SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.13 número13Descrição de queixas e indicadores diagnósticos de famílias atendidas em psicoterapia domiciliarO que fazemos quando fazemos psicologia do trabalho? índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologo informacao

versão impressa ISSN 1415-8809

Psicol inf. vol.13 no.13 São Paulo out. 2009

 

A escuta psicanalítica e a educação*

 

Psychoanalytical listening and education

 

 

**Alice Beatri B. Izique Bastos

Universidade Gama Filho / Núcleo de Psicanálise e Educação

 

 


Resumo

Este artigo visa apresentar a noção histórica da escuta em Freud, assinalando as diferenças entre ouvir e escutar; discute ainda algumas implicações da escuta na psicanálise de orientação lacaniana e na educação. Tem também como objetivo esclarecer que a escuta na psicanálise se orienta para a singularidade do sujeito e tem consequências importantes para ele.

Palavras-chave: Escuta psicanalítica – Diferenças entre ouvir e escutar – Psicanálise e educação.


Abstract

The present paper aims at presenting Freud's historical notion of listening, signaling its differences from "hearing". It discusses some implications of listening in Lacanian psychoanalysis and in education. It is also its purpose to clarify that listening in psychoanalysis is guided by the subject's singularity and has important consequences for him.

Keywords: Psychoanalytical listening – Differences between hearing and listening – Psychoanalysis and education


 

 

O presente texto tem como objetivo discutir a escuta psicanalítica e algumas de suas implicações, não só para a psicanálise, como para a educação. O artigo foi escrito originalmente para profissionais da educação, professores, coordenadores pedagógicos e diretores de escolas municipais, que participaram de um curso sobre a construção da escuta do professor. A escuta na psicanálise tem uma função fundamental, mas ainda são escassos os textos que tratam especificamente sobre o assunto.

Retomar um pouco o histórico da noção de escuta é imprescindível quando pensamos em psicanálise. Em 1912, Freud apresentou um texto direcionado a médicos que exercem a psicanálise e nele fez algumas recomendações fundamentais. É neste texto que a noção de escuta aparece mais didática e claramente atrelada à ideia de atenção flutuante. Segundo Sigmund Freud, é preciso que suspendamos nossa atenção e não nos detenhamos em nenhum ponto específico da fala do paciente, para que assim, de alguma forma, possamos ficar atentos a tudo que nos é dito. A regra freudiana de associação livre pressupõe que o paciente fale livremente o que lhe vier à cabeça e também não selecione conteúdos intencionais para falar ao analista. Para serem coerentes com esta regra, os analistas precisam se desprender das influências conscientes e deixar a atenção uniformemente suspensa, sem se fixar a um ponto qualquer. Freud diz: "Ver-se-á que a regra de prestar igual reparo a tudo constitui a contrapartida necessária da exigência feita ao paciente, de que comunique tudo o que lhe ocorra, sem crítica ou seleção" (FREUD, 1912, p. 150).

Na época em que Freud escreveu este artigo, os médicos supunham ter o saber sobre os sintomas de seus pacientes e, desta forma, só caberia a estes últimos escutá-los. Na educação também acontecia o mesmo em relação aos professores, que supunham que só eles podiam ensinar, transmitir saber, sem se preocupar em oferecer sua escuta aos alunos, em conhecer suas hipóteses. Se os pacientes e os alunos não têm nada a dizer, então por que escutá-los? Freud veio nos mostrar que a escuta dos pacientes é imprescindível para o tratamento e que saber ouvi-los é uma verdadeira arte.

A noção de escuta encontra-se atrelada ao conceito de inconsciente, na medida em que a associação livre é uma possibilidade para a investigação das próprias formações inconscientes. Os sonhos, por exemplo, são considerados importantes formações do inconsciente e, em análise, podem ser trabalhados por meio dos relatos dos pacientes, que os levam a buscar um sentido oculto por seu enigma. Assim, os sonhos não são interpretáveis por si sós, e é no espaço da análise que são investigados. Freud (1912), ao ser interrogado sobre como alguém poderia se tornar analista, respondeu que é pela análise dos próprios sonhos, uma vez que para esta análise é imprescindível que a pessoa esteja num processo analítico.

Desta forma, é a fala do próprio analisando que o conduz ao encontro do enigma de seus sonhos, juntamente com a presença, com as pontuações e indagações do analista.

Freud aprendeu muito com uma de suas pacientes histéricas, que o interrompeu e pediu que ele parasse de falar e a escutasse. Escutar implica um deslocamento da posição narcísica, do lugar de mestre e de poder sobre o outro. O analista precisa dar atenção à singularidade do sujeito, estar atento ao que ouve e ter curiosidade em sua escuta, como nos diz Lacan (1979). A atenção e a curiosidade levam-no a intervir nos momentos mais inesperados, que podem revelar algo novo, algo que impulsione o paciente a pensar de forma diferente da que vinha pensando, que possa suspender suas verdades e que seja capaz de surpreendê-lo.

Por exemplo, durante a análise de Dora, um caso "clássico" de histeria de Freud, na qual a paciente se queixava insistentemente da relação entre ela, seu pai e um casal de amigos do pai com quem tinha muita intimidade, Freud a interroga sobre qual era sua própria parte na desordem de que ela se queixava. A partir da intervenção de Freud, Dora percebe sua implicação e sua responsabilidade perante a situação que lhe era fundamental naquele momento. A partir daí, sua análise toma um novo direcionamento: em vez de só se queixar, começa a perceber seu papel e a posição ocupada por ela naquele quarteto.

 

Um momento fundamental de todo tratamento pela psicanálise é o dia em que o analisando descobre que não dá mais para se queixar. Não que as dificuldades tenham desaparecido por encanto, mas o "tirem isso de mim", base de toda queixa, perde seu vigor, revela-se para a pessoa em todo o seu aspecto fantasioso. É duro não ter a quem se queixar, não ter um bispo, um departamento de defesa dos vivos, como há o dos consumidores. A pessoa pode perder o rumo, não saber o que vai fazer, nem mesmo saber quem é. (FORBES, 2003, p. 11).

 

Deste modo, quando nos queixamos, geralmente estamos culpando alguém por nossa insatisfação, atribuindo ao outro a causa de nossos fracassos, sofrimentos etc. A queixa escamoteia o sofrimento real de nos depararmos com nós mesmos, com nossa responsabilidade diante das situações em que estamos implicados e que exigem de nós um posicionamento.

A escuta não é uma função passiva; ela coloca em movimento o sujeito, fazendo-o falar, deparar-se com seu não saber, com suas dúvidas acerca de si e do mundo. A escuta é ativa, é preciso dar consequências a ela, como ir de encontro à satisfação e ao prazer de descobertas de um novo saber; novo saber que nos posicione perante uma realidade da qual queremos participar e na qual queremos o direito de ter voz ativa.

A escuta precisa orientar-se para a singularidade do sujeito, possibilitando que ele se expresse, fale e implique seu desejo.

A psicanálise enfatiza a necessidade de resgatar a singularidade da pessoa por meio de sua fala e de sua palavra. Os alunos, por exemplo, precisam que os professores lhes deem chances de expressarem- se por si próprios, para que possam falar e ser escutados, pois a posição de escuta é fundamental para resgatar as particularidades e as hipóteses de cada um (MRECH, 1999).

A criança aprende a internalizar o que pensam os adultos, suas concepções a respeito dela própria, e tem dificuldade para se desvincular disso. Sua singularidade poderá emergir se, aos poucos, nos orientarmos no sentido de possibilitar-lhe uma escuta de seu lugar e de sua voz, e não mais nos atermos às imagens estereotipadas com as quais costumamos nos apoiar quando pensamos nelas. Mrech nos esclarece sobre a importância de nos orientarmos pela realidade psíquica da própria criança: "Para que possamos saber como a criança pensa, o que sente, o que deseja etc., é preciso que nós nos orientemos pela sua realidade psíquica, e não pela chamada realidade concreta ou por nossa realidade psíquica" (MRECH, 1999, p. 111).

Como vimos, a realidade do sujeito está no inconsciente, e para abarcá-la é preciso desprender-se da noção do eu centrada na experiência da consciência. O sujeito do inconsciente fala e não sabe o que diz, pois há algo que se tece pelas palavras, além delas. Por isso, na análise, a associação livre remete-o para uma nova dimensão na qual ele se depara com as palavras que escapam ao seu domínio, que ele mesmo diz, e que acabam por produzir efeitos que ele ignorava. Assim podemos entender o inconsciente como um lugar de saber que se manifesta de forma singular, como as próprias formações do inconsciente são capazes de revelar (BASTOS A., 2003, p. 114-115).

Uma das grandes inovações de Freud foi supor no paciente um saber, que nem mesmo ele sabe que tem, mas que, por meio da escuta do analista, atrelado à regra de associação livre, pode ser desperto. Isto só se tornou possível porque Freud desenvolveu um olhar atento à singularidade de cada paciente, interessado basicamente na investigação dos processos inconscientes.

A escuta psicanalítica, como já destacado, é aquela que busca a singularidade do sujeito e que precisa estar atenta ao desejo inconsciente que está sendo enunciado. Singular é aquilo que é só seu, próprio de você e de mais ninguém, porque diz respeito a algo que foi se construindo e continua a se construir em sua história pessoal. O desejo (que é diferente da vontade), tem a ver com essa história e com a singularidade.

O saber inconsciente é um saber que não se sabe, diferente da vontade que é sempre vontade de alguma coisa, vontade consciente. Tornar consciente um saber que não se sabe é importante na medida em que este saber não consciente influencia e determina nosso modo de ser.

É preciso estabelecer uma diferença fundamental entre ouvir e escutar. Ouvir nos remete mais diretamente aos sentidos da audição, ao próprio ouvido, enquanto escutar significa prestar atenção para ouvir, dar ouvido a algo. Portanto, a atenção é uma função específica da escuta, e se nos orientarmos por Freud (1912), podemos dizer que a atenção é flutuante, ou seja, não seleciona nem se detém em nenhum ponto específico da fala.

Ouvimos uns aos outros quando compartilhamos de significados comuns, por meio de um diálogo, de uma conversa mais íntima, expressando nossas ideias acerca do mundo e das relações que construímos nele. Ao ouvir, entendemos e percebemos o que nos é dito pela via da audição. Mas por que será que é diferente sermos ouvidos por nossos pares ou por nosso analista?

Quando falamos a um amigo, temos a expectativa de sermos compreendidos, de confirmarmos nossas certezas, nossos julgamentos. Buscamos uma identificação, uma cumplicidade. Quando ouvimos um amigo, procuramos lhe dar atenção, confortá-lo, se for preciso, aconselhá-lo, orientá-lo, enfim, procuramos demonstrar nossa amizade apoiando-o da melhor maneira possível. Saber ouvir significa, então, prestar atenção ao amigo, ser paciente, abdicar de nossos interesses e procurar ser solidário com ele. Por que, então, procuramos um analista? Em que difere sua escuta do "saber ouvir" de um amigo?

Na medida em que o psicanalista não é um semelhante, ele não estabelece um diálogo, uma conversa com seu analisando, uma relação de reciprocidade, mas uma parceria de trabalho, escutando e pontuando sua fala, buscando investigar as entrelinhas de seu discurso, ouvindo outra coisa além do simples significado das palavras que são pronunciadas (LECLAIRE, 1977). Por meio de sua análise, o analista se apropria de sua singularidade e, consequentemente, busca orientar seu paciente para também poder resgatar sua singularidade.

A escuta psicanalítica não se prende ao assunto que está sendo dito, não é paciente; é provocativa, não é solidária. A escuta psicanalítica provoca o analisando a se colocar diante de suas próprias palavras; é uma escuta ativa, pois leva o analisando a examinar e se dar conta de sua própria singularidade e se implicar com ela, isto é, dar consequências, decidir o que fazer com isso.

Forbes (2001) sinaliza a posição diferenciada do paciente na análise de orientação lacaniana:

Na impossibilidade de se garantir através de uma explicação causalista e reducionista do seu passado, o analisando é levado, na orientação lacaniana, a inventar um futuro para si próprio, sem nenhuma outra razão além daquela do seu desejo, posição nem sempre muito confortável, apesar de entusiasmante, pois trata-se de uma invenção sem garantia repartida, sem o beneplácito da aceitação grupal, seja de que grupo for. Atenção: que não se pense ou se confunda esta invenção do futuro, na lógica do desejo, com qualquer individualismo barato ou hedonismo de ocasião.

Cabe também ao analista não se autorizar a ocupar o lugar do suposto saber, apesar da insistência do analisando em colocá-lo neste lugar. A análise resgata, por meio das manifestações inconscientes, um tipo particular de saber, que está além do que é dito e nunca é completo, pois o sujeito do inconsciente se constitui por uma ruptura, uma falta que nunca será preenchida. Esta falta é estruturante para o sujeito e o coloca em constante movimento de busca da verdade e de realização de seu desejo.

Na análise, a suspensão das certezas do analisando instala a dúvida, motor de novas buscas e inquietações. A queixa é da ordem das certezas, das respostas, e quando buscamos "compreender" o queixoso, na verdade acabamos por abandoná-lo num mato sem cachorro e cercado de certezas de todos os lados (BASTOS, 2004). A certeza é sempre enganosa, ela faz parte das ilusões da consciência que ao serem questionadas podem ser abandonadas.

A escuta tem muitas consequências e é uma ferramenta imprescindível para a investigação da subjetividade. Para dar consequência à escuta não podemos ser compreensivos, estabelecer reciprocidade, mas ficar atentos e curiosos ao discurso do outro. Lacan (1979) diz que nós não somos compreensivos e que a escuta deve ser exercida a partir de duas qualidades: a curiosidade e a ignorância douta. A posição do analista de orientação lacaniana ao escutar seu paciente é a de "douta ignorância", ou melhor, de um sábio não saber, que impede, por exemplo, a generalização de um caso particular e único.

Para concluir, reporto-me a Leclaire (1977), que escreveu que a arte do psicanalista parece constituir em nada esperar. Como poderemos pensar na arte do professor nesta mesma direção, daquele que nada esperaria de seus alunos a não ser que, de alguma maneira, eles também possam construir sua própria singularidade no processo educativo?

 

Referências

BASTOS, A. B. B. I. A construção da pessoa em Wallon e a constituição do sujeito em Lacan. Rio de Janeiro: Vozes, 2003.         [ Links ]

BASTOS, E. A. M. A escuta no chão de fábrica. São Bernardo do Campo, Faculdade de Psicologia e Fonoaudiologia da Universidade Metodista de São Paulo, 2004, 10p. (xerocopiado).         [ Links ]

FORBES, J. Jacques Lacan, o analista do futuro. Opção Lacaniana, São Paulo, n. 32, p. 52-53, dez. 2001.         [ Links ]

_____.Você quer o que você deseja? São Paulo: Best Seller, 2003.         [ Links ]

FREUD, S. Recomendações aos médicos que exercem psicanálise. In: _____. Coleção completa das obras de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v. XII.         [ Links ]

LACAN, J. O Seminário – Livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

_____. O Seminário - Livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. (Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Versão brasileira de Marie Christine Laznik Penot com a colaboração de Antonio Luiz Quinet de Andrade.         [ Links ])

LECLAIRE, S. Psicanalisar. São Paulo: Perspectiva, 1977.         [ Links ]

MRECH, L. M. Psicanálise e educação: novos operadores de leitura. São Paulo: Pioneira, 1999.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 8 de outubro de 2008.
Aceito em: 19 de fevereiro de 2009.

 

 

*Texto extraído do original apresentado na I Jornada de Psicanálise e Educação, realizada na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo em 2003
**Doutora em Psicologia da Educação pela Universidade de São Paulo, professora do curso de pós-graduação em Psicopedagogia da Universidade Gama Filho e pesquisadora do Núcleo de Psicanálise e Educação coordenado pela Profa. Dra. Leny Mrech