao outro que supõem não possuí-lo); e um saber-ser ou desejar ser do sujeito histérico (que se empenha em se fazer desejar). A esses acrescentaríamos em nível especulativo um saber- faltar-a-ser como o do analista (que admitiria a sua condição de faltante para operar a cura ao possivelmente saber-fazer com seu sintoma), e um saber-consumir como o do capitalista (que corresponderia ao imperativo pós-moderno de tudo consumir sem necessariamente fazer laço social). Isso quer ressignificar e ampliar o que os autores do campo educativo escrevem sobre os saberes e também redimensioná-los à luz desse suporte operativo que os discursos em psicanálise nos ofertam. (Pereira, 2016, p.194)

O autor sugere então pensarmos em um professor sintoma, um professor que demonstra "saber-ser-falta-a-ser para saber-fazer com seu sintoma, pois é esse sintoma que se converte em seu próprio trabalho pedagógico a ponto de evocar o desejo de quem o segue" (Pereira, 2016, p.198).

Esse é o ponto de distinção entre o que comumente se chama de autoria docente ou criação docente nas pesquisas e teorizações em educação e o que pretendemos explorar na pesquisa doutoral em curso7. A autoria de que se trata aqui não é ser autor apenas no sentido - não menos importante - de criar suas estratégias e construir de forma personalizada seus planos, mas, antes de tudo, de saber-ser-falta-a-ser para evocar o desejo do outro.

 

Um pacto com o resgate da função da universidade em consonância com o seu tempo

Diante das particularidades de nossos tempos apostamos no sujeito. Apostamos no sujeito docente que de forma singular faz do seu exercício um laço com o social, ao passo que opera uma espécie de pacto com o "resgate da função da universidade", momento no qual recorremos a Teixeira (1935/2010, p.33):

A função da universidade é uma função única e exclusiva. Não se trata, somente, de difundir o conhecimento. O livro também os difunde. Não se trata, somente, de conservar a experiência humana. O livro também a conserva. Não se trata, somente, de preparar práticos ou profissionais, de ofícios ou artes. A aprendizagem direta os prepara, ou, em último caso, escolas muito mais singelas do que universidades. Trata-se de manter a atmosfera de saber para se preparar o homem que o serve e o desenvolve. Trata de conservar o saber vivo e não morto, nos livros ou no empirismo das práticas não intelectualizadas. Trata-se de formular intelectualmente a experiência humana, sempre renovada [...] trata-se de difundir a cultura humana, mas fazê-lo com inspiração, enriquecendo e vitalizando o saber do passado com a sedução, a atração e o ímpeto do presente. O saber não é um objeto que se recebe das gerações que se foram; para a nossa geração, o saber é uma atitude de espírito que se forma lentamente ao contato dos que sabem.

Falamos de docentes que articulam conhecimento e saber. Falar de democratização e segregação na educação? É possível que discutamos isso sempre. Para pelo menos minimizar os impasses que ora vivemos, cabe retomarmos e continuarmos o processo iniciado nos governos anteriores nos quais houve a maior ampliação do número de universidades nesse país. Mais uma vez recorrendo a Teixeira (1935/2010, p.39): "em países de tradição universitária, a cultura une, solidariza e coordena o pensamento e a ação. No Brasil, a cultura isola, diferencia, separa".

As instituições de ensino superior precisam se reinventar? Sim! E que a mudança comece do docente e não venha de forma verticalizada e descontextualizada por decretos ou similares. O perfil dos estudantes mudou? Sim! Mas não podemos esquecer de pontos levantados por Maggie e Fry (2004) e citados por Nery, Santos, Santos e Sampaio (2011, p.106):

Por anos as administrações federais, estaduais e municipais sucatearam as escolas com propostas acadêmicas que iam desde processos de aprovação automática até medidas inócuas para minimizar as distorções série/idade. Com o tempo, após sucessivos ataques, é compreensível que a escola pública tenha perdido parte significativa de sua qualidade, mas isso não significa que a universidade deva ser omissa e negar acesso aos estudantes.

É preciso reconhecer os estudantes como sujeitos, escutar a queixa do docente e rever processos formativos. É preciso analisar os impasses gerados nas formas de laço social e, em especial no campo educativo, frente ao observado por Santos (2020) de que nos últimos quarenta anos vivemos em quarentena. Segundo o autor, vivemos uma crise permanente que legitima a escandalosa concentração de riquezas e um boicote aos métodos de evitação de uma eminente catástrofe ecológica. São quarenta anos de ataques aos direitos dos trabalhadores em todo o mundo. O capitalismo sujeitou a saúde, a educação e a segurança, em absoluta prioridade ao princípio do Mercado, em detrimento do Estado e da Comunidade. Quarenta anos de quarentena política, cultural e ideológica. Precisamos nos implicar com a mudança em curso.

 

A pandemia escancara a segregação na educação

Uma outra questão nos convoca no momento: as medidas de isolamento impostas pela pandemia forçaram as atividades educacionais a operar no que se convencionou chamar de modalidade de ensino remoto, para diferenciar da Educação à Distância (EAD), exatamente por se entender que a EAD requer que todos os sujeitos envolvidos estejam previamente aptos ao uso das tecnologias na mediação do processo de ensino e aprendizagem. Uma questão se impõe: é possível falar de democratização na educação frente a realidade desvelada pela pandemia?

Não estamos em condições de tecer conclusões no que tange à situação sanitária que ora vivemos. Estamos ainda em momento de ver e compreender, estamos na pura experiência, é impossível concluir. Mas no que se refere a democratização na educação, a pandemia desvela números assustadores.

Penildon Silva Filho8 ressalta que, segundo a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais do Ensino Superior, 70% dos alunos das universidades federais no Brasil são de famílias com renda de até 1,5 salário mínimo per capita. Dentro desse número, 27% são de famílias que têm até meio salário mínimo de renda, logo não é possível pensar que todos os alunos terão infraestrutura tecnológica para acompanhar as atividades. Assim, o Estado teria que prover as condições necessárias. A educação à distância pela legislação não é exclusivamente sem interação, a presencialidade não é descartável. Não são todos os níveis da educação que são passíveis de serem adequados à educação à distância. No Brasil, temos sete milhões de estudantes na educação superior dentre os quais 80% já está em faculdades particulares, mas no Brasil temos quarenta e sete milhões de estudantes na Educação Básica (educação infantil, ensino fundamental, ensino médio e educação de jovens e adultos) e 80% desses estudantes estão no setor público.

Luiz Carlos de Freitas9 afirma que a concepção de educação embutida na Educação à Distância não serve. Lembra que só o educador pode personalizar a educação. Ele ressalta a importância de se pensar como a tecnologia pode ser incorporada a um novo projeto educacional que vise ir além da aquisição de informações e de treino para passar em testes e ratifica o caráter irrevogável das relações interpessoais no processo de aprendizagem e de introdução da juventude na vida e não em uma "bolha virtual". Freitas também questiona se as aproximações do que tem sido feito ("ensino remoto") pelas instituições educacionais com a EAD não seria uma propaganda oportunista dessa forma de ensino. O professor inclusive entende como necessária, nesse período, a suspensão de todos os questionáveis sistemas que avaliam a educação, seja em âmbito municipal, estadual ou federal, sugerindo, inclusive, a aplicação na área de saúde para o combate a pandemia do Coronavírus das verbas públicas gastas com as terceirizadas que fazem essas avaliações.

Priscila Cruz10 demonstra indignação frente ao fato de apenas 9% dos alunos que concluem o ensino médio tem o conhecimento adequado em matemática, sendo que os 25% mais pobres tem uma taxa de 3%, e os 25% mais ricos de 64%, ou seja, 61 pontos percentuais separando o mais pobre do mais rico. Por entender ser preciso que paremos de aceitar essa diferença, Cruz acredita que essa indignação deveria existir nos setores públicos e na população brasileira.

Temos buscado acolher os afetos que nos atravessam com a atual situação para tentar fazer algo frente ao quadro acima descrito. Temos também recorrentemente escutado uma frase carregada de esperança sobre o amanhã: "quando as coisas voltarem ao normal". Não sabemos se as coisas vão voltar ao normal11. Uma crise de escala mundial como a que ora vivemos tende a deixar marcas e alterar objetiva e subjetivamente todas as relações. Na impossibilidade de simbolizar o que está por vir, ficamos na expectativa de que aprendamos algo com tudo isso. Nossos tempos são marcados por um individualismo exacerbado e um hedonismo desmedido. Portanto, espera-se que a única "coisa boa" dessa situação seja, em certa medida, uma atitude de "baixar as armas" contra a diferença, acompanhado do resgate de nossa humanidade e o respeito à alteridade.

Vivemos um momento tão dramático e tão duro de nossas vidas [...] estamos a viver uma crise sem precedentes na história, não há nada comparável com isso [...] estamos todos a aprender, não sabemos como lidar com essa crise, não sabemos exatamente o que fazer, não sabemos como nos comportar, e a primeira coisa que temos que fazer é reconhecer com humildade esse nosso não saber, essa nossa dúvida, no entanto, e esse é o paradoxo dos tempos que estamos a viver, apensar de não sabermos [...] temos que agir [...] nesse momento não podemos deixar de agir com as duas referências que são as duas maiores da educação: a defesa da educação como bem público, como bem comum; e a educação capaz de lutar contra as desigualdades [...]12.

Estamos na fase de que fazemos, tentamos fazer, ensaiamos fazer algo, sempre no campo do que é possível fazer. Já nos adaptamos? Não. Porém, não estamos fechados a participar das discussões e construções das novas formas de laço social, que serão impostas aos processos educativos até que exista uma vacina que nos oferte imunidade ao microscópico organismo que agora nos convida a pensar e ressignificar nossas relações. Não vamos aplicar soluções pré- moldadas que nos ofertem, vamos juntos construir algo novo.

a situação é outra, não tem nada que ver com uma sala de aula, porque a linguagem é diferente, porque o tempo é diferente, porque o escopo é diferente, e porque nós estamos diferentes nessa situação. Primeira regra: aceitar e acolher essa diferença, começar a trabalhar a partir dela, e não a partir de um estado que supostamente alguém já resolveu [...]13.

 

Para (in)concluir

O trabalho deveria ser um dos meios de justificação de nossa existência assim como no caso da professora da educação infantil anteriormente citada. No entanto, muitas das atuais "escolhas" por cursos universitários ocorrem por força da necessidade, por falta de opções, ou por promessas de satisfação apartadas do desejo. Tal realidade institui complexo cenário para o professor universitário.

Muito se discute sobre o que seria uma educação de qualidade. Aparentemente, a qualidade na educação não nos parece ser mensurável por nenhum instrumento objetivo (acumular informações ≠ aprender). Para "mensurar" uma educação de qualidade seria preciso termos uma régua, um termômetro que medisse o quanto de desejo dos sujeitos envolvidos estão em jogo em cada ato educativo e o quanto cada ato transformou a vida de cada um que dele participou, mesmo que o efeito do ato tenha ocorrido (feito sentido) muito depois da "aula".

Nas mais diversas estratégias que forem utilizadas no momento, somente aquelas nas quais os sujeitos envolvidos estiverem desejosos de participar tendem a apresentar algum resultado interessante. Ocorre que fazer desejar é um processo delicado e, com cada um lidando de forma particular com a situação que ora ocorre, não é prudente partir da premissa de que o outro consiga desejar.

Como pontuou Ricardo Lodi Ribeiro14: "Estamos passando por um período em que a maior preocupação das pessoas é com a sobrevivência e subsistência, não havendo a tranquilidade necessária, seja entre professores ou alunos para o desenvolvimento adequado das atividades acadêmicas regulares".

Como disse Priscila Cruz15, a cobrança não é sobre o que fazemos agora, mas sobre o que vamos fazer depois que as medidas de isolamento forem suspensas. É sobre isso que nós, pessoas, professores, estudantes, gestores e pesquisadores precisamos pensar.

E sobre essa história de voltar ao normal, tomara que como disse KrenaK16: "Tomara que não voltemos à normalidade".

Sabemos o quanto o docente é visto como o agente que detém o conhecimento, que convoca o ensinar e o aprender para dar passagem ao aluno no mercado de trabalho. Ocorre que, com a sociedade regida por uma nova ordem simbólica, o outro não passa de um semblante e os currículos são refeitos a qualquer preço, as competências e habilidades são pré-determinadas e os programas pensados distantes de uma criticidade. Essa realidade impõe o descaminho do trabalho docente.

Nessa lógica, Voltolini (2018, p.62) diz:

Qual espaço se teria, por exemplo, dentro de um espírito de aquisição de competências para que um professor reconheça sentimentos e práticas indesejáveis, tal como o ódio despertado nele por uma criança ou por seus pais? [...]. Em todo o caso, falar em competências significa entrar em uma lógica de prescrição e de todos os problemas inerentes a ela.

A partir dessa fala sobre formar ou formatar professores, apostamos em recuperar o que se encontra na essência da palavra que pode demarcar seu ofício (a palavra professor na tradição cristã tem a conotação de professar). O professor formatado faz parte da engrenagem, ou seja, perde seu lugar e posição de saber, saber inscrito na ordem do inconsciente. A articulação entre saber e conhecimento constitui o trabalho docente e oferta substância para o enfrentamento dos impasses quando mostram o furo na engrenagem e, nesse instante, os giros discursivos são convidados a advir.

 

Referências

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Recebido em junho de 2020 – Aceito em setembro de 2020.

 

 

1 A confecção do presente escrito ocorreu durante a pandemia do COVID19 em maio de 2020. No momento, o site da OMS (Organização Mundial da Saúde) divulgava mais de trezentas e cinquenta e sete mil mortes no mundo, dentre essas mais de vinte e sete mil e oitocentas no Brasil (segundo o site do Ministério da Saúde do Brasil).
2 Fragmento da experiência clínica de um dos autores.
3 O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) é uma prova realizada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), autarquia vinculada ao Ministério da Educação do Brasil, e foi criado em 1998. O ENEM é utilizado para avaliar a qualidade do ensino médio no país. Seu resultado serve para acesso ao ensino superior em universidades públicas brasileiras, através do Sistema de Seleção Unificada (SiSU), assim como em algumas universidades no exterior. O Enem é o maior exame vestibular do Brasil e o segundo maior do mundo, atrás somente do Gāo Kǎo, o exame de admissão do ensino superior da República Popular da China. A prova também é feita por pessoas com interesse em ganhar bolsa integral ou parcial em universidade particular através do Programa Universidade para Todos (ProUni) ou para obtenção de financiamento através do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies). Em algumas universidades, substituiu o tradicional vestibular. A prova foi criada em 1998, sendo usada inicialmente para avaliar a qualidade da educação nacional. E, já na segunda edição do exame, foi utilizada como modalidade de acesso ao ensino superior. Teve sua segunda versão iniciada em 2009, com aumento do número de questões e utilização da prova em substituição ao antigo vestibular. O exame é realizado anualmente e tem duração de dois dias, contém 180 questões objetivas (divididas em quatro grandes áreas) e uma questão de redação (fonte digital).
4 Sistema de Seleção Unificada (SiSU), programa criado pelo Governo Federal em 2010 e gerenciado pelo MEC, que tem como objetivo selecionar candidatos participantes do ENEM, alocando-os em universidades federais e estaduais.
5 Pessoas que vivem para estudar para concursos públicos pelo anseio da estabilidade do serviço público.
6 Manifestações "antifascistas"; frases como "vidas negras importam" e/ou "toda vida importa"; bem como posicionamentos de intelectuais de diversos países em prol da vida e da consciência ecológica povoam de humanidade as redes sociais nesse momento.
7 Os autores são, respectivamente, orientando e orientadora de uma pesquisa doutoral em curso no campo de tensão entre psicanálise e educação.
8 Professor da Universidade Federal da Bahia em vídeo nomeado "Contra a uberização docente", disponível no canal da professora Lynn Alves (@lynnalves) na plataforma Instagram.
9 Professor aposentado da Faculdade de Educação da UNICAMP em entrevista disponível em: , https://www.sinesp.org.br/noticias/aconteceu-no-sinesp/9766-a-concep%C3%A7%C3%A3o-de-educa%C3%A7%C3%A3o-embutida-na-educa%C3%A7%C3%A3o-%C3%A0-dist%C3%A2ncia-n%C3%A3o-serve,-diz-o-prof-luiz-carlos-de-freitas.html>.
10 Presidente executiva do "Todos pela Educação" em entrevista ao programa Roda Vida em 13 de abril de 2020 (https://www.youtube.com/watch?v=DJEKzpBXXzg).
11 Sobre as coisas não voltarem ao normal sugerimos Aisha S. Ahmad (https://medium.com/@rntpincelli/quarentena-porque-vc-deveria-ignorar-toda-a-pressao-para-ser-produtivo-agora-3f4f0b8378ae).
12 Aula magna proferida por António Nóvoa em 14 de abril de 2020 para o Plano de Formação continuada, promovido pela Secretaria de Educação do Estado da Bahia, através do Instituto Anísio Teixeira (IAT) (https://www.youtube.com/watch?v=7kSPWa5Nieo).
13 Christian Dunker, psicanalista e professor da USP, em vídeo intitulado "Para professores em quarentena" em seu canal na "Falando nisso" na plataforma youtube em 15 de abril de 2020 (https://www.youtube.com/watch?v=slXsCBOP6iE).
14 Reitor da UERJ - (https://www.uerj.br/noticia/10888/).
15 Vide nota 10.
16 Ailton Krenak em texto disponível na internet intitulado "O amanhã não está à venda".
Revisão gramatical: Andrea Viana Falcão dos Santos
E-mail: viana.andrea@gmail.com

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