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Estilos da Clinica

versión impresa ISSN 1415-7128versión On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.25 no.3 São Paulo mayo/dic. 2020

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v25i3p439-453 

10.11606/issn.1981-1624.v25i3 p439-453

DOSSIÊ

 

O "furor avaliativo" como sintoma social da educação brasileira?

 

¿El "furor evaluativo" como síntoma social de la educación brasileña?

 

Does "evaluative furor" as a social symptom of Brazilian education?

 

La « fureur évaluative est-elle » un symptôme social de l'éducation brésilienne?

 

 

Eric PassoneI

IDocente e vice-coordenador do Mestrado Profissional Formação de Gestores, Universidade Cidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: eric.passone@unicid.edu.br

 

 


RESUMO

A partir da práxis de pesquisa no campo de estudos de Psicanálise e Educação, em que a negação da dimensão impossível do educar retorna como impotência de saber e fracasso, este artigo põe em suspeição o aparato de gestão e avaliação escolar, o qual fornece suporte ao que se considera uma verdadeira impostura político-pedagógica à moda brasileira: as avaliações educacionais estandardizadas associadas às metas de desempenho e aos dispositivos de responsabilização escolar. A reflexão acerca do "furor avaliativo" remete à denegação simbólica no campo sociopolítico como sintoma social implicado à educação brasileira. A despeito do que se possa pensar o imaginário pedagógico nacional, o "furor avaliativo" se inscreve no registro de uma fantasia de acesso a um gozo sem limites – na medida em que se avalia justamente o que não se ensina –, retrato dessa busca por um gozo desmedido relacionado à "fantasia de Brasil".

Palavras chave: avaliação educacional; educação brasileira; gestão educacional; psicanálise e educação; sintoma social.


RESUMEN

Basado en la praxis de investigación en el campo de los estudios de Psicoanálisis y Educación, en el que la negación de la dimensión imposible de la educación retorna como la impotencia del conocimiento y el fracaso, este artículo interroga el aparato de gestión y evaluación escolar que proporciona lo que se considera una verdadera impostura político-pedagógica a la moda brasileña: evaluaciones educativas estandarizadas asociadas con objetivos de rendimiento y dispositivos de responsabilidad escolar. La reflexión sobre el "furor evaluativo" se refiere a la negación simbólica en el campo sociopolítico como un síntoma social implicado en la educación brasileña. A pesar de lo que pueda pensar el imaginario pedagógico nacional, el "furor evaluativo" está inscrito en el registro de una fantasía de acceso al disfrute ilimitado, en la medida en que evalúa exactamente lo que no se enseña, un retrato de esta búsqueda del disfrute excesivo relacionado con la "fantasía de Brasil".

Palabras clave: evaluación educativa; educación brasileña; gestión educativa; psicoanálisis y educación; síntoma social.


ABSTRACT

Based on research praxis in the field of Psychoanalysis and Education studies, in which the denial of the impossible dimension of educating returns as the impotence of knowledge and failure, this article puts in suspicion the apparatus of school management and evaluation which it provides support for what is considered a true political-pedagogical imposture in the Brazilian fashion: standardized educational assessments associated with performance goals and school accountability devices. The reflection on the "evaluative furor" refers to the symbolic denial in the socio-political field as a social symptom implicated in Brazilian education. In spite of what one might think of the national pedagogical imaginary, the "evaluative furor" is inscribed in the register of a fantasy of access to unlimited enjoyment - insofar as it evaluates exactly what is not taught - a portrait of this search for excessive enjoyment related to "fantasy of Brazil".

Keywords: educational evaluation; Brazilian education; educational management; psychoanalysis and education; social symptom.


RÉSUMÉ

Sur la base de la praxis de recherche dans le domaine de la psychanalyse et des études sur l'éducation, dans laquelle le déni de la dimension impossible de l'éducation revient comme l'impuissance du savoir et l'échec, cet article met en suspicion l'appareil de gestion et d'évaluation scolaire, qui soutient la qui est considérée comme une véritable imposture politico-pédagogique à la mode brésilienne: évaluations pédagogiques standardisées associées aux objectifs de performance et aux dispositifs de redevabilité scolaire. La réflexion sur la fureur évaluative conduit au déni symbolique dans le champ socio-politique en tant que symptôme social impliqué dans l'éducation brésilienne. Malgré ce que l'on pourrait penser de l'imaginaire pédagogique national, la « fureur évaluative » s'inscrit dans le registre d'un fantasme d'accès à la jouissance illimitée - dans la mesure où elle évalue exactement ce qui n'est pas enseigné -, portrait de cette recherche de jouissance rampant lié au «fantasme du Brésil».

Mots-clés: évaluation pédagogique; Éducation brésilienne; gestion de l'éducation; psychanalyse et éducation; symptôme social.


 

 

"Nosso nome nos condena a ser o projeto histórico
de uma consciência alheia: a europeia".
Octavio Paz, Literatura de fundação, 1990

A palavra "furor" origina-se do latim "fúria", que denota tanto um estado de "grande exaltação de ânimo" e "entusiasmo" quanto um estado de "delírio, loucura, violência e frenesi". De modo análogo, encontra-se o furor em busca do alto desempenho educacional, o qual poderia ser tomado metaforicamente como um sintoma social que captura o imaginário nacional num anseio de classificar, comparar, contabilizar e rotular uma criança ou uma escola a partir do ideal de rendimento ou performance (Afonso, 2009; Passone, 2014, 2015a, 2020; Lima, 2002). Um estado que revelaria aspectos dominantes de um discurso político que incide radicalmente no laço social que se produz na escola, no funcionamento subjetivo dos grupos e indivíduos e na própria organização das práticas educativas.

Nesse sentido, como não reconhecer esse "furor avaliativo", que subjuga nossas escolas públicas, como um sintoma social, este compreendido como uma configuração própria das relações transubjetivas que se organizam a partir do grande Outro, isto é, um sintoma que (des)vela o grau de comprometimento do discurso em um momento dado da história (Calligaris, 1991). Ou mesmo tomar metaforicamente essa obsessão em torno dos resultados educacionais como uma "doença social" de nossos tempos, como fala Gaulejac (2007, p. 94) acerca da "quantofrenia" e do efeito do poder gerencial em produzir um estado subjetivo de "incitação ao investimento ilimitado de si no trabalho, para tentar satisfazer os próprios pendores narcísicos e as próprias necessidades de reconhecimento"1. Como consequência, os "profissionais" da educação bem poderiam ser conduzidos pela imagem que eles mesmos estariam condenados a produzir, promovendo uma verdadeira "gestão das aparências", como afirma Gori (2013) em La fabrique des imposteurs.

É óbvio que tal sintoma se nutriria de aspectos culturais que caracterizam o cenário dito contemporâneo, em que o individualismo emerge como um sintoma social (Calligaris, 1991). Concomitantemente, em que pese a certa vertigem tributária à concepção moderna de liberdade, a autonomia individualista, competitiva e concorrencial e, ao mesmo tempo, a valorização narcísica dos indivíduos em face dos grandes ideais de nossa época erigiriam uma espécie de avatar aos novos modos de alienação orientados ao gozo e ao consumismo, como diz Kehl (2002).

Como abordado em outros momentos (Passone, 2019; Araújo, Leite & Passone, 2018), há um certo consenso entre os pesquisadores do campo de estudos sobre políticas educacionais de que a reforma administrativa do Estado e, consequentemente, a institucionalização de uma "nova gestão pública" têm imposto novas formas de regulação dos sistemas de ensino, cujo epicentro emana do discurso político de certas agências internacionais, tais como o Banco Mundial e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

De acordo com Charlot (2006), tal discurso político é reproduzido como um "mantra" por autoridades governamentais e pela opinião pública, tendo como referência as palavras-chave: "qualidade", "eficácia" e "avaliação". Um discurso que se funda na falácia das ideias de inovação e progresso, embora se trate, como explica o autor, "de um discurso do domínio e da transparência: saber tudo, controlar tudo, prever tudo, como o Panóptico de Bentham e de Michel Foucault" (Charlot, 2006, p. 14).

Nos estudos de políticas públicas, no que concerne aos regimes democráticos considerados consolidados, o termo "accountability" implica a tendência dos mandatários de "prestar contas" de suas atividades à sociedade (O'Donnel, 1998). Concorda-se que a relação entre ética e accountability nem sempre é óbvia, embora retrate um movimento de transição às sociedades democráticas ou novas poliarquias. Entretanto, no caso brasileiro, quando se trata de políticas públicas de educação, tal noção ganhou certos contornos empresariais ao ser reinscrita como dispositivo de "responsabilização" escolar e educacional (Passone & Araújo, 2020).

Do mesmo modo, há pesquisadores (Afonso, 2009; Dupriez, Barbana & Dumay, 2020) que consideram a "accountability educacional" uma tendência mundial, observável desde os governos das Américas até os da Europa e Ásia. Essa tendência se articularia em torno de três dimensões complementares, a saber: a avaliação, a prestação de contas e a responsabilização escolar. A contribuição de Dupriez e colaboradores (2020) foi mostrar a existência de uma arena de governança institucionalizada caracterizada por narrativas políticas compartilhadas que são traduzidas e disseminadas com variações em cada um dos territórios nacionais. Assim, apontam a natureza específica do nível local nacional em um conjunto de relações que conectam o local ao contexto internacional, em que há prevalência de histórias nacionais, apesar da difusão do global dessas políticas.

Em face de tal contexto, pesquisadores brasileiros têm se ocupado em investigar os efeitos da "nova gestão pública" relacionada à regulamentação, organização e gestão das políticas públicas de educação (Oliveira, Duarte & Clementino, 2017), a partir da confluência entre as políticas educacionais de avaliação da educação básica e as denominadas políticas de responsabilização escolar no âmbito das reformas educacionais nacionais. Comumente, tais estudos associam a atual condição de degradação da educação escolar brasileira – como um reflexo da determinação social e econômica do capitalismo às políticas públicas de educação, de corte global e tributário – ao imaginário neoliberal internacional, no que se refere ao acesso regional e local ao financiamento destinado às políticas sociais e educacionais, tal como ocorreu em relação à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN – Lei nº 9.394/1996), ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb – Lei nº 11.494/2007) e à própria política do Ministério da Educação nas últimas décadas.

No entanto, para melhor pontuar essa questão, interessa-me refletir sobre como a dita degradação da escola brasileira se situaria no seio mesmo da selvageria que marca o capitalismo desde sua fundação no Brasil e de seu estatismo ao longo do tempo, a despeito da formação do Estado nacional e da proclamada república, em que o predomínio da lógica imaginária há tempos aporta um estado natimorto ao sonho de um sistema nacional de educação pública como condição de fundação de uma Nação, tal como conhecemos em relação à história de outras nações e seus povos.

Nesse sentido, este artigo procura reinscrever esse debate a partir de uma prática discursiva da psicanálise no social, em que se propõe refletir a problemática da escola pública brasileira em relação aos aspectos inconscientes associados à formação social brasileira e ao modus operandi desse "sintoma nacional".

a história da educação brasileira é uma história arbitrária que nos remete ao nosso violento processo de colonização cultural e social, constitutivo de uma sociedade extremamente autoritária, permeada por injustiças, desigualdades e abismos psicossociais. (...) Uma reflexão ética para quem pesquisa e trabalha com processos psicossociais e socioeducativos refere-se aos efeitos simbólicos e concretos das práticas discursivas, isto é, se elas produzem laços sociais voltados à formação e subjetivação dos sujeitos em vista da superação de práticas educacionais que se revelaram uma trama de laços que geram suporte a toda forma de estigmatização e discriminação social em relação à diversidade sociocultural presente nas instituições socioeducativas (Passone, 2017, p. 360).

É importante considerar que tal reflexão não me autoriza a tomar o "furor avaliativo" como uma interpretação geral das motivações pedagógicas das escolas, mas também não para de me convocar a interrogar sobre essa questão: por que essa obsessão em se avaliar justamente o que não se ensina, ou se ensina tão mal, no dia a dia da escola pública brasileira?

É óbvio que as avaliações em larga escala têm revelado a insuficiência do ensino, monstrando o déficit e a falta que caracterizam os sistemas educacionais no país. O relatório oficial do Ministério da Educação, que analisa o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), mostra que grande parte dos alunos nos anos finais do ensino fundamental apresentam dificuldades na leitura de textos simples, curtos e escritos em ordem direta, e nos anos finais do ensino médio ainda não consolidaram plenamente os algoritmos da soma, da subtração, da multiplicação e da divisão (Brasil, 2015). Pesquisadores indicam que as avaliações da educação básica têm servido tão somente para informar os gestores educacionais e ratificar os dados sobre "o baixo rendimento do aluno, considerando-se as expectativas definidas para o desempenho esperado no decorrer da trajetória escolar" (Souza, 2008, p. 81).

 

Essa educação não goza (mais?) como deveria

Essa via de leitura me leva a pensar acerca das "fantasias de Brasil", como aponta Souza (1994), ao mostrar certos contornos imaginários que conferem singularidade ao modus operandi do "sintoma nacional" – como estrutura em ato das condições históricas – quando se trata de refletir a respeito do colorido particular que medeia a incorporação de certos discursos pós-modernos referidos à "transnacionalização" e à "regulação" das políticas públicas de educação no cenário brasileiro.

Em parte, resgato o argumento apresentado por Souza (1994) sobre a leitura que faz do texto "Nacional por subtração" de Schwarz (1987), em que o psicanalista trata de informar certa constante histórica da intelectualidade brasileira em relação ao debate sobre a identidade nacional e o nacionalismo, em função do contínuo dilema entre originalidade e cópia e da constante "importação de cânones estrangeiros" por parte da cultura brasileira. O fato de que o "nacionalismo administrativo" das nações centrais prescinda de lançar mão do "sentimentalismo" para se tornar eficaz, como diz Schwartz (1987), ajuda-nos a compreender o rechaço e as reiteradas críticas relacionadas a tudo o que diz respeito às cores locais, levando ao descarte qualquer reflexão rigorosa sobre traços específicos e/ou identificatórios de nossa cultura, bem como dos percalços políticos e reticências explícitos nela.

No entanto, seja como estratégia reativa à falta de expressão política dos países dependentes, seja como estratégia homogeneizadora do nacionalismo administrativo das nações influentes e/ou centrais, ou mesmo como efeito do mimetismo que acarretaria a reiterada importação dos "renovados" produtos culturais, não poderíamos não reconhecer o fato de que o racismo e o segregacionismo possam vir a complementar tais estratégias, o que nos revela o "(...) quanto de emotividade nacionalista ainda se encontra arraigada naquelas nações mesmas que preconizam a internacionalização da economia e da cultura" (Souza, 1994, p. 192), em nome do que se convencionou a chamar de "transnacionalização dos Estados-nação", por conta do crescente movimento de globalização.

De outra parte, trata-se de seguir a proposta de uma "Clínica do social",caminho aberto pelo grupo Sexto Lobo, do Rio de Janeiro, em que psicanalistas como Contardo Calligaris, Octávio Souza, Jurandir Costa Freire, entre outros, debruçaram-se sobre temas e disciplinas que tratam das identificações referentes à identidade nacional brasileira, refletindo acerca de certos traços singulares associados ao "mandato" de fundação nacional.

A ilusão de um mandato irrestrito ao gozo cuja função driblaria todo e qualquer tipo de esforço simbólico nos condenaria a uma curiosa condição de "exclusão interna" (Calligaris, 2000; Souza, 1994). Afinal, como responder a um mandato secular e utópico de sermos um "Mundo Novo", isto é, diferente do "Velho Mundo", sem estabelecer um corte em relação à tradição que nos trouxe até o presente momento?

Desse modo, como herança de nosso passado, pode-se dizer que, em vez de uma dívida de estofo simbólico que pudesse engendrar o desejo em torno de um ideal comunitário a partir do qual todos pudessem viver, mais ou menos, como iguais, encontra-se a exigência de um gozo fora dos limites da castração e da interdição normalizadora, questão que compreende o objeto (dimensão de gozo) em seu valor de fetiche. É patente, no sentido de não deixar dúvida, que, ao recusar a castração, recusa-se também a falta que ela implica. Como mostra Souza (1994, p. 71) em sua análise "literária" sobre a formação social da identidade nacional, a "(...) ânsia de prover a nação de uma identidade fez com que procurasse construir uma imagem de Brasil sem falhas, encobridora das divisões e ambiguidades da realidade social".

A interpelação que Paz (1972) faz ao discurso de Márquez (2014) acerca de sua denúncia sobre a colonização retratar o esforço etnocêntrico de homogeneização2 dos povos latino-americanos, condenando-os à solidão, fornece-nos uma importante chave de leitura, a saber: que a nossa solidão não advém de um esforço de homogeneização que repousa na visão eurocêntrica, mas começa antes com a recusa dos europeus em "medir-nos" com o mesmo "bastão" com que eles medem a si mesmos. Eis a chave de interpretação que possibilitaria situar uma outra leitura pertinente ao "furor avaliativo" que, no âmbito de minha experiência clínica e de formação de gestores educacionais, testemunho assolar o campo educativo brasileiro.

A questão abordada de tal modo se coloca no avesso da universalidade dos discursos reformistas que dominam o campo de análises educacionais, para sublinhar um traço singular que o diferencia das demais leituras pertinentes às políticas de avaliação da educação brasileira. Ao se questionar acerca da outra cena dos discursos avaliativos, isto é, a formação inconsciente que alimenta a crença em relação à avaliação, revela-se uma ilusão que se sustenta no desejo de ser avaliado na mesma medida, de ser comparado com a mesma régua ou modelo, tal como os organismos multilaterais e o mercado avaliam os sistemas de ensino do mundo globalizado. No centro de tal demanda narcísica de reconhecimento, opera-se no inconsciente uma violenta rejeição à diferença e, portanto, ao desejo de saber, marca da demanda educacional. Nesse sentido, a busca do mesmo, do idêntico, do igual ao outro, isto é, o desejo de não desejar nada diferente, acaba se revelando como uma ilusão impulsionada pelo desejo de morte e, como tal, só pode conduzir ao pior (Passone, 2015b).

Mais ainda, a metáfora do "furor avaliativo" revelaria como a degradação de nossa educação escolar precede ao discurso gerencial e ao determinismo político-econômico (neo)liberal, em que a lógica da escola pública brasileira encarnaria a própria barbárie ao longo dos tempos. Sendo assim, não se trata de reiterar ou de reforçar a burocracia engendrada por meio do discurso da universidade, mas de apontar isso que se revela em termos de um sintoma nacional, mesmo quando se trata de pensar como foram incorporadas as práticas discursivas de avaliação educacional e a accountability em nossas escolas públicas.

Desse modo, ao tomar o "furor avaliativo" como figura e/ou metáfora, busco sublinhar outro sentido ao que comumente se atribui às políticas educacionais de avaliação e responsabilização escolar no Brasil, para dizer d'isso que se inscreve no registro especular de uma imagem fantasiosa de acesso a um gozo idílico. Tal fantasia – herança histórica de nossa fundação societária colonial e escravocrata – conformaria nossas práticas sociais e condutas ao "jeitinho" brasileiro de denegar a realidade, não reconhecendo a condição de direitos ao outro semelhante, tomando-o como objeto de gozo e exploração, em que, para além das aparências dos discursos modernos, não se alterará o imaginário social – aristocrático, autoritário e patrimonialista – que caracteriza, de modo atemporal, o mundo do socius na terra brasilis.

 

Avalia-se o que não se ensina: o "furor avaliativo" como sintoma da educação brasileira

Ao inscrever a figura do "furor avaliativo" como sintoma da educação brasileira, pretendo deslocar a leitura habitual acerca dessa obsessão educacional, que possui como referente o campo discursivo sobre o contemporâneo, para pensá-lo como um traço singular do modus operandi da "cultura política brasileira", uma repetição do passado que se atualiza no presente, revelando-se a partir de aspectos que possam ser ditos a respeito de nosso "sintoma nacional". Para situar essa questão, partirei da noção do "mito do paraíso terrestre", como fala Paz (1972), para pensar o "mito fundador" da sociedade brasileira, o que também implicaria certos desdobramentos no campo educacional, tal como essa mania de se querer obter certos fins sem que se empreguem os meios necessários para tanto3. Isso retrataria certo traço sintomático que se repete ao longo do tempo quando o tema é a formação cultural e cidadã do povo brasileiro.

Nesse sentido, encontra-se essa ânsia em se avaliar o que não se ensina nas escolas, ou o que se induz para aprender sem o saber, recrutando qualquer indivíduo para ser professor, condição que também remeteria à ausência histórica de um lugar socialmente reconhecido à formação professoral e à função da escola pública como condição de fundação de uma Nação, como aponta Lajonquière (2013, 2018).

Dito de outro modo, trata-se de refletir sobre isso que se apresenta ao longo da nossa história como algo temerário, uma fraqueza de ânimo ou ausência de desejo em se sonhar uma escola como um bem público comum a todos, tal como a conhecemos tradicionalmente na história de outras nações as quais seus povos lograram isso com a conquista e a criação de um sistema nacional de educação e ensino – laico, gratuito e obrigatório –, tendo em vista a invenção de um Estado para uma Nação e, consequentemente, como um ato político significante, isto é, que carreia marcas simbólicas capazes de engendrar condições à criação de laços sociais irredutíveis à vida na pólis.

Em outra direção, a leitura que apresento, longe de ser a última palavra no assunto, retrata certos traços identificatórios que conferem particularidade ao modus operandi latente na vida brasileira, especialmente quando se trata de refletir o registro especular de uma imagem fantasiosa de acesso a um gozo sem limites, traço dessa busca por um gozo relacionado ao nosso "complexo de paraíso", como pontua Souza (1994) sobre as "fantasias de Brasil" que nos aprisionaria em termos imaginários, marca de certa posição infantil tributária à ilusão de gozo do Outro.

Em parte, tal fantasia implícita no mito de fundação nacional nos auxilia na compreensão sobre certa inibição racional que caracteriza o campo de nossa cultura política e educacional. Isso que nos remete ao esmaecido "mandato utópico" expresso na versão do mito do "paraíso terrestre" referido às Américas. Tal mito nos condenaria a uma figura paradisíaca um tanto exótica, cuja imagem deveria nos representar em face do estrangeiro como encarnação no real da pura diferença em relação ao Outro e, principalmente, ao mundo europeu. Essa operação significa apagarmos do horizonte qualquer dívida com o passado, condenando-nos a "(...) um ser que não tem passado, que não tem mais do que futuro", isto é, um ser de "pouca realidade", "pouco peso", ou mesmo de pouca circunspecção, comedimento e gravidade, como se refere Paz (1972, p. 127).

Antes de ter existência própria, começamos por ser uma ideia europeia (...). A Europa é o fruto, de certo modo involuntário, da história europeia, enquanto nós somos a sua criação premeditada. Na Europa a realidade precedeu o nome. A América, pelo contrário, começou por ser uma ideia (...). O nome que nos deram nos condenou a ser um mundo novo. Terra de eleição do futuro, antes de ser, a América já sabia como iria ser. Mal se transplantou para nossas terras, o imigrante europeu já perdia a sua realidade histórica: deixava de ter passado e convertia-se em projétil para o futuro (...). Um ser que não tem passado, que não tem mais do que futuro, é um ser de pouca realidade. Americanos, homens de pouca realidade, homens de pouco peso. Nosso nome nos condenava a ser projeto histórico de uma consciência alheia: a europeia (Paz, 1972, p. 127).

Como mostra o excerto acima, a fundação da América se revelaria antes como uma utopia europeia, que, na leitura de Souza (1994), em relação ao mandato de fundação do Brasil, assumiria contornos de uma fantasia acerca de um gozo ao qual o europeu não teve acesso. As Américas, como uma ideia do "Velho Mundo", um nome que engendrou uma realidade, enquanto na Europa foi a realidade que precedeu o nome, uma condição que nos condenaria a sermos um eterno projeto de futuro, sem consistência no presente, fadados a não termos uma história própria que precedeu um nome. No entanto, na medida em que tal mandato se expressa como recusa e, ao mesmo tempo, como obediência, revela-se a pregnância unificadora de uma imagem, a saber: a figura exótica e sensual do povo brasileiro em plena fruição de gozo, um gozo sem limites, e, por conseguinte, demandante de um traço significante capaz de operar oposições geradoras de diferenças, como parte da sociedade que reclama por certo interdito, isto é, em que se demanda por mediações simbólicas que afastem o gozo do Outro do horizonte (Souza, 1994).

Nesse sentido, desde a outra cena – inconsciente –, revela-se um impasse transubjetivo entre gozo e desejo, que pode ser retratado nas diversas figuras retóricas de nosso passado: por um lado, o gozo do colonizador de exaurir o outro como outrora fez com o próprio pau-brasil; e, de outro, o desejo do imigrante de encontrar nessa terra um "nome-do-pai" (Estado) que interditasse a dimensão terrificadora que advém do gozo do Outro, para operar o estado de filiação que se pretende quando reconhecido como cidadão de um "Novo Mundo" (Calligaris, 2000).

Diferentemente se situaria o "destino" dos colonizadores anglo-saxões, uma vez que, desterrados do "Velho Mundo", se fiaram à dívida simbólica herdada de sua própria história de desterro com o intuito de vir a construir um futuro "paraíso terrestre" no "Novo Mundo", enquanto um mandato simbólico que os "pais peregrinos" souberam traduzir em desejo, impondo certos limites à desmesura do gozo prometido. A Declaração de Independência escrita pelos "pais" fundadores americanos, em seu parágrafo segundo, trata do que eles consideraram como certos direitos inalienáveis do Homem, entre os quais se contam a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade. É notório que Thomas Jefferson e seus "irmãos" tenham declarado a "busca de felicidade" em vez do direito à felicidade. Dizer que se busca a felicidade implica a sua falta, isto é, que caberia aos desterrados buscá-la como uma possibilidade no horizonte, mesmo que relativa e sem garantias. Assim, tal como escrito na Declaração de Filadélfia, inscreveu-se um caminho aberto ao desejo que culminaria na Declaração de Independência na América do Norte, condição a qual influenciaria as demais revoluções que aconteceriam em outras partes do mundo.

De outro modo, no tocante ao sul do Equador, encontra-se a dimensão paradoxal do impasse de um mandato utópico que oscila entre uma satisfação imediata de gozo e o desejo, este último que poderia ser compreendido como a realização de um projeto de Nação o qual remeteria à impossibilidade do gozo imediato, cuja lógica se assemelharia à da realização de um desejo e se revelaria, portanto, como um sonho mais ou menos comum de construir uma Nação fundada no espírito moderno das leis da república e no direito à cidadania. Eis o ponto central entre uma diferença identificatória que pudesse se fazer mediar em termos simbólicos e a real refração que implicou a busca de:

um objeto que encarne a diferença em relação ao próprio simbólico. (...) a requisição de que o Brasil encarnasse a própria diferença, que fosse um país mais diferente do que todos os outros diferentes países. E o caminho que mais facilmente se apresentou para tornar o Brasil um país diferente do que todos os outros diferentes países foi o da representação exótica de sua diferença, artifício que permite a transformação de traços diferenciais em objetos de fantasia (Souza, 1994, p. 16, grifo do original).

Com o apoio da noção de fantasia, Souza (1994) aporta algo singular acerca de nossa constituição fantasmada em face de um grande "Outro" que goza, mas, paradoxalmente, um gozo a que se tem acesso através da aproximação com esse Outro. A partir da psicanálise, entende-se que, embora o gozo do Outro não exista factualmente em termos lógicos, o efeito de "duplicação do gozo" provocada pela imagem ilusória do gozo do Outro terminaria por garantir sua eficácia: "(...) já que meu gozo não é suficiente, o que resta a gozar é gozado pelo outro, (...) é o Outro que goza" (Souza, 1994, p. 54). Eis, por exemplo, a lógica implícita na fantasia colonial articulada com a questão de ser brasileiro, a qual vincula um Outro onipotente que toma o sujeito como objeto de seu gozo.

Há, portanto, uma fantasia herdada da colonização em que a referência paterna não interdita o gozo, mas se torna função de novas formas de fantasia. O conceito de fantasia, como explica Souza (1994), entrelaça significante, imagem e objeto, operando uma redução do significante à mediação de uma imagem a qual carreia em si a noção de unidade e estabilidade (identidade), isto é, um sentimento de unidade consigo mesmo, ou considerado como um conjunto predicativo estável atribuído ao sujeito. A posição do colonizador, como exemplo, é daquele que colocou um objeto no lugar do ideal do ego, na medida em que a referência paterna se apresenta muito mais como uma exigência de gozo do que como uma instância interditora, reduzindo o semelhante à posição daquele que tem que lhe produzir um gozo. Eis a segunda chave de leitura que essa abordagem permite ao analisar o "furor avaliativo", na medida em que o lugar que um aluno se situa na produção escolar afigura-se como destinado ao gozo do Outro, ou seja, que seu "trabalho" pode implicar um plus monetário para o professor e/ou a escola, mediante as políticas de avaliação externa da educação básica articuladas às políticas de accountability, que gerem o sistema público de ensino por meio de resultados, sanções e incentivos financeiros variáveis.

Em outras palavras, uma identificação ilusória com uma imagem de acesso irrestrito ao gozo nos condenaria a uma estagnação moral – ao longo do tempo – em termos sociopolíticos e educacionais; carentes de uma ação política capaz de introduzir mediações simbólicas que carreassem para longe o horizonte de gozo que a herança de uma fantasia colonial representa ao imaginário social e nacional. Isso incita a pensar a dimensão social do inconsistente, em que o coletivo não retrataria apenas uma simples somatória de indivíduos, no sentido da existência originária de um gregarismo universal, mas que a dimensão do coletivo está inscrita na própria estruturação inconsciente, na medida em que somos indeterminados por natureza, ao mesmo tempo que nos constituímos em relação ao desejo do Outro, por meio de laços sociais inscritos como discursos, estes que sustentam simbolicamente os meios pelos quais se cria o mundo em que vivemos.

O laço social é da ordem da invenção; ele não existia na época da horda primitiva, o que implica considerar, por um lado, a fragilidade dos vínculos sociais civilizatórios e mesmo reconhecer a base frágil, mas não infértil e impotente, de nossa própria condição humana; e, por outro, atentar que de tal condição se estendem as reais possibilidades entre a barbárie e a cultura.

A fragilidade do laço social dos humanos, como seres de fala e linguagem, para dizer com Lacan, "marca da incompletude dos seres humanos", lembra-nos de nosso desamparo e dependência perante os outros semelhantes e o Outro da cultura. Dito de outro modo, somos todos tributários do "pacto fraterno" constitutivo de uma sociedade política entre iguais, ao mesmo tempo que tal condição revela algo estrutural concernente ao mal-estar na civilização, bem como ao sentimento de culpa como um traço indelével do agenciamento de discurso que produz laço social (Lajonquière, 2000).

A sorte da fraternidade está cifrada no sucesso de sua autoinvenção medido pelo grau da impossibilidade de qualquer irmão vir a formatar o lugar vacante do Pai-Simbólico. Sendo tal coisa possível apenas na proporção da lembrança dos irmãos de que, à orfandade de origem, seguiu-se o estabelecimento da igualdade de direitos. Semelhante caminho implica os irmãos num trabalho ético sem descanso – sem fim pelo fato mesmo de não ter origem – que não é senão a própria invenção da política. (...) só resta aos homens lembrar que sua orfandade os condena a inventar uma aliança igualitária de direitos (Lajonquière, 2000, p. 70-71).

Logo, a condição de igualdade passaria necessariamente pelo desamparado e pela culpa inaugural como condições para a invenção igualitária de direitos. O denominado "pacto fraterno" implica a "renúncia igualitária ao gozo público", que se resolve no âmbito político, isto é, a partir do diálogo e da negociação ante a posição ética de renúncia ao gozo.

Assim, a psicanálise mostra que o discurso político não é apenas um dispositivo de poder, ele é também um modo de gozo, ou um discurso de renúncia ao gozo, que pode permitir ao sujeito encontrar outro gozo, contíguo ao desejo, como uma via que se abre para a articulação entre a lei e o desejo que rege o laço social. A lei que, diferentemente da regra, interdita o gozo imaginário em face do Outro. Como esclarece Imbert (2001, p. 81), "(...) a lei que inter-diz e abre para o campo simbólico no qual os sujeitos falantes possam dispor de um lugar que não seja invadido pela enxurrada dos afetos, nem pelas práticas de manipulação e de instrumentalização".

Após a exposição de tais referências, torna-se relevante dizer ainda sobre outra dimensão fantasística implícita ao referente Brasil, que em nossa história emergiu como uma soldagem entre o nome e a coisa, cuja lógica remete ao próprio produto explorado, que terminou por nos nomear, colocando-nos nessa condição singular de "exclusão interna", como diz Calligaris (2000), para situar certa recusa de nossas elites ao movimento moderno a partir do qual uma Nação pudesse se dizer com ares republicanos e democráticos.

Sob a inflação desse imaginário, vigora um espesso "nada querer saber" acerca de nossa dívida com o passado e com a nossa história, como mostra Calligaris (2000) ao trazer para o debate outra fantasia de nossa herança colonial, a saber, a fantasia de escravidão. Fantasia de gozo e de terror, que, por um lado, outorgou para alguns o "direito" ao gozo, tal como na figura retórica do colonizador-explorador, ou gozo do colonizador de exaurir e devastar a terra e o outro semelhante (o índio, o negro, o estrangeiro, a criança, a mulher, etc.), como outrora fez com o próprio pau-brasil; e, por outro, a figura do colono cujo desejo expressa o sonho do colonizado e do imigrante de "vir-a-ser" outro em função de uma nova filiação simbólica, esta que remeteria às condições de criação de laços sociais capazes de reconhecê-los como cidadãos em termos de igualdade e fraternidade, isto é, como "a-sujeitados" ao espírito das leis e ao laço civilizatório moderno.

A fantasia de escravidão não nos remete tão somente ao passado escravagista4, mas se atualizou nas próprias condições dos colonos que, uma vez expatriados, chegavam ao Brasil e não encontravam instituições capazes de valer qualquer contrato firmado além-mar, isto é, não encontravam um Estado de Direito que os livrasse das mãos dos escravocratas das oligarquias tradicionais, para lembrar o caráter marcadamente anti-abolicionista que impulsionou a proclamação da república em 1889. Assim, no limite da busca por humanização – ou um significante que pudesse servir para a formação de um ideal de ego nacional –, o colono dirigiu ao colonizador seu pedido de filiação, na ânsia de encontrar uma pátria capaz de lhe dar um nome, mas o que achou foi uma desautorização da ordem de um desamparo correlato à impossibilidade de encontrar um agente que operasse alguma interdição normalizadora.

Desse modo, entre a busca por reconhecimento de cidadania e o real da escravidão, o que prevaleceria seria a encarnação da fantasia do colonizador em função de um gozo que o "(...) fez confundir o próximo com a própria terra" que procurou exaurir (Souza, 1994, p. 85). Portanto, tal condição de fundação societária remeteria ao "encontro" dessas duas figuras, em que ambas se encontram num contexto de "desterro", na medida em que o "(...) laço que o colonizador parece oferecer ao colono como laço de filiação é um laço real, como na proposta da escravatura"(Calligaris, 2000, p. 112).

É importante que se esclareça que, da parte do colonizador, tal desterro se apresentaria como degradação do próprio território, que poderia significar-lhe uma pátria, "(...) como também a impossibilidade em que se encontra de estar na origem de uma descendência que o tenha como referência simbólica. O efeito desse "duplo desterro" encarna como uma marca exposta no nome próprio do país: "Brasil, o nome do pau primeiro produto de nossa terra esgotado pela fúria colonialista" (Souza, 1994, p. 86).

Nesse sentido, ao comentar sobre a especificidade desse laço social, Sacco (2018, p. 95) aponta que:

o deslocamento da ação exaustiva de exploração, referenciado historicamente à extinção do pau-brasil, tenha condensado no significante 'brasileiro' um Nome do Pai que se remeta, antes de tudo, à expropriação como condição de filiação a uma tradição nacional. Nesse sentido, que a incorporação da exploração se constitua como principal condição para o enraizamento da notória qualidade brasileira de ser cordial, no sentido da cordialidade ser compartilhada como um significado que realiza uma dupla função na linguagem: de desviar do mal-estar que sempre retorna da exploração no trabalho e de estabelecer legalidade sobre a exploração consentida. Em uma conjuntura em que não haja nenhum dégradé entre ser explorado e ser explorador, também não há símbolo que medeie o sujeito e sua respectiva exploração no trabalho. Ao se viver sob o signo inexorável da exploração, o que se exaure é o desejo e, em decorrência, qualquer sonho de um futuro.

Com efeito, no horizonte das promessas de satisfação plena que vincula tal fantasia, aprofundam-se os contingentes humanos cada vez mais insatisfeitos, "livres", mas à deriva do gozo, condição inconsciente que aprisiona o imaginário social à figura de um "salvador da pátria" de plantão, ou legitima-se, mais uma vez, a "lei de Gerson"5. Em suma, não seria esse o destino trágico a que assistimos bestializados em face da política atual do Brasil?

A hipótese deflacionária da dimensão simbólica implícita à educação brasileira ajudaria a compreender como se mantém vigente certa inércia e desigualdade no campo do ensino às diferentes regiões do território nacional. Mesmo quando se trata de pensar a mais recente organização dos sistemas de ensino e das escolas públicas brasileiras, sob a força da lei constitucional, com inúmeras "reformas educacionais", ainda assim nos deparamos com isso que manca, que se repete, que falha em retirar a educação escolar brasileira do profundo marasmo, ou dessa letargia mortal de caráter imemorial.

Essa via de análise mostra como o imediatismo sociopolítico em busca de resultados escolares retrata o capitalismo brasileiro como consumação da própria barbárie. Assim, pode-se pensar a degradação da educação escolar brasileira como um efeito de "síntese do passado" no presente, em que certa repetição ao longo do tempo revela um padrão cínico de resposta, mas não menos perversa, que nos remete aos "donos do poder" que destratam a res publica no país, como marca de uma espécie de deflação política que terminaria por liquidar no varejo qualquer estofo simbólico que conduziria à educação escolar pública ofertada na pólis. Mais ainda, trata-se de reconhecer isso que se mostra ao longo da nossa história como uma fraqueza de ânimo e/ou desejo em se sonhar uma escola pública como um bem comum, em vista da invenção de uma Nação para um Estado, e, consequentemente, como um ato político significante, isto é, que carregaria como marca certa eficácia simbólica implicada à criação do laço social irredutível à vida mais ou menos comum na pólis. Ou seja, refere-se a isso que comporta uma marca diferencial quando considerada a fundação das nações ditas modernas ao longo da História e, em especial, ao lugar destinado coletivamente à educação pública em função da criação e formação de uma Nação, no sentido que aporta algo que faz a diferença (Lajonquière, 2018, 2019).

Nesse sentido, ainda seria necessário aprofundar a reflexão sobre isso que, dado ao laço social herdado de nossa formação nacional, revela algo que insiste e, ao mesmo tempo, resiste em ser simbolizado. Isso que se revela como uma saída imaginária ante as questões que carreiam a vida societária. Uma saída perversa em nível político e social, em que nada se quer saber da função simbólica da escola no processo de formação de uma Nação – suplantando o registro de exceção dos privilégios e da selvageria exploratória –, como condição de possibilidades para uma sociedade que sonha com uma vida minimamente civilizada em algum outro tempo.

Não seria coincidência que, no plano histórico dos discursos das nações, tem se revelado nossa "máscara de civilidade", isto é, uma busca ilusória de reconhecimento internacional a partir de preceitos de cidadania valorizados e defendidos à luz pública internacional, enquanto se convive na vida real com uma prática de cidadania emoldurada através do pessoalismo e do formalismo. Em suma, uma prática alicantina e uma cidadania embusteira. Em outras palavras, a imagem de uma organização societária sem peso e gravidade, em que a cara noção de cidadania se mostra apenas como mais uma figura no papel, enquanto o status de cidadania continua sendo interpretado pela elite política brasileira tão somente como um privilégio para certos grupos sociais (Carvalho, 2002).

Nesse ponto reside a importância de se analisar o estatuto desse tema, bem como o saber que fundamenta esse dispositivo e as consequências de seu exercício para o processo de formação cultural, socialização e humanização dos mais novos, além do que se refere à nossa posição em relação ao Outro, quando se trata da lógica de filiação à Nação, pois bem poderíamos tão somente falar de uma massificação de alienados identificados com o gozo do Outro.

 

Considerações finais

A reflexão acerca do "furor avaliativo" remete à denegação simbólica no campo sociopolítico como sintoma social implicado à educação brasileira. A despeito do que se possa pensar o imaginário pedagógico nacional, o "furor avaliativo" se inscreve no registro especular de uma imagem fantasiosa de acesso a um gozo sem limites – na medida em que se avalia justamente o que não se ensina –, retrato dessa busca por um gozo desmedido relacionado à "fantasia de Brasil". Tal sintoma, constituído desde nossa fundação societária, sobredetermina as práticas sociais e educacionais – de um modo tanto cínico e perverso –, denegando a realidade histórica, recorrendo ao gozo em detrimento da lei e, em plena desfaçatez e impostura, operando resistências contra a civilidade, a diferenciação e a formação social, dado ser paradoxal essa dupla função de encobrir e preservar que presta a função devastadora de tal furor.

No âmbito das políticas públicas de educação, mesmo quando se trata de pensar a mais recente organização dos sistemas de ensino e das escolas públicas brasileiras, sob a força da lei constitucional (Brasil, 1988), com inúmeras "reformas educacionais", ainda nos deparamos com algo que manca, que falha em retirar a educação escolar brasileira do profundo marasmo, dessa letargia mortal de caráter imemorial. Mais ainda, mantêm-se vigentes a dualidade e a desigualdade de oportunidades perpertuadas por meio dos nossos sistemas de ensino, retrato de uma escola pública voltada a gerir a pobreza e a produzir mão de obra que se quer explorar. Eis a essência do "furor avaliativo" que, paradoxalmente, terminaria por deflacionar ainda mais a educação escolar e o ensino nas diferentes regiões do território nacional. Em decorrência disso, em pleno século XXI, novos e velhos desafios se perfilam ante o sonho de engendrar uma escola pública inclusiva, gratuita e de qualidade, que se constitua como direito de todo(a)s, sem discriminação de origem social, raça e gênero e/ou de diferenças biológicas e psíquicas, enfim, uma escola que acolhe, respeita e desenvolve integralmente laços formativos e humanizantes junto à diversidade que nela se encontra e que constitui o grande público da escola brasileira.

 

Referências

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Recebido em junho de 2020 – Aceito em agosto de 2020.

 

 

1 A noção de "quantofrenia" é abordada como "(...) uma patologia que consiste em querer traduzir sistematicamente os fenômenos sociais e humanos em linguagem matemática", visando suprimir quaisquer dúvidas ou incertezas (Gaulejac, 2007, p. 94).
2 "A interpretação de nossa realidade em cima de padrões que não são os nossos serve apenas para nos tornar ainda mais desconhecidos, ainda menos livres, ainda mais solitários" (Márquez, 2014, p. 13).
3 Em face do descompromisso do governo do Segundo Império em relação à manutenção da instrução popular, Moraes Sarmento (apud Chaia, 1965, p. 55) declarou em 1850 sobre "(...) essa mania de se quererem os fins sem se empregarem os meios necessários e próprios".
4 A figura da escravidão está tão arraigada na cultura brasileira que, em pleno século XXI, há representantes políticos que afirmam publicamente, na Câmara de Deputados, que a "escravidão (...) faz parte do ser humano". Trata-se do deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança, herdeiro da tradição da família real portuguesa, o qual buscou relativizar o sistema escravagista nas Américas em plena cerimônia que celebrava os 131 anos da assinatura da Lei Áurea no Brasil. Cf. https://www.youtube.com/watch?time_continue=57&v=rzcn5vp2bwq.
5 Expressão cunhada pelo jornalista Mauricio Dias quando este entrevistou o professor e psicanalista Jurandir Freire Costa, nos anos 1980. A partir de uma análise da propaganda de cigarro cujo protagonista era o jogador Gérson da seleção campeã de futebol da Copa de 70, Dias destaca, por meio dessa expressão, o desejo que a maioria dos brasileiros tem de levar vantagem de modo indiscriminado – traço que a mídia e o saber popular soube associar ao "jeitinho" brasileiro de tirar vantagem de tudo e, posteriormente, também passou a ser usado como sinônimo de malandragem relacionado a atos fraudulentos no mundo político e/ou ao desrespeito a regras sociais de convivência para a obtenção de vantagens. O slogan da peça publicitária era: "Leve vantagem você também. Leve Vila Rica" (www.infoescola.com).
Revisão gramatical: Felipe Aragão de Freitas Carneiro
E-mail: felipearagaofc@hotmail.com

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