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Psicologo informacao

versão impressa ISSN 1415-8809

Psicol inf. vol.10 no.10 São Paulo dez. 2006

 

Comunicação ao leitor

 

 

Notas sobre saúde e doença familiar

 

 

Marília Martins Vizzotto*; Tânia Elena Bonfim**; Maria Geralda Viana Heleno***

* Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
Universidade Metodista de São Paulo.

 

 

 


RESUMO

Esta comunicação apresenta ao leitor algumas considerações sobre saúde e doença de grupos familiares, a partir da perspectiva que a questão da saúde versus a doença pode ser entendida como parte do equilíbrio adaptativo do grupo no enfrentamento das crises.

Palavras-chave: família; saúde psiquíca; doença.


ABSTRACT

This paper presents some considerations over health and familial diseases. The diseases are understood as a mechanism of adaptation aiming to keep the group balance when facing moments of crises.

Keyword: family; mental health; disease.


 

 

A família é, tal como já o disse Richter (1990), um palco em que dramaticamente entram em cena as forças emocionais de depressão, medo, além do choque entre gerações e demais conflitos de natureza social.

Não é incomum vermos hoje famílias que possuem filhos adolescentes ou pessoas idosas, serem surpreendidas por tensões que revelam abismos entre as pessoas que antes jamais haviam duvidado da harmonia existente no grupo familiar. Pais perplexos ante o desajustamento de filhos que antes eram tão ajustados, quietos e comportados, que nem sequer eram percebidos e agora abandonam os estudos, arranjam companheiros mal vistos socialmente; famílias em que um dos pais envelhece e adoece e que os filhos, ao vê-lo impotente, lhe dirigem desprezo ou arranjam sucessivas discussões entre si (irmãos), a fim de disputarem qual levaria a culpa pelo abandono do idoso. São conflitos já existentes, embora encobertos e que só são percebidos quando há alguma ação ou ocorrência reveladora que passa a ser agora o foco central da cena. O adolescente sai da condição depressiva e de forma exacerbada se rebela contra tudo e todos que não lhe percebiam. O velho adoece e sua impotência não pode ser vista pelos filhos que também temem o mesmo fim, já que se escondiam atrás da suposta vitalidade do pai. Estes são exemplos de conflitos comuns em nosso cotidiano de clínica psicológica. São conflitos familiares em que se podem observar mudanças de cenário, a depender da época em que vivemos, mas cuja trama se repete sempre neste setting dramático.

Mas, afinal, o que podemos chamar de família?

 

A família

A origem etimológica da palavra família se encontra no vocábulo latino famulus, que significa "servo ou escravo". A noção de posse e poder entre os homens para com mulheres e filhos talvez possam explicar a origem da palavra. Há indicativos históricos de que na antiguidade as famílias, entre os povos nômades, se organizavam sob a forma matriarcal e, progressivamente, com o advento do sedentarismo, do desenvolvimento da agricultura e do conhecimento pelos homens de sua função reprodutiva, as famílias tornaram-se patriarcais (POSTER, 1978).

Embora haja diferenças na organização, na estrutura e no funcionamento de agrupamentos familiares antigos, desde os impérios grego e romano – antes de Cristo – aC, até na Idade Média – depois de Cristo – dC, podemos afirmar que nestas organizações a família não possuía função afetiva, pois as comunicações sociais e trocas afetivas eram realizadas fora da família. Só a partir dos séculos 16 e 17, com o advento da Idade Moderna e com a ascensão da burguesia é que a família se organizou em torno da criança, assumindo funções educativas na transmissão de valores, de moral e de orientação espiritual; iniciando também as trocas afetivas. Somente no século 19 os membros da família passaram a se unir pelos sentimentos, costumes, tradições, passando a existir relações afetivas e sentimento de família entre os mais próximos, como pai, mãe e filhos. De modo que, a compreensão de família tal como temos hoje é muito recente na história da humanidade.

Mesmo hoje, a definição de família oferece ainda muitas controvérsias e discussões entre pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento. Não existe uma única conceituação, podendo ser a família descrita segundo diversos enfoques, tais como sociológico, antropológico, político etc. Os psicanalistas Luis Carlos Osório e David Zimerman (1997) entendem que a família é uma unidade grupal e nela se desenvolvem três tipos de relações pessoais – aliança (casal), filiação (pais/filhos), e consangüinidade (irmãos). E, foi a partir da noção de preservação da espécie, de nutrir e proteger a descendência e fornecer-lhe condições para a aquisição de identidade pessoal é que se desenvolveram funções diversificadas de transmissão de valores éticos, estéticos, religiosos e culturais.

Nesta visão há, então, uma integração das funções biológica, psicológica e social; podendo-se dizer que a família é o lugar em que seus membros podem desenvolver suas capacidades nessas três áreas.

Entretanto, há uma outra área, se assim pudermos nomeá-la, que permeia todas essas – a área da ética. E é na família o lugar de seu nascimento e desenvolvimento. Voltaremos a este aspecto mais adiante.

Cabe então salientar que, se é na família o lugar em que se desenvolvem condições essenciais para o desenvolvimento dos indivíduos, esta mesma família possui então certas funções.

Quais seriam então essas funções da família?

 

As funções da família

Em relação às funções e metas da família, um autor clássico no campo da saúde mental, Ackerman (1996), categorizou-as como: a) união e individuação – oportunidade do sujeito de se sentir amparado e apoiado pela união e ao mesmo tempo caminhar para sua individualidade, desprendendose deste grupo na medida em que se torna um ser capaz de fazer escolhas próprias e de até formar uma nova família; b) cuidado com crianças – refere-se aos cuidados físicos e básicos, assim como socialização e cuidados psicológicos das crianças; c) desenvolvimento da afetividade e identidade – oportunidade de realização de trocas de afeto e de formação da personalidade adulta e identidade sexual; d) satisfação das necessidades – refere-se às necessidades básicas de alimentação, moradia, educação, proteção; e) treinamento para tarefas de participação social – seria a preparação para o lugar do indivíduo na sociedade, na sua produção social; f) desenvolvimento e realização criativa – referese à própria saúde mental, que reúne as capacidades e potencialidades do sujeito em realizações de âmbito pessoal e social.

Assim, nessa visão integral (bio-psico-social) função e meta da família servem como referencial para compreender o processo saúde-doença; pois o desenvolvimento e a condução eficaz das funções familiares constituem o processo saudável, enquanto que a distorção das funções resulta na tendência à desorganização ou doença mental familiar.

 

Família: saúde e doença

Para garantir sua sobrevivência, sua saúde, a família deve manejar adequadamente os conflitos. Os conflitos são impasses que nos exigem soluções. As respostas que emitimos na busca de soluções é que podem ser adequadas ou pouco adequadas e representarem o grau de adaptação que nós dispomos para saúde ou para a doença.

Voltando então às contribuições de Ackerman (1996), entendemos que complementaridade – que se manifesta pela cooperação entre os membros, é um dos requisitos do grupo familiar na busca de soluções adequadas para o conflito, na utilização de defesas mais saudáveis contra ansiedade, bem como na busca de satisfação das necessidades; na promoção da auto-estima e no alcance de realizações individuais.

Os conflitos, sejam eles internos ou externos ao grupo, dão oportunidade de interação entre os membros, podendo representar a expressão funcional do crescimento e das possibilidades de adaptação e pré-disposição associadas ao processo saúde.

Assim, a qualidade da coexistência desta complementaridade com os conflitos é que determina o tipo de funcionamento familiar.

Como exemplo de conflito e expressão de saúde familiar, lembramos que há alguns anos foi publicada, numa revista de grande circulação no Brasil, a trajetória de uma família que mostra um pouco desta coexistência. Entre tantos outros exemplos que podemos reconhecer no cotidiano, a matéria abordava a história de uma mulher, dona de casa, mãe e esposa que, nos anos 50, teve o marido morto por assassinato, ficando com filhos pequenos e com situação financeira precária. Seu marido ocupava uma visível posição política no cenário nacional e a família gozava de um bom status social. Porém, não tinham recursos financeiros. Mesmo morto por engano, já que o tiro havia sido desferido a outra pessoa, seu algoz nunca fora punido e tampouco a família indenizada. Esta família viu-se em uma situação de crise (fatos externos ao grupo familiar o afetaram). Quando há uma ruptura na dinâmica ou funcionamento do grupo, seja por ganhos ou perdas, chamamos isso de crise. A crise é imbuída de conflitos. A adequação das respostas (modo como se lida) a esses conflitos gerados é que irão representar o grau de saúde ou de doença e, por conseqüência a transposição da crise. Neste exemplo essa mulher sem uma profissão definida pensou: "o que posso fazer para manter minha família?". A resposta veio de dentro dela mesma. Lembrou-se de que sabia lavar e passar roupas, muito bem. Mesmo com alto status social, não sentiu vergonha de ter de se submeter a uma tarefa aparentemente simples e de se ver às voltas com a perda desse mesmo status e das expectativas de regalias que poderia vir a ter com a promissora carreira política do jovem marido. Também não desagregou a família doando os filhos aos cuidados de outros, não buscou alternativas de trabalho ilícitos ou fáceis e nem saiu à mendicância pelas ruas. Com seu trabalho simples conseguiu manter a família agregada, os filhos nos estudos em escolas públicas e, mais tarde com o trabalho destes filhos, os mesmos galgaram as escolas superiores. Na atualidade, esta mesma mulher é então fotografada rodeada pelos filhos e netos numa vida estável.

O manejo adequado dos conflitos levou esta família, principalmente apoiada na saúde da mãe, a manter seu equilíbrio e adaptação eficaz. Embora contendo apenas um membro adulto, sendo as demais crianças, o próprio manejo do membro adulto proporcionou aos demais membros a cooperação, expressando a complementaridade, o que favoreceu a integração da família.

No caso da doença, há a distorção das funções, e as respostas dadas na resolução do conflito podem ser muito pouco adequadas, podendo resultar em desorganização do grupo familiar, usando aqui a noção de adaptação proposta por Ryad Simon (1989).

Também, a título de exemplo, lembramos um relato clínico publicado numa revista científica de psicologia brasileira. O relato mostrou o caso de uma família habitante numa chácara aos arredores de uma grande cidade do interior de São Paulo. Esta família, composta de pais e filhos adultos, já possuía um dos filhos com comprometimento mental e recebia atendimento por tal patologia. Numa dada ocasião, este filho teve um súbito agravamento de seu estado e entrou em "surto psicótico" revelando, em seus delírios agressivos, o desejo de atear fogo na casa em que moravam. Em meio a este frenesi, os demais membros da família ficaram envoltos neste dramático quadro e todos atearam fogo na casa e saíram de dentro dela para apreciar o espetáculo. Todos os membros foram encaminhados e atendidos no pronto socorro psiquiátrico do hospital local, medicados e encaminhados à assistência social para o andamento do acolhimento desta família inteira, agora flagrantemente doente.

Observamos então que esta família também apresentou uma situação de crise (fato interno ao grupo, qual seja, o enlouquecimento flagrante do filho, afetou todo o grupo familiar). Porém, as respostas dadas ao conflito componente nesta crise foram pouco adequadas. Neste caso, diante de uma percepção distorcida do conflito, os membros da família se identificaram com o membro enlouquecido, tendo em conjunto um colapso emocional. De modo que tiveram, como desfecho, a desorganização total da família.

Estes dois exemplos extremos, representados, no primeiro a transposição da crise de forma saudável e no segundo a transposição de forma doentia, nos mostraram como as respostas dadas (ou como o grupo familiar lidou com a situação de crise) determinaram o desfecho de suas histórias.

Mas, por que uma família reagiu de forma construtiva e amorosa mesmo estando em meio a tantos conflitos e outra reagiu de forma destrutiva e desorganizada?

Lembramos então aquilo a que nos referimos anteriormente e que chamamos de "funções da família". São as funções, ou o cumprimento delas, que determinam esta capacidade futura de seus membros lidarem com os conflitos que sempre aparecerão na vida de qualquer ser humano. É na união e individuação, no desenvolvimento da afetividade e identidade, no cuidado com crianças, que encontramos o alicerce desta capacidade.

Aproveitamos então para lembrar as palavras de outro psicanalista, John Bowlby, quando diz que a qualidade dos cuidados que uma criança recebe em seus primeiros anos de vida é de importância vital para a sua saúde mental futura. É fundamental à saúde mental que o bebê e a criança tenham a oportunidade de experimentar uma relação amorosa com seus familiares. "É esta relação complexa, rica e compensadora com a mãe, pai e irmãos, nos primeiros anos, que é a base do desenvolvimento saudável" (BOWLBY, 1976).

Esta base que será assegurada se a família cumprir suas funções é a que nos referimos anteriormente como aquela que integra áreas ou níveis de desenvolvimento biológico, psicológico e social e, às quais acrescentamos o nível ético. Voltemos a ele.

O desenvolvimento ético tem lugar, no nosso entender, na família. E reúne toda competência dos demais níveis, já que ele reflete o amadurecimento dos demais. A ética reflete a autonomia do sujeito nas tomadas de decisão (COHEN; SEGRE, 1996). Exigem dele muitas vezes renúncia, reparação e até sofrimento em prol da criação, da construção.

O grupo familiar ético representa o grupo amadurecido, o qual busca soluções sensatas, mesmo em meio a crises. Portanto, uma família ética é uma família saudável.

Este grupo ético buscará, inclusive, auxílio externo, mas nunca delegará aos outros a solução de seus problemas. Sejam estes outros a escola, a igreja, amigos ou mesmo o psicólogo. Nem tampouco culpará o outro pelas suas agruras.

 

O auxílio nas crises

O psicoterapeuta poderá auxiliar o grupo familiar a encontrar melhores soluções. Mas essas soluções estão dentro do grupo; nessa capacidade grupal. De modo que um psicoterapeuta jamais dará uma solução aos conflitos, mas ajudará o grupo a encontrá-la. O mesmo poderá ocorrer com as redes de apoio social – sejam igrejas, clubes ou instituições escolares. Dar solução ao conflito de outrem é, no mínimo, acomodá-lo à mesma situação de adaptação ineficaz em que ele se encontra.

É tarefa do profissional de saúde mental propiciar condições para que o grupo encontre recursos emocionais salutares. Assim, o próprio grupo, mesmo que em médio ou longo prazo, poderá reconhecer, no seu funcionamento, aqueles elementos construtivos que lhe trarão soluções de liberdade e autonomia.

Liberdade e autonomia não são dadas, são conquistadas.

 

Referências

ACKERMAN, N. Diagnóstico e tratamento das relações familiares. Porto Alegre: Artes médicas, 1996.         [ Links ]

BOWLBY, J. Cuidados maternos e saúde mental. São Paulo: Martins Fontes, 1981. (Original de 1976).         [ Links ]

COHEN, C.; SEGRE, M. (Org.). Bioética. São Paulo: Edusp, 1996.         [ Links ]

POSTER, M. Teoria crítica da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.         [ Links ]

RICHTER, H.E. A família como paciente. São Paulo: Martins Fontes, 1990.         [ Links ]

SIMON, R. Psicoterapia clínica preventiva : novos fundamentos. São Paulo: EPU, 1989.         [ Links ]

ZIMEMAN, D.; OSÓRIO, L. Como trabalhamos com grupos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997Links ] Arial, Helvetica, sans-serif" size="2">.

 

Recebido em: 04/09/2006
Aceito em: 27/11/2006

 

 

*Psicóloga, mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas e doutora em Saúde Mental pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Professora titular do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde da Universidade Metodista de São Paulo.
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Psicóloga, mestre em Psicologia da Saúde pela Universidade Metodista de São Paulo e doutoranda em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo. Professora do Curso de Graduação em Psicologia da Universidade Metodista de São Paulo.
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Psicóloga, mestre em Psicologia da Saúde pela Universidade Metodista de São Paulo e doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo. Professora titular do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde da Universidade Metodista de São Paulo.