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versão impressa ISSN 1415-8809

Psicol inf. vol.14 no.14 São Paulo out. 2010

 

Artigo

 

 

Percepção da autoimagem corporal de adolescentes modelos: dois estudos de caso

 

Perception of body image of adolescent fashion models: two case studies

 

 

Katiane Holanda Fukamachi*; Adriana Amara da Silva**; Vanessa Xavier da Silva***; Fabíola Maria Ramon****; Lídia Schwartz*****

* Psicóloga, mestranda em Psicologia da Saúde pela Universidade Metodista de São Paulo.
**
Graduada em psicologia pela Universidade Metodista de São Paulo.

***
Graduada em psicologia pela Universidade Metodista de São Paulo.
****
Mestre em psicologia pela Universidade São Paulo – Ribeirão Preto e docente do c
urso de psicologia da Universidade Metodista de São Paulo.
*****
Doutora em psicologia – IPUSP e docente do curso de psicologia da Universidade Metodista de São Paulo.

 

 


RESUMO

Fatores de diferentes ordens influenciam a autopercepção da imagem corporal dos indivíduos. Em adolescentes modelos, pode-se considerar que o corpo é material de trabalho e que a valorização ainda mais acentuada da imagem pode ser um aspecto importante nesse processo. Neste contexto, o presente estudo objetiva investigar e compreender aspectos psicológicos que estão relacionados à percepção da autoimagem corporal de adolescentes que atuam como modelos profissionais, a partir de dois casos analisados sob uma perspectiva psicanalítica. Os dados foram coletados através da aplicação do teste D.F.H. (Desenho da Figura Humana), de Machover, e de entrevista individual semidirigida. A análise dos dados revelou sentimentos conflituosos em relação ao seu corpo, como autodepreciação, insegurança e dificuldades no contato social. Pode-se observar também um estado de fragilidade egoica e formas diferentes de lidar com os conflitos sexuais da adolescência.

Palavras-chave: imagem corporal; adolescência; modelos; Desenho da Figura Humana.


ABSTRACT

It is known that different factors affects the individual's perceptionof body image. In the specific case of adolescents fashion models, it can be considered that their body are their main worry. In this context, the present study aims to investigate psychological aspects related to the perception of body image of adolescents who work as professional fashion models. It presents two case studies analyzed in a psychoanalytical perspective. Data were collected by the application of the test FID (Drawing of the Human Figure), Machover, and a semi-directed individual interview with two adolescents, 16 years old, that work in a fashion model's agency in the ABC area, in São Paulo. Data analysis revealed conflicting feelings related to their bodies, as self-depreciation, insecurity and difficulties in social contact. It can also be observed a state of ego weakness and different strategies to deal with adolescent's sexual conflicts.

Keywords: body image; adolescence; fashion models; Drawing the Human Figure.

 

Ícones da beleza, as modelos profissionais possuem uma carreira marcada pela valorização do corpo e da imagem por ele produzidas. O exercício da profissão requer, entre vários atributos de beleza, uma aparência que se enquadre nos padrões estéticos exigidos pelo mercado. Ser alta, magra e bela são alguns dos critérios básicos para fazer parte do mundo da moda.

Na adolescência, as jovens modelos iniciam suas carreiras, momento do desenvolvimento caracterizado por intensas transformações e conflitos. Nesta fase, as adolescentes apresentam-se mais instáveis e vulneráveis às influências do meio. Diante de todas essas transformações, a imagem corporal, definida por Schilder (1981, p. 11) como "a figuração de nosso corpo formada em nossa mente, ou seja, o modo pelo qual o corpo se apresenta para nós", também vai se desenvolvendo e se transformando. O mesmo autor afirma que a imagem corporal sofre influências de bases fisiológicas, psicológicas e sociais e constrói-se através de uma socialização contínua na qual, através da observação do corpo do outro, constrói-se e reconstróise a própria imagem corporal, sem, no entanto, cada um perder sua individualidade. Logo, a imagem corporal envolve uma série de fatores que se relacionam e integram a percepção que temos de nosso próprio corpo.

Vários estudos têm sido feitos a respeito de como se sentem as adolescentes em relação ao próprio corpo; pesquisas como a de Campagna e Souza (2006) e Almeida, Loureiro e Santos (2002), apontam que a valorização da imagem, postulada e reforçada por padrões idealizados de beleza, pode influenciar a autopercepção da imagem corporal destas adolescentes. A partir desses estudos, também se observa que o principal instrumento utilizado para a investigação da imagem corporal é o teste projetivo de desenho da figura humana, na medida em que, ao desenhar, a pessoa lança sobre o papel sua imagem corporal. Van Kolck (1984), pesquisadora que contribuiu de forma expressiva com estudos de testes gráficos, coloca que estes representam um excelente recurso, pois proporcionam uma condição ótima para que o indivíduo se expresse livremente.

A autopercepção da imagem corporal dos indivíduos é influenciada por diferentes fatores. No caso específico de adolescentes modelos, pode-se considerar que o corpo é material de trabalho e que a valorização ainda mais acentuada da imagem pode ser um aspecto importante nesse processo. Nesse sentido, estudos que visam investigar e compreender estes fatores tornam-se importantes. Essas jovens representam o ideal de beleza e estética de grande parte das mulheres e têm para si a responsabilidade de estarem sempre com a aparência impecável.

Partindo-se da hipótese de que grande parte das adolescentes tem a percepção de sua imagem influenciada pelos padrões de beleza representados por profissionais que atuam no ramo da moda, interessa-nos compreender qual seria, então, a autopercepção das próprias modelos frente a sua imagem corporal e a influência em sua saúde mental.

 

A imagem corporal

A noção de imagem corporal é concebida e abordada por vários autores e de diferentes formas. Em revisão de literatura a respeito do tema "imagem corporal", o conceito "esquema corporal" aparece frequentemente. Freitas (2004) coloca que esses conceitos nem sempre estão claramente definidos, porém, interpenetram-se e, não raro, substituem-se um ao outro. No entanto, segundo a mesma autora, para muitos estudiosos do tema, eles tornam-se sinônimos.

Segundo Freitas (2004), a ideia de uma organização perceptual do corpo surgiu no século XVI na França, com o médico e cirurgião Ambroise Paré, sendo este o primeiro a descrever o fenômeno conhecido como "membro-fantasma", que seria uma alucinação em que um membro amputado é percebido como ainda presente.

Com a publicação das obras de Freud, a psiquiatria tradicional foi tomando novos rumos. Com seu interesse não somente pelos sintomas patológicos, mas também pelas manifestações do inconsciente e, principalmente pelos processos de pensamento normal, Freud não descartou a participação do corpo. Freud (1914 a.) aponta que, do próprio corpo de uma pessoa, sobretudo de sua superfície, originam-se sensações tanto externas quanto internas. O corpo é visto como qualquer outro objeto, porém, ao ser tocado, produz duas espécies de sensações, sendo que uma delas pode ser equivalente a uma percepção interna.

Paul Schilder (1981), neurologista, fisiologista e psiquiatra, foi um dos autores que mais contribuiu para os estudos relacionados à imagem corporal. Para o autor, ela é uma entidade psicológica e fisiológica indissociável, sendo o resultado, em maior parte, da experiência vivida através do contato com o meio. Sofre, portanto, influências de bases fisiológicas, psicológicas e sociais.

Em razão das várias transformações inerentes à adolescência, a autoimagem corporal do adolescente também se modifica. Para Freud (1914 a.), o tema é abordado através do conceito de narcisismo, que se refere ao investimento libidinal dirigido ao próprio sujeito, ou seja, o sujeito não investe sua libido em algo do mundo externo e essa energia fica centrada em si, no seu ego, passando a tratar seu corpo como trataria um outro corpo pelo qual possui como fonte de prazer.

Para Aberastury (1990), o corpo humano, até a adolescência, mantém uma identidade, que neste período sofre uma desorganização frente às características sexuais secundárias. Estas mudanças no corpo levam a uma perda da antiga imagem corporal e da identidade infantil, o que implica na busca de uma nova identidade. Nas garotas, essas mudanças fazem com que assumam uma nova posição na sociedade, assumindo um novo papel e uma nova identidade sexual. Segundo essa mesma autora, no período da adolescência, é vivenciado o luto pelo corpo infantil. A garota tem que aceitar a chegada da menstruação que irá definir seu papel como mulher. Estas mudanças, muitas vezes, são acompanhadas de um forte sentimento de angústia e estados de despersonalização, pois, para os adolescentes, a angústia está em perceber que é o próprio corpo quem produz essas mudanças. As mudanças que ocorrem no corpo durante a adolescência também afetam seu inconsciente, o desenvolvimento de seus interesses, seus comportamentos sociais e a qualidade de sua vida afetiva.

As incontroláveis mudanças corporais e as exigências do mundo são sentidas para os adolescentes como invasores. Como defesa, o adolescente mantém seus processos mais primitivos, embora sentindo a necessidade e o desejo de alcançar novos níveis evolutivos. Por isso, pode, dinamicamente, retrair-se, voltando-se para si mesmo, refugiar-se em seu mundo interno, onde, conectando-se com seu passado, poderá defrontar-se com o futuro. Portanto, [...] as imagens de um mundo externo satisfatório, bem como boas imagens parentais introjetadas, ajudam o adolescente na elaboração de suas crises internas e também a enfrentar situações muito penosas durante este período (KNOBEL; PERESTRELLO; UCHÔA, 1981).

Diante desses fatores que fazem parte do processo de transição da infância para a idade adulta, será avaliado neste trabalho como esses fatores se relacionam no contexto da moda. No momento em que a jovem modelo passa a fazer parte de uma nova realidade, muito sedutora e que lhe abre uma série de novas possibilidades, no sentido de ser reconhecida como tendo corpo belo, perfeito e esteticamente ideal; a jovem modelo também pode ser pressionada a amadurecer precocemente e saber lidar com o valor de seu corpo. Esta plasticidade está intimamente ligada com a adolescência e o desenvolvimento de sua autoimagem. Logo, torna-se relevante o conhecimento sobre quais as influências que esta profissão gera em seu desenvolvimento.

 

As técnicas projetivas na avaliação da imagem corporal

O tema da figura humana constitui-se como uma das mais ricas e utilizadas técnicas projetivas. Van Kolck (1984) assinala dois usos do desenho da figura humana no diagnóstico da personalidade: o que mede o desenvolvimento mental e da maturação no plano visomotor, sendo o Teste de Goodnough o protótipo da técnica e aquele que avalia aspectos de estrutura e dinâmica da personalidade.

Machover (1949, p. 40) coloca que "o desenho de uma pessoa, ao envolver a projeção da imagem de um corpo, oferece um veículo natural de expressão das necessidades e conflitos de seu próprio corpo". Ao desenhar uma figura humana, a pessoa se refere necessariamente às imagens internalizadas que tem de seu próprio corpo e dos outros e, assim, ocorre a projeção de sua imagem corporal (MACHOVER, 1967). O desenho também é, portanto, um produto social e os estereótipos sociais, juntamente com as experiências particulares de cada pessoa, contribuem para a concepção de sua imagem corporal. Aberastury (1990) coloca que a busca pela representação do próprio corpo é manifestada através dos desenhos, tanto por meninos quanto por meninas, no início da adolescência.

Hammer (1991) também aponta que a descarga emocional que deriva deste tipo de experimentação com a imagem corporal nos desenhos ajuda o adolescente a obter mais certeza a respeito do que é. De acordo com o autor, os testes projetivos com adolescentes destacam confusões, tensões e ambivalências intensas. Hostilidade e agressão são mais francamente expressas e ainda não há uma diferenciação clara entre os impulsos homo e heterossexuais. Eles aparecem numa confusão que torna a vida psicossexual do adolescente muito perturbada.

Diante da constante mudança na estrutura e no funcionamento do corpo da menina na passagem da infância para a maturidade, esta fase torna-se um momento de grandes conflitos psíquicos. Machover (1949, p. 97) coloca que "novos papéis são combinados por uma fantasia excitada pela tensão e urgências constrangedoras por seu mundo corporal em mudança". Alguns aspectos referentes à maturação sexual de adolescentes do sexo feminino foram observados nos desenhos de figura humana em estudos realizados pela autora. Estes foram refletidos em: tratamento da região dos seios, da pélvis, conflito na região abaixo da linha da cintura, no gancho da calça da figura masculina e também na bainha da saia. Também se percebeu tentativas de controle e integração dos impulsos corporais no modo de tratamento da área do pescoço e na posição retesada, ou seja, em dedos cerrados e prendedores visando "encerrar a ativa excitação do cabelo". Observou também que a maioria dos adolescentes atribuiu aos seus desenhos uma idade superior a sua própria, como uma evidência de seu interesse em crescer.

Diante do exposto, o presente estudo teve por objetivo identificar e compreender a percepção de imagem corporal que estas jovens têm de si.

 

Método

Participantes

Participaram deste estudo duas modelos adolescentes, de 16 anos de idade, vinculadas a uma agência de modelos e, cursando o segundo ano do ensino médio.

Instrumentos

Foram utilizados: o teste projetivo D.F.H. (Desenho da Figura Humana) de Machover e entrevista individual semidirigida. O teste projetivo D.F.H. (Desenho da Figura Humana) de Machover baseia-se nas proposições de Van Kolck (1984) e tem por finalidade a avaliação da imagem corporal. A entrevista individual semidirigida foi realizada a partir do modelo proposto por Bleger (2001), que propicia uma certa liberdade para que o entrevistador conduza a entrevista de forma a fazer emergir a personalidade do entrevistado e destacar-se os conteúdos mais importante para ele. A entrevista foi realizada de acordo com os objetivos da pesquisa, de modo a fornecer dados complementares, abordando tópicos relativos à profissão, relacionamentos interpessoais, familiares, aspectos sociais e psicológicos. Para a finalidade deste estudo, foram considerados os aspectos relativos ao autorretrato relacionado à imagem corporal.

Procedimentos

Foi realizada uma visita à agência visando apresentar os objetivos do estudo às modelos e aos pais destas, bem como a apresentação e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). Ao concordarem em participar do estudo, assegurou-se a garantia de sigilo de seus dados de identificação e que não haveria prejuízo de qualquer natureza para as modelos. Ainda assim, em caso de incômodo psicológico também foi assegurado suporte psicológico necessário. A coleta de dados foi realizada individualmente dentro das próprias dependências da agência, respeitando todas as condições de privacidade e adequação do espaço. Em seguida, foi realizada uma entrevista semidirigida e, posteriormente, foi proposto o Desenho da Figura Humana, de Machover.

 

Tratamento dos dados

Considerando-se os resultados obtidos através dos desenhos, a análise dos mesmos foi realizada com base nas proposições de Van Kolck (1984), enfatizando os aspectos gerais, formais e de conteúdo das produções gráficas e na integração destes com os dados obtidos nas entrevistas. A análise dos dados foi realizada sob uma perspectiva psicanalítica. O trabalho trata de dois estudos de caso que levam em consideração a compreensão de vários aspectos do assunto investigado. Salienta-se que os estudos de caso (FACHIN, 2006) têm como principal função a explicação sistemática dos fatos que ocorrem no contexto social e que geralmente se relacionam com uma multiplicidade de variáveis.

Resultados e discussão

Caso 1: Cláudia1

Síntese da entrevista

Cláudia iniciou sua carreira de modelo há dois anos, ao participar de um comercial de TV. Está na atual agência há um ano. Quando questionada sobre suas fontes de renda, informou que não trabalha e que, para manter-se economicamente, depende de seus pais. Seu pai é metalúrgico e sua mãe realiza eventos e vende pão de mel. Quando criança, sua mãe se opôs ao seu desejo de ser modelo, mas atualmente a acompanha dando-lhe total apoio; seu pai e seu irmão também a apoiam.

Refere-se aos pais como sendo os "melhores do mundo", não tendo nada a reclamar. Das pessoas que mais admira, refere-se primeiramente aos seus pais, porém, confere a Deus o primeiro lugar. Também cita seus amigos e aqueles que fazem parte de sua carreira. Diz que não existe uma pessoa que não admire e que costuma dizer o quanto ama e gosta das pessoas.

Nas horas de lazer, gosta de ir à escola, à igreja, de viajar e de jogar handball. Também gosta de sair com os amigos e diz que o "apoio deles" é muito bom e importante para ela. Juntos costumam ir ao cinema e a parques, mas afirma que é mais caseira. Colocou também que, ao contrário da maioria das pessoas, gosta de sair com os pais.

Análise do D.F.H.

Diante da solicitação da pesquisadora para a realização do teste, Cláudia mostrou-se um pouco resistente, com dificuldade para iniciar o desenho. Enquanto mudava a posição da folha entre vertical e horizontal, comentava em voz baixa: "Ah, difícil". (pausa) "Sou péssima para desenhar". Tal reação pode ser indicativo de sentimentos de autocrítica e depreciação. Passados 15 segundos, Cláudia iniciou o desenho pelos elementos do rosto da figura humana, primeiramente pelos olhos e sobrancelhas. Em seguida, questionou a pesquisadora: "Pode ser... Tanto faz o sexo? Pode ser todos os sexos?". Ao que a pesquisadora lhe orientou para que fizesse da forma que achasse melhor. Fez o nariz, apagou, fez o contorno do rosto e depois as orelhas e cabelos. Ateve-se ao desenho dos cabelos, apagando-os e retocando por várias vezes.

As várias tentativas da modelo em apagar o rosto e cabelos indicam autocrítica excessiva e insegurança em relação a esta área que está relacionada ao contato social e a como a pessoa se apresenta ao mundo. De forma geral, os cabelos no D.F.H. estão relacionados à sexualidade e remetem às necessidades sexuais do indivíduo e, possivelmente, vitalidade sexual. Quando bem cuidados ou penteados, sugere sensibilidade social e interesse por uma aparência aceitável (VAN KOLCK, 1984), o que pode ser observado no desenho de Cláudia. Fez o pescoço, tronco e parte superior das pernas. "Ai, acho que era para fazer um desenho inteiro né (risos). "Não vai dar para fazer um desenho inteiro, porque eu fiz meio grande." A omissão de parte das pernas e pés é indicativo de dificuldades no equilíbrio e fragilidade egoica, já que os pés são a base de sustentação do corpo, podendo também estar relacionados com a dificuldade de apreensão de esquema corporal ou com a angústia.

Hammer (1991) coloca que a omissão de partes do corpo por não caber no papel, conforme observado no desenho de Cláudia, também se relaciona ao desejo de autonomia que o indivíduo sente não poder satisfazer, remetendo a sentimentos de infantilidade e dependência materna. A presença de bolsos também nos fornece indicativos destes conflitos, pois podem significar a luta pela virilidade em antagonismo com a dependência materna (VAN KOLCK, 1984).

Cláudia fez os braços e mãos com dificuldade, apagando-os por várias vezes. Observa-se certa incompatibilidade no tamanho dos braços e mãos em relação ao restante do corpo, feitos de tamanho reduzido, o que nos fornece um sinalizador de sentimentos de inadequação em relação ao ambiente e sentimentos de fraqueza (VAN KOLCK, 1984). Olhou para o desenho, pensativa. Fez o contorno dos seios. Apagou a cintura e refez os ombros. Em seguida, fez um cinto com fivela. Segundo Van Kolck (1984), a presença do cinto está relacionada a sentimentos de controle e racionalização da tensão sexual, representada pela divisão do corpo em zonas. O cinto, quanto mais elaborado, sugere "maior tendência em converter a tensão em formas estéticas e próprias de expressão" (VAN KOLCK, 1984, p. 35).

Após refazer e retocar algumas curvas, concluiu: "Terminei". Cláudia realizou quase todo o desenho em silêncio, girando bastante a folha e fazendo uso da borracha por várias vezes, em um tempo total de sete minutos. Segundo Hammer (1991), ao realizar o desenho, a pessoa pode fazê-lo alegremente ou de forma irritada, permanecer calado ou falar demasiadamente, de forma tensa ou serena, com um dos olhos sempre atentos ao examinador ou ignorar completamente sua presença.

Diante da instrução da pesquisadora para a realização do segundo desenho, Cláudia permaneceu observando a folha em branco por cinco segundos. Passado este período, explicou: "Vou fazer mais acima para caber o corpo inteiro". Iniciou pelos olhos, depois sobrancelhas, nariz e boca, contorno do rosto e cabelos. Ao desenhar os cabelos, apagou por várias vezes, refazendo com muita atenção, assim como no desenho da figura feminina. Fez o pescoço, tronco e cintura, apagando e refazendo por algumas vezes e depois desenhou parte das pernas. Retomou o desenho da cintura, cinto, braços e mãos. Fez músculos, apagando alguns contornos e depois fez os pêlos nos braços. Passou borracha sobre os pêlos, demonstrando bastante cuidado ao desenhá-los. Concluiu:"Terminei".

Comparando-se as duas figuras, do sexo feminino e masculino, percebe-se que a masculina em relação à feminina é maior e o traçado, em especial na região do rosto, é mais demarcado e firme. Esta diferenciação nos fornece um indicativo de que Cláudia pode conferir à figura masculina uma posição de autoridade e força.

O Desenho da Figura Humana de Cláudia apresenta diversas características que remetem à dificuldade de contato com a realidade, e sentimentos de agressividade, percebidos através do tamanho do desenho (ocupando quase toda a folha), bem como na presença de unhas nos dedos. Hammer (1991) aponta que é comum, em desenhos realizados por adolescentes, a expressão de sentimentos de hostilidade e agressão. Cabe atentar também para as correções e retoques em demasia, que Van Kolck (1984) relaciona a sentimentos de insatisfação e insegurança, bem como, em algumas ocasiões, a sentimentos de agressividade.

Os conflitos sexuais evidenciam-se também no esquema corporal expresso no desenho, uma figura ambígua em relação ao gênero, pois apresenta uma figura feminina masculinizada. Esses conflitos demonstram uma possível dificuldade de identificação sexual, que podem ser destacados na realização do desenho, quando questionou ao receber as instruções para a realização do teste: "Tanto faz o sexo?". "Todos os sexos?". Segundo Hammer (1991), sujeitos que verbalizam sua indecisão perguntando qual sexo devem desenhar primeiro manifestam uma certa confusão em relação ao seu próprio papel sexual, o que é compreensível na medida em que, conforme destaca o mesmo autor, os testes projetivos com adolescentes destacam confusões, tensões e ambivalências intensas.

A identificação da figura desenhada com a de uma pessoa mais velha, confirmadas na história e inquérito, nos fornece um indicativo de que Cláudia poderia estar buscando lidar com a angústia desse momento, se projetando no futuro através de uma figura ideal. Na história relata: "Sobre esta mulher? Hum... Era uma vez uma mulher, era muito bonita, feliz, tinha uma família e muitos amigos. [...] Ela conhece um homem, se casaram, tiveram filhos, vivem bem e viveram felizes para sempre". Como defesa, entende-se que Cláudia idealiza-se no futuro, com uma profissão, família já constituída, com marido e filhos, conforme apontado no inquérito: "Ela é casada, teve filhos e tem 40 anos [...]". "Ela não vai à escola, pois já tem sua carreira de Psicóloga [...]". Os indicadores de dependência materna e fragilidade egoica, observados no desenho, indicam que esta idealização esteja relacionada à figura de mãe, onde as qualidades e valores de um outro indivíduo são levados à perfeição, de modo que este outro é visto como ideal (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001).

 

 

Caso 2: Gisele2

Síntese da entrevista

Gisele mora com os pais e é filha única. Faz ballet desde criança; atualmente faz teatro e voltou a desfilar faz um ano. Disse que seus pais sempre apoiaram sua carreira. Para manter-se economicamente, informa que seu pai trabalha com vistorias de carro e sua mãe é digitadora, mas que também ganha dinheiro com os eventos. Informou que sempre deu prioridade aos estudos, pois tem consciência que modelo tem carreira curta, mas afirma que gosta disto.

Descreve o pai como uma pessoa batalhadora, diz que o admira muito e que ele é um exemplo no qual ela gostava de se espelhar. Fala que sua mãe também é um grande exemplo.

Quando questionada sobre as pessoas que mais admira, menciona a princípio a mãe e depois o pai, mas enfatiza que "sua mãe é mais". Sobre as pessoas que não admira, cita o ministro Renan Calheiros.

Atualmente, não tem horas de lazer, pois está no último ano da escola e está se preparando para o vestibular. Mas diz que gosta de sair com seus amigos de "balada", que adora ir ao Parque do Ibirapuera e para outros lugares. Relata que depois de sua família, seus amigos são a sua base. Diz que tem amizade com os seus pais, mas nem tudo conta para eles e afirma que tem coisas que só conta para os amigos.

Análise do D.F.H.

Ao iniciar o desenho, Gisele disse: "Sou péssima para desenhar, vocês vão rir da minha cara", e após esses comentários manteve-se em silêncio e não fez nenhum contato com a pesquisadora. Diante de seus comentários, a pesquisadora explica que seu talento artístico não está sendo avaliado e pede para que realize o desenho da melhor forma que puder. Hammer (1991) coloca que os comportamentos expressos pelo indivíduo, antes e durante a aplicação do teste, nos dão informações acerca do indivíduo, que não devem ser ignoradas. Neste caso, entende-se que Gisele demonstrou acentuada autocrítica e ansiedade frente à colocação da pesquisadora, fantasiando talvez uma reação de deboche por parte desta. Tais reações podem ser consideradas como indicativas de autoestima negativa.

A modelo, diante da instrução para a realização do teste, aparentemente apresentou-se disposta, porém, realizou o desenhou em um curto período, sem riqueza de detalhes, como se quisesse livrar-se logo da tarefa. Desenhou uma figura do sexo feminino em primeiro lugar, indicando possuir uma identificação com o próprio sexo (HAMMER, 1991).

Iniciou o desenho pela cabeça, olhos, nariz, boca, cabelo, pescoço, tronco. Em seguida, fez o desenho das pernas e posteriormente os braços e mãos. Esta sequência (primeiro pernas e depois braços) difere da sequência considerada por Hammer (1991) como comum. Segundo o autor, as alterações na sequência do desenho indicam partes do corpo mais importantes ou mais problemáticas para o indivíduo, o que se confirma na dificuldade em que a modelo apresentou ao desenhar as pernas e braços, apagando-os por várias vezes.

Os braços, apresentados curtos e finos na ligação com os ombros, demonstram sentimentos de fraqueza ao lidar com o ambiente, inadequação no contato e pouca confiança na própria produtividade. A região dos ombros indica sentimentos de poder ou força basicamente física, e foram desenhados por Gisele quadrados, sugerindo uma atitude hostil e defensiva no contato com o ambiente. Já os dedos em forma de pétalas remetem a certa infantilidade (VAN KOLCK, 1984).

As pernas também representam o contato com o ambiente, além de manterem a estabilidade do corpo, seu equilíbrio e ajustamento social. No desenho da modelo pode-se identificar uma recusa em desenhá-las, ao apresentar uma figura que sugere que esteja de saia comprida, cortada por uma linha no meio, para dar ideia de calça. Para Van Kolk (1984), tais reações sugerem conflitos relacionados ao contato social e à esfera sexual, podendo-se pensar em imaturidade sexual e dificuldades para "andar" no mundo.

Os pés são uma área de expressão de conflitos e são apresentados no desenho de Gisele como curtos e pequenos, o que sugere insegurança no caminhar e no estar no mundo e dependência (VAN KOLCK, 1984). Na figura feminina e masculina, os olhos estão direcionados para baixo, o que indica também uma dificuldade no contato com a realidade. Este sentimento de insegurança pode estar relacionado com a dificuldade que encontra em lidar com as novas responsabilidades que possui atualmente, pois na história relata: "Ela está cansada e quando chega em casa tem muita coisa pra fazer". Os olhos são o contato com o mundo exterior e remetem para sentimentos do próprio eu e para a vulnerabilidade do mesmo (VAN KOLCK, 1984).

No desenho, o traçado que divide a parte superior com a inferior do corpo, apresenta-se reforçado. Este reforço da linha, segundo Van Kolck (1984) é indicador de ansiedade, associada à repressão da sexualidade e de conflito entre a expressão e controle do impulso sexual. Pode-se também identificar, mediante a omissão da zona genital e o desenho de um corpo infantilizado e sem formas femininas, uma negação da sexualidade e características regredidas. Os indivíduos com conflitos sexuais tendem a omitir ou distorcer as áreas associadas com as partes sexuais (HAMMER, 1991). O pescoço é o elo de ligação entre os impulsos instintivos vindos do corpo e o controle exercido pelo cérebro. Ao desenhá-lo longo e fino sugere-se novamente que Gisele apresente sentimentos de controle e excessiva repressão dos impulsos (VAN KOLCK, 1984). Segundo Hammer (1991), um pescoço longo pode indicar que o sujeito está tendo dificuldades em controlar e dirigir seus impulsos instintuais. Diretamente ligado ao pescoço localiza-se o tronco com linhas angulosas, que Van Kolk (1984) relaciona a sentimentos agressivos e crítica, pois esta é uma região ligada às emoções e à vida instintiva.

Também se observa que o desenho apresenta-se com a parte superior do corpo inclinada para a esquerda, indicando sinais de instabilidade e defesa na integração da razão com as emoções e seus instintos, como se estivesse parcialmente cindida, reforçando os indícios de conflitos ligados a esta área.

A forma como o nariz foi desenhado, de perfil em rosto de frente, remete a uma maneira infantil de desenhar, comum em adolescentes (VAN KOLCK, 1984). Hammer (1991) também afirma que o nariz é a representação de um símbolo fálico e que também pode representar um estereótipo social.

Os cabelos também são uma representação da sexualidade e a expressão do que está crescendo e é vivo, bem cuidados ou penteados. No desenho de Gisele, os cabelos são bem cuidados, o que indica que há interesse em uma aparência social aceitável, além de sugerir esforços na contenção dos impulsos em função dos laços no cabelo (VAN KOLCK, 1984). Para Van Kolck (1984), a boca também representa uma zona erógena. No desenho da participante, observase um excesso de controle e uma possível negação da oralidade ao apresentar esta região em uma simples linha. Hammer (1991) também afirma que essa forma de desenhar a boca sugere que o indivíduo seja verbalmente agressivo. No inquérito, Gisele relata que a pessoa "é alegre e irritada de vez em quando" e como defeito "ser pessimista, ser explosiva e falar muito alto".

Também no inquérito, Gisele refere-se a uma adolescente de 14 anos, cujo trabalho é estudar, cuidar do cachorro e arrumar a cama. Já a sua rotina atual inclui frequentar a escola e preparar-se para o vestibular, fazer aulas de balé e teatro e desfiles exercendo sua profissão, e enfatiza: "não tenho lazer nenhum". Os conteúdos trazidos no inquérito sugerem uma dificuldade para lidar com as responsabilidades adquiridas e desejo de permanecer na fase anterior. Para Van Kolck (1984), a idade que o indivíduo dá à figura funciona como um índice dos desejos, atitudes culturais e perspectiva temporal dos indivíduos.

Quando questionada sobre com quem a figura se parece, ela responde que é com a cantora Ivete Sangalo, apesar da figura desenhada não parecer com o estereótipo citado. Assim, podemos supor que Gisele faz uso de uma identidade em nível de fantasia para evitar o contato com a realidade (VAN KOLCK, 1984).

O desenho como um todo apresenta uma figura feminina infantilizada e traz muitos aspectos de regressão, dificuldades no contato social e conflitos na esfera sexual. Estas características repressivas ocorrem quando o indivíduo pretende suprimir conscientemente de sua consciência impulsos ameaçadores, conteúdos desagradáveis ou inoportunos.

 

 

As mudanças corporais observadas no desenvolvimento de uma menina saudável dos oito aos 18 anos são nítidas, porém, uma garota percebe seu corpo diferenciado não só por alterações físicas, mas também pelos fatores psicológicos e sociais que influenciam diretamente a sua autopercepção.

As duas garotas participantes deste estudo estão vivenciando, portanto, uma fase de complexa redefinição, onde não se pode deixar de considerar, em especial, o ambiente onde estão inseridas: o mundo da moda. Um mundo idealizado por muitas adolescentes como belo e símbolo de perfeição, que exerce uma forte influência na formação da identidade destas jovens.

No caso de Cláudia e Gisele, a concretização desta experiência de viver uma realidade aparentemente cheia de glamour e idealizada por muitas garotas, não parece ser o suficiente para que se reconheçam como belas e perfeitas. O que se observou foram conflitos relacionados a sentimentos de autocrítica e depreciação da imagem corporal. Os desenhos realizados por Cláudia e Gisele foram de figuras infantilizadas e ambíguas quanto ao gênero, revelando sentimentos de insegurança e dificuldades no contato social. Tais constatações são, portanto, conflitantes com a imagem idealizada de uma modelo.

Estudos com adolescentes, como foi o realizado por Campagna e Souza (2006), que avaliou a imagem corporal de 20 garotas, revelou o desejo de se mostrar de acordo com o que é valorizado socialmente. Muitas delas também se projetam desempenhando profissões em que a imagem física é muito valorizada, como modelos e atrizes. No contexto social em que vivem, onde os elementos externos são demarcadores da socialização, independência e maturidade, as análises dos desenhos e conteúdos das entrevistas revelaram dificuldades no contato social, autoestima negativa e depreciação da imagem corporal. As produções gráficas sugerem uma distorção da imagem corporal, pois a imagem externa destas modelos, percebidas como femininas e sensuais pelos demais, são por elas projetadas no papel como infantis e mal elaboradas. Algo interessante a ser destacado neste sentido seria uma das falas de Cláudia durante a fase do inquérito, em que se refere à figura feminina como uma psicóloga, profissão que difere totalmente da modelo, que é voltada para beleza e estética. Gisele também, diante da mesma pergunta, diz que a figura se trata de uma médica.

A comparação das reações das modelos na fase de entrevista em relação à fase de realização do teste D.F.H. também revelaram conflitos. Enquanto na entrevista mostraram-se tranquilas, diante da solicitação para a realização dos desenhos assumiram uma postura mais rígida e crítica. Este comportamento pode ser compreendido na medida em que o discurso verbal está, de certo modo, mais sob controle do que no desenho e, portanto, mais submetido aos sistemas de defesas. Machover (1949, p. 40) coloca que "o desenho de uma pessoa, ao envolver a projeção da imagem de um corpo, oferece um veículo natural de expressão das necessidades e conflitos de seu próprio corpo". Assim, ao desenhar uma figura humana, a pessoa se refere necessariamente às imagens internalizadas que tem de seu próprio corpo e dos outros e, assim, ocorre a projeção de sua imagem corporal (MACHOVER, 1967).

A passagem da infância para um novo estágio parece não ser algo claro para as duas modelos. O desenho da figura humana de Cláudia, retratado no inquérito, representa uma pessoa mais velha, enquanto que o de Gisele, uma figura mais jovem. Cláudia projeta-se no futuro, idealizando-se como uma mulher casada e bem sucedida profissionalmente. Entende-se também que a projeção no futuro seria uma das formas de lidar com a angústia desta fase. Quando na história, relata: "Sobre esta mulher? Hum... Era uma vez uma mulher, era muito bonita, feliz, tinha uma família e muitos amigos [...] Ela conhece um homem, se casaram, tiveram filhos, vivem bem e viveram felizes para sempre", identifica-se aqui o futuro idealizado pela grande maioria das adolescentes comuns: "conhecer alguém, casar-se e ser feliz".

Cláudia também apresentou dificuldades no planejamento dos desenhos, omitindo partes do corpo. Esta omissão sugere dificuldades quanto ao próprio esquema corporal, revelando o sofrimento com as próprias transformações corporais da adolescência. Diante disso, pôde-se compreender melhor a respeito da forma como esta se sente em relação ao mundo, que exige dela uma postura madura e feminina que ainda não possui.

Gisele, ao contrário de Cláudia, descreve a figura, no inquérito, como uma pessoa de 14 anos, solteira e sem filhos. Para lidar com a angústia da adolescência, parece tentar reprimir seus impulsos, conforme destacado no desenho através da acentuação da linha da cintura. A proibição da expressão foi um dos mecanismos de defesa descritos por Ana Freud (1936 apud BLOS, 1998).

Para Knobel, Perestrello e Uchôa (1981), a aquisição do novo e as perdas do antigo representam uma tendência a progredir e a regredir, sendo que as características das fixações e regressões resultarão em uma adolescência normal ou patológica, que terá uma considerável influência na futura vida adulta.

A mídia difunde uma imagem da modelo extremamente idealizada, símbolo de status e poder. Ao considerarmos as proposições de Schilder (1981, p. 243), que afirma que "o elemento social é um dos fundamentos na construção da imagem corporal, pois somos um corpo entre corpos", pertencer a um mundo de glamour parece entrar em conflito com o mundo interno destas modelos, que, na verdade, reconhecem-se como adolescentes comuns, vivenciando os conflitos e angústias próprias desta fase.

Hammer (1991, p. 97), ao afirmar que a passagem da infância para a adolescência seria "um peso para sua consciência", nos remete a pensar que a exigência de padrões de beleza, conforme vivenciada pelas participantes, implica ainda mais nesta transição, pois essas jovens representam o ideal de beleza de grande parte das mulheres e têm sobre si a responsabilidade de estarem sempre com a aparência impecável. Assim, pode-se supor que estas exigências geram uma desvalorização de suas qualidades, tanto morais como estéticas. A grande concorrência que existe entre as garotas na disputa de um lugar de destaque na profissão, conforme citado por Gisele durante a entrevista, também pode ser um fator que interfira nesta desvalorização.

Para os adolescentes, essa fase corresponde a um tempo de transição, cuja duração é desconhecida, no qual ocorre uma privação de reconhecimento e de independência que gera muito sofrimento e angústia (CALLIGARIS, 2000). Nos desenhos de ambas as modelos, ficou demarcado o sentimento de inadequação, instabilidade e insegurança. Para Hurlock (1999), o adolescente passa por uma situação de instabilidade devido aos sentimentos de insegurança, que vêm sempre acompanhados de tensão emocional. Esta instabilidade surge quando o indivíduo precisa abandonar os velhos padrões e substituí-los por novos, sendo a adolescência o período em que se deixa o comportamento de criança e o adolescente passa a fazer o que a sociedade espera dele.

Sentimentos de hostilidade e agressão também foram identificados nos desenhos. Sobre isto, Hammer (1991) coloca que, em desenhos realizados por adolescentes, é comum a expressão destes sentimentos.

Nos desenhos realizados pelas modelos evidenciam-se os conflitos sexuais. Para Aberastury (1990), o corpo humano até a adolescência mantém uma identidade, que no período da adolescência sofre uma desorganização frente às características sexuais secundárias. Estas mudanças no corpo levam a uma perda da antiga imagem corporal e da identidade infantil, o que implica na busca de uma nova identidade. Nas garotas, essas mudanças fazem com que assumam uma nova posição na sociedade, assumindo um novo papel e uma nova identidade sexual. Assim, conforme Blos (1998), os objetos libidinais passam do objeto pré-edípico para o objeto não incestuoso e heterossexual. O adolescente se afasta definitivamente dos objetos de amor infantil e desejos edípicos e seus conflitos voltam a surgir; porém, esse processo lhe abre horizontes desconhecidos, lhe criando medos e esperanças.

Essa ruptura com a vida infantil e travessia rumo à vida adulta, conforme citado por Freud (1989), parece ser vivenciada pelas duas participantes deste estudo, conforme o que se é esperado para garotas nesta fase do desenvolvimento, repleta de conflitos e novas descobertas. Anna Freud (1958 apud KNOBEL ; PERESTRELLO; UCHÔA, 1981) defende que toda emoção ocorrida na adolescência pode ser considerada normal, o que na verdade dificulta o estabelecimento de limites entre o normal e o patológico. O processo dito anormal seria o equilíbrio estável durante esta fase do desenvolvimento. Porém, nessa ação lógica, onde enfrentam um mundo dos adultos, o diferencial de serem profissionais modelos parece acentuar estes conflitos.

 

Conclusão

A partir da análise dos dados, observou-se que os desenhos reproduzidos pelas modelos apresentam uma percepção de sua autoimagem distorcida, porém contam com recursos psicológicos para lidar com este momento de transição.

Os desenhos representam as dificuldades de apreensão dessa imagem corporal que passa por constantes transformações psíquicas, físicas e sociais, e que são esperadas para uma adolescência normal.

Por fazerem parte de um mundo de imposições de padrões de beleza, onde são cobradas para que se tornem adultas precocemente e que se comportem como tais, este ambiente foi considerado como possível gerador de conflitos em relação ao seu corpo e a sua imagem corporal, ao vivenciarem uma fase de intensas mudanças e transformações, que provocam muita ansiedade, angústia e conflitos em relação a este novo período.

Buscou-se analisar como elas sentem o impacto das transformações corporais e buscam uma nova adaptação ao mundo e uma reorganização da própria identidade, inseridas no mundo da moda.

No primeiro caso, a modelo Cláudia procura lidar com esse momento se projetando no futuro para evitar o contato com a realidade, através de uma figura idealizada. Já no segundo caso, da modelo Gisele identificou-se indicadores de regressão e infantilidade.

Assim, por fazerem parte do mundo da moda e serem vistas como um referencial de beleza, esperava-se que as adolescentes provavelmente sofressem influência desse meio e absorvessem esse estereótipo de belas e perfeitas.

Porém, as análises revelaram que as modelos passam por conflitos comuns da adolescência e apresentam dificuldades nessa transição. Contudo, acredita-se que consigam atravessar essa fase e constituírem uma autoimagem adequada, que represente uma percepção mais realista de si mesma e do mundo, visto que a formação da imagem corporal é um processo necessário para o bom desenvolvimento psíquico e que influenciará diretamente na constituição do eu.

Apesar de o presente estudo envolver somente dois casos isolados, as análises apontam para uma necessidade de realizar novas pesquisas sobre o tema, envolvendo um grupo piloto para comparar a percepção de adolescentes que atuam como modelos e as que não estabelecem este vínculo empregatício.

 

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1 Nome fictício.
2
Nome fictício.