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Psicologo informacao

Print version ISSN 1415-8809

Psicol inf. vol.11 no.11 São Paulo Dec. 2007

 

Artigo

 

 

Psicologia, educação e a sociedade contemporânea: reflexões sob a perspectiva da Psicologia sócio-histórica

 

Psychology, education, and contemporary society: reflections using the perspective of social-historical Psychology

 

 

Vera Lúcia Trevisan de Souza*; Ana Paula Petroni**; Maria Eufrásia de Faria Bremberger***

*Professora doutora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia como Profissão e Ciência da Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC-Camp. E-mail: vera.trevisan@uol.com.br. **Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia como Profissão e Ciência da Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC-Camp com ingresso em 2007, cursando o terceiro semestre. Bolsista CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). E-mail: paulinhapetroni@yahoo.com.br. ***Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia como Profissão e Ciência da Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC-Camp com ingresso em 2007, cursando o terceiro semestre. Bolsista CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). E-mail: mariaeufrasia@directnet.com.br.

 

 


RESUMO

As mudanças que vêm ocorrendo na sociedade contemporânea influenciam diretamente as práticas desenvolvidas na escola, as relações estabelecidas entre os agentes desse contexto e o desenvolvimento desses sujeitos. A questão que perpassa nossos estudos na área da Psicologia é: que papel teria a Psicologia neste contexto educativo diante de tantas transformações, dos sujeitos e da sociedade? Quais contribuições a Psicologia poderia dar ao complexo processo de educar? Tomando por base a Psicologia sócio-histórica, sobretudo as idéias de Lev Semminovich Vigotski e Henri Wallon, este artigo visa refletir sobre o desenvolvimento humano, a contribuição da escola e da educação para a promoção do desenvolvimento, buscando identificar quais as contribuições da Psicologia às práticas educativas que se empreendem nos diversos contextos educacionais.

Palavras-chave: Desenvolvimento; Psicologia Sócio-Histórica; Educação, Saúde; Subjetividade.


ABSTRACT

The changes occurring on contemporary society directly influence the practices developed at school, the relations established between this context’s agents, and the development of these subjects. The question undergoing our studies in the field of Psychology is: what role should Psychology play in this educational context in face of so many transformations, both subjects and society? What contributions could Psychology bring to the complex issue of education? Supported by social-historical psychology, mainly the ideas of Lev Semminovich Vigotski and Henri Wallon, this article aims to reflect on the human development and on school and education’s contribution in the promotion of development, seeking to identify Psychology’s contributions to the educational practices applied to the several educational contexts.

Keyword: Development - Social-Historical Psychology - Education; Health; Subjective.


 

 

O avanço dos diversos campos do conhecimento, sobretudo das Ciências Humanas, na área da Sociologia e Psicologia, que nos permitem visualizar o sujeito em seu contexto e problematizar seu processo de constituição, reconhecendo a importância do entorno em seu desenvolvimento, remete à necessidade de compreender os vários fenômenos que permeiam a sociedade contemporânea e suas implicações no sistema educacional.

É notável que nossa sociedade tenha se tornado cada vez mais complexa, constituindo um quadro alarmante de conflitos e mudanças de valores, em que as esferas da vida privada e pública a um só tempo se polarizam e se (con)fundem em uma mesma dimensão.

O consumismo, decorrente da industrialização e do avanço da tecnologia, a violência e a mídia parecem assumir grande influência no estilo de vida das pessoas, substituindo boa parte dos modelos tradicionais de relações. Além disso, tem havido uma mudança considerável nas configurações familiares, caracterizando-se, por vezes, pelo grande distanciamento temporal das crianças do convívio familiar e sua inserção prematura, e por tempo prolongado, em instituições educacionais.

Observando a realidade brasileira, vemos que há uma multiplicidade de elementos culturais e sociais que vão interferindo no modo de ser do homem contemporâneo, seja qual for sua faixa etária, situação socioeconômica, sexo ou raça. Quão saudável ou não é essa realidade atual não há como dimensionar, mas, em princípio, parte dessa interferência pode ser captada por meio das grandes redes de apoio social que têm se desenvolvido no País, haja vista a demanda nas instituições de saúde mental e psicológica e o cenário do contexto escolar, que nos leva a pensar em sofrimento vivenciado coletivamente (ROCHA, 2004).

Além disso, vivemos uma era marcada essencialmente por relações caracterizadas por certa impessoalidade, a julgar pela "comercialização das relações humanas", até mesmo no seio familiar, no que diz respeito à educação e desenvolvimento das crianças. Tal tarefa tem sido atribuída, cada vez mais, a várias esferas sociais, primordialmente, às instituições educacionais, quando não a babás e cuidadores profissionais.

Em um cenário de grandes transformações é notória a mudança das estruturas familiares, resultando, muitas vezes, na transferência da tarefa de educar às instituições educacionais de naturezas diversas. A escola, enquanto instituição criada pela cultura e socialmente legitimada, faz-se presente precocemente na vida da criança. Abriga, em princípio, a maioria dessa população e é um espaço que, além de concentrar os reflexos desse rol de mudanças, tem sido considerado o divisor de águas da passagem do homem do seu meio familiar (mundo privado) ao meio social (mundo público) (CONTINI, 2000).

Diante desse quadro, há de se pensar os profissionais e os campos de conhecimentos que estão atuando nesses espaços. Nesse sentido, onde caberia a Psicologia? Qual a relevância e o papel da Psicologia nesses espaços, eminentemente coletivos, em que habitam diversos grupos? Em que medida ela contribui para o fortalecimento das relações humanas? Qual o alcance de seus saberes em relação à constituição de grupos? Qual a pertinência da Psicologia para os sujeitos e como pode ser isso dimensionado nas instituições? Enfim, são várias as questões que emergem quando se pensa na relação educação, escola, criança, desenvolvimento, subjetividade, grupos e a complexidade da nossa sociedade.

As reflexões a seguir são parte de nossos estudos realizados nos Seminários Avançados de Pesquisa, espaço em que nascem questões novas, emergem velhas perguntas, gerando buscas permanentes por meio do diálogo com teorias e pesquisas que sustentam nosso pensar. Elas também constituem parte de nossos projetos de pesquisa.

 

A educação e as teorias sócio-históricas

Para desenvolvermos uma reflexão sobre as questões propostas, apresentaremos algumas concepções de base interacionista, sobretudo da perspectiva da Psicologia sócio-histórica, com destaque para Vigotski e Wallon, cujas produções têm sido aceitas de forma significativa no campo da pesquisa educacional.

Ambos os teóricos entendem o desenvolvimento humano como parte de um processo histórico, socialmente construído, em uma permanente articulação entre desenvolvimento filogenético e ontogenético, possibilitando ressignificações e transformações das funções cognitivas do ser humano, das suas percepções e compreensões do mundo e da realidade e de seu modo de sentir e emocionar-se. Ao pensarmos o sujeito, não há como não refletirmos, também, sobre o social, a cultura e a linguagem, uma vez que tais instâncias o atravessam, constituem e são constituídas por ele.

Assim, o caráter dinâmico e transformacional dos processos de desenvolvimento caracteriza a relação entre as condições internas do sujeito, com suas características individuais e seu ambiente social. O que chamamos de características individuais refere-se aos modos de agir, pensar, às crenças e aos valores, que, por sua vez, são construídos na interação do ser humano com a cultura, que, a um só tempo, é constituído pela cultura e a constitui (VIGOTSKI, 1998; PINO, 2000; SOUZA, 2005).

A educação, ante os resultados apresentados nas avaliações nacionais, por exemplo, que apontam as dificuldades e fragilidades vivenciadas pela escola, tem se constituído como o tema do momento, concebido por especialistas e, sobretudo, pelo governo, como um dos elementos-chave para a solução dos problemas sociais. Entendendo a educação como um fenômeno amplo que envolve questões da ordem do privado e do público, deter-nos-emos aqui à ordem do público, representada pela escola e à qual a Psicologia da Educação tem se dirigido, no âmbito da pesquisa ou atuação profissional.

A escola tem sido objeto de interesse e estudo de vários educadores e pesquisadores de diversos campos de conhecimentos por ser um elemento que afeta todas as camadas sociais e tem sido considerada espaço de transição da criança do ambiente familiar para o ambiente social (CONTINI, 2000).

É um espaço constituído por pessoas, por subjetividades em relações (SOUZA, 2005), gerando, dessa forma, um emaranhado complexo de relações e conflitos, resultantes das interações em que concorrem valores, crenças, experiências e motivações, sempre permeados de afetos.

Nesse contexto, os sujeitos que tomam parte das práticas escolares manifestam nas interações convergências, divergências, incompatibilidades, aceitação, resistências e contradições, procedentes também de outros campos de suas experiências sociais, as quais geram novos sentidos e significados que, por conseguinte, produzem fenômenos que configuram a subjetividade dos sujeitos (GONZÁLEZ REY, 2003; SOUZA, 2005).

Contudo, ainda que a escola, enquanto espaço reconhecidamente legitimado pela sociedade, situe-se em um patamar de grandeza de primeira ordem, pode-se dizer que tem sido atribuída a ela uma função social inatingível, observada nos índices de analfabetismo funcional, fracasso escolar, evasão, violência, doenças psicossomáticas e outros que envolvem não só os alunos mas também os professores. Enfim, é um cenário cujas manifestações/exteriorizações sinalizam certo mal-estar que tem afetado, cotidianamente, as subjetividades dos que lá se encontram. Este mal-estar é decorrente de uma série de mecanismos de ordem política, administrativa, pedagógica, didática, intra e interpessoal, que permeiam o ambiente escolar (CONTINI, 2000).

Portanto, há que se questionar se as ações sociais e pedagógicas dessa instituição estão educando para a saúde, dado o cenário que observamos, que evidencia um enfoque mais inibidor do que propulsor de um desenvolvimento saudável, a começar pela etapa inicial desse processo, que é a educação infantil.

 

O olhar da psicologia para a educação infantil

A educação infantil tem sido alvo da atenção de pesquisadores, educadores e da sociedade como um todo, considerando-se o grande número de pesquisas na área, os espaços de discussão em congressos, a criação de entidades de atendimento a crianças, além da elaboração de políticas públicas promulgadas pela LDB1 e RCNEI2. Esse movimento se deve a contribuições de muitos estudos da área da educação e da psicologia sobre o desenvolvimento infantil.

No entanto, apesar de notório o reconhecimento da importância da infância no desenvolvimento do sujeito, algumas pesquisas demonstram que poucos dos aspectos que dizem respeito à saúde mental e bem-estar da criança têm sido discutidos no âmbito escolar ou em relação à escola, haja vista que tais questões têm sido tratadas, tradicionalmente, com base no modelo médico e sendo encaminhadas às instituições especializadas (CONTINI, 2000).

A escola é um dos lugares mais significativos na vida da criança ou do jovem, pois é nesse ambiente que eles passam mais da metade de seu tempo diário. Nesse espaço, ampliam seus relacionamentos interpessoais, sua rede de contatos sociais e entram em contato com uma série de conhecimentos e vivências.

O fato de as crianças e jovens encontrarem-se em importante fase de desenvolvimento legitima a necessidade da atuação do psicólogo no contexto escolar, uma vez que ele possui um corpo de conhecimentos que ajuda tanto nas relações dos grupos (crianças, pais, professores, especialistas, administrativos) e entre eles como nas práticas educativas e pedagógicas da instituição.

Tal posição é veementemente defendida por Wallon (1979), um dos teóricos mais considerados no meio educacional, dada sua contribuição para a compreensão do desenvolvimento infantil.

Ele destacava que os conhecimentos da Psicologia e da Pedagogia são mutuamente complementares: a Pedagogia como um vasto campo de observação do desenvolvimento e a Psicologia como importante instrumento para subsídio à prática pedagógica (GALVÃO, 1995; MAHONEY; ALMEIDA, 2005). Eis então, a abertura de um campo em que as relações são de extrema importância, permeando toda e qualquer ação de seus sujeitos, que é o interesse da Psicologia: as subjetividades que são produzidas nas e pelas relações.

Vigotski dá ênfase ao aprendizado socialmente elaborado, promovido pela escola, que se constitui como essencial para o desenvolvimento do indivíduo. Para ele, a educação formal, ainda que não seja a única socialmente instituída, constitui uma via de acesso ao conhecimento científico, fruto de uma produção social e cultural. Apropriando-se desse saber por meio da mediação social, a criança apreende seus significados e o conhecimento da cultura. Ao internalizar a cultura, o indivíduo se constitui ser humano (PALANGANA, 1994; PINO, 1999).

A afetividade é um tema que ambos os autores discutem. Contudo, Wallon focou mais este aspecto, oferecendo subsídios para a compreensão dos processos afetivos na infância e ao longo do desenvolvimento. Atribui às emoções um papel de primeira grandeza na formação da vida psíquica, funcionando como um amálgama entre o social e o orgânico. A emoção, antes da linguagem, é o meio utilizado pelo recém-nascido para estabelecer relação com o mundo humano. Segundo o teórico, a emoção é o primeiro e mais forte vínculo entre os indivíduos (DANTAS, 1992).

Falar sobre a relação afetiva no âmbito escolar implica considerar que as relações entre ensino e aprendizagem são movidas pelo desejo e pela paixão e, dessa forma, é possível identificar e prever condições afetivas favoráveis que facilitam a aprendizagem.

É importante destacar, inicialmente, que a afetividade, na teoria walloniana, não se limita apenas à idéia de "gostar de crianças pequenas" ou manifestações de carinho físico que, muitas vezes, são acompanhadas de elogios superficiais, tais como "bonitinho", "bonzinho", "lindinho", termos usados no diminutivo que só vêm reforçar o caráter efêmero da relação.

À medida que a criança vai se desenvolvendo, as trocas afetivas vão ganhando complexidade. As relações permeadas por trocas afetivas por meio dos contatos epidérmicos durante os meses inicias de vida vão sendo substituídas por outras de natureza cognitiva, tais como respeito e reciprocidade.

Então, a relação afetiva nesse contexto e faixa etária demanda respeito e consideração pela criança, conhecimento profundo de suas necessidades e potencialidades, práticas pedagógicas relevantes e dotadas de significados e sentidos para as crianças.

Contudo, ainda que se mantenha o contato corporal como forma de carinho, há de se agregar outras fontes de contato, tais como: falar da capacidade da criança, elogiar seu trabalho e reconhecer seu esforço, já que estas também se constituem formas de vinculação afetiva que influenciam a formação de valores positivos atrelados à representação que a criança tem de si (SOUZA, 2005).

Aliado a essa conduta há também o compromisso pessoal, profissional e social do educador, pois suas ações implicarão a constituição da personalidade dessa pessoa (MAHONEY, 2006).

Em resumo, as interações sociais constituem uma estrutura social complexa, feita de posições sociais, culturais e históricas, de expectativas, crenças, valores e atos, enfim, envolvem uma série de elementos que se fazem presentes em toda e qualquer prática social. Portanto, no âmbito educacional infantil as práticas e ações pedagógicas dos educadores estão entremeadas por esses fenômenos que, por sua vez, são apropriados pelas crianças, em qualquer atividade ou espaço em que elas se encontram, por meio das interações cotidianas (PINO, 1999; SOUZA, 2005).

Logo, se o homem se humaniza por meio das relações sociais, sua constituição psíquica necessariamente requer a presença do outro. Nesse sentido, o papel do educador durante o processo do desenvolvimento da criança é imprescindível para a constituição da sua identidade.

 

A autonomia na prática do professor

Essa nova demanda apresentada à escola, isto é, as grandes transformações da sociedade com as quais o professor se depara, os novos modelos educacionais e práticas pedagógicas muitas vezes impostas e não discutidas com os mais envolvidos nessa questão, o novo olhar para o ser humano, entre tantas outras situações vivenciadas no contexto escolar, exige do professor uma prática educacional que possibilite a formação de um sujeito cidadão e autônomo, capaz de lidar com os fatos do dia-a-dia e responsabilizar-se por seus atos.

No entanto, para discutirmos sobre a autonomia do professor devemos, antes, refletir sobre a autonomia da escola – escola entendida como instituição que compõe uma sociedade e que também tem regras, normas e leis a serem seguidas. Gadotti (1994) aponta que a luta pela autonomia da escola não pode ser entendida separadamente da luta pela autonomia da sociedade, já que as diferenças existentes neste contexto precisariam ser levadas em conta. Assim, seria necessário estabelecer parcerias para a promoção e criação de novas propostas, chamando todos a participarem por meio de movimentos sociais. Por meio dessa parceria, escola e governo elaborariam as políticas educacionais, cuidando para que estas atendessem às demandas dos diversos contextos, de acordo com a realidade de cada um.

O olhar sobre a escola deveria ir além de seu espaço físico, pois seria preciso verificar o que acontece nesse contexto que impede o desenvolvimento e a manutenção de sua autonomia e a de seus atores, como a burocracia imposta pelos sistemas de ensino.

Souza (2005), ao observar as relações existentes entre o Estado (representado pela Secretaria de Educação e Diretoria de Ensino – designada como mandante), a coordenadora e as professoras (que são os agentes), os alunos (a clientela) e as famílias (o público), constatou que a burocracia exerce o papel de manter o poder nas mãos de quem exerce o mando – no caso, o Estado – resultando em uma relação baseada no mando-obediência, impedindo que seus atores se expressem e ajam com autonomia.

O que prevalece nesse espaço é a descrença do mandante em relação aos agentes, dos pais em relação à escola e o sentimento de irresponsabilidade dos professores com relação aos resultados obtidos pelos alunos. Esses sentimentos são permeados pelo medo, que se reproduz nas diversas esferas de relações sob a tríade mando-medoobediência, gerando o desrespeito e a falta de confiança (SOUZA, 2005).

Gadotti (1994) e Souza (2005) ressaltam o quanto seria necessário dar crédito à educação, estabelecer uma relação de confiança entre o Estado, a escola e seus atores, os alunos e as famílias. Contudo, entendem que este é um caminho nada fácil de ser percorrido, visto ser a escola um espaço complexo, constituído de várias relações (professores, alunos, coordenação, sistema de ensino, pais e comunidade), em que os conflitos emergem com freqüência, mobilizados pela dificuldade de se articular os desejos, interesses e buscas dos âmbitos público e privado.

Além do que, alcançar a autonomia não é tarefa simples, visto que para a escola se constituir como espaço autônomo será necessário que seus atores tenham liberdade suficiente para se expressarem e planejarem suas ações. Ocorre que só a liberdade não basta; é preciso ter responsabilidade e clareza de seu papel na educação, do papel da escola e ter domínio dos conhecimentos a serem ensinados além de estratégias e métodos adequados a cada grupo de alunos. Logo, implica dominar conhecimentos de várias áreas, como da Educação, da Sociologia, da Psicologia, dentre outros.

Tomando por base as teorias de Vigotski (1995) e Paulo Freire (1996), vemos que o sujeito, para se tornar autônomo, depende dos processos e das interações estabelecidas durante seu desenvolvimento e das influências que essas inter-relações exercem sobre ele. Isto porque a autonomia deve ser entendida como a liberdade de o sujeito agir, sua capacidade de refletir e ter domínio sobre sua conduta e assumir os riscos e as responsabilidades de seus atos.

França (1999) e Arendt (2002) apontam que a autonomia encontrase em uma encruzilhada e que o professor, dentro da escola, localizase bem no centro: ao mesmo tempo em que se faz necessário pensar e criar novos rumos, promovendo o desenvolvimento, é preciso lembrar que todos possuem sua história, uma tradição que se liga, inevitavelmente, ao passado. Nesse caminho, o aluno – a criança –, é a novidade que nasce inserida em um contexto já constituído, mas que tem em si a possibilidade de alterar esse contexto para não ser desgastado.

A autonomia precisaria ser resgatada na prática do professor. Para isso, seria necessário que esse profissional se colocasse em seu trabalho, fosse reconhecido nele e se tornasse o protagonista de sua própria história, saindo do anonimato (GIGLIO, 1999).

Nesse sentido, concordamos com Passos (1999) quando diz que a autonomia decretada se faz diferente da autonomia conquistada ou construída. A primeira forma de autonomia pode impedir o desenvolvimento de uma atuação autônoma, já que, por exemplo, uma ordem vinda de fora da escola pode não corresponder a sua real necessidade e, assim, atrapalhar o trabalho do professor, pois ele se vê obrigado a cumprir algo de cuja construção não participou.

Já a autonomia construída pressupõe que um diálogo foi estabelecido entre os agentes externos (governo) e internos (professores, direção, pais e alunos) da escola. Ela se torna o resultado do equilíbrio gerado por essas relações.

Assim, a autonomia do professor dá-se a partir do momento em que ele se reconhece dentro da instituição escola e estabelece relações sociais com os outros, reconhecendo-se em seus atos e tornando-se capaz de conduzir e dominar sua própria conduta?

Para tal, ele precisaria saber lidar com a legislação existente na escola, por se tratar de uma instituição, mas ao mesmo tempo deveria ser capaz de formular as suas próprias leis e governar a si mesmo. Isso só se torna possível a partir das inter-relações estabelecidas com os outros e com os significados construídos nos espaços sociais de que toma parte.

Demanda, também, que se invistam nos cursos de formação de professores, inicial e continuada, abordando os aspectos complexos que envolvem a educação atualmente, como aquelas relativas ao processo de ensino e aprendizagem, em que se estão em jogo não só os aspectos cognitivos, mas, principalmente os afetivos.

Sabemos pelas pesquisas, tais como as realizadas por Aquino (1999), Marin et al (2005) e Souza (2005), que se tem empreendido na Psicologia, sobretudo na Psicologia da Educação, que a escola pode se constituir espaço produtor de saúde ou doença. Saúde entendida como bem-estar, como possibilidade de aceder a novos patamares de desenvolvimento, como motivação constante e atitude positiva em relação à vida. Doença entendida como desânimos constantes, exposição à humilhação, baixa auto-estima, descontrole emocional, estresse, etc. Bastam poucas visitas à escola para percebermos como situações estressantes e de conflito são freqüentes entre professores e alunos, constituindo-se como barreiras ao aprendizado e desenvolvimento. Observa-se, nestas situações, a falta de mediação do psicólogo na escola.

É nesse sentido que entendemos a contribuição que o psicólogo e a Psicologia da Educação podem oferecer: o papel de mediar as relações, de oferecer os conhecimentos sobre desenvolvimento e aprendizagem, de orientar os profissionais da educação, de fazer parceria para superar os problemas vividos pela escola, rumo à autonomia dos professores enquanto agentes de transformação.

 

Considerações finais

Acreditamos que a nova ordem social influencia diretamente o modo de viver dos sujeitos e, conseqüentemente, as práticas vivenciadas na e pela escola. A descrença na eficácia da educação, e, ao mesmo tempo, as necessidades impostas pela vida levam os pais a deixarem os filhos em algum lugar para poderem trabalhar. Isso faz da escola um espaço ainda mais cheio de contradições e, cada vez mais, sem saber como lidar com as expectativas de seu público.

Os conhecimentos do campo da Psicologia da Educação trazem sua contribuição na medida em que esta ciência busca compreender as subjetividades em relação, compreendendo a escola como um espaço no qual convivem diferentes sujeitos, com demandas e interesses singulares e no qual se constituem ao mesmo tempo em que constituem a escola e suas relações. Justamente aqui a teoria sócio-histórica encontraria espaço para contribuir e iluminar as práticas, já que desse ponto de vista o sujeito é entendido como histórico, situado em um contexto que o determina e, ao mesmo tempo, é por ele determinado. Assim, deveríamos, por meio dessa teoria, olhar a escola como uma instituição formada por sujeitos que estão inseridos em uma sociedade permeada por transformações, que interferem em sua constituição, mas esse sujeito singular é capaz de transformar a si próprio e ao outro e deve encontrar espaço para que essa transformação se efetive.

Pensar na formação que vem sendo oferecida pelas escolas não é tarefa fácil, já que envolve todo um complexo sistema de ensino e obriga-nos a rever políticas oferecidas tanto aos professores, quando aos alunos – estes, cada vez mais cedo, se inserem em uma sala de aula. Fala-se a todo momento na formação de cidadãos autônomos e responsáveis, mas não se questiona o suficiente como isso poderia ser feito, ou melhor, essa meta, ou objetivo, não é discuta com os maiores interessados (escola, família, comunidade).

Dadas essas considerações, reconhecemos que esta discussão não se limita aos aspectos tratados neste texto e que há muito a ser pesquisado até que se consigam ações que venham lançar luz sobre as questões aqui abordadas, por exemplo, a relação entre a Psicologia e a Educação e a autonomia do professor. Além disto, cabe ao psicólogo refletir, discutir e chamar a atenção de todos os envolvidos na educação para os problemas que ocorrem nos espaços educacionais e afetam o desenvolvimento das gerações futuras. Este seria um dos papéis sociais da Psicologia da Educação.

 

Referências

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Recebido em: 21.12.2007 Primeira revisão: 25.04.2008 Aceito em: 10.05.2008

 

 

1 Leis das Diretrizes e Base da Educação Nacional. (Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. 2 Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. 3 v. Brasília: MEC/SEF, Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental.1998. Brasil. *Professora doutora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia como Profissão e Ciência da Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC-Camp. E-mail: vera.trevisan@uol.com.br. **Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia como Profissão e Ciência da Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC-Camp com ingresso em 2007, cursando o terceiro semestre. Bolsista CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). E-mail: paulinhapetroni@yahoo.com.br. ***Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia como Profissão e Ciência da Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC-Camp com ingresso em 2007, cursando o terceiro semestre. Bolsista CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). E-mail: mariaeufrasia@directnet.com.br.