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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH v.7 n.1 Rio de Janeiro jun. 2004

 

ARTIGOS

Intersexo: o desafio da construção da identidade de gênero1

 

Intersexuality: the challenge for constructing gender identity

 

 

Moara de Medeiros Rocha Santos2; Tereza Cristina Cavalcanti Ferreira de Araujo3

Universidade de Brasília, Instituto de Psicologia

 

 


RESUMO

A designação sexual, geralmente conduzida por meio de intervenção cirúrgica e/ou terapia hormonal, é a meta principal das equipes de saúde que lidam com casos de intersexo. Todavia, importantes questões associadas à identidade e papel de gênero ainda não foram esclarecidas, sobretudo à luz da evolução atual das teorias da Psicologia do Desenvolvimento. Assim sendo, a presente investigação teve por objetivo descrever e compreender os significados atribuídos pelo sujeito à condição intersexual ao longo do processo de construção de gênero. Para tanto, foram entrevistadas três crianças de seis anos de idade com diagnóstico de pseudo-hermafroditismo masculino e hermafroditismo verdadeiro. Adotou-se, também, a metodologia observacional com registro em vídeo de uma situação lúdica com brinquedos associados aos estereótipos masculinos e femininos. Os resultados revelaram que a identidade de gênero parece corresponder ao sexo de criação nos casos em que houve alguma orientação. Propõe-se uma discussão sobre a participação do sujeito na conduta terapêutica.

Palavras-chave: Intersexo, Hermafroditismo, Identidade de gênero, Papel de gênero.


ABSTRACT

The sexual assigned generally by surgical intervention and/or hormonal therapy, is the main goal of the health teams that they deal with intersexual cases. However, important questions associates to the gender identity and gender role had still not been elucidated, meanly according the current evolution of the Developmental Psychology theories. So being, the present inquiry had focus on describe and understand subject´s attributed intersexual condition along the gender construction process. So being, three children of six years of age diagnosed of male pseudo-hermaphroditism and true hermaphroditism had been interviewed. The observational methodology has also being adopted by videotaping playing situation with masculine and feminine stereotypes toys associates. The results revealed that gender identity seems to correspond to the designated sex when have had some orientation. A forum to evaluate the subject´s participation in the therapeutical conduct is proposed.

Keywords: Intersex, Hermaphroditism, Gender identity, Gender role.


 

 

INTRODUÇÃO:

Nos últimos anos, a raridade dos casos de intersexo vem sendo revisada pela literatura especializada. Na década passada, divulgava-se uma incidência de 1:14.000 nascimentos (Hurtig, 1992); todavia, com o aprimoramento contínuo das técnicas diagnósticas, estima-se que esta incidência pode ser tão alta quanto 1:2.000 nascimentos (Wilchins, 2002). O impacto provocado por tal atualização epidemiológica fortalece, portanto, o interesse clínico pelos aspectos psicológicos envolvidos nesta problemática.

Neste sentido, é fundamental insistir que ainda é limitada a compreensão sobre a adaptação psicológica do indivíduo ao sexo designado. Cabe lembrar que esta designação fundamenta-se em uma conduta terapêutica que prescreve terapia hormonal e cirurgia, destinadas a adequar aparência e funcionalidade da genitália.

Quando tal proposta recomenda uma intervenção precoce, antes dos 24 meses de idade, pretende-se facilitar a construção de uma identidade de gênero satisfatória, resultante da percepção corporal da própria criança (Money, Hampson & Hampson, 1955). Contudo, alguns pacientes relatam que não se adaptaram e rejeitaram o sexo designado ao nascimento, respaldando uma conduta terapêutica que defende o adiamento da intervenção até que o jovem sujeito possa participar (Diamond, 1999).

Certamente a participação do indivíduo no processo de tomada de decisão quanto a seu tratamento, principalmente em relação à cirurgia, constitui medida preventiva dos prejuízos causados por uma redesignação sexual posterior ou, o que seria mais grave, pela convivência forçada com um sexo designado sem estabelecimento de identificação.

Por outro lado, um exame mais minucioso dessas duas propostas de manejo, que enfatizam intervenção precoce ou adiamento, revela uma fraca integração da discussão sobre identidade de gênero, tal como vem sendo objeto de estudo por parte das mais importantes teorias do desenvolvimento humano. Ao insistirem excessivamente no “quando” intervir cirurgicamente, tais condutas adotam uma perspectiva de desenvolvimento apoiada exclusivamente na noção de idade cronológica e biológica, minimizando a importância de outras dimensões como aquelas vinculadas aos planos subjetivo, social e cultural (Santos & Araujo, 2003).

Assim, considerando a relevância científica e profissional de investigações sobre o tema, foi realizada uma extensa pesquisa (Santos, 2000), cujos resultados serão parcialmente apresentados aqui. O presente estudo teve como objetivo geral descrever e compreender o desenvolvimento da identidade de gênero por meio dos significados atribuídos pelo sujeito a sua condição. Foram, igualmente, estipulados como objetivos específicos: a) comparar a adaptação ao sexo designado entre os dois casos de intersexo estudados (hermafroditismo verdadeiro e pseudo-hermafroditismo masculino); b) conhecer os conteúdos internalizados pela criança sobre “ser masculino” (identidade de gênero) e a sua manifestação comportamental (papel de gênero).

 

MÉTODO:

Amostra: foi constituída por três crianças (S1, S2 e S3) com seis anos de idade e criadas como meninos. S1 foi diagnosticado como pseudo-hermafrodita masculino aos 11 meses de idade e submetido à terapia hormonal, não tendo realizado qualquer cirurgia reparadora da genitália. S2 foi diagnosticado como hermafrodita verdadeiro com um ano de idade. Fazia tratamento de reposição hormonal e realizou cinco cirurgias (oito meses, um ano e cinco meses, dois, cinco e seis anos, respectivamente). Aos cinco meses de idade, S3 recebeu o diagnóstico de hermafroditismo verdadeiro e fazia reposição hormonal. Foi submetido a duas cirurgias, uma aos seis meses de idade e outra quando tinha um ano e oito meses.

Instrumentos: um roteiro de entrevista com a criança, baseado no questionário do teste projetivo Desenho da Figura Humana, sendo o desenho empregado apenas como elemento catalisador do relato do sujeito. Os principais eixos de investigação desse instrumento foram: auto-estima, estado emocional, socialização, família/escola, percepção dos outros sobre si, identidade e papel de gênero e perspectiva quanto ao futuro.

Para o registro observacional, foi planejada uma situação lúdica semi-estruturada com duas caixas de brinquedos, uma contendo brinquedos esterotipados para o sexo masculino (carrinho, avião, motocicleta, bonecos imitando desenhos animados atuais) e outra com brinquedos estereotipados para o sexo feminino (boneca, bijouterias, maquiagem, objetos de casa e de boneca).

Procedimentos: após contato telefônico, agendou-se uma visita domiciliar, durante a qual foram apresentados os objetivos da pesquisa e assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A coleta de dados teve início com a entrevista da criança (a qual foi gravada para posterior transcrição e análise), seguida da observação e filmagem da situação lúdica semi-estruturada. Nesta condição, foram apresentadas as duas caixas de brinquedos, simultaneamente, sugerindo-se que a criança iniciasse a brincadeira pela caixa contendo os brinquedos opostos ao seu sexo. Vale destacar que as caixas também continham brinquedos representativos do contexto hospitalar (“playmobil hospital”, kit médico composto por maleta, injeção, estetoscópio, remédios, termômetro e tesoura).

 

Resultados e Discussão:

As entrevistas duraram em média 20 minutos. Cinco categorias temáticas principais foram geradas a partir do relato dos participantes: expectativa quanto ao futuro, percepção pessoal, socialização, identidade de gênero e papel de gênero.

Todas as crianças apresentaram planos para o futuro, seja no âmbito profissional ou pessoal. Dentre as profissões escolhidas, “ser médico” foi a mais expressivamente indicada. No entanto, ao compararmos com a situação lúdica, o envolvimento dos sujeitos com as brincadeiras de médico foram pouco representativas ou não ocorreram. Os sujeitos relataram querer se casar, com exceção de S1.

Quanto à percepção que as crianças têm de si mesmas, aspectos positivos (inteligência, beleza, educação, bondade) foram mais ressaltados do que aspectos negativos. Apenas S1 expressou que seu principal defeito era não ser “bonito”, o que poderia estar associado à dificuldade de estabelecer amizades e ter convívio social. Sobre as características físicas, a parte do corpo considerada como a “mais bonita” foi rosto e cabelo. Nenhuma verbalização explicitou a genitália como a parte mais “feia”. Contudo, as respostas não verbais revelaram uma percepção negativa, pois olhavam em direção à própria genitália ou apontavam para a genitália da pessoa desenhada, nomeando, em seguida, outra parte do corpo como pé, braço e barriga. Verificou-se, portanto, que todas as crianças, apesar de terem sido informadas pelos pais a respeito de sua condição, expressaram uma percepção diferenciada da sua genitália.

De modo geral, as crianças narraram ter um bom relacionamento com os amigos, preferindo aqueles do mesmo sexo como seus pares nas brincadeiras. Em relação à identificação com a pessoa desenhada, S1 e S2 desenharam pessoas cujo sexo não correspondia ao deles. No entanto, S2 passou a se identificar com o namorado da menina desenhada, enquanto S1 negou querer ser parecido com tal figura do desenho. Nestes dois casos, parece não haver relação entre a pessoa desenhada com a real identificação dos sujeitos. S1 e S2 relataram preferências tanto por brinquedos tipificados para o seu sexo quanto para o sexo oposto.

A sugestão inicial de brincar com uma das caixas possibilitou observar a reação da criança frente à caixa dita contra-estereotipada. A apresentação simultânea das duas caixas possibilitou a escolha daquela com a qual a criança gostaria efetivamente de brincar.

Foi possível constatar, em relação à interação criança-objeto (e mesmo no relato verbal), que os estereótipos de gênero parecem ser rígidos entre os meninos. Dessa forma, S2 e S3, não se envolveram em brincadeiras com os brinquedos da caixa feminina, limitando-se a explorá-los rapidamente e separá-los, indicando desinteresse. Apenas S1 se envolveu em brincadeiras com brinquedos da caixa contra-estereotipada. Uma possível explicação seria que tais objetos pertencem ao contexto lúdico da criança que se engajara em brincadeiras com a prima da mesma idade e conseqüentemente utilizava brinquedos femininos. Vale assinalar que a criança utilizou brinquedos femininos inserindo-os em brincadeiras masculinas ou de médico. A análise dos significados atribuídos por S1, durante a brincadeira, aponta uma orientação mais flexível dos estereótipos de gênero desse participante em relação aos demais.

Assim, as características de maleabilidade ou flexibilidade do sujeito em desenvolvimento, quando discutidas em relação à condição intersexual, estariam tanto associadas ao modo de criação (com maior flexibilidade ou maior rigidez e cobrança em relação à identidade e papel de gênero), quanto às etapas próprias do desenvolvimento. Dessa maneira, parece existir uma diferença entre identificar-se com um sexo e optar por brinquedos do mesmo sexo que o sujeito (pode estar relacionado a estereótipos de gênero mais rígidos, devido à cobrança externa, imposta por familiares) e identificar-se com um sexo e optar por brinquedos do sexo oposto.

No que diz respeito à realização de tarefas ‘femininas’ por parte dos meninos faz-se necessário, primeiramente, analisar as atitudes parentais em relação aos estereótipos de papel sexual, assim como o significado atribuído a ser masculino e feminino. Nesse sentido, S2 e S3 foram educados para colaborar nas atividades domésticas, sem que a isso fosse atribuído um conceito ou significado de ser masculino ou feminino. Comportamentos estereotipados para o sexo feminino, evidenciados em meninos, podem ser interpretados à luz de maior flexibilidade nos estilos próprios de criação. Vale argumentar também, que tais sujeitos receberam informações dos pais sobre sua condição, além de serem atendidos na solicitação de esclarecimento de dúvidas e perguntas relacionadas a sexo, gênero e intersexualidade. De acordo com a literatura, quanto mais informadas estiverem as crianças sobre estas questões específicas, mais flexíveis elas serão em relação aos estereótipos de gênero.

Não foram encontrados indicadores que revelassem a existência de identidade de gênero não correspondente ao sexo de criação. Constataram-se, tão somente, comportamentos que poderão vir a se estabelecer como expressão de comportamento de gênero cruzado (no caso de S1, pode-se inferir uma preferência por brinquedos e/ou brincadeiras com estereótipos femininos, sem que se deixe de reconhecer o empenho do sujeito em atividades socialmente determinadas para o sexo masculino).

O que é relevante para esta investigação é a coerência entre comportamento manifesto e discurso. A situação lúdica e a entrevista revelaram que a maneira como a criança se define (ou se identifica, enquanto menino ou menina) e como ela se apresenta aos outros são coerentes. Assim, pode-se concluir que o papel de gênero está exteriorizando a identificação da criança com um sexo. Vale a pena destacar que, em alguns casos, foi mais difícil verificar essa relação, o que poderia ser explicado muito mais pela limitação do escopo desse trabalho do que pela confusão entre identidade e papel de gênero.

Em relação aos brinquedos médicos, embora S1 e S3 tenham realizado brincadeiras com tais objetos, não foi possível verificar o quanto o envolvimento com estes brinquedos poderia servir como catalisador das experiências no contexto hospitalar. Na realidade, o fato das crianças não terem se envolvido fortemente nestas brincadeiras não significa que o instrumento não seja adequado para avaliação desses aspectos. Ao contrário, não querer “brincar de médico” pode estar associado a vivências dolorosas sobre sua condição. No que diz respeito à manipulação dessa categoria de brinquedos, não foi possível verificar a importância dos membros da equipe de saúde como eventuais modelos para desenvolvimento da identidade de gênero da criança. Ajustes metodológicos terão que ser feitos para a verificação desse parâmetro identificatório específico.

Foi encontrado um padrão heterogêneo em relação ao período no qual a cirurgia corretiva da genitália foi realizada e a aparente adaptação ao sexo designado. S2 realizou diversas cirurgias que ocorreram antes e após 24 meses de idade e, ao que parece, encontra-se adaptado ao sexo designado. S3 realizou as cirurgias até 24 meses de idade, parecendo estar adaptado. Em relação à S1, mesmo não tendo feito qualquer cirurgia, sua identidade de gênero está em construção, tendendo para uma adequação. Tendo em vista tal diversidade de dados e o número limitado da amostra, não é possível fazer afirmações sobre a influência do fator idade em que se realizou a cirurgia e a adaptação da criança ao sexo de criação. No entanto, algumas considerações podem ser feitas à medida que se desvincula tal fator da cirurgia propriamente dita.

Os resultados permitem observar que: a) as crianças que realizaram cirurgia, independentemente da idade no momento da intervenção, apresentaram uma imagem negativa sobre seu corpo, especificamente, a genitália e b) mesmo diante da percepção corporal negativa, elas parecem adaptadas ao sexo de criação. É possível supor, então, que a percepção diferenciada da genitália não influenciaria, diretamente, a construção de uma identidade de gênero compatível com o sexo de criação. Portanto, mesmo com uma imagem corporal negativa, estes sujeitos parecem ter sua identidade de gênero correspondente ao sexo inicialmente designado, revelando-se, assim, bem adaptados ao sexo social.

Ao se comparar os dois grupos de condição intersexual (hermafroditismo verdadeiro e pseudo-hermafroditismo masculino), considerando suas especificidades e grau de complexidade, não foram constatadas diferenças que relacionassem o tipo de quadro à adequação ao sexo de criação. Na realidade, as crianças foram comparadas em relação ao sexo no qual foram criadas, mais do que entre as especificidades de cada quadro, podendo-se concluir que os sujeitos parecem apresentar coerência entre o sexo inicialmente designado, a construção da identidade de gênero e a representação do papel de gênero. Mais do que relacionado ao quadro de classificação da condição intersexual, o que parece é que, devido à anatomia da genitália externa ser aparentemente mais visível nas crianças criadas como menino, até mesmo porque requer um maior número de cirurgias corretivas, uma maior atenção da família é direcionada para auxiliar a criança na compreensão dessas intercorrências, bem como na construção da sua identidade de gênero.

Um outro aspecto relacionado ao objetivo da cirurgia estética é corrigir a genitália de modo a conseguir um funcionamento sexual adequado. O termo “adequação” geralmente se refere à esfera anatômica/fisiológica. Entretanto, ao se considerar a esfera psicológica, tal adequação deve ser compreendida como integração do indivíduo. Assim, designar o sexo feminino para crianças que não responderam ao tratamento hormonal com testosterona, também não atende a perspectiva de adaptação física e psicológica do indivíduo, uma vez que ele pode preferir ter um pênis não-funcional – em razão do comprometimento da função ortostática para micção e a impossibilidade de penetração durante o coito - a ter uma convivência forçada com o sexo designado. Nesses casos, a genitália pode não estar plenamente satisfatória (para a equipe, pais e o próprio sujeito) do ponto de vista físico, mas a pessoa estaria bem integrada, o que, afinal, é o interesse comum de todos os profissionais que atuam no contexto da intersexualidade.

 

Considerações Finais:

Ao estudar o fenômeno da intersexualidade, muito se pode compreender acerca dos múltiplos fatores (que vão desde o micro – genético ao macro – cultura) que levam ao estabelecimento da identidade de gênero. Neste sentido, é importante insistir quanto à premência de se considerar as contribuições dos recentes avanços da Psicologia do Desenvolvimento para a realização de investigações e intervenções na área da intersexualidade. É essencial que o setor da saúde, ainda fortemente marcado pelo modelo médico, introduza a perspectiva biopsicossocial.

Tendo em vista que a revisão da literatura especializada não apresenta evidências definitivas para apoiar a proposta de manejo, tradicionalmente adotada, que defende a realização da cirurgia precoce com o objetivo de adequar a genitália a uma aparência normal, pode-se argumentar em favor da possibilidade do adiamento da cirurgia corretiva da genitália, considerando a qualidade de vida dos indivíduos em todas as etapas do seu desenvolvimento (Santos & Araujo, 2001).

Nos casos em que seja possível adiar a cirurgia, essa conduta implicaria em manter a genitália com um aspecto diferenciado daquele dito normal, o que requer um maior comprometimento em esclarecer a situação para a criança. Informações, obviamente adequadas à compreensão da criança, são necessárias para que esta possa situar-se como pertencente a um gênero, mesmo com a aparência genital diferenciada. Vale ressaltar que a intervenção cirúrgica quando realizada precocemente, indiretamente colabora para a desinformação do sujeito, uma vez que, após a sua execução, dificilmente o assunto volta a ser abordado pela família.

Em suma, as mudanças de atitude exigidas no contexto da conduta clínica da interesexualidade encontram apoio na Bioética, a qual tem como foco central o princípio da autonomia da pessoa sobre seu corpo e sua integridade moral (Garrafa, 1998). Do mesmo modo, os princípios da não-maleficência e da beneficência são de interesse evidente nesses casos, tendo em vista a indicação de procedimentos cirúrgicos (como ablação de órgãos) e terapêuticos medicamentosos (como a administração de hormônios para o desenvolvimento de caracteres sexuais). Propor intervenções escalonadas no tempo, em associação com a evolução global do sujeito, permitindo os ajustes necessários, pode constituir um cuidado ético.

Ao se cogitar, e eventualmente decidir sobre o adiamento da cirurgia, fornecendo-se orientação especializada, possibilita-se ao indivíduo elaborar o que é melhor para si. Uma vez mais, reconhece-se que, na atualidade, a evolução científica exige o desenvolvimento das interfaces de diferentes áreas do conhecimento. A Psicologia do Desenvolvimento aplicada à saúde pode indicar algumas trilhas alternativas no cuidado ao indivíduo intersexuado.

 

Referências Bibliográficas:

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1 Endereço para correspondência: Universidade de Brasília, Instituto de Psicologia, Laboratório de Saúde e Desenvolvimento Humano, Campus Darcy Ribeiro, Asa Norte, Brasília, DF, 70.910-900. E-mails: araujotc@unb.br ou moara@unb.br
2 Mestre em Psicologia e Doutoranda pela Universidade de Brasília
3 Professora Adjunta e Coordenadora do Laboratório de Saúde e Desenvolvimento Humano do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília

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