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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.26 no.1 São Paulo Jan./Apr. 2021

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v26i1p58-67 

10.11606/issn.1981-1624.v26i1 p58-67

DOSSIÊ

 

Escola remota: como resistir à domesticação da experiência escolar?

 

Escuela remota: ¿cómo resistir la domesticación de la experiencia escolar?

 

Remote school: how to avoid the domestication of the school experience?

 

École à distance: comment résister à la domestication de l'expérience scolaire?

 

 

Janaina KlinkoI; José Sérgio Fonseca de CarvalhoII

IPsicanalista e mestranda em Filosofia da Educação (bolsista CNPq) da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: janaina.klinko@gmail.com
IIProfessor Titular de Filosofia da Educação na Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: jsfcusp@usp.br

 

 


RESUMO

Frente ao contexto crítico da pandemia do COVID-19 e de seus efeitos nas práticas educacionais, este artigo pretende recuperar aspectos fundamentais da experiência escolar. Ele estabelece uma compreensão da escola como um espaço e um tempo de transição entre os âmbitos privado e público; como forma de separação da ordem produtiva e como anteparo ao universo familiar. A partir dessas definições, o texto assinala que a diluição das fronteiras entre casa e mundo dificulta que a escola venha a operar como um tempo-espaço de alternância em relação à família. E, tendo em vista as restrições ocasionadas pelo necessário distanciamento social, interroga-se sobre possíveis consequências da virtualidade imposta pelas práticas do ensino remoto, principalmente no que tange ao risco de uma domesticação da escola.

Palavras chave: educação; escola; família; escola remota; ensino à distância.


RESUMEN

Dado el contexto crítico de la pandemia COVID-19 y sus efectos en las prácticas educativas, este artículo tiene por objeto recuperar aspectos fundamentales de la experiencia escolar. Establece una comprensión de la escuela como espacio y tiempo de transición entre las esferas privada y pública; como forma de separación del orden productivo y como mamparo frente al universo familiar. A partir de estas definiciones, señala que la dilución de fronteras entre el hogar y el mundo dificulta que la escuela opere como un espacio-tiempo de alternancia en relación con la familia. Y ante las restricciones causadas por el necesario distanciamiento social, cuestiona posibles consecuencias de la virtualidad impuesta por las prácticas de la educación remota, especialmente en lo que se refiere al riesgo de una domesticación de la escuela.

Palabras clave: educación; escuela; familia; escuela remota; educación a distancia.


ABSTRACT

Given the critical context of the COVID-19 pandemic and its effects on educational practices, this article aims to recover fundamental aspects of the school experience. It establishes an understanding of the school as a space and time of transition between the private and public spheres; as a form of separation from the productive order and as a shield to the family universe. From these definitions, this article remarks that the dilution of the boundaries between home and world makes it difficult for the school to operate as a space-time of alternation in regard to family. And, considering the restrictions caused by the necessary social distancing, it questions the possible consequences of the virtuality imposed by the practices of remote education, mainly concerning the risk of domesticating the school.

Keywords: education; school; family; remote school; distance education.


RÉSUMÉ

Face au contexte critique de la pandémie COVID-19 et de ses effets sur les pratiques éducatives, cet article vise à récupérer des aspects fondamentaux de l'expérience scolaire. Il établit une compréhension de l'école comme espace et temps de transition entre les sphères privée et publique; comme forme de séparation de l'ordre productif et comme bouclier face à l'univers familial. De ces définitions, il souligne que la dilution des frontières entre la maison et le monde rend difficile pour l'école de fonctionner comme un espace-temps d'alternance par rapport à la famille. Gardent en vue les restrictions causées par la nécessaire distanciation sociale, il s'interroge sur les conséquences possibles de la virtualité imposée par les pratiques de l'enseignement à distance, notamment en ce qui concerne le risque d'une domestication de l'école.

Mots-clés: éducation; école; famille; école à distance; apprentissage à distance.


 

 

Temos acompanhado, em meio ao avanço das tecnologias digitais nas últimas décadas, um aumento significativo da oferta do EaD (Ensino à Distância) em diversos contextos educativos. A modalidade é adotada tanto em cursos livres quanto nos de especialização, assim como em graduações e formações técnicas. Quando relacionado à Educação Básica, o ensino remoto tem sido considerado uma das ferramentas à disposição daqueles que praticam a Educação Domiciliar. Nessa proposta, popularmente conhecida pelo estrangeirismo homeschooling, espera-se que a "escola" se realize no espaço doméstico. Assim, as atividades educativas, comumente planejadas por uma equipe pedagógica e conduzidas por professores dentro de uma instituição escolar, passam a ser dirigidas por pais ou responsáveis no espaço privado das casas.

Nos países onde a prática é legalizada – como nos Estados Unidos, Canadá e França – há necessariamente, em maior ou menor grau, algum tipo de regulamentação e supervisão do Estado no que tange ao currículo e à avaliação dos estudantes. Sem legislação específica no Brasil, a educação domiciliar é juridicamente desconsiderada como prática formativa. Ainda assim, segundo dados divulgados pela Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED)1, existem hoje cerca de 7.500 famílias adeptas do homeschooling no país. O tema tem sido retomado em debates políticos nos últimos anos, levando em conta, inclusive, a tramitação de pelo menos quatro projetos de lei no Congresso Nacional2. Tais projetos visam estabelecer os meios legais para que as famílias possam educar seus filhos em casa. A matéria é polêmica e tem sido tratada como objeto de disputas políticas e embates ideológicos, tornando patente a relevância de submeter o tema ao debate acadêmico, potencialmente capaz de superar a mera profusão de slogans e de clichês que muitas vezes marcam os debates dessa natureza.

No entanto, a eclosão da pandemia de COVID-193 nos colocou a necessidade urgente de praticarmos o distanciamento social e evitarmos aglomerações. As escolas foram levadas a fechar suas portas físicas e, respondendo a demandas sociais e econômicas, muitas instituições passaram a aplicar diferentes estratégias na tentativa de garantir à distância a continuidade do processo de escolarização. Desse modo, as famílias se viram obrigadas a adotar uma espécie de "homeschooling temporário", a fim de sustentar o processo de educação formal de seus filhos. Diante do cenário posto, a discussão a respeito da viabilidade de uma escola remota é trazida para o centro do palco e, de maneira inadiável, nos coloca a pensar sobre qual escola queremos e defendemos.

 

Sobre o que (não) consiste o escolar

Quando tratamos do fenômeno da educação, nos vemos impelidos a pensar e investigar uma experiência que necessariamente diz respeito ao convívio entre diferentes gerações que habitam um mundo comum; um espaço e um tempo compartilhados. Isso porque, a educação implica a transmissão intergeracional de um legado simbólico e material. Nas palavras de Hannah Arendt (2007, p. 223), "a essência da educação é a natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo". A autora ressalta, a partir dessa afirmação, que além do nascimento de uma vida orgânica, a chegada de uma criança representa também o nascimento para um mundo de significações que a antecede. Por isso, a educação fundamenta-se justamente na possibilidade (e na responsabilidade4) que temos de escolher e apresentar fragmentos desse mundo compartilhado aos recém-chegados. Assim, eles têm a oportunidade de se apropriar deste legado e, inclusive, transformá-lo de maneira imprevisível. Portanto, quando tomamos a educação como fenômeno de transmissão intergeracional, reconhecemos sua presença em diversas relações, estejam elas contextualizadas no ambiente escolar ou em outros espaços; como no cotidiano familiar, nas comunidades que agregam pessoas de mesma religião ou origem cultural, dentre outros circuitos de encontro social.

Da mesma forma que a educação não constitui uma especificidade da escola, as aprendizagens também ultrapassam as delimitações de seu território e, vinculadas à curiosidade ou à necessidade, podem acontecer a qualquer momento. Inclusive, cada vez mais temos à nossa disposição recursos e ferramentas que promovem o acesso ao conhecimento em diferentes contextos, para além da sala de aula. Quando uma dúvida aparece, rapidamente ela pode ser sanada com uma simples pesquisa em um dispositivo sacado do bolso. Um questionamento sobre como são as coisas do mundo ou como podemos fazer determinadas atividades também pode ser remediado com meia dúzia de vídeos ou tutoriais disponíveis na internet.

Ora, se a educação e a aprendizagem não são exclusividade do processo de escolarização, embora façam parte fundamental da sua experiência, nos perguntamos: o que faz da escola uma escola? E, consequentemente, o que a escola pode oferecer àqueles que adentram o seu espaço? Com o intuito de apresentarmos uma resposta, reunimos aqui três aspectos elementares para a compreensão do que constitui a experiência escolar.

 

Escola como transição

Como já mencionamos, a educação consiste em um fenômeno de transmissão de um legado simbólico e material entre gerações. Portanto, diz respeito ao processo de ambientação que os mais novos experienciam ao chegar em um mundo que os precede e que continuará existindo após a sua partida. De acordo com Arendt (2016, p. 68),

O mundo comum é aquilo que adentramos ao nascer e que deixamos para trás quando morremos. Transcende a duração de nossa vida tanto no passado quanto no futuro, preexistia à nossa chegada e sobreviverá à nossa breve permanência nele. É isso o que temos em comum não só com aqueles que vivem conosco, mas também com aqueles que aqui estiveram antes e com aqueles que virão depois de nós.

Assim, desde o seu nascimento, a criança começa a se relacionar com o mundo. No entanto, inicialmente, esse contato acontece dentro do contexto familiar; por isso, é essencialmente mediado pelos interesses privados relacionados à manutenção da vida enquanto fenômeno biológico e à sua perpetuação. Esse espaço protegido é necessário para abrigar o recém-chegado mas, com o tempo, é importante que a criança se aproxime da experiência do "público" que, nas palavras de Arendt (2016, p. 64) "significa o mundo propriamente dito, na medida em que é comum a todos nós e diferente do lugar que privadamente possuímos nele". Podemos compreender, então, que a escola foi a instituição que inventamos para dar conta dessa função de transição da família para o mundo:

Normalmente a criança é introduzida ao mundo pela primeira vez através da escola. No entanto, a escola não é de modo algum o mundo e não deve fingir sê-lo; ela é, em vez disso, a instituição que interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo com o fito de fazer com que seja possível a transição, de alguma forma, da família para o mundo. (Arendt, 2007, p. 238).

Ou seja, de acordo com a autora, a escola seria uma instituição de caráter intermediário: ainda é um ambiente protegido, porém não tão restrito como o lar; e já apresenta alguns elementos do mundo, embora não corresponda ao mundo propriamente dito, despojado de tutela e proteção. Uma instituição que pretende criar condições para uma transição do âmbito privado para o âmbito público, do universo individual e familiar – considerado um espaço de intimidade e proteção da luz pública –, para o mundo plural e compartilhado, território de visibilidade. Nesse sentido, a escola opera como um elemento, simultaneamente, de separação e mediação com o mundo; a escola o mimetiza, do mesmo modo como uma obra de ficção cria um mundo onde, ao mesmo tempo, difere-se da realidade e se assemelha a ela, algo que pode nos instruir acerca do humano por meio de suas representações.

 

Escola como separação

Neste ponto, elencamos então, um segundo aspecto relacionado à experiência escolar: a possibilidade da separação. De acordo com Jacques Rancière, a escola seria justamente uma forma de espaço-tempo que se define como separação, pois a noção de skholé, recuperada do contexto da Grécia antiga, configura "uma forma simbólica, uma norma de separação de espaços, tempos e ocupações sociais"5 (Rancière, 1988, p. 2, tradução nossa). De um lado haveria o tempo-espaço dedicado ao trabalho e à ordem produtiva, referente às atividades cotidianas da manutenção da vida. Do outro lado, a skholé representaria a instauração de um tempo-espaço liberado de tais exigências; portanto, livre para o estudo. Por isso, Rancière (1988, p. 2, tradução nossa) afirma que "escola não quer dizer fundamentalmente aprendizagem, mas tempo livre"6. Aqui ressaltamos que o tempo livre indicado pelo autor nada tem a ver com recreação ou entretenimento, muito menos com a desresponsabilização dos adultos em uma perversa tentativa de deixar as crianças soltas e, desse modo, abandonadas à própria sorte. O tempo é livre, efetivamente, na medida em que constitui um tempo liberado e separado das obrigações relacionadas à ordem produtiva, presentes no trabalho e na vida familiar.

Importante destacar ainda que, embora a skholé representasse um privilégio de poucos na ocasião de sua origem – homens escravizados e mulheres, por exemplo, permaneciam excluídos em razão dos lugares e afazeres a eles atribuídos –, essa experiência será largamente ampliada com a invenção da escola moderna tal qual a conhecemos. Segundo Jorge Larrosa (2018, p. 233):

O que faz a escola pública moderna é democratizar o tempo livre, isto é, tirar todas as crianças e a maioria dos jovens do trabalho, das exigências do trabalho, e dar-lhes tempo para aprender. A escola moderna estende e universaliza a skholé aristocrática. É nesse sentido que poderíamos dizer que a escola é filha do tempo livre, herdeira da skholé.

Desse modo, a partir do ideal republicano e moderno de educação escolar, reivindicamos a universalização do tempo livre e permitimos que as crianças experimentem um tempo separado e dedicado ao estudo desconectado das necessidades imediatas diárias, independentemente de sua origem ou posição social. Jan Masschelein e Maarten Simons (2014), inspirados pela compreensão de Rancière (1988), caracterizam a separação que a escola pode operar como um efeito de suspensão. Segundo os autores:

Quando ocorre a suspensão, os requisitos, tarefas e funções que governam lugares e espaços específicos, tais como a família, o local de trabalho, o clube desportivo, o bar e o hospital, já não se aplicam. Isso não implica a destruição desses aspectos, no entanto. A suspensão, tal como a entendemos aqui, significa (temporariamente) tornar algo inoperante, ou, em outras palavras, tirá-lo da produção, liberando-o, retirando-o de seu contexto normal. É um ato de desprivatização, isto é, desapropriação. (Masschelein & Simons, 2014, p. 32-33)

Os autores enfatizam, portanto, o caráter temporário da separação que a escola possibilita. Enquanto os alunos experienciam a escola, suas narrativas individuais e privadas são suspensas por um intervalo de tempo, o que permite a eclosão de novos modos de se posicionar frente aos outros e ao mundo. Assim, justamente por conta da suspensão de definições e expectativas referentes à ordem produtiva – sejam elas individuais, familiares, sociais ou econômicas – compreendemos que "o espaço escolar é aberto e não fixo" (Masschelein & Simons, 2014, p. 36-37).

 

Escola como anteparo

Reconhecemos, portanto, que dentro dos muros da escola (sejam eles físicos ou simbólicos) insurge a possibilidade do estudo despreocupado e da liberdade para a experimentação temporariamente afastada do olhar parental. Sobre essa abertura, presente principalmente na diferença das relações estabelecidas, José Mário Pires Azanha (1978, p. XIII) afirma que na escola:

A criança não mais é protegida e amada como na família, mas também não é mais massacrada pelas obrigações do afeto e da hierarquia natural. Na escola a criança vive entre seus pares e as simpatias e as preferências podem se estabelecer sem as imposições do sangue. É-se menos protegido, mas em compensação se é mais livre.

O autor destaca o quanto a dimensão do cuidado geralmente relacionada ao amor parental pode ser ocasião de aprisionamento, uma vez que as "obrigações do afeto" acabam por impor certas restrições à criança. Ora, é evidente que o cuidado proporcionado pela família é fundamental para a proteção e a manutenção da vida; contudo, é importante salientar que a ausência de um contraponto incorre no risco do "engolfamento da criança no emaranhado das necessidades narcísicas dos pais. Se grandes demais, podem levar a uma intolerância quanto ao fato de que as crianças sejam elas mesmas e sigam o próprio caminho" (Voltolini, 2011, p. 30).

Em seu texto "Sobre o narcisismo: uma introdução", Sigmund Freud afirma que "se prestarmos atenção à atitude de pais afetuosos para com os filhos, temos de reconhecer que ela é uma revivescência e reprodução de seu próprio narcisismo, que há muito abandonaram" (Freud, 1914/1996, p. 97). Essa nostalgia narcísica tende a provocar uma supervalorização da criança que, tomada como "Sua Majestade o Bebê"7, a partir de sua suposta perfeição, padece de uma série de privilégios e obrigações a ela atribuídos. Na fantasia parental,

a criança concretizará os sonhos dourados que os pais jamais realizaram – o menino se tornará um grande homem e um herói em lugar do pai, e a menina se casará com um príncipe como compensação para a sua mãe. No ponto mais sensível do sistema narcisista, a imortalidade do ego, tão oprimida pela realidade, a segurança é alcançada por meio do refúgio na criança. O amor dos pais, tão comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é senão o narcisismo dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal, inequivocamente revela sua natureza anterior. (Freud, 1914/1996, p. 98)

Ou seja, o amor dos pais, imbuído de cuidado e senso de proteção frente ao mundo, carrega em si uma série de anseios quanto ao pequeno recém-chegado; corresponder às expectativas parentais tende a se revelar uma tarefa deveras restritiva, tendo em vista as imposições que são hasteadas em nome desse amor. É nesse sentido que a escola representa um anteparo necessário para um outro tipo de proteção, dessa vez em relação aos excessos do afeto. Esse anteparo tenciona "catalisar a 'substituição' (ou a metaforização) do romance familiar (neurótico, edipiano) das crianças em nome de uma narrativa escolar pública" (Batista, 2012, p. 140-141). Dito de outro modo, além de interromper o uníssono particular de cada família, a escola permite a inserção de outras vozes quando inclui uma realidade que extrapola o universo privado.

De acordo com Leandro de Lajonquière (1999, p. 83, grifos do autor),

essa invenção adulta [isto é, a escola] ficou encarregada de metatransmitir às crianças – esses últimos a chegar ao mundo – uma certa mensagem embutida nas pequenas excentricidades do folclore escolar, qual seja, na vida humana nem tudo é amor ou dinheiro.

Se a partir da compreensão da escola como separação da ordem produtiva foi possível estabelecer que a experiência escolar foge à lógica econômica, temos agora que a escola como anteparo diante do narcisismo parental permite o surgimento de outras formas de relação. "Nem tudo é amor ou dinheiro" pois a escola, enquanto ocasião de contato com o mundo público a partir da transição que realiza, "instaura o germe do espírito das leis ou, se preferirmos, o sentimento de cidadania" (Lajonquière, 1999, p. 83, grifos do autor). Pois é precisamente na escola que as crianças se tornam estudantes em meio a outros estudantes, as regras que ordenam esse espaço distinto do ambiente doméstico valem para todos os ingressantes, independentemente das prioridades estabelecidas em cada uma de suas casas.

Do ponto de vista da institucionalidade, a escola é o lugar onde aprendemos que a lei não foi feita de modo caprichoso por herdeiros ou assemelhados de nossos parentes. Na escola, descobrimos que podemos ser substituídos por qualquer outrem e que podemos ser comparados com os outros. Na escola a lei torna-se impessoal, vale para todos, não se aplica conforme o gosto ou predileção do professor, do coordenador ou da direção. (Dunker, 2020, p. 25)

Na escola não são as particularidades que definem as regras do convívio. É justamente a lei impessoal que permite a pluralidade indispensável nos espaços reservados para o encontro com os outros diferentes de si mesmo. Assim sendo, a escola assegura uma abertura em relação à inevitável bolha familiar, criando respiros e desacomodações a partir da imersão na cultura e das potencialidades do laço social. Não se trata de uma oposição excludente e sim da instauração de uma alternância desejável entre diferentes registros. Perla Zelmanovich (2014, p. 182) afirma:

A equação família-escola se forjou como um operador particular de regulação produzido sobre as coordenadas da modernidade, nas quais a escola se constituiu como oportunidade para produzir um "outro lugar" necessário – desde o ponto de vista da constituição subjetiva – com respeito ao familiar.

Esse "outro lugar", que também pode ser compreendido como um "mais além do familiar", oferece alternativa à criança e possibilita o jogo entre alienação e separação, sustentando essa báscula como condição estruturante para o sujeito. Evidentemente que essa alternância também diz respeito às construções simbólicas individuais. Mas, para o nosso propósito, cabe destacar aqui a importância das circunstâncias sociais favoráveis e que possibilitam determinada organização subjetiva. De acordo com Joel Birman (2017, p. 29),

a experiência edípica, seja formulada como complexo de Édipo (Freud), seja como estrutura edípica (Lacan) mesmo que se constitua no registro estritamente psíquico, pressupõe a existência de instituições e de práticas sociais que delineiam suas condições concretas de possibilidade, para que a experiência da alteridade possa ser produzida, nos registros social e político.

Segundo o autor, na ausência dessas instituições ou práticas sociais concernentes ao espaço público, a experiência de alteridade está comprometida ou até mesmo impossibilitada. A nosso ver, a escola como anteparo é também "condição concreta de possibilidade" para a experiência subjetiva de alteridade e, por isso, participante fundamental na constituição subjetiva dos alunos que acolhe. Alternar entre casa e escola e, de forma subsequente, entre família e mundo, permite à criança perceber que a realidade não se esgota entre seus semelhantes. Daí a importância do estabelecimento de limites e do reconhecimento das diferenças nesses dois espaços (ou tempos) – é propriamente por conta dessas diferenças que a relação estabelecida não corresponde a uma continuidade e sim a uma ruptura que produz deslocamentos, consequentemente, confere à criança a liberdade de irromper como sujeito do imprevisível.

 

A virtualidade como condição e os riscos de domesticação da experiência escolar

Frente a esses aspectos que caracterizam a experiência escolar – a escola como transição entre o âmbito privado e o âmbito público, como separação da ordem produtiva ou ainda como anteparo ao universo familiar – retornemos ao contexto mencionado inicialmente: a crise sanitária causada pela pandemia do novo Coronavírus (COVID-19), a qual nos impôs a necessidade do distanciamento social e, consequentemente, convidou os educadores ao improviso, na tentativa de sustentar a escola de forma remota.

Com os alunos supostamente resguardados em suas respectivas casas, já não é possível contar com a materialidade da escola e, por isso, o tempo reservado ao estudo aconteceria integralmente dentro do espaço doméstico. Assim, uma nova lógica é estabelecida na educação formal: quase que automaticamente, a continuidade do processo de escolarização passa a depender de estratégias que utilizam os meios virtuais. Se antes o ensino à distância fazia parte de propostas educacionais mais afeitas ao uso das tecnologias, o advento da pandemia impõe que, mesmo temporariamente, todas as escolas se adaptem rapidamente a tais recursos. Desse modo, professores poderiam seguir ministrando conteúdos e orientando atividades, enquanto as crianças e jovens continuariam seus estudos, realizando as tarefas propostas sem sair de casa.

Importante ressaltar que, quando consideramos a aplicação massiva do ensino remoto, o primeiro desafio encontrado diz respeito à estrutura necessária para a realização dessa modalidade educativa. Isso implica oferecer a todos os alunos um ambiente organizado e propício para o estudo, além de equipamentos eletrônicos adequados e acesso à internet. Dada a atual realidade brasileira, enfatizamos que esta exigência evidencia e até mesmo intensifica a profunda desigualdade social que assola o país e invade a escola, instituição cujo princípio, embora nunca logrado, sempre foi o de superar essas desigualdades. Logo, para muitas famílias, a precariedade de recursos impossibilita a manutenção da escolarização enquanto as aulas presenciais estiverem suspensas. Já nos casos em que as condições são favoráveis e as dificuldades objetivas não acarretam impeditivos, ainda resta a pergunta: em que medida é possível replicar a experiência escolar no contexto de uma virtualidade absoluta?

É fato que o ensino à distância, mediado por telas e codificado por uma conexão de dados, viabiliza que alguma comunicação se estabeleça. Porém, a redução do contato a duas dimensões limita a profundidade dos encontros e, no caso da escola, parece fragilizar a separação desejável na formação do sujeito-aluno. Assim, a cor e a textura das paredes do prédio escolar, o cheiro da merenda no intervalo, a sobreposição de vozes durante a aula, o olhar enigmático do professor ou até mesmo o silêncio denso na hora da prova vão se tornando lembranças difusas e outros elementos começam a surgir. A disposição dos objetos na casa, o fluxo dos familiares no cotidiano e as estripulias dos animais de estimação passam a fazer parte da cena educativa através do enquadramento da vídeo-chamada; as distinções entre casa e escola se tornam ainda mais desafiadoras. Com essa diluição de fronteiras acentuada pelo afastamento da concretude das instituições, corremos o risco de facilitar a completa imersão da criança no contínuo domiciliar, com seu funcionamento e distribuição de papéis tão bem definidos. Isolados na privatividade de seus espaços, os alunos não mais integram uma totalidade – a sala de aula – com a qual o professor interage, mas se apresentam apenas como indivíduos localizados em seu espaço familiar, marcado pelas diferenças.

Além da chance da criança ser excessivamente capturada pelo universo da família e arcar com mais restrições impostas pela obrigações do afeto, a escola remota também passa a comparecer no ambiente doméstico e, em uma espécie de homeschooling temporário, pode ser tomada como uma extensão da casa. Vale dizer que essa domesticação da escola não está necessariamente vinculada ao contexto da pandemia; porém, de maneira mais ampla, diz respeito ao declínio do sentido público da educação e de sua instrumentalização a partir de interesses privados (Carvalho, 2013).

Já conhecemos outras manifestações desse fenômeno, como por exemplo: as propostas de ensino domiciliar inteiramente compatíveis com os valores e crenças de cada família; a vocação utilitarista das instituições que prometem o desenvolvimento e aquisição de habilidades requisitadas pelo mercado de trabalho; a desvalorização do saber pedagógico frente às exigências de pais-clientes que não hesitam em interferir ou demandar especificidades ao que consideram ser um serviço a eles prestado. Dentre outros exemplos, os casos acima citados revelam a inconsistência dos limites entre os âmbitos público e privado, ou ainda, denunciam a submissão da escola às necessidades individuais – o que a descaracterizaria por completo.

Isso posto, pensar qual escola é possível em tempos de pandemia e de extrema virtualidade nos leva a inevitável tarefa de resistir à domesticação da escola e de lutar pela garantia do sentido público da educação. Na ausência de muros físicos, sustentar a experiência escolar diz respeito ao estabelecimento e conservação de muros simbólicos – limites que não isolam, mas que diferenciam e continuam permitindo que a escola seja ocasião de transição entre a família e o mundo, como também salvaguarda um tempo-espaço para o estudo liberado da ordem produtiva e, por fim, possibilita a alternância necessária na produção do laço social. Resistir ao apagamento dessas fronteiras permite à escola, pela igualdade que ela propicia e pela liberdade que ela enseja, continuar inaugurando fendas que atuam como espaços de pertencimento e de experimentação.

 

Referências

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Lajonquière, L. (1999). Infância e ilusão (psico)pedagógica: escritos de psicanálise e educação. São Paulo, SP: Vozes.         [ Links ]

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Recebido em novembro de 2020 – Aceito em fevereiro de 2021.

 

 

1 Criada em 2010 por um grupo de famílias insatisfeitas com a escolarização de seus filhos, a ANED pretende pleitear a regulamentação da Educação Domiciliar no Brasil. Disponível em https://www.aned.org.br/, acesso em 22 de set. 2020.
2 Senado: PLS 490/2017 e PLS 28/2018 e Câmara: PL 3179/2012 e PL 3261/2015.
3 Declarada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 11 de março de 2020. Disponível em https://www.unasus.gov.br/noticia/organizacao-mundial-de-saude-declara-pandemia-de-coronavirus, acesso em 20 de out. 2020.
4 Para Arendt a educação é pensada como um gesto de dupla responsabilidade: consiste, simultaneamente, no zêlo voltado para a conservação do mundo comum, como também no cuidado implicado na recepção dos mais novos – para que estes possam gradualmente vir a participar desse mundo e também transformá-lo (Arendt, 2007).
5 No original: "Une forme symbolique, une norme de séparation des espaces, des temps et des occupations sociales".
6 No original: "École ne veut pas dire d'abord apprentissage mais loisir".
7 "His Majesty the baby", no original, é uma expressão usada por Freud possivelmente em referência a uma obra do pintor classicista Arthur Drummond. A referida pintura data de 1898 e retrata uma cena urbana cotidiana na qual os personagens adultos estão posicionados ao redor da figura de uma criança recoberta de importância.
Revisão gramatical: Mariana Evangelista
E-mail: mariana.evangelista@usp.br

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