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versão impressa ISSN 1415-8809

Psicol inf. vol.15 no.15 São Paulo dez. 2011

 

COMUNICAÇÕES

 

Avaliação psicológica e saúde mental: aplicações da psicologia clínica em comunidades indígenas1

 

Psychological Assessment and Mental Health: Clinical applications of psychology in indigenous communities

 

 

Tânia Elena Bonfim**

 

 

 


RESUMO

O presente texto traz à discussão a aplicabilidade da psicologia clínica em comunidades indígenas e, mais especificamente, levanta questões como: que instrumentos teórico-técnicos um psicólogo clínico se aventura a utilizar quando procura compreender o fenômeno psicológico permeado por diferenças étnicas e culturais tão marcantes? E, os instrumentos disponíveis são adequados para compreensão desta faceta do real? Esta discussão respalda-se na concepção psicanalítica de campo psicológico, que emerge a partir das relações entre profissional-paciente e que tem se mostrado útil na condução de intervenções psicoterápicas individuais, bem como na proposta da psicoterapia breve de base psicanalítica.

Palavras-chave: psicoterapia breve; comunidades indígenas; instrumento psicológico.


ABSTRACT

The present paper brings to the discussion of the applicability of clinical psychology in indigenous communities and specifically raises such issues as: theoretical and technical tools that a clinical psychologist dares to use when trying to understand the psychological phenomenon permeated by ethnic and cultural differences so striking? And the available tools are adequate for understanding this application? This discussion draws upon the psychoanalytic concept of the psychological field, which emerges from the doctor-patient relationships and that has proven useful in the conduct of individual psychotherapeutic interventions, and the proposal of brief psychotherapy psychoanalytic.

Keywords: brief psychotherapy; indigenous communities; psychological instrument.


 

 

Psicologia e grupos culturalmente diversos

A natureza abrangente do objeto de estudo da psicologia, o comportamento humano, tem levado o psicólogo a interrogar sua atuação profissional, na medida em que ultrapassa as fronteiras de atuação tradicionalmente delimitadas.

Temos em nossa ciência farto conhecimento produzido, o que nos confere territórios tradicionais de atuação, exemplos destes são os conhecimentos sobre a aprendizagem humana e as aplicações na área da educação, psicoterapia entre outros. Contudo, há aspectos do objeto que se mostram pouco investigados pela ciência psicológica e, por conseguinte, há escassez de procedimentos de intervenção validados.

Os grupos culturalmente diversos foram foco de interesse da psicologia desde Franz Boas e Bronislaw Malinowski, ambos os discípulos de Wilhelm Wundt (ROSA; LAPOINTE, 2004). Todavia, naqueles tempos encontravam-se grupos ainda isolados, que pouca influência haviam sofrido da cultura ocidental. Atualmente, localizam-se grupos culturalmente distintos, que buscam manter-se tradicionais, apesar das relações interétnicas.

As resultantes das diferentes formas de relações interétnicas vêm sendo estudadas por várias áreas da ciência e, para mencionar algumas, temos a antropologia, a sociologia e a psicologia, cada qual enfocando aquilo que epistemologicamente lhe confere peculiaridade. Contudo, não se pode negligenciar que o fenômeno, advento da referida interação, requer a cooperação entre tais ciências para que a segmentação decorrente da investigação efetuada por variadas disciplinas não tenha como resultado conhecimento compartimentado. Ao contrário, caracterize cooperação de diferentes áreas do saber para o enriquecimento no que tange à compreensão do fenômeno estudado.

As interações interétnicas foram denominadas "aculturação" por muito tempo, contudo, o termo tem sido evitado atualmente, pois se compreende que as culturas tradicionais mais vulneráveis também interferem naquelas consideradas menos vulneráveis, as quais podem constituir-se minorias étnicas, quando se considera a representatividade populacional (OKASAKI; SUE, 1998). Deste modo, prefere-se falar de relações interétnicas em lugar de aculturação, pois o termo aculturação sugere uma relação de mão única, na qual uma das culturas é invadida por outra, desprezando a possibilidade de influência da mais vulnerável para a de maior poder, seja ele qual for.

Entendemos que a revisão do termo reflete uma aproximação mais minuciosa do fenômeno das relações interétnicas já apontadas por Schaden (1969) em sua obra clássica denominada "Aculturação indígena". Embora utilize o termo aculturação, o autor não descarta a interação entre as diferentes culturas, além de valorizar o estudo muldisciplinar do fenômeno. Quanto ao aspecto muldisciplinar, Schaden (1969) entende que os processos de mudanças decorrentes dos contatos entre grupos culturalmente diversos se dão em três planos distintos e ao mesmo tempo interdependentes: o cultural, o social e o psíquico, sem descartar de antemão a esfera biológica. Por isso, o autor valoriza uma antropologia compreensiva, ao entender que o indivíduo é objeto da sociologia como o grupo o é da psicologia. Respeitando as especificidades de cada área do saber, observa-se que a psicologia tem como principal enfoque os processos intrapessoais – vida psíquica, enquanto a sociologia dedica-se principalmente aos processos interpessoais (WIESE , 1948 apud SCHADEN, 1969). O enfoque da antropologia a respeito do fenômeno residiria no seu condicionamento e suas resultantes culturais. É notório que, para a compreensão das relações interétnicas, será necessária a incursão nos diferentes domínios sem que se abandone a especificidade da área empreendedora da pesquisa.

Há o convite à psicologia para participação nesta área de investigação, contudo, pode-se observar em nosso país uma produção ainda bastante tímida, se comparada esta a outras áreas de inserção da psicologia. Por questões que merecem discussão pormenorizada e que não caberiam na presente reflexão, a psicologia tem contribuído na compreensão das vicissitudes relacionadas aos problemas de saúde psicológica de alguns grupos indígenas brasileiros.

Do ponto de vista da aplicabilidade clínica psicológica, encontramos alguns trabalhos, ainda que o grande tema tenha sido já abordado nos anos noventa. Cassorla e Smeke (1994) apontam para a preocupação com o suicídio e fantasias autodestrutivas entre os índios guaranis. Mais recentemente, Tardivo (2004) abordou o tema das intervenções em clínica social entre povos indígenas do Amazonas, numa preocupação com os indicadores de saúde/doença mental, ao tratar do suicídio e do desenvolvimento adolescente desta população. Também num enfoque clínico, Grubits (2003) estudou a identidade de crianças de periferia, de diferentes grupos indígenas, Guarani/Kaiowá, Bororo e Kadiwéu, através de desenhos. Identificou, entre outros aspectos, a eficiência do instrumento para investigações sobre o desenvolvimento infantil, e indicou que as expressões dessas crianças revelaram tipo de organizações sociais e aspectos culturais como influentes no desenvolvimento desta identidade. Darrault-Harris e Grubits (2000) apresentam dois estudos de caso de crianças Guarani/Kaiowá, em grupo de sessões de desenhos, pintura e outras técnicas de expressão artística, durante um ano. A análise aponta problemas sociais, culturais e psicológicos do grupo em relação à configuração da identidade dessas crianças.

Para além do convite mencionado, mas agora sob uma perspectiva social, os mesmos achados desses autores indicam problemas gravíssimos, pois observam que a saúde geral, a saúde psicológica comportamental e os aspectos afetivo-relacionais são bastante comprometidos e necessitam de atenção mais específica por parte das organizações governamentais e da sociedade em geral. Soma-se ao fato de que a própria população indígena solicita esse auxílio.

O conhecimento do funcionamento grupal, de uma perspectiva sociocultural, é de fundamental importância para que possamos compreender, por conseguinte, o sofrimento psíquico que envolve esses grupos. Pois, há necessidade de uma compreensão, ainda que restrita, de seu modus vivendi diferente, sobretudo, da nossa cultura não indígena, na qual nossas técnicas estão ancoradas. Acrescentamos às considerações de Schaden (1969) os assinalamentos da própria Funasa (FUNASA, 2004) que no caso das populações indígenas, as características dos processos históricos, o impacto e tipo de contato mantido com a população não indígena, são fundamentais para entender as mudanças, tanto materiais quanto psicossociais, resultantes dessa experiência.

Ao se tentar propor trabalho de investigação e/ou de intervenção psicológica nessas comunidades, não se pode desprezar os conhecimentos já produzidos por esses povos. Como bem aponta Gutiérrez-Alberani (2000), os conhecimentos dos povos indígenas são de caráter coletivo e intergeracional, constituindo seu patrimônio cultural e intelectual e a própria cosmovisão desses povos. Se nosso interesse é conhecer questões relacionadas à saúde mental dessas comunidades para nela poder intervir, faz-se necessário aceitar que tais comunidades possuem um conjunto de conhecimentos e práticas em saúde mental, cujo acesso deve partir da análise situacional que a própria comunidade realiza em torno de um problema.

Consoante à proposição de considerar os conhecimentos prévios das comunidades investigadas, feita por Gutiérrez-Alberani (2000), que estudou a representação social de saúde e enfermidade mental entre os Aymará do Peru, observamos as ações de vários setores da Psicologia em nosso país, que mediante a presença, cada vez mais solicitada, de psicólogos na atenção à saúde mental de populações indígenas, têm direcionado o olhar e a preocupação dos órgãos de classe, principalmente do Conselho Federal de Psicologia, tanto que neste último mês de junho/2007 debateu-se preliminarmente o tema no Congresso Nacional de Psicologia, realizado em Brasília. A temática intitulada "Psicologia e povos indígenas: referências para o exercício profissional" estava inserida no eixo: "Intervenção dos psicólogos nos sistemas institucionais" e clamava por diretrizes por parte dos conselhos quanto à "criação de referências para o exercício profissional dos psicólogos na relação com os povos indígenas, observados os pressupostos do respeito à diversidade e a valorização das identidades culturais" (CNP, 2007).

Diante deste cenário e de nossa experiência na atuação como psicólogos clínicos em comunidades indígenas sentimo-nos impulsionados a propor algumas indagações e subsequentes reflexões:

a) Com quais instrumentos teórico-técnicos um psicólogo clínico se aventura na compreensão do fenômeno psicológico permeado por diferenças étnicas e culturais tão marcantes?

b) São os instrumentos disponíveis adequados para a compreensão desta faceta do real?

Não pretendemos responder questões tão amplas e complexas neste momento, pois é notório que de cada uma delas derivaria outras perguntas, cujas especificidades mereceriam igual atenção. Mesmo assim, as utilizaremos como norteadoras para uma reflexão preliminar.

Para tentar abordar as questões citadas, propomos dois parâmetros clínico-psicológicos de discussão: a) a importância do estabelecimento do enquadramento (setting), e b) a análise do funcionamento psíquico a partir do conceito de eficácia da adaptação humana. Falamos assim do pano de fundo que operacionaliza a atuação do investigador clínico, ou seja, o reconhecimento dos elementos manejáveis do setting e do arcabouço teórico-técnico subjacente ao instrumento de investigação/intervenção, neste caso, o conceito de eficácia da adaptação humana.

 

As relações interétnicas e o psicólogo clínico: compreensão da importância do setting na investigação clínica

Conforme bem colocado por Gutiérrez-Alberani (2000), os povos indígenas possuem conhecimentos prévios sobre saúde e enfermidade mental que são de natureza intergeracional e coletiva, isto é, remontam à história e experiência do sujeito individual. Porém, há ainda de se considerar as próprias concepções do investigador que exerce importante influência no campo relacional à medida que estabelece contato com os indivíduos que quer conhecer (BARANGER; BARANGER, 1969; DEVEREUX, 1967). Neste sentido, faz-se importante o reconhecimento dos elementos do setting psicoterápico e seu manejo técnico o qual permite o surgimento do "campo" psicológico (BARANGER; BARANGER, 1969; BLEGER, 1983; FERRO, 1995; BONFIM, 1998)..

Entendemos os encontros psicoterapêuticos desta natureza, também com base nas contribuições de Tardivo e Vaisberg (2002), que consideram a intervenção psicológica como um encontro essencialmente humano, cuja vincularidade estabelece um campo psicológico passível de manejo e interpretação. A compreensão do campo psicológico que emerge a partir das relações entre profissional(s)- -paciente(s) tem se mostrado útil na condução de intervenções psicoterápicas individuais (FERRO, 1995; BONFIM, 1998a; 1998b) e promissora nas intervenções psicoterápicas grupais (TARDIVO; VAISBERG, 2002).

Especificamente nas atuações psicológicas que ocorrem nas relações interétnicas, extrapolam-se as condições padrão de atendimento psicológico, assim o manejo das inúmeras variáveis que constituem o enquadre se faz relevante. Pois, é a consistência das variáveis que compõe o enquadre que permitirá que o fenômeno que se deseja compreender e tratar surja. Bleger (1983) considera o objeto de estudo da psicologia como sendo a conduta, ou seja, o conjunto de operações – fisiológicas, motrizes, verbais, mentais – pelas quais um organismo em situação reduz as tensões que o motivam e realiza suas possibilidades. Observa-se a complexidade do fenômeno humano nesta consideração, por isso o autor utiliza o conceito de campo para atender as exigências metodológicas, reduzindo a amplidão da situação que compreende e situa o fenômeno que se quer conhecer, sem fragmentá-lo, nem dispersá-lo. Nesta proposta Bleger (1983) não reduz o humano, mas privilegia o encontro humano. Enfatizamos que o fenômeno considerado e observado neste enfoque ultrapassa o comportamento verbal, tratam-se de emoções, atitudes e ações, sendo que nem todos podem ser objetivamente registrados. Para além disso, Baranger e Baranger (1969) insistem que o campo bipessoal estabelecido nas relações analista e paciente não é um mero somatório de situações internas, mas é algo que se cria entre ambos, dentro da unidade que se constitui no momento da sessão, algo radicalmente distinto daquilo que cada um (paciente e analista) é separadamente.

Portanto, valoriza-se o encontro emocional que por si já se interpreta, como diz Ferro (1995). Todavia, estar implicado nesta situação, tão repleta de significados, requer do profissional largo conhecimento técnico, teórico e, sobretudo condição de saúde pessoal satisfatória. Sem deixar de mencionar a necessidade de se aceitar o outro como único e livre para vir a ser.

Nestes termos, entendemos que a psicologia clínica e sua tradição no estudo das relações intersubjetivas pode muito contribuir para o estudo das relações interétnicas, as quais vêm sendo estudadas sob o enfoque preponderantemente social ou antropológico, com, no caso do primeiro, o emprego frequente do método das representações sociais e, no caso do segundo, o emprego do método etnográfico. Ambos, para o nosso propósito parecem insuficientes, pois abarcam apenas uma das vias da interação, desta vez, o lado do participante considerando, ainda, apenas os aspectos cognitivos conscientes, já que tais métodos tomam em consideração apenas as manifestações verbais dos informantes. Tais estudos trouxeram compreensão importante para o tema, sendo que subsidiam nosso trabalho, mas pretendemos propor outro vértice de observação do fenômeno, é ele o clínico psicológico. O qual busca compreender tanto o participante, quanto o investigador, desde o ponto de vista consciente, como inconsciente, a partir da relação que estabelecem entre si. Pensamos que deste modo poderemos vislumbrar nuanças da intrincada relação interétnica.

 

Adaptação e eficácia adaptativa: um modelo de raciocínio em psicologia clínica e da saúde

Quando se trata de entender a adaptação humana e suas especificidades na área da saúde mental, precisamos direcionar a atenção às contribuições de Ryad Simon. A proposta de Simon (1989; 2005) é, sem dúvida, um arcabouço notável para uma psicologia moderna e eficiente em saúde mental, preenchendo algumas lacunas existentes tanto na compreensão do fenômeno, quanto na forma de intervenção nos processos de saúde e doença. E isso, principalmente, quando se necessita alcançar o âmbito da saúde pública, aquela que ultrapassa as fronteiras da psicologia clínica padrão.

Diz-se importante contribuição, pois Simon (1989) lança mão do conceito de adaptação humana para evitar enquadrar indivíduos em classificações nosológicas que remetem à doença e quadros patológicos. O referido autor buscou uma classificação que contemplasse as variações do funcionamento psicológico e utilizou uma terminologia compreensiva, a qual facilitou a comunicação informativa por parte do profissional ao paciente, como também aproximou o diálogo entre os diferentes profissionais da saúde, por isso sua contribuição no âmbito da saúde coletiva.

Simon (2005) adota o critério adaptativo como princípio norteador de sua proposta diagnóstica por entender que este enfoque permite avaliar funcionalmente todos os dados psíquicos existentes nos tempos passados, presentes e prognósticos prováveis sobre o futuro de indivíduos, podendo ser estendido a grupos e nações. Contudo, entende que o conceito de adaptação permite apenas discriminar os organismos vivos dos não vivos. Por isso, propõe a avaliação dos modos de adaptação, que se estruturam num arranjo eficaz ou ineficaz de respostas. Para este fim toma a definição que diz ser "a adaptação um conjunto de respostas de um organismo vivo, em vários momentos, a situações que o modificam, permitindo manutenção de sua organização (por mínima que seja) compatível com a vida" (Simo n, 1989, p. 14, grifos nosso).

A Escala Diagnóstica Adaptativa Operacionalizada – EDAO funciona como um esquema referencial para o psicólogo clínico conduzir entrevistas diagnósticas tanto de caráter curativo quanto preventivo e, por consequência, promoção da saúde.

Ao utilizar a EDAO, o profissional observará o conjunto de respostas do indivíduo atendido e avaliará a possibilidade destas respostas permitirem a manutenção, mesmo que mínima, do funcionamento do organismo. Deste modo, Simon (1989) entende necessária a elaboração de critérios para a avaliação da adequação das respostas emitidas pelo indivíduo mediante as diferentes situações confrontadas. São eles: 1) resposta adequada: para ser adequada a resposta precisa solucionar o problema que surge para o indivíduo, bem como satisfazê-lo sem gerar conflitos intrapsíquicos e/ou extrapsíquicos; 2) resposta pouco adequada: é a resposta que atende a apenas dois critérios. Soluciona o problema, traz satisfação, mas gera conflito; ou soluciona o problema, não traz satisfação e não gera conflitos; 3) resposta pouquíssimo adequada: soluciona o problema, porém a solução não promove satisfação e também gera conflitos. Quando a situação apresentada não pode ser respondida ou solucionada, é caracterizada como uma situação de crise.

Assim, a eficácia adaptativa pode ser medida a partir dos tipos de respostas. Quanto maior o número de respostas adequadas, tanto mais eficaz é a adaptação, e quanto maior o número de respostas pouquíssimo adequadas, tanto menos eficaz é a adaptação.

Para melhor avaliar o funcionamento psíquico, Simon (1989) considera os tipos de respostas emitidas nos diferentes setores de funcionamento do indivíduo. O autor propõe a avaliação das respostas segundo os seguintes setores: a) afetivo-relacional – sentimentos, atitudes e ações do sujeito em relação a si mesmo (intrapessoal) e ao semelhante (interpessoal); b) produtividade – sentimentos, atitudes e ações da pessoa em face ao trabalho, estudo, ou qualquer atividade produtiva, seja de natureza artística, filosófica ou religiosa, considerada como atividade principal no período da avaliação; c) sociocultural – sentimentos, atitudes e ações do indivíduo relativos à organização social, recursos comunitários, pressões sociais, bem como valores e costumes da cultura em que vive e d) orgânico – sentimentos, atitudes e ações em relação ao próprio corpo, à higiene, alimentação, sono, sexo (fisiológico), indumentária.

Esta sistematização permite maior clareza na avaliação da Eficácia Adaptativa, pois abarca nuanças relativas à qualidade das respostas (sentimentos, atitudes e ações) emitidas em cada setor de funcionamento do indivíduo (afetivo-relacional, produtividade, sociocultural e orgânico). A importância da EDAO, portanto, recai na possibilidade de avaliar sistemas comportamentais complexos, além de permitir que o profissional elabore projetos de intervenção mais eficientes, na medida em que pode determinar as áreas e situações problemáticas quanto ao funcionamento psíquico, bem como pode reconhecer os recursos psicológicos ainda preservados em cada indivíduo avaliado.

Vale ressaltar que a EDAO constitui-se como um sistema de avaliação que teve sua origem a partir das experiências de seu criador quando oferecia atendimento psicológico a estudantes de medicina em São Paulo. Nesta ocasião, Ryad Simon e sua equipe se deparavam com o problema de avaliar indivíduos propensos a distúrbios psicológicos, mas que não apresentavam sintomas psicológicos que justificassem intervenção curativa. A necessidade de avaliar indivíduos aparentemente saudáveis e que pertenciam a um grupo de risco impôs ao autor um desafio que o levou à elaboração da presente escala. Desde sua origem até o presente momento, houve modificações no instrumento (EDAO). Foram contribuições do próprio autor e de colaboradores que vislumbraram a utilidade da proposta. Hoje, podemos observar o refinamento dos critérios que compõem a escala, de sorte que permitem uma avaliação qualitativa e quantitativa da Eficácia Adaptativa.

O desenvolvimento de critérios quantitativos ofereceu à EDAO a possibilidade de ser utilizada na Avaliação da Eficácia Adaptativa de indivíduos pertencentes a diferentes grupos de risco ou não, auxiliando o profissional na elaboração de projetos de intervenção psicológica, principalmente aqueles de natureza preventiva e de promoção da saúde.

A detecção das variações adaptativas de grupos permite a elaboração de programas de prevenção ampla. Nesses programas, a equipe de psico-higienistas pode tomar decisões estratégicas quanto à concentração de maiores recursos em consonância à possibilidade de bons resultados, bem como poderá avaliar os riscos coletivos caso não haja qualquer intervenção. A detecção de situações de crise permite a implementação de programas de intervenção nas crises com o intuito de evitar a deterioração da adaptação, e se possível, a melhoria da eficácia da adaptativa. Para Simon (1989), quando cessada a crise, ficaria muito oneroso para o serviço de prevenção a manutenção do atendimento de indivíduos, requerendo o encaminhamento para outros serviços de atendimento à saúde. Por isso, a importância do conhecimento desses critérios por parte da equipe de prevenção.

A análise qualitativa proporcionada pela EDAO permite um olhar minucioso a respeito do funcionamento psíquico de indivíduos que enfrentam diferentes situações.

Para o autor, a grande importância dessa concepção está no fato de que ela considera os períodos de evolução do indivíduo nas condições de mudanças imperceptíveis ou abruptas. A concepção de evolução da adaptação (SIMON, 1989) mostra que o indivíduo em sua vida pode apresentar-se em dois períodos. Um chamado de período de adaptação estável, e outro, de período crítico.

Esses períodos são mediados pelo que Simon (2005) sistematizou, chamando-os de fatores e microfatores. Ambos são "fatos que interagem mediados pelo ego, influindo na adequação da adaptação" (p. 33). Podem ser internos ou externos, negativos ou positivos. Os fatores ou microfatores internos são aqueles pertencentes ao mundo mental do indivíduo, e os externos, pertencentes ao ambiente. Assim é que se compõe a eficácia adaptativa, por meio do interjogo entre fatores do indivíduo, fatores ambientais, com suas qualidades, negativas ou positivas. O autor considera que os microfatores fazem parte do período estável, e os fatores, do período de crise.

Os primeiros são fatos que não alteram de forma abrupta a evolução da adaptação. Ao contrário, agem de maneira silenciosa e podem, com o passar do tempo, modificar a eficácia adaptativa. Essa noção é útil para os programas que visam à promoção da saúde. A pessoa não apresenta nenhum tipo de transtorno, sempre considerando os quatro setores do funcionamento, por isso está mais apta para usufruir a promoção da saúde e, ao mesmo tempo, não necessita de programas preventivos.

Pode-se dizer que quanto mais eficaz a adaptação, tanto maior é o benefício da promoção da saúde Compara-se essa situação com o surgimento das doenças crônicas degenerativas não transmissíveis. Então, se organismo está bem, não precisa de nenhum tipo de tratamento e, de forma imperceptível, uma série de microfatores sucedem- -se e, de forma silenciosa geram, com o passar do tempo, a doença.

O resumo da proposta de Ryad Simon apresentada obviamente não compreende todas as possibilidades interpretativas que ela permite. Contudo, nos possibilita discutir a respeito da sua abrangência conceitual, pois abarca a noção de adaptação intrínseca a todos os organismos vivos. E ao permitir a análise da adaptação a partir da qualidade das respostas emitidas nos diferentes setores (afetivo-relacional; produtividade; sociocultural e orgânico), sendo os últimos possíveis de serem compreendidos segundo o universo dos povos indígenas, vislumbramos a possibilidade de sua utilização para a avaliação das condições de saúde mental destas populações.

O reconhecimento de nossa parte do conhecimento dessa população a respeito do que vem a ser saúde e enfermidade mental e sua minuciosa compreensão poderia fornecer elementos para a incorporação de novos indicadores de avaliação para a EDAO, cuja estrutura nos parece suficientemente abrangente para reconhecer a eficácia adaptativa de indivíduos de grupos culturalmente diversos.

 

Referências

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Recebido em: outubro 2010
Aceito em: fevereiro 2011

 

 

1 O presente texto apresenta ideias discutidas em dois capítulos de livros escritos ao longo deste semestre que foram recentemente submetidos à publicação. Portanto, qualquer semelhança entre os textos não terá sido mera coincidência. São eles: a) "Reflexões acerca de uma experiência de intervenção psicológica em comunidades indígenas Guranani Mbya da cidade de São Paulo", Bonfim, T. E. e Tardivo, L. P. C. b) "Da cura à psicohigiene: a importância da compreensão da eficácia adaptativa em psicologia da saúde", Heleno, M. G. V.; Vizzotto, M. M.; Bonfim, T. E. Incluir estas partes no presente texto implica reconhecimento de que as ideias expostas nos referidos capítulos germinaram a partir das profícuas discussões ocorridas em outras oportunidades, entre elas durante as aulas proferidas pela Dra. Kayoko Yamamoto na Universidade de São Paulo.

**Psicóloga, doutora em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP – IPUSP e docente supervisora de estágios em psicologia clínica junto ao Curso de Psicologia da Universidade Metodista de São Paulo.