SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.25 issue3A partir do impossível, educar é preciso author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.25 no.3 São Paulo May./Dec. 2020

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v25i3p576-580 

10.11606/issn.1981-1624.v25i3 p576-580

RESENHA

 

Inclusão escolar e os paradoxos contemporâneos: uma visada psicanalítica

 

 

Rinaldo VoltoliniI; Paula Fontana FonsecaII

IProfessor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), São Paulo, SP, Brasil. E-mail: rvoltolini@usp.br
IIPsicóloga no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Professora no Mestrado em Educação da Universidade Ibirapuera, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: paulafontanafonseca@gmail.com

 

 

Enjeux d'inclusion à l'école: regards psychanalytiques. Pirone, I. Psychologie Clinique, 2020, 50(2), 278p. https://www.cairn.info/revue-psychologie-clinique-2020-2.htm

Aportar uma visada psicanalítica ao debate atual acerca da inclusão escolar, foi este o desafio proposto aos autores do dossiê recém lançado na França com o título "Enjeux d'inclusion à l'école: regards psychanalytiques". Tema este que há alguns anos instiga os trabalhos no campo da psicanálise e educação e, por isso mesmo, congregou psicanalistas de diferentes nacionalidades a darem suas contribuições.

Maud Mannoni (1988, p.18), em seu clássico livro Educação impossível, anuncia que "a Psicanálise está fadada a estabelecer, no momento oportuno, um problema político". Para a autora, esta seria a vocação mesma da psicanálise: estabelecer um problema político ali onde os "atos médico-psicopedagógicos" operam o rapto do sujeito, aplainando-o ao ministrar remédios de ocasião nos casos em que "as próprias estruturas é que teriam necessidade de ser radicalmente questionadas" (p.49). Bem, como os artigos deste volume atestam, é chegado o momento oportuno de por em causa os fundamentos da inclusão escolar. Fundamentos que, passados quase trinta anos de experiência institucional, não devem mais ser examinados apenas em sua concepção, mas, sobretudo, a partir de uma prática escolar que os colocou em curso. A psicanálise, por sua particular démarche de fazer buraco no discurso do Mestre, démarche lembrada por Ilaria Pirone – pesquisadora da Université Paris 8 e organizadora do presente dossiê – está em boas condições de oferecer instrumentos para que tal análise não se restrinja à polarização tipicamente político-partidária dos que são favoráveis ou contrários ao projeto. Mais do que posicionar-se a favor ou contra – questão que deve se colocar após um percurso de análise, e não de modo apriorístico – os textos deste dossiê põem em jogo o desafio de pensar o encontro com o real que o dispositivo de inclusão representa.

Há um problema político que a psicanálise permite salientar: se incluir for entendido como colocar as crianças dentro da escola de forma homogênea, garantindo assim o acesso de todos à educação, trabalha-se em nome dessa causa – Educação para todos. Independentemente de ser uma causa justa, se empreendida como imperativo no território escolar, corre-se o risco de dirimir as diferenças e negligenciar a complexidade da questão. A ideia de uma inclusão não- toda, tal qual proposta por Voltolini (2005), visa justamente restituir a contingência de um processo de escolarização que é feito no imbricamento do para todos com o um-a-um de cada aluno, cada professor, cada escola. Portanto, sempre considerando essa linha demarcatória entre o dentro e o fora que divide quem pertence de quem não pertence à escola.

"Olhando com mais profundidade, vê-se que em seu cerne este para todos, forjado pelo pacto, é de caráter restritivo e com fronteiras definidas" (Voltolini, 2015, p. 225, grifo do autor). O problema pode ser anunciado nos seguintes termos: a inclusão não se faz por força de lei e tampouco prescinde desta para se efetivar. O marco legal é fundamental enquanto aquele que traz legitimidade pública ao debate; sem ele qualquer questão, por mais que possua amplitude e impacto estatísticos em uma dada população, resta relegada ao âmbito das soluções privadas: o famoso cada-um-por-si. Por outro lado, é notório que a simples escritura de uma lei, mesmo quando ela vem acompanhada de uma boa implementação administrativa nas instituições concernidas, não basta para que uma mudança social se estabeleça: uma lei não cria uma cultura. Se o que o projeto da escola inclusiva pretende é criar uma cultura inclusiva nas escolas, deve começar por admitir que isso é um processo cuja complexidade não se esgota na escritura de uma lei e de sua implementação. O próprio fato de que tenha sido necessária a criação de uma lei da inclusão é, em si mesmo, a prova maior de que tal cultura não existe ordinariamente e que precisa de um expediente extraordinário para estimular sua consecução.

Freud soube bem mostrar este hiato que separa e reúne ao mesmo tempo as leis e os costumes. O totem – representante da lei – e o tabu – representante dos costumes – estão associados, mas não se recobrem simplesmente. O tabu é aquele gênero sui-generis – com o perdão da oxímoro – de lei que é não-escrita e que funciona de modo insidioso no cotidiano, gerando práticas, erigindo fantasmas, criando hábitos relacionais. Ele reúne os membros de uma dada comunidade em torno de um pacto, enquanto a lei os reúne em torno de um contrato. Para que o totem da inclusão ganhe dimensão efetiva, os tabus que a compõem devem ser enfrentados, o que não se faz sem a incursão nas práticas cotidianas da escola.

Além de dar consequência a essa distinção freudiana capital, evitando o caminho habitual de pensar a partir do paradigma lei/implementação, os textos desse dossiê dão prova de astúcia ao recuperar a história normativa que o próprio conceito de inclusão possui. Desde sua origem no século XVIII, como nos aponta Foucault (2010) em seu livro Os anormais, a ideia de inclusão esteve ligada à ideia de norma. Incluir era fundamentalmente incluir em uma norma, ou seja, fazer valer para aquele incluído todo o peso de um discurso racional que disciplina sua existência. Ainda que a vocação do discurso da escola inclusiva seja emancipatória, torna-se fundamental verificar em sua perspectiva a presença desta normatividade afim de melhor combatê-la.

Sobretudo, quando se trata de combater a tendência que este discurso pode ter de se colocar de modo benfeitor. Não por acaso, durante séculos a inclusão das pessoas com deficiência foi feita pelas instituições religiosas que albergavam estes sujeitos negados em sua existência pelo Estado e pela sociedade, na insígnia de que eram também filhos de Deus. De filhos de Deus a cidadãos, um passo importante precisa ser dado. Propondo-se como reparadora da injustiça social histórica feita com certos grupos minoritários, a inclusão pretende pôr o acento sobre esta cidadania negada e assegurar os direitos civis até então desconsiderados para estes cidadãos. Mas ela precisa guardar observância contra o risco de que sua vocação reparadora não se torne benfeitoria social, risco que ela assume quando enfatiza a realização dos direitos negados em detrimento da mudança social que a realização destes direitos precisa trazer. A própria evolução do direito nas sociedades democráticas, como bem salientou Gauchet (2007), pendeu para uma concepção neoliberal: tenho direitos logo sou! A perspectiva da educação inclusiva não deveria sucumbir ao neoliberalismo do campo jurídico, dentro do qual ela só faria surgir uma inclusão de direitos, e não uma inclusão social.

Com efeito, como aponta Pirone (2020) neste dossiê, o primeiro que se trata de sublinhar e analisar é o quanto a inclusão escolar está tomada pelos paradoxos da nossa contemporaneidade. O da normatização generalizada para fins de controle e de mercado é o principal deles. Um exame aprofundado do tema da norma é realizado na entrevista conduzida pela organizadora do dossiê com sua colega de Universidade, a professora Dominique Ottavi. Na ocasião, elas conversaram com o filósofo Pierre Macherey sobre o tema. O entrevistado retoma as contribuições do clássico estudo O normal e o patológico, de Canguilhem.

É o que distingue fundamentalmente a norma de uma lei: a lei é um imperativo que o seu carácter formal torna inevitável ("a lei é a lei"), o mesmo não acontece com uma norma que, sorrateiramente incorpora-se materialmente à natureza dos seres que controla de forma insidiosa, aparentando naturalidade, sem precisar ser reconhecida e se declarar como tal. (Pirone & Ottavi, p. 9, tradução nossa)1

O sujeito existe em sua relação com a norma, afirma o entrevistado, trazendo as contribuições de Canguilhem para o centro da cena. Ao mesmo tempo, a norma é depreendida da interação do indivíduo com o meio. Segundo Canguilhem (2009, pp.112-113) "o ser vivo e o meio, considerados separadamente, não são normais; [...] é sua relação que os torna normais um para o outro". Deste imbricamento mútuo, decorre o conceito de normatividade que faz referência à capacidade do organismo ‒ biológico e social ‒ de criar novas normas de viver. Há, portanto, um equilíbrio instável que busca a criação de normas e formas de vida, mas a estagnação deste movimento condena o organismo à uma forma invariável, patológica.

As políticas de normatização e patologização dos corpos acabam por operar este "sentimento de vida contrariada" (Canguilhem, 2009, p.53) ao fixarem os sujeitos em formas invariáveis, explicadas a partir de condições que são entendidas como naturais, intrínsecas à determinados organismos que serão entendidos, desta feita, como anormais. Há, neste ponto, uma inversão importante que Canguilhem destaca: se é correto dizer que o patológico é anormal, o inverso não é verdadeiro. Assim, a questão que nos interessa pensar reside nos efeitos que a anomalia, entendida como expressão de outras formas de vida possíveis, tem no meio social do qual ela participa.

A feliz lembrança deste texto é suficiente para recolocar em discussão, de modo aprofundado, o peso da questão da norma. Neste autor, como em Foucault – que não por acaso foi orientando do primeiro em sua tese de doutoramento – vemos surgir uma crítica contundente ao que a normatização pode acarretar: uma restrição das possibilidades da vida. Talvez, o grande mérito do discurso inclusivo esteja justamente naquilo que ele lembra quanto à pluralidade que é ao mesmo tempo um expediente da vida – a vida em suas múltiplas espécies – e o preceito da política: polis é igual a vários! Mas para manter esta inspiração em aberto, a inclusão tem que evitar se deixar condicionar pela normatização que está presente em sua perspectiva histórica, como no estado atual da sociedade contemporânea neoliberal.

A perspectiva psicanalítica que se deixa ler ao longo dos artigos que compõem o dossiê, fazem valer o que Mannoni (1988, p.16) anunciou precisamente como sendo da ordem de uma "subversão de um saber e de uma práxis", de modo que a escola possa se inventar a partir do estranho que as crianças trazem quando tomadas uma a uma.

Os vários atores da educação inclusiva se veem considerados nos textos que compõem os artigos do dossiê. Professores, alunos, agentes administrativos são tomados não na perspectiva dos papéis que desempenham, mas muito mais da posição subjetiva em que se encontram no contato direto com o cotidiano inclusivo. Não poderia ser diferente se se trata da psicanálise, uma vez que é desde sua posição subjetiva que algum ato pode ser feito. O erro comum de considerar os personagens institucionais a partir dos papéis que eles estão convidados a desempenhar constitui um obstáculo a ultrapassar, quando se quer trabalhar de modo consequente com a inclusão. Acreditar na lógica dos papéis desempenhados é acreditar na possibilidade do sujeito de ajustar seu ato a um texto prescrito, no caso, o texto da educação inclusiva. A psicanálise está aí para mostrar o engodo desta assertiva e propor a alternativa de examinar o real do encontro cotidiano como sendo o campo possível de intervenção. O leitor encontrará, neste dossiê, textos que tratam deste real do encontro com a inclusão.

 

Referências

Canguilhem, G. (2009). O normal e o patológico (6a. ed.). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária.         [ Links ]

Foucault, M. (2010). Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo, SP: WMF Martins Fontes.         [ Links ]

Gauchet, M. (2007). La démocratie d'une crise à l'autre. Nantes: Cécile Defaut.         [ Links ]

Mannoni, M. (1988). Educação impossível. Rio de Janeiro, RJ: Francisco Alves.         [ Links ]

Pirone, I. & Ottavi (2020). Entretien avec Pierre Macherey: «La force des normes». Psychologie Clinique, 50(2), 7-14. https://doi.org/10.1051/psyc/202050007        [ Links ]

Voltolini, R. (2005). A inclusão é não toda. In: F. A. G. Colli & M. C. Kupfer (Orgs.). Travessias (pp. 149-155). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Voltolini, R. (2015). Miséria ética na educação inclusiva: por uma inclusão política mais do que social. Educação, 38(2), 222-229. doi: https://doi.org/10.15448/1981- 2582.2015.2.20048        [ Links ]

 

 

Recebido em novembro de 2020 – Aceito em novembro de 2020.

 

 

1 « C'est ce qui distingue fondamentalement la norme d'une loi: la loi est un impératif que son caractère formel rend incontournable (« la loi c'est la loi »), il n'en va pas de même pour une norme qui agit par en dessous en s'incorporant matériellement à la nature des êtres qu'elle contrôle de façon insidieuse, tout naturellement en apparence, sans avoir besoin de se faire reconnaître et de se déclarer comme telle. » (Pirone & Ottavi, p. 9)
Revisão gramatical: Josca Ailine Baroukh
E-mail: jobarouk@gmail.com

Creative Commons License