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versão impressa ISSN 1415-8809

Psicol inf. vol.11 no.11 São Paulo dez. 2007

 

Artigo

 

 

Sofrimento, desenraizamento e exclusão: relato de uma experiência com indígenas aculturados do Amazonas

 

Suffering, uprootedness, and exclusion: account of an experience with acculturated Amazon Indians

 

 

Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo*

 


RESUMO

A autora apresenta o relato de viagens à região de São Gabriel da Cachoeira (norte do Estado do Amazonas), na condição de psicóloga clínica, com um embasamento advindo da psicologia clínica social. Narra sua experiência, o contato com jovens, famílias e comunidade, em sua quase totalidade composta por indígenas das mais distintas etnias, todas em acelerado processo de aculturação. Descreve esses encontros, as entrevistas e o emprego de técnicas de expressão gráfica, como o Procedimento de Desenhos Temáticos, utilizadas como mediadoras nas consultas terapêuticas grupais. A autora traz sua experiência de atendimentos individuais e completa o relato com reflexões a respeito do que pôde observar: a rica experiência das pessoas que lá vivem e, em especial, seu sofrimento, decorrente, possivelmente, de intenso desenraizamento e exclusão, o que nos instiga a pensar em desenvolver uma clínica psicológica diferenciada.

Palavras-chave: Indígenas urbanos; Desenraizamento; Consultas terapêuticas; Procedimento de Desenhos Temáticos.


ABSTRACT

The author shares the experience of trips made to the region of São Gabriel da Cachoeira (North of the State of Amazon) in the condition of a social clinical psychologist. She describes her contacts with youths, families, and communities, most of which were comprised by Indians from many different ethnics, all of them in accelerated process of acculturation. She describes these encounters, interviews, and the use of graphic expression techniques, such as the Thematic Drawing Story, as co-mediators in group therapy appointments. In this account, the author describes hers experiences with individual sessions and reflections about the episodes: the rich experience of people living in that area, specially their suffering as a possible result of a situation of intense uprootedness and exclusion. These refletions indicate the necessity of developing new psychologycal practices.

Keyword: Acculturated Indians; Uprooting; Therapeutic appointments; Thematic Drawing Story.


 

 

 

I. Introdução

Esta apresentação, como o título já diz, basear-se-á no relato de uma experiência de contato com indígenas do Alto Rio Negro. Embora tenham ocorrido apenas duas viagens à região, estas foram de tal modo intensas que vêm gerando reflexões, propostas de estudo e, especialmente, tentativas de intervenção, também já iniciadas. Mais do que isso, motivam a criação de uma proposta de um amplo projeto de estudo e intervenção, na busca de uma clínica psicológica diferenciada que possa dar alguma resposta à situação de sofrimento e exclusão com a qual nos deparamos.

Comentaremos nessa apresentação a situação mais dramática, que motivou o início dessa experiência – a viagem e o trabalho em São Gabriel da Cachoeira, incluindo reflexões e propostas de uma clínica diferenciada, com consultas terapêuticas individuais e grupais.

A situação com que nos deparamos nessa viagem a um lugar tão distante, em solo brasileiro, não é nova. Na verdade, sabe-se que a chegada do colonizador europeu à América desencadeou um processo epidemiológico (do ponto de vista da saúde) e social que afetou as populações indígenas, desencadeando uma marcante depopulação e levando ao desaparecimento de um sem-número de etnias (MAGALHÃES, 2001).

Nesse sentido, essas populações indígenas têm sido historicamente consideradas vulneráveis no Brasil, merecendo do governo, desde os tempos iniciais da República, políticas públicas específicas, muitas vezes contraditórias, que nem sempre consideraram o interesse de manutenção do índio como parte integrante de nosso povo.

Lobo (1996) afirma que os indígenas têm, de fato, uma menor capacidade de resposta imunológica, o que leva a um sem-número de epidemias e ao aumento dos índices de mortalidade. Este fenômeno decorre, em parte, da maior homogeneidade genética do povo. No entanto, ainda segundo essa mesma autora, os aspectos socioculturais têm sido os maiores responsáveis por essas taxas de mortalidade e pelo desaparecimento de etnias inteiras. Ela se refere à "inexistência de estoques alimentares, à falta de acesso a assistência especializada e à pouca capacidade social de reagir à perda populacional" (grifo nosso). Acrescentaríamos aqui que essa pouca capacidade de resistência refere-se também aos aspectos sociais, pois lhes é muito difícil resistir à perda e à invasão; foi o que testemunhamos durante toda a experiência que vivemos e ora relatamos.

destruição de liames coesivos na sociedade, [...] perda do senso de pertença [social], [...] sentimento de abandono por parte de todos, acompanhado da incapacidade de reagir (p.18-19).

É nesse contexto de exclusão social que percebemos o desafio de fazer psicologia clínica entre essas pessoas.

Para situar ainda um pouco mais a situação social na qual nos vimos trabalhando, citamos Magalhães (2001), que mostra que a história das relações do Estado capitalista brasileiro com os povos indígenas é caracterizada por uma relação discriminatória daquele para com estes. Assim, os povos indígenas situam-se numa categoria particular, caracterizando uma posição desigual, desde os tempos da Colônia e do Império. Todos estudamos em nossos livros de História sobre a escravização e a guerra aos povos indígenas. O fenômeno vem se mantendo e até se agravando ao longo dos séculos. Nos últimos anos foram desenvolvidos vários projetos econômicos que levaram ao avanço de populações pauperizadas sobre terras indígenas. "Considerados ora ‘órfãos’, ora ‘relativamente incapazes’, a estes povos é historicamente negada sua autodeterminação" (MAGALHÃES, 2001, p. 72).

Afirma o autor que os povos indígenas de contato antigo com a sociedade nacional brasileira sofrem, em sua maioria, os efeitos perversos deste contato, fenômeno que observamos na cidade de São Gabriel da Cachoeira. Primeiro, na fase inicial, passam, sem exceção, por uma maciça depopulação, seguida por um efeito de desequilíbrio social que os coloca em posição desvantajosa junto às populações com as quais mantêm relações, subordinando-se, muitas vezes, a parcelas de nossa população já absolutamente marginais. Ficam, portanto, numa posição social particularmente desprivilegiada, agravada pela demora que a apreensão dos novos códigos sociais nacionais envolve.

 

II. O trabalho em São Gabriel da Cachoeira

É no contexto mencionado acima de forma muito resumida que fomos chamados a desenvolver uma reflexão psico-antropológico-social, em virtude do número de suicídios e tentativas de suicídios entres jovens da cidade de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas.

Trata-se de um município com 112 mil quilômetros e atuais 30 mil habitantes, situado no extremo Noroeste do Estado do Amazonas. Separado de Manaus por 860 km de densa floresta tropical, na fronteira com a Colômbia e Venezuela, foi fundado em 1891 e declarado Área de Segurança Nacional em 1968.

Sua população, que forma a maior concentração indígena da Amazônia, está distribuída em 750 povoados, de 23 etnias distintas, ao longo das margens do Rio Negro e seus afluentes. A cultura indígena refletese também na economia de São Gabriel. A principal atividade do município ainda é a agricultura de subsistência. Planta-se mandioca, abacaxi, abacate, banana, limão e batata-doce. A alimentação é complementada pela caça e pesca, que, no entanto, está cada vez menos abundante.

A mais importante fonte de renda na cidade é o Exército, que emprega cerca de 1500 homens e paga uma folha de soldos seis vezes maior que a do funcionalismo público. As escolas atingem praticamente todos os povoados. São 10 mil alunos matriculados nos ensinos fundamental e médio. A cidade conta com um delegado de polícia e vinte policiais. Os crimes, em geral, estão associados a episódios de intoxicação alcoólica aguda.

O município de São Gabriel apresenta sérios problemas de saúde pública, sendo um dos campeões brasileiros em tuberculose, que deve ter, como substrato, a desnutrição "epidêmica" decorrente de um ecossistema pobre em oferta proteica pela alta acidez dos rios e baixa fertilidade do solo. A mudança no estilo das residências indígenas também contribui ainda para a disseminação de doenças. Antigamente as moradias tinham teto de palha e grandes janelas, portanto eram ventiladas. Hoje, espalham-se casas com teto de zinco ou amianto, muito mais quentes e favoráveis à proliferação de bactérias. Outras moléstias também ocorrem em grande número, como a helmintíase e a malária.

A população de São Gabriel da Cachoeira, constituída em sua quase totalidade por índios (95%), sofreu um rápido processo de aculturação nas últimas décadas, modificando valores, tradições, usos e costumes socioculturais. Mais do que a modificação, este processo distanciou – e até mesmo aniquilou – raízes culturais até então cultivadas e transmitidas durante centenas de anos pela ancestralidade. Já nos referimos a esse fenômeno de desaparecimento de etnias inteiras, o que não ocorreu apenas na Amazônia, mas em todo o território nacional ao longo de nossa história.

A área urbana é mínima, congregando uma população de forasteiros de aproximadamente 8 mil pessoas. Não há salas de cinema ou teatro. As contradições são evidentes: apesar do altíssimo potencial hidrelétrico, toda a energia é gerada por uma usina termoelétrica, que consome 300 mil litros/dia de óleo diesel, levados em barcaças vindas de Manaus. Observamos antenas parabólicas e pelo menos um aparelho de TV ligado em todas as casas e estabelecimentos. O fluxo migratório das aldeias para a periferia da cidade evidencia a busca por novos valores.

Encontros com profissionais: Fórum da criança e do adolescente/ programas de rádio Em São Gabriel fizemos contato com distintas instituições e órgãos governamentais e não-governamentais. É importante afirmar que notamos intensa preocupação dos representantes de todas essas instituições e pedidos de apoio, treinamento, cursos, nas ocasiões em que lá estivemos.

Na primeira dessas viagens foi criado um fórum que agregava representantes das instituições. Naquela ocasião, desenvolvemos um simpósio sobre o tema "Adolescência e violência". O grupo do fórum vem se reunindo mensalmente desde então e em julho desenvolvemos, por solicitação deles, um seminário sobre o tema: "Família do menor desajustado", com a participação do Dr. Wagner Vidille. O mesmo ocorreu no Centro de Saúde-Escola Dom Walter Ivan de Azevedo, e contou com a presença de mais de 30 pessoas – representantes de distintas instituições: Centro de Saúde-Escola; Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro; Conselho tutelar; Projeto Sentinela; Escolas (Colégio Dom Bosco e Escola Agro-Técnica) e Exército. Havia médicos, dentistas, professores, psicólogos. Pudemos fazer uma discussão sobre as funções, desenvolvimento e conflitos na família. O grupo se reuniu para pensar os problemas e soluções, que requerem um trabalho de caráter amplo e multidisciplinar, com o apoio de toda a sociedade. Pudemos notar que em nosso país, numa situação como essa, para desenvolvermos uma clínica eficiente, é indispensável o diálogo e a articulação com todas essas áreas e representantes da comunidade.

Nesse sentido, também estivemos presentes em dois programas da rádio Novo Milênio, única FM local. Em um deles, que contou com a presença de representantes do Fórum, houve a preocupação em transmitir a um maior número de pessoas o debate e as propostas realizadas no seminário sobre "Família do menor desajustado". Na verdade, podemos dizer que fomos ao encontro da população, utilizando um meio de comunicação bastante eficaz naquelas regiões, que é o rádio.

Os jovens de São Gabriel – emergentes da situação Compreensão e consultas terapêuticas grupais Tivemos três reuniões com grupos grandes e em todas elas empregamos a Técnica do Desenho Temático como instrumento mediador no contato, e pudemos realizar o que vimos denominando (Vaisberg & Tardivo, 2002) consultas terapêuticas grupais. Esse material deu origem a nossa tese de livre-docência (TARDIVO, 2004).

Duas das reuniões ocorreram no Centro Juvenil Salesiano, onde os jovens aprendem e desenvolvem as mais distintas atividades: artesanato, marcenaria, pintura, padaria, informática, etc. À primeira concorreu um grande número de jovens – cerca de 80 – de ambos os sexos. Foram convidados a fazer o Desenho Temático: "O jovem em São Gabriel da Cachoeira hoje" e instruídos a escrever associações no verso da folha, apenas identificando sexo e a idade. Após a realização dos desenhos, procedeu-se à discussão. Fomos escolhendo jovens para mostrar os desenhos e as associações. Os temas recorrentes foram a destruição do jovem em São Gabriel, bebidas, drogas e violência. As figuras humanas eram, muitas vezes, grotescas e acompanhadas desses elementos. Chamou a atenção a quantidade de referências à morte: desenhos de caixões e cemitérios. Muitos jovens falaram da escolha de dois caminhos: o do bem e o do mal, e desenharam encruzilhadas.

Muitos amassavam e escondiam os desenhos nas roupas (sinal de angústia e mal-estar), mas, convidados a entregá-los, dispunham-se a fazê-lo.

Do segundo encontro participou um número menor de jovens (12 no total e de ambos os sexos), e procedemos da mesma forma. Nesse pequeno grupo surgiram, durante as discussões, mais perspectivas de futuro e uma vida melhor no presente: a presença de escolas, a natureza, embora ainda predominassem as mesmas dificuldades dos outros grupos: bebidas e drogas, o que alguns chamaram de "caminho da perdição". Comentaram sobre a falta de opção de lazer para os jovens, sendo muito forte a menção à bebida e às "festas". Pôde-se mencionar o que ocorre quando a busca de prazer e diversão se transforma em destruição, caracterizada pelo uso abusivo de bebidas alcoólicas. Nesse grupo menor mencionou-se, pela primeira vez, a busca e o interesse em ter uma profissão: as profissões desejadas pelos jovens eram: assistente social, tenente do Exército, advogado, enfermeira, médico, nutricionista, mecânico, técnico em informática.

Na terceira oportunidade de encontro com jovens, estivemos numa comunidade considerada mais pobre (bairro Dabaru) e nos reunimos com 13 meninas. O procedimento foi o mesmo: desenho temático e discussão. Nesse grupo, muitas meninas mencionaram as mesmas dificuldades relatadas nos demais grupos, mas o que mais se evidenciou foi a intensidade das dificuldades e conflitos familiares relatados. Todas mencionaram o uso de bebidas alcoólicas pelos pais, sendo que muito destes chegam a agredir as mães; outras mencionaram que os pais já abandonaram o lar. Ficou muito claro que não se trata de "educar" ou "adequar" a juventude, mas dar conta de um amplo e intenso processo de deterioração que ocorre em toda a sociedade e que tem como centro o próprio núcleo familiar.

A família em São Gabriel da Cachoeira: a crise e a dor Tivemos duas oportunidades de reunião com pais: uma no Centro Juvenil Salesiano e outra na Comunidade do Dabaru.

No Centro Juvenil esteve presente um grande número de pais, mães e jovens; eram mais de 60 pessoas. Empregamos a técnica do "Desenho da Sua Família", também como instrumento mediador no contato. Aos que sabiam escrever, solicitamos que redigissem algumas associações.

Da mesma forma, abrimos espaço para que falassem de seus desenhos, de suas vivências. Surgiram diversos temas, como a dificuldade de controlar e dar limites aos filhos, embora outros afirmassem não ter problemas em suas famílias. Duas pessoas se abriram e falaram dos sérios problemas com filhos jovens: um de 18 anos, que fugiu de casa e bebe muito, e outra jovem de 20 anos, que sai muito para as "festas" e não obedece à mãe.

O tema do alcoolismo é sempre mencionado. Tentamos também dar algumas orientações. Uma jovem senhora falou da necessidade de os pais darem exemplos aos filhos. Os jovens não são os únicos que bebem na cidade. Outra falou de um primo que bebia porque os pais brigavam muito em casa e que, quando ele estava na casa dela, parava de beber. Um senhor mais velho, comerciante, falou que a bebida é muito barata, que todos bebem; mencionou a falta de controle dos jovens e disse que os pais deveriam aprender a controlar melhor seus filhos; disse que os jovens gostam de se distrair e que ele próprio também queria sair quando jovem; afirmou faltarem limites (foi aplaudido por alguns).

Como solução uma senhora sugeriu o fechamento das fábricas de cachaça. Todos concordaram, mas acabam dizendo que era impossível. Então falamos da necessidade de controle, que o prazer é necessário para todos; que os jovens requerem mais oportunidades prazerosas, mas não sabem se controlar. Os pais assumiram que eles próprios deveriam impor esse controle. Pudemos falar da necessidade do diálogo, da conversa, da presença forte e da confiança que os filhos precisam ter nos pais, ou em alguma pessoa que possa lhes dar segurança.

Na comunidade do Dabaru, a reunião ocorreu na capela. Todos se dispuseram a falar. Não empregamos a técnica gráfica por falta de condições. Notamos que a maioria possui uma grande prole; em geral, chegam a ter dez filhos. A maioria dos presentes tinha mais de quatro filhos. Havia mães com filhos de pais diferentes. Discutimos a necessidade de as mães darem atenção aos filhos menores. Notamos um total despreparo dessas mulheres em relação ao planejamento familiar. São recorrentes os temas da falta de limites e da dificuldade dos pais em lidarm com as solicitações dos filhos. Foi interessante a observação de uma mulher que mencionou que alguns dos pais ali presentes não nos entendiam, em função do idioma; ou seja, entre os mais velhos são mantidos os costumes e o idioma, o que, não ocorre entre os jovens. Esse grupo, como o anterior, discutiu o drama do alcoolismo e da dependência química.

Testemunhamos um fato dramático nesse encontro que revelou que a destruição das etnias indígenas continua. Uma senhora, ao falar com forte sotaque, denotando muita dor e revolta, contou um episódio ocorrido no fim-de-semana: um soldado alcoolizado, em licença, baleou três sobrinhos dela (um deles veio a falecer). Ela mencionou que não há justiça na cidade (o juiz e o promotor não estavam nessa noite na cidade) e acrescentou que estão acabando com os indígenas. A interlocutora parecia consciente do que ocorre; falou com muita propriedade. A promotora, presente na reunião, procurou dar algumas explicações legais. Nesse momento, buscamos intervir para facilitar o diálogo. Dissemos que não concordamos com tais atos e que como "não-índios" queremos tê-los no Brasil, pois acreditamos no valor e na necessidade de manter suas culturas e costumes, e que era exatamente isso que nos trazia ali. Frisamos que poderiam partilhar essa dor conosco. Após a intervenção surgiram sugestões para melhor lidarem com os tristes eventos e estratégias e para se organizarem e defenderem.

Atendimentos individuais – consultas terapêuticas Foram feitos diversos atendimentos individuais: para crianças, jovens, adultos e até para alguns grupos familiares.

Um dos casos já havia sido atendido anteriormente – um jovem que havia tentado o suicídio. Pudemos verificar que a situação emocional do jovem vem se agravando, testemunhando o que parece ocorrer no restante da comunidade.

Empregamos instrumentos projetivos como mediadores nos contatos: Procedimento de desenhos-estórias (TRINCA, 1997); Questionário desiderativo (CELENER; BRAUDE, 2000); Fábulas de Düss (TARDIVO, 1998). Realizamos intervenções imediatas. Alguns encaminhamentos foram feitos. Nessa exposição, daremos maior ênfase aos atendimentos grupais; em outras oportunidades já nos referimos aos atendimentos individuais (TARDIVO, 2004), sendo que pretendemos voltar a fazê-lo.

Refletindo sobre a experiência Nesse texto mencionamos o conceito de "desenraizamento" por mais de uma vez. Vale, então, refletir sobre ele. Na obra da filósofa Simone Weil (1909-1943) encontramos importantes contribuições ao estudo do tema, apesar de tratar do assunto em outro contexto (situação do operariado francês antes da Segunda Grande Guerra). Segundo ela, o enraizamento "é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana" (WEIL, 2001, p. 43) e, ao contrário, que os desenraizados.

não teriam senão dois comportamentos possíveis: ou caem numa inércia da alma quase equivalente à morte, [...] ou se jogam numa atividade que tende sempre a desenraizar, freqüentemente pelos métodos mais violentos, aqueles que ainda não o estão ou não o estão senão em parte (WEIL, 2001, p. 46-47).

Podemos dizer que testemunhamos exatamente essas vivências.

Em Safra (1999) encontramos importante material para reflexão sobre a situação desses indígenas: a falta da própria continuidade do ser, a falta de objetos étnicos, a falta de suas raízes, que trazem uma patologia individual.

A relação entre o mundo interno e o mundo externo é intermediada por mecanismos de projeção e introjeção, num fluxo contínuo e salutar. Pensamos que a articulação entre o mundo interno e os fatores externos seja permeada pelos aspectos culturais e acreditamos ser necessária a manutenção de elementos culturais fundantes (elementos da natureza, da religiosidade, línguas, tipo de organização social, etc.) constituintes da base estruturante da identidade étnica e individual.

Os indígenas do Alto Rio Negro possuem uma rica mitologia e cultura, que não será alvo de tratamento detalhado nesta comunicação. Na verdade, são diversos povos com crenças e rituais próprios. Os quinze grupos indígenas da família lingüística Tukano oriental são os mais importantes.

Os jovens com quem tivemos contato pertencem a famílias com essa origem, pelo menos um dos pais. A maioria dos indígenas mais velhos que vivem na cidade mantém suas crenças e idiomas, como pudemos verificar nos encontros com os pais nas comunidades. Muitos deles, mesmo procurando auxílio médico, acreditam que os males e doenças que fazem sofrer a humanidade até nossos dias são derivados de episódios míticos; e buscam o atendimento de pajés e benzedores.

A violenta aculturação que sofreram e as rápidas mudanças socioculturais dela decorrentes trouxeram prejuízos, na medida em que estes processos levaram a variadas formas de violência, deterioração e até destruição dos costumes em detrimento da cristalização das identidades e formação de uma unidade social da população local.

Os jovens aculturados que hoje vivem em São Gabriel da Cachoeira desprezam suas raízes culturais e ao mesmo tempo não se vinculam a tradições e ritos de passagem não-índios, que poderiam assegurar-lhes sentimentos de pertinência em relação à sociedade em que vivem. Desta maneira, a vida na cidade tende a se tornar cada vez mais desprovida de sentido, na medida em que o ambiente é incapaz de oferecer aos jovens, que nada possuem e a nada pertencem, a perspectiva da garantia de respeito a seus direitos fundamentais como cidadãos.

Tivemos oportunidade de apresentar discussões, em colaboração, a respeito da representação que o jovem de São Gabriel tem de si mesmo (TARDIVO; VAISBERG; ALMEIDA, 2002). Em outra comunicação, realizada também em colaboração, aprofundamos essa questão verificando a falta de perspectivas e de continuidade de ser (AIELOVAISBERG; TARDIVO; FONSECA, 2002).

Neste contexto, fenômenos sociais como a formação de gangues, por eles denominadas "galeras", o alcoolismo e a dependência química, com a decorrente explosão da violência, surgem como alternativas à constituição de mais sadias modalidades individuais e coletivas de existência. Ao largo destas alternativas, encontram no suicídio e nos homicídios alguma forma de reação à impossibilidade de ser e de existir.

A desigualdade social engendra exclusão social, da qual grande parcela da sociedade torna-se vítima, subtraindo-lhe sua condição de cidadãos e o exercício de direitos.

Como diz Magalhães (2001, p. 20): Observamos a

exclusão tanto pela desestruturação de seu sistema organizativo e simbólico quanto pelo desaparecimento físico, ou seja, a possibilidade tanto de ocorrer o etnocídio (ou epistemicídio) quanto o genocídio.

Verificamos que esse processo ocorre em toda a comunidade, incluindo as famílias e os pais. Em suas produções gráficas, os jovens denunciam como a adaptação a novas dinâmicas (às quais denominamos aculturação violenta e que, na verdade, é um processo de "desenraizamento") repercutiu em todo o imaginário individual e coletivo. Dessa forma, testemunhamos um sofrimento coletivo: nos suicidas ou nos que tentaram o suicídio, nos que atuam a violência, nos que usam drogas de forma indiscriminada. É gritante a atuação do desenraizamento da cultura de seus ancestrais, da falta de perspectivas de vida e de esperança. Vemos indivíduos pertencentes a grupos em processo de extermínio cultural. Em termos éticos e clínicos, tal situação nos interpela vivamente, porque estamos sempre comprometidos com os seres humanos vivos, sejam quais forem as condições concretas de sua existência. Dessa forma, não pudemos apenas refletir e adotar uma postura de psicólogos realizando um "diagnóstico" de um quadro nosológico, mas vivemos uma questão humana que exige, interroga e provoca. Buscamos, assim, uma intervenção definida, centrada na firme convicção de que todo gesto humano tem sentidos emocionais a serem levados em conta. Acreditamos que essa clínica deva ser estimulada e desenvolvida entre esses jovens, embora tenhamos claro que essas intervenções devem estar inseridas num contexto amplo que contemple a sociedade e a comunidade como um todo.

Buscamos dar alguma resposta a esse desafio e nos apoiamos no pensamento de D. W. Winnicott, que compreende que as mais graves formas de sofrimento humano, psiquicamente expressas, estão intimamente relacionadas às deficiências ambientais, no que tem sido denominado "cuidado materno suficientemente bom".

Em um de seus artigos, Winnicott (1960) diz que, diante de um caso que requer tratamento psicanalítico, são possíveis duas alternativas: fazer uma psicanálise individual, tal como concebida por Freud tendo em vista o atendimento do paciente neurótico, ou "ser um psicanalista fazendo outra coisa" mais apropriada à situação. Optamos pela segunda alternativa, a única que nos pareceu viável naquela ocasião.

Diz Vaisberg (1999) que, em nosso país, somos cada vez mais solicitados a sermos psicanalistas fazendo outra coisa. Na população com a qual tivemos oportunidade de conviver, pudemos identificar claramente as condições que justificam essa clínica diferenciada: ali se vive uma situação de pobreza, com pouco acesso à educação e, devido aos já mencionados aspectos de desenraizamento e de bruscas mudanças culturais e sociais, é vítima de condições psicopatológicas novas. Qualquer intervenção pressupõe um encontro, entendido aqui no contexto do pensamento de Winnicott.

Esse mesmo autor propõe uma forma de atendimento à qual chamou de "consulta terapêutica" (WINNICOTT, 1984, 1994). Esse termo designa um uso pleno e irrestrito da primeira entrevista (ou primeiras) para produzir resultados terapêuticos. Nesses momentos, o terapeuta assume o papel de objeto subjetivo, objeto este que raramente sobrevive à primeira ou às poucas primeiras entrevistas. A consulta terapêutica é um momento especial. Se esse momento for desperdiçado, a confiança que o paciente tem de ser compreendido é prejudicada. Caso contrário, essa confiança pode ser fortificada. Em muitos casos – por exemplo, quando vários problemas surgem de uma só vez em uma primeira entrevista –, o trabalho realizado nas consultas terapêuticas é um prelúdio para uma psicoterapia mais prolongada, de maneira que cada um dos vários problemas possa ser trabalhado separadamente. Assim, essa forma de trabalho pressupõe uma tentativa de dar conta do que ocorre nos encontros que são possíveis de serem estabelecidos, como tentamos realizar nessa rica experiência que vimos relatando nessas páginas.

 

III. Conclusão

Como conclusão desse relato gostaríamos inicialmente de agradecer a esses brasileiros pelo muito que nos ensinaram, pela riqueza da experiência vivida.

Acreditamos que foi possível fazer psicologia clínica, inserida nesse particular contexto socioantropológico, buscando desenvolver abordagens diferenciadas. Há muito, com certeza, a ser feito. O trabalho mal começou.

Mais do que isso, porém, queremos deixar aqui nossa disposição em contribuir efetivamente, com todas as nossas possibilidades, conhecimentos e técnicas, mas especialmente com nossa condição de seres humanos, para o desenvolvimento de medidas de caráter multidisciplinar que visem diminuir o sofrimento de parte importante da população de nosso país.

 

Referências

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Recebido em: 24.04.2007 Primeira revisão: 30.05.2007 Aceito em: 12.08.2007

 

 

*Psicóloga, doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo, livre-docente do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. E-mail: tardivo@usp.br; site: www.leilatardivo.com.br.