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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.26 no.1 São Paulo jan./abr. 2021

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v26i1p44-57 

10.11606/issn.1981-1624.v26i1 p44-57

DOSSIÊ

 

Sofrimento e trabalho em tempos de pandemia: uma intervenção clínica com educadores

 

Sufrimiento y trabajo en tiempos de pandemia: una intervención clínica con educadores

 

Suffering and work in times of pandemic: an enlarged clinical intervention with educators

 

Souffrance et travail en temps de pandémie: une intervention clinique élargiee auprès des educateurs

 

 

Marta Rezende CardosoI; Aline Gonçalves DemantovaII; Gabriel Ventura Lara e SilvaIII; Júlia Christo Davel AlvesIV; Vitor Hugo Lara HonorioV; Yasmin de Aguiar TannuriVI

IPsicanalista. Professora Titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: rezendecardoso@gmail.com
IIPsicóloga e psicanalista. Mestre em Teoria Psicanalítica e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: alinedemantova@gmail.com
IIIGraduando em Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: gabrventura@gmail.com
IVGraduanda em Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: julia.davel@hotmail.com
VGraduando em Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: vitor.h.lara@gmail.com
VIGraduanda em Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: yas.tannuri@gmail.com

 

 


RESUMO

Com base em um projeto de intervenção social clínica, fundamentado na psicanálise e dirigido ao atendimento de professores do ensino básico da rede municipal do Rio de Janeiro, são analisados neste artigo aspectos envolvidos em sua experiência subjetiva. É priorizada a questão de sua relação com a esfera do trabalho, tendo como foco central as ressonâncias psíquicas do confronto sofrido por eles com a situação da pandemia da Covid-19. Trata-se de abordar seu impacto na rotina das atividades de trabalho desses sujeitos, na área da Educação, já marcadas pela precariedade social, fonte de vulnerabilidade psíquica. O isolamento social imposto pela pandemia, aliado a outras consequências, evidenciou, e mesmo acentuou esse quadro, objeto de especial atenção na proposta clínica, cujas linhas mestras são brevemente trazidas no texto.

Palavras chave: psicanálise; trabalho; educação; sofrimento; pandemia.


RESUMEN

Basado en un proyecto de intervención social clínica, apoyado en la psicoanálisis y dirigido a la asistencia a profesores de la enseñanza de la red municipal en Rio de Janeiro, analizamos aspectos envueltos en su experiencia subjetiva. La cuestión de su relación con la esfera del trabajo es priorizada, habiendo como foco central las resonancias psíquicas del confronto que ellos sufren con la situación de la pandemia de Covid-19. Es cuestión de abordar su impacto en la rutina de las actividades de trabajo de esos sujetos, en el área de la Educación, ya marcadas por la precariedad social, fuente de vulnerabilidad psíquica. El aislamiento social impuesto por la pandemia ha evidenciado tal cuadro, objeto de atención en la propuesta clínica, cuyas líneas maestras están brevemente expuestas en el texto.

Palabras clave: psicoanálisis; trabajo; educación; sufrimiento; pandemia.


ABSTRACT

Based on a project of social clinical intervention, founded on psychoanalysis and addressed to the assistance of teachers of basic education in the local network in Rio de Janeiro, we examine in this article some features involved in their subjective experience. The issue of their relation to the sphere of work is prioritized, having as a central focus the psychic resonances of the confrontation they endured in the situation of Covid-19 pandemic. It's a matter of approaching its impact on the routine of work of these individuals in the area of education, already marked by social precariousness, source of psychic vulnerability.The social isolation imposed by the pandemic highlighted and even reinforced such picture, object of attention in the clinical proposition whose guidelines are briefly developed in the text.

Keywords: psychoanalysis; work; education; suffering; pandemic.


RÉSUMÉ

En tenant comme base un projet d'intervention social clinique, en ayant comme fondement la psychanalyse, projet consacré au soin de professeurs de l'enseignement assuré par le reseau municipal de Rio de Janeiro, dans cet article des aspects liés à leur expérience subjective seront analysés. La question de leur relation avec le champs du travail sera privilegiée dont l'axe central sont les ressonances psychiques de la confrontation de ces sujets avec la pandémie du Covid 19. Il s'agit d'aborder son impact sur leur quotidien de travail, dans le champs de l'Education, déjà marqué par la precarité social, source de vulnérabilité psychique. L'isolement social, imposé par la pandémie a evidentié et a aussi acentué ce cadre, objet d'attention dans la proposition clinique dont les grandes lignes sont syntétiquementpresentées dans ce texte.

Mots-clés: psychanalyse; travail; education; souffrance; pandémie.


 

 

Neste artigo iremos explorar alguns importantes elementos envolvidos na relação entre educação, trabalho e subjetividade. O foco de nossa reflexão, apoiada em uma proposta de intervenção clínica vinculada ao projeto de extensão "Psicanálise e Educação: intervenção social clínica para uma escola possível", se volta para a dimensão de vulnerabilidade psíquica, considerando a repercussão do surgimento da pandemia de Covid-19, em diferentes planos, em um grupo de professores do ensino básico da rede municipal do Rio de Janeiro. O campo no qual atuamos, fonte da investigação que ancora o material que trazemos no presente artigo, é orientado pelas diretrizes básicas do referido projeto de extensão, do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Este projeto é diretamente vinculado ao Projeto Travessia1, da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ), com convênio com a Secretaria Municipal de Educação (SME-RJ) dessa cidade. É o Projeto Travessia que centraliza as ações implicadas nessa proposta de intervenção, norteando as atividades de extensão.

As inúmeras ações feitas pelo Grupo Travessia tiveram sempre o objetivo maior de constituir espaços não hierarquizados, de liberdade de expressão, potencializando a reflexão colaborativa e a criatividade na perspectiva de uma clínica ampliada. Esta atenta para questões sociais, envolvendo coletividades e subjetividades individuais, tomadas em uma perspectiva de pertencimento grupal. No caso do projeto ao qual atualmente nos dedicamos e com o qual se estabeleceu parceria com a UFRJ, trata-se de trabalhar a partir das inter-relações entre educação, arte-cultura e saúde integral.

A proposta de intervenção social clínica concernente ao projeto consiste na realização de oficinas com professores, cuja meta principal é propiciar a troca de experiências e a abertura de narrativas entre pares, tentando redimensionar os áridos desafios que habitam o dia a dia desses sujeitos. Dentre outros objetivos, busca-se que os professores participantes venham a ampliar sua visão acerca das problemáticas implicadas no processo de educação do qual são agentes absolutamente fundamentais. De forma breve, nossa busca enquanto terapeutas é oferecer um espaço de liberdade de expressão que consiste, em primeiro lugar, no acolhimento das demandas dos professores. Uma das visadas centrais dessa intervenção é fortalecer a autonomia desses sujeitos, na tentativa de que cada um deles possa construir um novo espectro de questões em seu cotidiano de trabalho. Isso é favorecido pela potencialização de sua capacidade criativa, o que julgamos permitir a abertura e a intensificação de novas estratégias subjetivas para lidar com as questões colocadas. A partir da inserção nesse processo de troca grupal, pensamos ser possível uma alteração das perspectivas de atuação desses sujeitos, inclusive quanto à percepção que têm da importância e força da missão por eles exercida enquanto agentes educadores.

O projeto em comum reúne de modo indissociável as três instituições citadas, através do oferecimento de uma proposta de intervenção social clínica, embasada no saber psicanalítico, realizada em grupo com educadores de algumas unidades escolares municipais de ensino infantil e fundamental. Nosso olhar se volta, em primeiro lugar, para a inserção desses sujeitos – docentes nesse importante segmento da educação pública – em um cenário urbano marcado pela precariedade, pela exclusão e pelas violências política e social. De acordo com o que ressalta Facci (2019), conforme diariamente documentado na mídia, são notórias – além da precariedade urbana pelas condições socioeconômicas de muitos bairros da cidade do Rio de Janeiro, com a presença expressiva de favelas – as múltiplas situações de violência na escola, tais como acertos de contas entre gangues, agressão a professores por alunos, assassinatos cometidos dentro da escola, agressões físicas diversas e depredação do patrimônio público. Tal contexto faz com que, muitas vezes, esses profissionais já se encontrem em significativo estado de vulnerabilidade psíquica. Este pode neles se apresentar, do ponto de vista interno, em um sentimento de desamparo e um estado de desorganização subjetiva, fonte, muitas vezes, de dor e sofrimento psíquicos, estados suscetíveis de gerarem paralisação de seu potencial criativo.

Segundo Santos (2014), em ampla pesquisa que realiza, são vários os determinantes implicados no vivido de mal-estar nesses sujeitos. Na análise que ele faz com base em várias pesquisas na área, indica alguns deles, tais como a falta de reconhecimento de sua função de professor, aliada à falta de respeito por parte dos alunos e, igualmente, dos governantes e da sociedade em geral. Acrescenta ainda, como fator relevante, os baixos salários na rede pública do ensino básico, a crescente escassez dos espaços de discussão coletiva, além do estabelecimento da tripla jornada, com sobrecarga e diminuição de uma participação mais expressiva na gestão e no planejamento do trabalho docente e como educador, em um âmbito mais amplo.

A efetivação dessa proposta de natureza clínica, mas em seu sentido ampliado, visa justamente a constituir espaços de liberdade de expressão e de troca entre pares, a partir, dentre outras perspectivas e recursos, da promoção de uma reflexão colaborativa entre pares, com vistas a favorecer, por exemplo, uma experiência de compartilhamento identificatório. Por sua vez, a experiência possibilita o exercício da capacidade narrativa desses sujeitos, por meio de um efetivo intercâmbio entre eles, impulsionado pela escuta e pela intervenção de terapeutas, fazendo uso de ferramentas favorecedoras de processos de continência e de abertura da fala desses sujeitos. A dimensão de criatividade tem papel de destaque nessa atuação, com vistas a permitir aberturas no processo de manejo clínico. A criatividade é utilizada como elemento especial de mediação na instrumentalização de dispositivos facilitadores da elaboração de experiências, as quais implicam em dificuldades encontradas no cotidiano. Têm-se aqui em vista seus diferentes destinos no psiquismo desses sujeitos, individualmente ou em situação de grupo, no coletivo profissional em que estão inseridos. Mencionamos, por exemplo, os efeitos subjetivos de um confronto diário com os limites impostos pelas condições, muitas vezes, precárias no ambiente escolar e de seu entorno (por exemplo, nas áreas de violência urbana, tão presentes no Rio de Janeiro). Diante desses estados, temos observado a importância da intervenção psicanalítica mediante a utilização de recursos lúdicos que parecem favorecer, em muitos casos, uma disposição psíquica menos enrijecida, com resgate da capacidade criativa desses sujeitos, educadores, auxiliando-os no processo de elaboração interna de certas situações-limite vividas no contexto escolar, em seu cotidiano de trabalho nas mencionadas escolas.

O enquadre ampliado tem endereçamento prioritário a problemáticas que concernem a uma dimensão coletivizada, própria ao laço social e à singularidade do cotidiano profissional dos referidos sujeitos, com o objetivo de neles possibilitar a abertura e o incremento de um processo de elaboração interno – intrapsíquico – e intersubjetivo, que possa contribuir para a atenuação de seu sofrimento psíquico, vivido individual, mas referido, no entanto, enquanto foco principal, a uma situação compartilhada, vinculada dominantemente a uma dimensão coletiva. Na parte final do presente artigo, algumas ilustrações relativas ao trabalho clínico realizado deixarão os pontos centrais dessa proposta ainda mais claros.

Antes do fenômeno da pandemia de Covid-19, as atividades do Projeto Travessia (SBPRJ) – que, como dito acima, orienta as metas do projeto de extensão – eram realizadas em módulos de oficinas semanais, com duração pré-estabelecida, com alguns desses professores, cuja liberação de carga horária com essa finalidade havia sido possibilitada pelo convênio com a SME-RJ. Como será mais detalhado na segunda parte deste artigo, as oficinas até então realizadas com os professores foram temporariamente suspensas desde março de 2020 em função da pandemia, que veio a impedir os encontros presenciais. Porém, a partir de então, a equipe de terapeutas se dividiu em grupos menores, e passou a promover, por via remota, outra modalidade de intervenção. Foram realizados, de março até o presente momento, encontros com parte dos professores participantes das oficinas, aqueles que, diante da proposta do grupo Travessia, desejaram receber suporte nesse período crítico e de radical modificação de sua prática profissional, gerando grande afetação em sua vida psíquica e social.

Para compreendermos os elementos em jogo nessa proposta de atuação social clínica, a qual foi adaptada para dar conta da situação da pandemia e de sua dimensão potencialmente desestabilizadora, faz-se necessário considerarmos, de forma integrada a esses elementos psíquicos, a questão da singularidade dos elementos sociais próprios ao contexto particular no qual o público alvo dessa proposta de intervenção está inserido. O surgimento da pandemia resultou em uma modificação inesperada e abrupta das atividades desses educadores, o que possui extrema repercussão psíquica. A esfera do trabalho possui significativa importância na vida subjetiva. Com relação a este ponto, nossa atenção se volta, neste artigo, especialmente para o impacto e para determinados impasses advindos da situação da pandemia. Consideramos alguns dos múltiplos destinos que têm essa experiência no funcionamento psíquico, seja no plano individual, seja no plano do grupo de pertencimento. Referimo-nos ao grupo ao qual o sujeito se encontra vinculado em seu cotidiano profissional, levando em conta que as atividades de trabalho viram-se profundamente atravessadas por essa experiência.

 

O trabalho dos educadores envolvidos no projeto

A atuação dos educadores vinculados à rede municipal do Rio de Janeiro é permeada, em múltiplos aspectos, por uma condição de precariedade social, marca expressiva de seu cotidiano de trabalho, configurando experiências de violência social e política e de estresse. Tais fatores tendem a potencializar um estado de vulnerabilidade psíquica, o qual se manifesta através de diferentes modalidades e níveis de sofrimento psíquico.

O cenário da educação pública na cidade do Rio de Janeiro é, em grande parte, caracterizado pela violência e pela desigualdade social. Um levantamento, feito entre fevereiro de 2017 e fevereiro de 2018, revelou que 46% das 1.886 escolas e creches municipais dessa cidade registraram pelo menos um tiroteio ou disparo no seu entorno, sendo que os confrontos aconteceram em um raio de 300 metros de distância, isso ocorrendo em 871 unidades de ensino (Jornal da Globo, 2018). Tal contexto é fruto de um modelo social que vem sendo construído nos últimos séculos, e cuja marca é a exploração, a exigência de produtividade e acumulação de bens, tendo como consequência profundas desigualdades sociais e estruturais, historicamente mantidas. A este respeito, Bezerra Jr. (2005) sustenta que, antes, se tratava de "um regime de distribuição de direitos e deveres e um mapeamento do lugar reservado a cada um no universo social" (p.40). No modelo neoliberal, tendo em vista as políticas e mecanismos econômicos que o caracterizam, intensifica-se a tendência em se excluir contingentes significativos de seres humanos que, sendo, muitas vezes, dispensados, perdem seu lugar no sistema de pertencimento coletivo, tornando-se supérfluos e obsoletos.

A pandemia do novo coronavírus no Brasil escancarou e acentuou essa diferença, a violência de Estado e suas disparidades. As escolas municipais do ensino básico possuem, com frequência, população e entorno marcados por situações de precariedade socioeconômica; dessa forma, entendemos haver especial entrecruzamento entre o âmbito político e a dinâmica nas relações de trabalho envolvidas nesse particular exercício da vida profissional. Esse entrecruzamento ganha expressiva visibilidade nas próprias questões trazidas por esses agentes educadores nas oficinas de intervenção clínica. Sobre este ponto, traremos também algumas ilustrações na parte final deste artigo, quando abordaremos de forma mais direta, ainda que brevemente, certas passagens de encontros realizados no decorrer de nosso trabalho de intervenção.

Uma configuração político-social, estabelecida em um contexto urbano precário, opera como potencializadora na geração de um estado de vulnerabilidade psíquica. Ela expressa, sob diferentes figuras, inúmeras vivências subjetivas no cotidiano de trabalho desses indivíduos, tais como: sentimentos de angústia, sintomas psicossomáticos, dificuldades na relação com os pares profissionais, com alunos e seus familiares, muitas vezes culminando, inclusive, na evasão docente. Evidenciam-se, assim, em todas estas expressões sintomáticas – muitas delas presentes, como veremos adiante com exemplos de falas dos sujeitos participantes do processo de intervenção clínica –, múltiplas reverberações no processo educacional como um todo, as quais, somadas ao ganho de expressividade de um discurso social que tende a desvalorizar a docência e o ensino público, salientam a experiência de um sofrimento coletivo que parece particularmente presente nesses profissionais da educação, o que está intimamente ligado à esfera concernente ao laço social.

Conforme mostram Coutinho e Carneiro (2016), a educação constitui um dos principais meios de subjetivação, considerando-se a potencialidade transformadora que lhe é inerente. Porém, é preciso ressaltar as interferências causadas na saúde psíquica e na prática dos educadores pelos diferentes níveis de violência e abandono social que atravessam o cenário de seu cotidiano de trabalho. No trabalho dos educadores nas escolas públicas, a organização do trabalho se apresenta, como pontuam Silva e Piolli (2017), pelos modelos gerenciais neoliberais, os quais foram transpostos do mundo corporativo ao espaço escolar. Com a técnica e os métodos de automação, o trabalho perde seu caráter complexo, ligado à realização pessoal do trabalhador e à construção de sentido, passando a ser formalizável e reproduzível.

No campo da educação, ainda segundo Silva e Piolli (2017), foi possível observar que esses modelos foram aplicados de forma a modificar os objetivos efetivamente educacionais. O que se pensava ser o lugar de formação de cidadãos passa a ser, de modo dominante, de qualificação de um capital humano, pensando na escola como "empresa aprendiz". Nesse sentido, a lógica da produtividade, da competitividade e do individualismo parece tomar conta do campo da educação, alterando significativamente a relação dos professores com seu trabalho na construção de sua identidade. As expectativas externas se voltam para a produtividade, para o individualismo e o utilitarismo, em detrimento de ideais erigidos no psiquismo desses sujeitos, comprometidos com a qualidade da educação e da construção de sua identidade de educador. Esses imperativos tendem a promover um sentimento de desamparo e frustração. O que pode estar em jogo em seu universo identificatório é intensamente desqualificado, pela submissão exigida a essa árida realidade, instrumentalista, geradora de solidão e desamparo. Afirma Dejours (2007) que as relações de trabalho dentro das organizações frequentemente despojam o trabalhador de sua subjetividade, fazendo dele uma vítima de seu trabalho.

Marcado pelas prescrições rígidas em relação a um currículo e ao material didático padronizados, o ambiente escolar oferece pouca oportunidade para que os professores possam exercer sua autonomia no processo ensino-aprendizagem, ao mesmo tempo em que se exige de sua atuação a demonstração de serem um trabalhador criativo e inovador (Silva &Piolli, 2017). Isso evidencia uma contradição no âmbito das prescrições, exigindo que os professores atendam a diferentes expectativas – as suas próprias, as dos seus superiores, as dos alunos e também as dos pais destes –, nem sempre passíveis de conciliação (Lapo& Bueno, 2002).

O controle e a vigilância manifestados através de constantes avaliações externas, por outro lado, culpabilizam diretamente o professor ao buscar resultados baseados nesse modelo gerencial (Silva &Piolli, 2017). Para além da responsabilização individual pelo fracasso da educação, há evidentes sentimentos de frustração e impotência partilhados pela categoria, o que, em grande parte, seria efeito da ausência do Estado e de políticas públicas que pudessem contribuir para a melhor execução do trabalho docente. Uma das consequências disso é a destruição dos coletivos de trabalhadores dentro das escolas, já que, a partir desse modelo, o professor tende a ficar impedido de contribuir com sua criatividade para esse coletivo.

Há escassez cada vez maior de espaços de participação coletiva, sem atenção, por exemplo, a uma distribuição de carga horária suscetível de incentivar e possibilitar tal finalidade no cotidiano das escolas. Isso igualmente se dá no nível das regiões que aglutinam diferentes escolas, fazendo obstáculo à discussão entre pares. Há também pouca participação dos professores na gestão escolar, dentre outras atividades, as quais poderiam proporcionar maior troca entre eles, inclusive, para formação de lideranças e organização de movimentos de classe profissional. Note-se que, muitas vezes, o professor não recebe o reconhecimento de seus pares em um ambiente de competitividade e individualismo. Assim, o sentido da profissão é, de certo modo, perdido, dando mais espaço ao adoecimento docente (Silva & Piolli, 2017).

Considerando a relação entre a vulnerabilidade psíquica e os estados de precariedade social, podemos pensar o trabalho como importante mediador das consequências que esse excesso de demandas do ambiente tem sobre a saúde psíquica desses indivíduos. A partir do sofrimento individual, o sujeito busca, no trabalho, a realização e construção de sua identidade (Silva & Piolli, 2017). Assim, o exercício de uma profissão pode tanto agravar o sofrimento, em direção ao adoecimento, quanto pode transformá-lo em prazer, conferindo ao trabalho papel de mediação na saúde do trabalhador.

A crise provocada pela pandemia do novo coronavírus veio potencializar uma situação já caracterizada, portanto, por grande descompasso entre o ensino, sua forma e conteúdos abordados, e as mudanças sociais. O sistema de educação parece não acompanhar o ritmo e a necessidade que veio a ser colocada por esse fenômeno disruptivo na vida em sociedade. Com a experiência do ensino remoto improvisado e imposto pela pandemia, essas questões tenderam a se agravar. Principalmente na educação pública municipal, a distância entre a escola e a realidade social dos alunos se tornou um impedimento para a continuidade do vínculo, em vários casos. Com o isolamento social necessário, as aulas presenciais foram interrompidas e a solução encontrada foi a passagem para atividades on-line. Porém, esta situação evidenciou a desigualdade explicitada pela falta de inclusão digital, tornando impossível a participação de muitos alunos nas atividades escolares.

Na tentativa de mitigar os efeitos do distanciamento para os alunos, os professores continuaram seu trabalho, reinventando seus métodos de ensino, aprendendo a utilizar novas ferramentas e buscando manter o vínculo entre aluno e escola e entre ele mesmo e seu próprio trabalho. No entanto, o objetivo produtivista se faz valer pelas exigências da gestão e pela referência ao modelo considerado ideal, baseado na transmissão de conteúdos para assegurar a qualificação de futuros trabalhadores. Nesse sentido, intensificou-se o descompasso entre as prescrições oferecidas pela organização e a realidade com a qual o professor se encontra, já que a demanda de continuidade, em condições muito menos favoráveis, exige dele maior carga de trabalho. Desse modo, o sofrimento no trabalho se agrava e as possibilidades de seu enfrentamento são enfraquecidas.

Para avançarmos na compreensão teórica das repercussões psíquicas nos educadores aos quais estamos vinculados no cenário da Covid-19, vamos brevemente nos deter no essencial papel da esfera do trabalho na vida subjetiva.

 

Importância da experiência subjetiva do trabalho

Dada a natureza fundamentalmente social do trabalho, as contribuições de Christophe Dejours no campo da psicodinâmica do trabalho colocam sua teoria em lugar de centralidade frente à constituição dos conceitos de saúde mental, sofrimento, reconhecimento e identidade, no campo do trabalho. As pressões do trabalho sobre o âmbito da saúde mental se impõem ao indivíduo, dotado este de uma história singular, tendo suas respostas a essa pressão mediadas, principalmente, pelo espaço social e pela atividade laboral. A psicopatologia do trabalho direciona seu olhar para a "análise dinâmica dos processos psíquicos mobilizados pela confrontação do sujeito com a realidade do trabalho" (Dejours & Abdoucheli, 1994, p. 145).

A compreensão de normalidade para Dejours pressupõe o sofrimento como condição existencial, cabendo compreender seu papel na saúde do trabalhador. Tal teoria ultrapassa a dicotomia saúde-doença, devendo ser pensada como relação dinâmica entre sofrimento e bem-estar/conforto psíquico (Dejours & Abdoucheli, 1994). A saúde mental, a partir dessa esfera da vida, diz respeito ao modo como o sujeito reage e age frente ao sofrimento originado no constrangimento imposto pela organização do trabalho e se coloca entre a patologia e a normalidade (Merlo & Mendes, 2009). Neste sentido, o sofrimento pode ser considerado como inerente ao campo do trabalho.

A vivência de sofrimento psíquico desencadeia o uso de estratégias defensivas, que são organizadas tanto individual quanto coletivamente. As do segundo tipo são as que mais aqui nos interessam, e são desenvolvidas por uma determinada categoria profissional, funcionando como regras, sendo necessário um acordo, muitas vezes implícito, entre os trabalhadores. Essa modalidade defensiva tem uma dupla função: ela ajuda na manutenção do equilíbrio psíquico, caminhando em direção à saúde do trabalhador e resistindo às pressões da organização; mas tem papel igualmente essencial na própria constituição do coletivo.

A respeito da experiência do trabalho, afirmam Dejours e Abdoucheli (1994) que é possível se conhecer "as condições sociais e psicológicas, em função das quais o sofrimento inaugura uma lógica essencialmente defensiva ou essencialmente criativa" (p. 142). Quando a organização do trabalho é rígida ao ponto de impedir o exercício da criatividade, o coletivo se enfraquece, os trabalhadores não podendo construir suas regras de ofício e tendendo, então, a perder suas estratégias coletivas de defesa. A partir disso, podemos distinguir dois tipos de sofrimento: um criador e outro patogênico. O sofrimento que surge no encontro do trabalhador com a realidade de trabalho pode ou não se articular com o sofrimento da história individual do sujeito; quando o contexto de trabalho "permite a sublimação – enquanto atividade socialmente valorizada – é possível, então, dar sentido ao trabalho e ao sofrimento" (Walter & Souza, 2012, para. 11), transformando-o em prazer e experiência estruturante. Esse contexto caracteriza o surgimento do sofrimento criativo. Já a rigidez da organização, a impossibilidade de mudança, a desvalorização e o não reconhecimento do trabalhador produzem o esgotamento dos recursos defensivos, resultando no aparecimento de um sofrimento do tipo patogênico, que inaugura os sentimentos de impotência e frustração, podendo levar, em certos casos, a um estado de descompensação psíquica (Dejours & Abdoucheli, 1994). No que concerne ao campo do trabalho, o sofrimento criativo se refere a "quando o sujeito produz soluções favoráveis para sua vida, especialmente para sua saúde. E, sofrimento patogênico, é ao contrário do sofrimento criativo, ou seja, quando o indivíduo produz soluções desfavoráveis para sua vida e que estão relacionados à sua saúde" (Rodrigues, Alvaro & Rondina, 2006).

É através da validação social que o sujeito se sente seguro consigo mesmo e pode contribuir com o coletivo, dando sentido ao trabalho e agindo de forma a modificar o sofrimento inerente à vida humana e à própria esfera do trabalho. Por outro lado, a falta de reconhecimento traz à tona o sentimento de injustiça e falta de confiança no ambiente, contribuindo para o desequilíbrio da vida psíquica, uma vez que a possibilidade de construção do sentido do trabalho e o fortalecimento da identidade ficam comprometidos. No plano individual, há a possibilidade de adoecimento do sujeito e, no plano social, há a desmobilização e redução da cooperação (Dejours, 2008 citado por Walter & Souza, 2012). O reconhecimento implica também em se entender que a execução do trabalho não se limita somente à tarefa, mas ele representa uma contribuição individual daquele que a realiza (Walter & Souza, 2012). O trabalho envolve a implicação individual, o confronto com a realidade e nos fala sobre a importância do olhar do outro e das relações de alteridade aí necessariamente e fortemente implicadas.

 

Uma proposta de intervençãosocial clínica

Como indicado na introdução deste artigo, em 2018 e em 2019 foram realizadas oficinas de conversação com diferentes grupos de profissionais da educação, ofertando um espaço de acolhimento para a experiência subjetiva deles, em toda sua intensidade e complexidade. Em 2020, antes de iniciarmos o trabalho com um novo grupo, as atividades escolares presenciais foram suspensas em função da pandemia do Covid-19, inviabilizando nossa ação usual. Diante da formulação das novas demandas ocasionadas por esse cenário, como a continuidade do ensino e uma incessante expectativa de sua retomada presencial, nos deparamos com a necessidade de pensar um novo modelo de atividade clínica, adaptada ao contexto atual.

No período pré-pandemia, eram utilizados, como mediadores terapêuticos, recursos lúdicos, tais como produção de colagens e poemas, exibição de vídeos, exercícios teatrais, com o objetivo de possibilitar a abertura para uma narrativa compartilhada, visando a favorecer, dentre outros aspectos, uma disposição psíquica menos enrijecida, resgatando a capacidade criativa dos educadores e auxiliando no processo de elaboração coletiva de determinadas situações vividas em sua rotina de trabalho. É a partir da constatação do sofrimento resultante dessas situações e de sua intensificação no contexto atual que orientamos nossa proposta de intervenção, ajustando-a, em particular, nossa própria escuta, de modo a tentar adaptar as modalidades de nossa intervenção social clínica.

O desafio que se apresentou a partir da pandemia foi transpor essa proposta de intervenção – estabelecida nas oficinas com um grupo definido de trabalhadores, antes realizada em um local físico determinado, e que contava com o uso de recursos lúdicos materiais específicos –, para um novo modelo, com tempo e espaço radicalmente diferentes. Com a divisão da equipe em alguns grupos menores e, tendo ocorrido um prolongamento importante do distanciamento social, cada grupo de educadores, contando, cada um deles, com dois a três coordenadores terapeutas, passou a ter um movimento mais próprio, que veio a se configurar pelas características singulares de seus participantes e dos recursos mediadores utilizados em cada pequena equipe. Alguns grupos desenvolveram encontros baseados em discussão de temas, outros se utilizaram mais de disparadores artísticos, mas todos tendo que adaptar as atividades para o contexto virtual.

Em todos os grupos, no entanto, o tema da pandemia aparece em primeiro plano nas discussões, seja nas implicações políticas ou no compartilhamento de angústias individuais relacionadas ao confronto com essa experiência. Porém, a esfera do trabalho nunca deixa de estar presente enquanto temática nessa troca compartilhada, nessa "conversação" entre pares, acompanhada pela "escuta" dos terapeutas coordenadores nos grupos. O laço identificatório existente entre os participantes – de acordo, fundamentalmente, com o que Freud (1921/ 1969) indica a respeito dessa operação constitutiva da psicologia de grupos – se dá, sobretudo, pelo papel de cada um deles como profissional da educação; isso se revela fortemente implicado em seu discurso. O fechamento das escolas, o distanciamento do trabalho e os vínculos cultivados na escola são trazidos como fonte de intensa preocupação, sendo um assunto espontaneamente conversado nos encontros. A interrupção da rotina escolar, seja pelo distanciamento do trabalho ou pela adaptação forçada ao trabalho remoto, aparece como fonte de sofrimento no discurso dos educadores. Ao longo dos encontros, alguns temas de destaque foram abordados, tais como a precariedade e os riscos à integridade, aos quais os alunos e famílias estão sujeitos nesse contexto atual; os desafios de um trabalho virtual com os alunos da rede municipal, em especial a baixa adesão e participação dos alunos; a ausência do Estado como elemento de responsabilização e gestão; e a relação desta ausência com a exigência de ações individuais.

Foi bastante discutida, por exemplo, a questão do ensino à distância, considerado medida "emergencial". Os docentes afirmam que a SME exige que eles enviem atividades às crianças e, no entanto, não fornece meios para viabilizar um real processo de ensino e aprendizagem. Mostra-se difícil a manutenção do contato via redes sociais dentro dos limites e exigências de uma relação efetivamente pedagógica. Além disso, há alunos, conforme comentado no grupo, que dividem o mesmo celular com os membros da família. Os professores, do grupo no qual aqui nos baseamos, entendem que tal atuação por parte da gestão das escolas visa a estabelecer uma conexão com os alunos, mas sem considerar que isso poderia substituir o ensino presencial. Para estes profissionais, é notório que o contato e o convívio social, principalmente na educação infantil, são essenciais. Em vários momentos, eles também se questionam como irão receber os alunos na ocasião do retorno das aulas presenciais, já que se trata de crianças confrontadas com uma situação tão difícil. Elas deverão, portanto, ser escutadas e acolhidas, o que se mostra ser fonte de grande ansiedade e de angústia para muitos dos professores do grupo. Sentem-se desamparados, como manifesto em várias de suas falas e conversações nos encontros que com eles realizamos. Este mal-estar psíquico advém, dentre outros fatores, da falta de planejamento e atenção a um processo de discussão e reflexão que pudesse ser realmente dedicado a isso pela própria Secretaria de Educação e pelos gestores de cada escola. Além desse aspecto, certos professores ressaltam a questão, inclusive, antecedente a esta, qual seja, de como os profissionais chegarão às escolas na ocasião do retorno presencial, como se sentirão, do ponto de vista psíquico. Afirmam que, em sua experiência, têm visto muitos colegas com dificuldades emocionais importantes, necessitando de acolhimento para poder acolher, particularmente, as crianças.

Em um dos grupos, um dos educadores – no caso, um dos poucos que participam mais diretamente de reuniões sindicais de educadores do ensino básico da rede pública municipal – comenta que está presente em diversas reuniões e, nestas, "as pessoas só falam", enquanto que "aqui [em seu grupo de conversa] a gente conversa, [...] paramos para nos ouvir" (sic). O compromisso construído dos educadores entre si e o deles com os terapeutas, permitiu que os encontros se tornassem um espaço no qual a troca, o diálogo e o vínculo se revelaram possíveis e ativos. Uma professora afirma, por exemplo, que o grupo tem ajudado muito nesse momento e que as conversas permitem que pensem coisas que antes não pensavam: "[...] dá um clique e com isso podemos seguir adiante" (sic). Outra educadora, a partir de um exercício lúdico no qual a dimensão do trabalho corporal também é utilizada como recurso de mediação, pensou muito na pandemia e afirmou se sentir amarrada, como se não conseguisse ir de um lado para o outro; depois começa a pensar em quais outros ângulos de sua experiência subjetiva e objetiva no atual cotidiano e para que outros projetos ela poderia olhar. Para ela, o movimento singular implicado no "jogo" realizado no grupo nesse encontro teve relação com seu estado emocional, pois estava muito agitada. Relata que tem feito muitas coisas ao mesmo tempo, se movimentando ansiosamente para "tentar dar conta de tudo". Mediante a dinâmica grupal, neste caso com utilização de recursos de expressão corporal, experimentou muitos movimentos sem que nenhum a satisfizesse. Isso a conduziu à lembrança da palavra "indomável", ligada a um dito significativo de sua história de vida, lembrada naquele momento. Esta lembrança não estava referida a um sentido pejorativo desse termo, mas expressava uma forma de enfrentamento. Veio a entender como pode ser importante tentar ser indomável com a vida, "não se deixar levar e botar pra fora mesmo" (sic). O indomável, neste sentido, tinha a ver com não reter o que lhe faz mal, fala que a conduz a articulações importantes sobre sua atuação profissional. Esse material propiciou um movimento identificatório no grupo, um compartilhamento desse tipo de experiência.

Ou seja, a partir daí, houve um rico questionamento no grupo sobre processos ativos ou passivos no ofício dos educadores, sobre os limites e aberturas do potencial transformador em cada um deles. Ao mesmo tempo, pensam nas possibilidades de uma melhor elaboração no que concerne aos limites impostos pela realidade externa, pelas adversidades desse contexto de trabalho, em especial, na situação singular que a pandemia veio a instaurar.

Chama a atenção o quanto essas trabalhadoras revelam preocupação com as condições dos alunos e de suas respectivas famílias. Emergem em suas falas a precariedade e a vulnerabilidade das comunidades e dos alunos que delas fazem parte durante a pandemia. Os educadores falam da sua dificuldade em lidar com isso, de manterem-se empáticos sem que adoeçam. Há uma afirmação do papel social da escola na comunidade e da responsabilidade do professor para com a população a qual está vinculado. Surgem críticas ao enfrentamento da pandemia realizado pelo Estado, mas o movimento grupal evita que se assuma uma postura queixosa e passiva. Alguns profissionais se disponibilizam para realizar entregas de cestas básicas e cartões-alimentação nas comunidades, se expondo ao risco de contágio.

O trabalho docente proposto durante a pandemia também é fonte de sofrimento. As escolas municipais foram obrigadas a se adaptar às tecnologias de ensino remoto de forma abrupta, sem o planejamento necessário, em relação à capacitação dos professores e ao acesso e adesão dos alunos. Várias instituições não têm articulação coletiva consolidada através das redes sociais, ficando a cargo do professor a transmissão e a comunicação com os alunos e suas famílias, sendo ele pouco estimulado e pouco apoiado na manutenção ativa de sua função. Vale ressaltar que a dificuldade do acesso digital afeta a maior parte dos alunos – questão, conforme reiteram os professores, anterior à pandemia. Além disso, apontam-se pressões da SME-RJ, exigindo maior produtividade. Há uma queixa geral da falta de apoio entre pares no coletivo de trabalho. Ao mesmo tempo em que é exigido que produzam atividades remotas para os alunos, os educadores são confrontados com a falta de contato com a comunidade e de adesão às aulas.

O conflito entre o trabalho prescrito e o trabalho real se acentua ainda mais nesse novo modelo. Essas duas noções são trazidas por Dejours, tendo sido retomadas, por exemplo, em uma de suas entrevistas (Dejours, Barros & Lancman, 2016). Segundo ele, o trabalho é, em essência, subjetivo justamente por sempre haver algum hiato entre o trabalho prescrito – a tarefa – e o trabalho real, efetivo. O trabalho prescrito se ancora na previsibilidade do processo de trabalho, sendo suas etapas passíveis de previsão. Mas a experiência de trabalho, a partir da clínica do trabalho, mostra que esta previsibilidade pode ser rompida por incidentes, panes, falhas, anomalias, enfim, pelo real do trabalho. É sob a forma do fracasso do trabalhador que se manifesta a experiência do real do trabalho. A inteligência mobilizada para preencher o referido hiato constitui o que Dejours considera como "mistério do trabalho". Este seria o plano próprio à Psicodinâmica do Trabalho. Trabalhar implica, portanto, em fracassar; o olhar se volta, então, para a inventividade que daí advém, ou seja, desse hiato. Este aponta para a capacidade de resistência e de construção de vias de solução, o que implica fundamentalmente a subjetividade do trabalhador.

Os sujeitos em questão trazem importantes questionamentos sobre a educação pública de forma mais geral, sobre o lugar da criança e do professor no processo de educação, sobre a rigidez da prática demasiadamente centrada no conteúdo e no professor, e sobre as dificuldades em confiar e construir a autonomia dos alunos, valorizando e acolhendo-os em suas realidades e nas contribuições que podem trazer. Na lógica dessa construção social, a confiança no outro, em si e no futuro são constantemente ameaçadas. No entanto, diante das instabilidades e desconfianças, o espaço dos grupos, através da intervenção social clínica realizada, foi sendo uma das principais vias de resistência. Os participantes apontam a importância da implicação coletiva, na medida em que esta permite criar estratégias de enfrentamento, falar e escutar, encontrar outros com quem há compartilhamento e reconhecimento possíveis. Também trocam referências teóricas para uma pedagogia democrática, como livros, artigos e produções audiovisuais. A equipe de terapeutas, muitas vezes, acolhe essas indicações e as utiliza como centro de discussão dos encontros.

Em relação à coordenação dos grupos, há uma tensão que oscila entre a preocupação frente a uma posição fixa de queixa, que não promoveria aberturas no campo do discurso e das afetações, ao mesmo tempo em que se teme colocar as questões de forma a responsabilizar os docentes por uma falta que é do campo das políticas públicas e da garantia de direitos, que deveriam ser assegurados pelo Estado. A equipe se preocupa em acolher o sofrimento e as denúncias apresentadas, para, a partir disso, estimular o coletivo a se organizar e propor ações coletivas e individuais possíveis de serem realizadas.

Ao longo do processo, surge o reconhecimento do valor do trabalho do outro, como teorizado por Dejours. O compartilhamento de experiências no trabalho e suas estratégias de enfrentamento suscitam a valorização das técnicas e iniciativas apresentadas pelos pares. Os educadores falam sobre seus projetos, sobre as inovações que trazem para a sala de aula e sobre as propostas criativas que, muitas vezes, são tornadas invisíveis pela mecânica da organização do trabalho. Essa constatação desperta, em muitos encontros e nos diversos grupos, o interesse dos pares presentes, os quais reafirmam o valor de cada contribuição apresentada, que não concerne a uma utilidade quantitativa do trabalho.

Em um determinado encontro, por exemplo, uma participante constata que "se abrir para a experiência não é muito incentivado, porque o governo pede resultados numéricos que não têm nada a ver com isso". Outra professora, movida pela preocupação em manter o contato com as famílias, aliada à necessidade de divulgação de informações relativas à higiene e à prevenção, produz um vídeo explicando os fundamentos e como executar as medidas de proteção sanitária contra o vírus. Apesar da grande resistência encontrada junto à coordenação de sua escola nessa ideia de se estabelecer comunicação com a comunidade, após a alta aprovação da mídia pelos pais, a coordenação da escola agradeceu a docente pela iniciativa.

Podemos analisar esses embates a partir do que foi teorizado por Dejours, que atribui a emergência do sofrimento no trabalho "ao choque entre uma história individual, portadora de projetos, de esperanças e de desejos e uma organização do trabalho que os ignora" (Dejours, 1991, p. 133 citado por Lapo & Bueno, 2002, p. 256). É possível observar nessas situações o exercício da inteligência astuciosa na busca criativa de soluções para as questões apresentadas pela realidade do trabalho; e, também, a tensão entre o julgamento de utilidade do trabalho, proveniente das estruturas hierárquicas da organização do trabalho, e outros elementos de avaliação, compartilhados e valorizados entre pares. O reconhecimento que surge entre pares também é um reconhecimento do sofrimento, tanto daquele que emerge na pandemia, quanto daquele que persiste e habita o cotidiano na esfera do trabalho.

O sofrimento patogênico emerge quando a rigidez da organização do trabalho impede o exercício da criatividade (Dejours & Abdoucheli, 1994). A construção de poemas, desenhos e a utilização de referências artísticas enquanto disparadores das "conversações" e das narrativas compartilhadas, as quais têm lugar nesses encontros terapêuticos, se mostram como mediadores que estimulam as potências necessárias para dar outro sentido ao vivido e transformar o sofrimento patogênico – ligado aos impasses e limites colocados ou, em certos aspectos, intensificados pela pandemia no âmbito das atividades de trabalho – em sofrimento criativo. Vemos que a partir dessas conversações são produzidas soluções mais favoráveis para a vida desses sujeitos, especialmente para sua saúde psíquica. A criatividade se expressa pela construção de estratégias coletivas de defesa entre os pares e de narrativas próprias, os encontros realizados podendo funcionar como facilitadores da abertura para a expressão e elaboração do sofrimento. Nessa elaboração, que permite o acesso a um sofrimento criativo, está precisamente em jogo a possibilidade de um verdadeiro encontro com o plano real do trabalho, ou seja, a própria percepção de que o "fracasso" é inerente ao campo do trabalho, abrindo à possibilidade criativa de invenção de soluções. Temos aqui um signo da dimensão subjetivada própria a esse campo, dimensão a qual, como indicado anteriormente, é reveladora do "mistério do trabalho", nos termos sugestivos que utiliza Dejours na citada entrevista (Dejours, Barros & Lancman, 2016).

Concluindo este artigo, ressaltamos que as angústias individuais compartilhadas nos encontros são acolhidas pela equipe terapêutica e pelos pares e estes tendem a se implicar nas situações-problema, buscando, coletivamente, estratégias para o enfrentamento do sofrimento do outro. Notemos, igualmente, a partir dessa experiência e da reflexão que dela se apreendeu, a riqueza e a abrangência do método clínico psicanalítico, em permanente transformação e abertura, para atender não somente demandas padrão, grupais ou individuais. Trata-se de pensar a clínica psicanalítica de modo efetivamente ampliado, com potencial para atender, através de uma escuta singular e um manejo terapêutico diferenciado, demandas diretamente concernentes a problemáticas próprias à precariedade social. Isso dá especial destaque à dimensão mais diretamente política de uma proposta clínica fundamentada no saber psicanalítico.

No processo de intervenção realizado no projeto, o qual ancora a reflexão que buscamos apresentar e comentar no presente artigo, teve lugar certa transposição do sofrimento individual para a esfera coletiva, através da identificação, em vários aspectos, de cada sujeito participante com seus semelhantes – a ele ligados, de modo privilegiado, por laços vinculados à esfera social do trabalho. A abertura de narrativas e de empatia com o sofrimento do outro, tendo como suporte uma escuta terapêutica, que potencialize experiências de compartilhamento e pertencimento, permite uma ressignificação do próprio sofrimento de cada sujeito, fortalecida por meio da troca entre pares no grupo. O pertencimento a este, por estar representando a esfera do trabalho, elemento de compromisso social e afetivo entre esses sujeitos, funciona como potente operador terapêutico, e que pôde fazer frente, no contexto atual da pandemia, à dor e ao sofrimento psíquicos provocados pelo confronto com as dificuldades, de múltiplas ordens e efeitos, da pandemia, articulando aspectos coletivos e também singulares.

 

Referências

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Recebido em novembro de 2020 – Aceito em março de 2021.

 

 

1 Equipe do Projeto Travessia da SBPRJ: Maria Teresa Naylor Rocha (coordenadora), Eliane Marcellino da Silva e Sonia Verjovsky de Almeida (coordenadoras adjuntas/supervisoras); Aline Gonçalves Demantova, André Luiz Alexandre do Vale, Mariana Fonseca dos Anjos, Pedro Wainer e Renata Azevedo Teixeira (psicólogos juniores).
Revisão gramatical: André Luiz A. Vale.
E-mail: alavale88@gmail.com

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