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Revista da SBPH

Print version ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.8 no.1 Rio de Janeiro June 2005

 

ARTIGOS

 

O resgate do vínculo mãe bebê em casos de maus-tratos: histórias de uma enfermaria de queimados

 

Carolina Marocco Esteves*

Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo dedica-se a refletir sobre maus-tratos e a vinculação entre a mãe e seu bebê, sendo importante destacar que umas das principais conseqüências da má formação desse vínculo são os maus-tratos. O artigo propõe uma discussão teórico/prática relacionando os aspectos teóricos levantados à experiência clínica de dois anos de Residência Profissional de Psicologia na Enfermaria de Queimados, dentro do Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre. A discussão tem como objetivo apresentar, através dos casos clínicos, a forma como as mães atendidas conseguem se relacionar com os seus filhos, pensando-se que, na maioria das vezes, as mesmas encontram-se incapacitadas de desempenhar uma “função materna suficientemente boa” (Winnicott, 2000). Um dos fatores que contribui para que isso aconteça é observado durante os atendimentos psicológicos na história pregressa da mãe: doença mental devido a maus-tratos no passado. Diante desse quadro, elabora-se uma proposta que tem como objetivo promover a saúde e/ou prevenir a doença, tanto do bebê quanto da mãe, iniciando o diagnóstico e o acompanhamento psicológico (ou psiquiátrico) o mais breve possível, para seguir com este após a internação e durante o desenvolvimento da criança.

Palavras-chave: Maus-tratos, Função materna, Relação mãe-bebê, Transgeracionalidade.


ABSTRACT

This piece aims to reflect on child abuse and the link between the mother and her baby. It is important to emphasize that one of the more important consequence of child abuse is a bad development of mother and her child link. This paper proposes a practical and theorical discussion, relating the theorical aspects found on two years of professional psychology training on burned (nursing) ward in the Emergency Hospital in Porto Alegre. The discussion aims to show, through clinical cases, the way how treated mothers can build a relationship with their child, as knowing that, the majority of the times, the mothers find themselves unable to carry out the “primary maternal preoccupation” (Winnicott, 2000). One of the factors that contribute to this happen is observed during the psychological treatment by the mother’s previous history: mental illness consequence of child abuse in the past. On this description we elaborate a proposal that aims to promote healthy and/or to prevent illness on the mother and her baby, begging as soon as possible in the hospital with a diagnosis and psychological (or psychiatric) treatment and just after the discharged from the hospital to be continued with the previous treatment during the child development.

Keywords: Child abuse, Primary maternal preoccupation, Mother and baby relationship, Transgenerational.


 

 

Introdução

Este artigo é resultado de uma experiência de dois anos vinculada a uma situação de muita ansiedade e despreparo, que acabou evoluindo para uma grande vocação. Quando entrei na enfermaria de Queimados pela primeira vez não imaginava o quanto iria aprender e mudar meu modo de ser após começar a atender aqueles pacientes. As crianças, em especial, sempre me chamaram a atenção e, consequentemente, foi através do atendimento dispensado a elas e a seus pais, que acabei me deparando com a atividade pela qual me apaixonaria e dedicaria toda a minha atenção.

 

Maus-tratos

A violência pode ser vista em nossa sociedade, dita “moderna”, como uma forma de relação social: ela está diretamente ligada à forma de relação que as pessoas produzem e reproduzem. Ela acontece através de padrões, exclusões sociais e modos de vida, dentre outros fatores, que no decorrer dos séculos foram se impondo às sociedades.

Ao mesmo tempo em que a violência é expressa através das relações sociais, ela também está presente nas relações interpessoais, refletindo-se nas relações entre homens e mulheres, adultos e crianças. Nos casos de violência intrafamiliar (ou maus-tratos) contra crianças, que será o tema tratado neste trabalho, está se infringindo um direito à liberdade, a igualdade e, principalmente, à vida. Conforme assinala Adorno (1988), a violência é um tipo de manifestação que atenta contra a possibilidade de construção de sujeitos livres na sociedade, tem por referência uma vida reduzida, alienada: não há vida em sua plenitude, sendo assim, durante sua manifestação, ela preenche o espaço da liberdade, ameaçando constantemente a vida e fazendo alusão à morte e à destruição.

Hoje em dia é muito comum vermos na sociedade todo um movimento a favor da proteção destas crianças, porém, na prática, os recursos oferecidos em relação à prevenção e ao atendimento da vítima ainda é muito precário assim como o nível dos profissionais que trabalham com casos de maus-tratos. Como pude comprovar durante minha residência no HPS, a maioria destes profissionais ainda não sabe ao certo como diagnosticar e ajudar estas crianças vítimas de violência.

São considerados maus-tratos neste trabalho, baseando-se nas idéias de Farinatti (1993), todos os atos cometidos contra a criança, bem como omissões à sua proteção que ocasionem danos físicos, emocionais, intelectuais ou sociais, efetuados pelos responsáveis por seu bem-estar.

Guerra (1998, p.32) chama de violência doméstica “todo o ato ou omissão praticado contra crianças e adolescentes por seus pais, parentes ou responsáveis que sendo capaz de causar danos físicos, sexuais e/ou psicológico à vítima implica, de um lado, uma transgressão do poder/dever de proteção do adulto e, de outro, uma coisificação da infância, isto é, uma negação do direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento”.

Quando pensamos na violência intrafamiliar é fundamental que sejamos remetidos ao conceito de família que é abrangente e difere entre os autores. A maioria dos autores chama de família ao primeiro grupo de pessoas ligadas por vínculos afetivos e/ou consangüíneos que a criança tem contato. Ela tem o papel estabelecido socialmente de ensinar, proteger e satisfazer as necessidades básicas da criança durante sua vida. A família é o primeiro contato de socialização do indivíduo, de acordo com Guerra (1998) é a família que irá transmitir valores, costumes e formar a personalidade da pessoa.

Hutz (2002, apud Schmacker) concluiu que os fatores de risco mais implicados em negligência infantil são: tamanho da família (muitos filhos, bem como muitas gestações não planejadas), impulsividade, uso de drogas e falta de apoio social.

Em estudos realizados em relação aos principais autores das agressões, Azevedo (2001), Guerra (1998) e Farinatti (1993) observaram que as mães são autoras em 43% dos casos, seguidos pelos pais, com 33% dos casos pesquisados. Em 10% dos casos as agressões são cometidas por ambos, enquanto que em 14% das ocorrências é feita por outros responsáveis pelas crianças.

Uma das primeiras dificuldades que o profissional que trabalha com crianças que sofreram maus-tratos enfrenta é o próprio desconhecimento em relação a este assunto. Segundo Borges (1995, p.1) “a criança normalmente nos chega ou por uma situação de trauma orgânico (acidentes, doenças) ou por dificuldades emocionais das mais variadas (agressividade, dificuldades escolares, etc.). O maltrato freqüentemente se apresenta disfarçado, seus indícios só se farão presentes de forma secundária e indireta, como um grito de ajuda abafado, mascarado por outras queixas”.

Na experiência como residente do Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre me deparei várias vezes com dúvidas em relação ao diagnóstico; existem casos em que a relação da criança com a família é visivelmente patológica, porém, este diagnóstico não é tão fácil de se fazer, principalmente porque questões contratransferenciais muito importantes interferem durante o atendimento. Borges (1995, p.1) acredita que esta “desinformação também se deve em boa parte a uma dificuldade em se estar aberto a VER e a se ENVOLVER com casos desta natureza. E uma das principais razões são os sentimentos contratransferenciais que estes casos nos despertam".

Muitas vezes, durante minhas intervenções, tive que travar inúmeras discussões com os profissionais que realizavam, juntamente comigo, o atendimento de crianças vítimas de maus-tratos. A grande maioria se colocava em uma posição passiva em relação a estas crianças, abandonando o caso ou não dando continuidade ao acompanhamento da vítima após a alta hospitalar. Acredito que estes profissionais se colocam nesta posição justamente pelo fato de não quererem enxergar esta violência em torno da criança, com o único objetivo de se protegerem contra o sofrimento e a sensação de impotência que esta situação gera. Porém, essa atitude prejudica diretamente a vítima, pois a mesma não tem a proteção que lhe é de direito e que necessita, e consequentemente, acaba levando o profissional a não procurar meios de ajudá-la. A entrevista, por exemplo, é um instrumento que está ao nosso favor para diagnosticar os maus-tratos.

Durante a entrevista é fundamental que o profissional consiga diferenciar um ato negligente de toda uma história da criança cercada de maus-tratos. Ainda é uma discussão entre os autores e profissionais, que trabalham nesta área, se um único ato negligente pode ser considerado maltrato. Nesse sentido, deve-se verificar durante a entrevista os seguintes fatores na história dos pais: história de uma infância violenta; cuidados inadequados ou insuficientes durante a infância; história de pouco rendimento escolar; adolescência sem amigos; história de saída de casa muito cedo na infância; falta de família ampliada como apoio; uso de drogas ou álcool; passado criminal; doença mental; isolamento social. A observação da interação pais-filho durante as intervenções psicológicas é um dos fatores mais importantes para o diagnóstico de maus-tratos.

Dentro de um hospital de emergência surgem a toda hora crianças que sofreram acidentes, sejam eles intencionais ou não. Para que possamos ajudar essas crianças é necessária a realização de uma detalhada anamnese, com informações sobre a gravidez da mãe (planejada, não planejada) relação dos pais na época da gravidez, amamentação, hospitalizações anteriores, etc. É comum o informante cair em contradição, ao contar novamente a história do acidente, quando seu objetivo é proteger o agressor. É importante estar atendo a dados sem lógica, que não condizem com o tipo de ferimento apresentado pela criança. Acredito que nós, psicólogos, podemos lançar mão de um instrumento fundamental neste momento: a intuição.

De acordo com a ABRAPIA, no Guia de Orientação para Profissionais de Saúde (1997), que tem como objetivo orientar os profissionais no diagnóstico de maus tratos, o mesmo se subdivide em cinco categorias: maus-tratos físicos, sexuais, psicológicos, negligência e a Síndrome de Munchausen por procuração (consiste em uma “doença” da criança, que é usualmente fabricada pela mãe, através de histórias médicas falsas, alterações de registros ou de amostras para laboratórios, sendo que, de acordo com Farinatti (1993), a criança inicialmente encontra-se em posição passiva, porém no decorrer do tempo acaba assumindo uma posição simbiótica de co-autora das doenças).

Com o objetivo de pensar sobre a função materna em mães que maltratam de alguma forma seus filhos, considera-se interessante aprofundar os aspectos, conscientes e inconscientes, que se relacionam com a gravidez e a maternidade.

 

A formação do apego e do vínculo entre mãe/bebê

O conceito de família nos tempos modernos passa por uma série de controvérsias e transformações. Durante minha residência tive a oportunidade de entrar em contato com diversas famílias, que se encontravam em diferentes condições sociais e possuíam histórias de vida distintas, acredito ser muito difícil conseguir conceituar algo tão abrangente. A formação do vínculo da criança com a família acontece desde a gestação e é fundamental para que a criança consiga desenvolver-se de maneira saudável.

De acordo com Bowlby (1990) não se pode falar a respeito de uma conduta de apego, até que haja evidência de que o bebê não somente reconhece sua mãe, como tende a comportar-se de modo a manter proximidade com ela. O comportamento do apego é considerado por Bowlby como algo de importância equivalente ao comportamento de acasalamento e do parental.

O mesmo autor assinala que “nenhuma forma de comportamento é acompanhada de sentimento mais forte do que comportamento de apego. As figuras para as quais ele é dirigido são amadas, e a chegada delas é saudada com alegria. Enquanto uma criança está na presença incontestada de uma figura principal de apego, ou a tem ao seu alcance, sente-se segura e tranqüila. Uma ameaça de perda gera ansiedade, e uma perda real, tristeza profunda; ambas as situações podem, além disso, despertar cólera” (Bowlby, 1990,p.224).

Para Debray (1988), tornar-se mãe ou pai reaviva, em todo o indivíduo humano, desejos antigos experienciados em suas reminiscências infantis vendo os pais como adultos todo-poderosos, pois foram eles que decidiram o seu nascimento e que apontaram o que poderia ou não ser feito ou como deveriam agir em determinadas situações. A criança é totalmente dependente dos pais, não possuindo autonomia, e assim tendo que “obedecer” a todos os mandos e desmandos deles, não tendo, portanto, outra solução senão esperar a maturidade suficiente para ser capaz de tomar as próprias decisões.

De acordo com Klaus, Kennell e Klaus (2000) acontecem fatos importantes para a formação do vínculo, que são: planejamento da gravidez, aceitação da gravidez, conscientização dos movimentos do feto, percepção do feto como uma pessoa separada, vivência do trabalho de parto, nascimento, ver o bebê, tocar o bebê, cuidar do bebê e aceitação do bebê como uma pessoa individual na família. Os autores defendem a idéia de que observando e estudando a mãe e o pai durante cada um desses períodos podemos reunir as peças que formam a base do relacionamento pais-bebê.

Para Catão (2002) e Winnicott (2000), a função materna não é obrigatoriamente desempenhada pela mãe biológica, assim pode ser representada por outra pessoa tão bem quanto por sua própria mãe biológica, sendo que a falta desses cuidados nos primeiros tempos de vida de um bebê o coloca em risco.

Winnicott (2000) traz uma importante contribuição quando assinala que a mãe (ou o cuidador) comunica-se com seu bebê essencialmente através de gestos, sorrisos e vocalizações. Quando a interação obtém êxito, oportuniza à mãe compreender as demandas de seu filho, proporcionado seu desenvolvimento físico e mental de forma sadia. A sensibilidade da mãe para compreender os sentimentos e as necessidades do bebê é alcançada no final da gravidez. Tal estado possibilita que a mãe (ou cuidador) possa identificar-se com esse bebê, adaptando-se às suas necessidades e compreendendo as suas demandas. Conforme o autor essa comunicação é essencialmente não-verbal, caracterizada pelo olhar e pelo contato físico.

Para Winnicott (2000), a boa evolução dos estágios posteriores do desenvolvimento dependem principalmente de bons resultados nos primeiros contatos do bebê com a mãe ou cuidadora. De acordo com o autor, a identificação primária do bebê é o início de tudo, sendo neste momento que a criança estabelece sua condição de ser, de existir. Nesse processo está implicada a base de saúde mental do indivíduo. O autor afirma que o bebê logo que nasce é alguém que necessita de maternagem para que possa existir, referindo que onde encontramos o bebê encontramos a maternagem, e que sem a maternagem não existiria nenhum bebê. Conforme Winnicott, o ambiente (que é representado pela mãe) é o fator que torna possível o desenvolvimento do Self do bebê, aceitando a realidade como uma aliada nos processos maturativos da personalidade do indivíduo.

O autor segue a idéia afirmando que no caso de o bebê não receber o cuidado de que necessita, ele passa por um sofrimento psíquico muito grande, prejudicando diretamente a formação vincular. Essas angústias são representadas por sensações de vazio, de desintegração e dissociações entre o corpo e o psíquico. Winnicott defende que a amamentação é um exemplo importante de um dos primeiros meios de comunicação e formação de vínculo entre a mãe e seu bebê. No entanto, algumas mães não se sentem aptas a amamentar seus filhos, sendo que muitas vezes sua dificuldade tem ligação direta com conflitos que passaram quando crianças. Nesse caso, o autor recomenda que não se force uma situação, atitude que provavelmente irá fracassar, mas, sim, que se promova novas maneiras através das quais a mãe terá contato com seu bebê. Muitos dos aspectos importantes da amamentação estão presentes também no uso da mamadeira, como por exemplo, a troca de olhares entre a mãe e o bebê, que é um aspecto fundamental no estágio de desenvolvimento primário.

A partir das idéias sustentadas pelos autores é possível perceber que é fundamental que o bebê e a criança tenham o suporte e o carinho da mãe ou de alguém que consiga desempenhar este papel e que caso isso não aconteça a saúde mental e física dos mesmos está profundamente comprometida.

Em casos de diagnóstico de maus-tratos é importante que antes de qualquer julgamento ou pré-conceito, o profissional consiga estimular o vínculo da família com a criança, porque bem ou mal é com essas pessoas que ela vive e que muitas vezes busca como modelo referencial. A primeira atitude que temos ao ver uma vítima de maus-tratos é que ela estaria melhor em uma instituição do que em sua família, porém a decisão deve ser muito bem pensada.

Farinatti (1993) também defende a idéia de que antes de se pensar na retirada da criança de casa é fundamental que se invista nas relações da família, visando uma reestruturação familiar e trabalhando no sentido de reforçar o vínculo da vítima com sua mãe e pai. Porém, não se pode negar que existam casos em que as crianças devem ser criadas fora de seu lar, tamanho é o risco que sua família apresenta. Acredito que cada situação deve ser estudada profunda e individualmente, sendo que faz-se necessário analisar separadamente cada criança e cada família. Para que isso aconteça da melhor forma possível é importante saber lidar com nossas idéias pré-concebidas e julgamentos.

A seguir, trataremos de um assunto fundamental no estudo de maus-tratos, principalmente se o profissional trabalha com a idéia de fortalecer os vínculos familiares e entender um pouco melhor a história desta família.

 

A herança que se passa de geração para geração - transgeracionalidade

Dentre alguns fatores que foram citados neste trabalho que “facilitam” o surgimento de maus-tratos contra a criança, o fator transgeracional é um assunto que se destaca e que vem ganhando cada vez mais espaço para estudo na sociedade atualmente.

De acordo com Escosteguy (1997), o conceito de transgeracionalidade vem sendo cada vez mais usado no entendimento da dinâmica das relações entre mãe-bebê. A autora define o conceito como sendo “uma transferência - normal ou patológica - realizada sobre o bebê, impondo-lhe, dessa forma, a partir de outra(s) geração(s), a marca, para melhor ou para pior, de experiências psicológicas oriundas dos genitores” (1997 p. 49).

Fraiberg, Adilson e Shapiro (1994) apontam que não é possível afirmar que os genitores que foram maltratados, no momento em que se tornarem pais serão guiados em seu comportamento por seus sofrimentos e feridas, ou se encontrarão a oportunidade na maternidade e na paternidade de fazer algo diferente de seus pais.

Para os autores, o acesso aos seus sofrimentos infantis é um meio potente para a prevenção da repetição de maus-tratos nos futuros pais. No entanto, a repressão e o isolamento dos afetos são fatores favoráveis para a identificação com o agressor e com o sedutor.

Segundo Fraiberg, Adelson e Shapiro (1994), mesmo nas famílias em que os vínculos de amor são intensos, os conflitos do passado dos pais podem aparecer. Tais eventos intrusivos passam despercebidos na relação familiar, sendo que nem os pais nem as crianças têm o seu vínculo ameaçado.

Em outras famílias, no entanto, os autores apontam que a relação entre os pais e o bebê é constantemente invadida por estes fantasmas do passado. Eles criam aborrecimentos para as crianças principalmente nos setores da alimentação, do sono, da aprendizagem, da higiene, ou da disciplina, em função dos pontos conflituosos na vida dos pais. É importante salientar ser fundamental procurar ajuda de um profissional nesses casos, pois mesmo que o vínculo seja sólido, os pais podem se sentir perdidos diante das invasões de experiências passadas. No entanto, esses pais têm grande dificuldade de pedir ajuda. Espontaneamente, os pais não terão vontade alguma de formar aliança com o profissional, afinal, para eles nós é que parecemos estranhos e intrusivos, não seus fantasmas.

Na minha experiência no hospital com esse tipo de caso, logo que chegava para conversar com os pais das crianças, os mesmo reagiam como se eu estivesse invadindo seu espaço e o da criança com as perguntas que fazia. A grande maioria, no entanto, no decorrer dos atendimentos, tornava-se mais flexível e acabava trazendo seus “fantasmas” para o atendimento.

O profissional deve estar atento a alguns sinais que o bebê pode apresentar, quando exposto a esses “fantasmas”, sendo que a hospitalização pode ser um momento importante na investigação dessas relações patológicas estabelecidas na família. Deve-se observar a manifestação de sinais precoces de carência afetiva por parte da criança, além de sintomas graves de maus-tratos e lacunas no desenvolvimento da criança. Fraiberg, Adelson e Shapiro colocam que essas crianças carregam nas costas o pesado passado de seus pais desde o nascimento, como se o genitor estivesse condenado a repetir seu passado trágico com o filho.

Para encerrar a revisão bibliográfica é importante salientar que todo o profissional que trabalha com crianças deveria se sentir “implicado” nesta luta, que travamos diariamente, no meu caso em um hospital, para que seus direitos sejam atendidos. O estudo e o entendimento dinâmico de como acontecem estas relações devem estar sempre presentes na nossa prática diária, sendo que é a partir deste embasamento teórico juntamente com nossa vontade de proteger e ajudar estas crianças, que podemos começar a falar em experiência clínica de fato.

 

Histórias de uma Enfermaria de Queimados...

Dentre as situações clínicas vivenciadas em um Hospital de Trauma a mais dramática e angustiante por nós experienciada tem sido o atendimento psicológico de crianças queimadas, que foram vítimas de maus-tratos, internadas na Unidade de Tratamento Intensivo de Queimados no Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre. A base de nossa atividade reside na importância do diagnóstico e do manejo psicoterápico psicanaliticamente orientado, sem esquecer a questão da dimensão humana no estabelecimento de um holding mais criativo.

Primeiramente, é importante caracterizar a queimadura em si. Conforme Borges (1995), queimadura é uma lesão causada por agentes externos (fogo, choque elétrico, agentes químicos, calor ambiental intenso, entre outros) que provoca a destruição de pele e por vezes tecidos e inervações abaixo da mesma. A lesão é caracterizada em sua profundidade e extensão. Quanto à profundidade existem as queimaduras de 1°, 2° e 3° graus, sendo esse último o mais grave e que envolve mais riscos à vida do paciente. Quanto à extensão, normalmente se calcula uma área lesada atribuindo-se um número representativo da mesma (por exemplo, 60% de área queimada), que se distribui entre pequeno, médio e grande queimado. O maior risco envolve os pacientes grande queimados com queimaduras de 2° e 3° graus. É interessante enfatizar que o índice de óbitos para um paciente grande queimado gira em torno de 15 a 18%. Outro fator grave que merece todos os cuidados é a queimadura de face, onde muitas vezes ocorre inalação por parte da criança, podendo haver queimadura das vias aéreas, sendo que o prognóstico na maioria das vezes encaminha-se para a entubação do paciente. É importante também falar a respeito dos procedimentos que são realizados nos pacientes queimados, e que se tornam mais difíceis no caso dos pacientes serem crianças. O banho é realizado duas vezes ao dia com o objetivo de remover a pele lesada e a secreção ali depositada. É um procedimento extremamente doloroso para a criança, que já se encontra em um momento difícil e sofrido devido à hospitalização e a queimadura. Finalmente ocorrem as idas ao bloco cirúrgico para a realização do debridamento (procedimento onde se retira a pele lesada) e da enxertia (procedimento onde é retirado um pedaço de pele não queimada de uma parte do corpo, que é colocada por cima das pele lesada) nos casos que forem necessários.

O trabalho da psicologia, realizado no Hospital de Pronto Socorro, parte do princípio que todo o trauma físico acaba acarretando algum tipo de trauma psicológico, isto é, o sentimento de identidade do indivíduo está significativamente alterado e rompido. Por isso a importância do atendimento de todos os pacientes, e principalmente das crianças. O atendimento psicológico é feito a partir da internação do paciente na Enfermaria, sendo que tem continuidade durante toda a hospitalização, que na maioria das vezes é longa e não tem tempo determinado para acabar.

Conforme refere Borges (1995), o banho é sempre um procedimento que merece ser trabalhado pela psicologia com a criança. O autor defende a idéia de que a criança encontra-se muito assustada e o fato de ser colocada em uma banheira ou mesa cirúrgica para lavá-la e ter que esfregar a lesão, retirando a pele, sendo que, conseqüentemente acontece o sangramento das partes lesadas, fazem aumentar o seu medo, sua dor e angústia frente a estes procedimentos necessários. Acrescenta-se a isso o fato dos pais também estarem muito nervosos e culpados pelo acidente dos filhos.

Na Enfermaria de Queimados realizamos atendimentos de todos os leitos, sem precisar da solicitação dos médicos para realizar o primeiro contato.

Pelo fato de não possuir privacidade nas enfermarias (muitas vezes o atendimento psicológico é interrompido para a realização de alguma intervenção médica) seria de se esperar que os pacientes fossem resistentes na hora de falar a respeito de si e de seus problemas, o que não acontece. Segundo Arena e Borges (1994, p.2), “seria de se esperar que esta mudança no enquadre técnico levasse a uma maior resistência do paciente ao atendimento. Contudo, o que encontramos é a situação oposta; pacientes mostrando-se receptivos em conseqüência do sofrimento frente à situação traumática”.

A intervenção psicológica com pacientes queimados e familiares possibilita a expressão de seus sentimentos, angústias e medos, bem como de suas expectativas, esperanças e planos para o futuro, abrindo um espaço para que possam aliviar o estresse que enfrentam (tão prejudicial para a adesão ao tratamento) e possam utilizar-se dos recursos psíquicos que se instauram na busca pela cura. Deve-se considerar durante a intervenção a idéia de danos corporais, que a grande maioria dos pacientes desenvolve após a queimadura, considerando as alterações no esquema e imagem corporal do mesmo.

É fundamental que, além do terapeuta sentir-se à vontade com o paciente (fato este que inicialmente é difícil para algumas pessoas devido ao aspecto das lesões provocadas pela queimadura) e disponível para o paciente, também tenha a capacidade de proporcionar um suporte emocional, o que Winnicott chama de holding. Para Winnicott (2000), fornecer o holding (sustentação) é uma das principais funções do psicólogo no hospital. É o seu conceito para os primeiros contatos maternos da mãe com a criança. Segundo ele, a função de sustentação é natural à mãe, baseando-se mais na sua empatia materna do que na sua capacidade de compreender. Também não podemos esquecer a importância de ter internalizado o setting terapêutico na hora de atender os pacientes nos leitos.

Borges (1995) aponta a importância de se realizar uma anamnese com a família, principalmente para observarmos o tipo de interação existente entre o familiar e o paciente. Alguns indícios são fundamentais para a avaliação do vínculo da criança com os pais, como, por exemplo, se os pais olham diretamente para a criança durante a entrevista, ou se desviam o olhar e têm dificuldades de atender seu filho. Outro detalhe importante de ser observado é qual o contato corporal que estes pais tem com a criança, se pegam no colo ou não. É fundamental escutar o relato dos pais de como foi o acidente, bem como a versão da criança também, nos casos de dúvida em relação ao acidente é importante que esta investigação seja feita em separado. Caso a criança seja pequena e não consiga relatar o ocorrido, vamos em busca de informações com familiares, vizinhos, amigos, Conselhos Tutelares etc.

A seguir, realizarei a exposição de um caso, que foi selecionado dentre muitos, que chegam diariamente na Enfermaria de Queimados. Como método de tratamento e entendimento dinâmico utilizamos conjuntamente a psicanálise, a psicologia do desenvolvimento e o trabalho social, sendo que, as vantagens da utilização destes métodos foram muito grandes, tanto para as crianças e seus pais, quanto para nós mesmos, que nos envolvemos diretamente com estes casos.

 

Vinheta Clínica

Marcos1

Marcos, de 10 meses, internou na Enfermaria de Queimados, no Hospital de Pronto Socorro, transferido de um hospital do interior por queimadura de face, tronco e mãos. Em estado grave, veio acompanhando pela mãe, Sra. Marta, com o relato de ter se queimado após explosão em fogão a lenha, estando acompanhando por tia de dezoito anos que tentava reacender fogo com gasolina.

Segundo relato da mãe, as crianças (Marcos e outra filha de três anos, Maria) costumavam ficar aos cuidados de uma tia, com quem tinham vínculo afetivo. Mãe é gestante, informando não desejar esta gravidez. A mesma permaneceu durante todo período de internação com o filho na UTI. Foi colocada a possibilidade de passar a noite em um abrigo para descansar melhor, mas não aceitou. Porém, durante alguns dias foi descansar na casa de familiares de um paciente internado na UTI, alternando a rotina hospitalar com o pai Fernando, que após uma semana de internação do filho, compareceu ao hospital e desde então passou a acompanhar o bebê, juntamente com a companheira.

Na data de internação, um funcionário da Secretaria de Saúde da cidade onde a família residia, subiu na enfermaria para visitar a criança e se assustou com a gravidade do caso, pois os pais haviam informado que a criança estava bem, que havia se queimado pouco, gerando dúvidas nas pessoas da cidade se seria pouca extensão ou realmente estavam minimizando o estado de saúde do filho. O mesmo funcionário informou também, que os pais já possuíam histórico de negligência com os filhos no município.

A mãe relata que a gravidez de Marcos não foi desejada por ela, porém o marido queria a criança. Refere que não pôde amamentar o filho por ter sofrido de infecção hospitalar, causada pelo fato de ter realizado o parto do bebê dentro do banheiro do hospital. Durante a anamnese realizada com ao pai de Marcos, o mesmo revela que a mãe disse a ele que parou de amamentar a criança “porque o leite tinha secado”.

A mãe de Marcos tinha dificuldades de pegar o filho no colo, não conseguia acalmar a criança quando se agitava e sentia dores, afastando-se do mesmo. Apesar de minhas intervenções em relação à importância dela pegar o filho, conversar e cantar para ele, a mesma não se mostrava receptiva a estas idéias. Em determinada situação durante uma intervenção psicoterápica disse que a residente “não podia ver o bebe chorar”, porque foi sugerido que ela cantasse para acalmar o filho. Deixava a criança sozinha durante os procedimentos na enfermaria e saía para fumar, dava mamadeira sem olhar no rosto da criança.

Durante o tratamento a mãe apresentou uma conduta manipuladora, com hipótese de transtorno de personalidade. Paralelamente a este fato perceberam-se comportamentos que denotavam dificuldades de vínculo do casal com o bebê tais como: não conseguir acalentar o filho com afeto, pouco tempo ao lado do leito e uma certa tranqüilidade e comodidade no Hospital, não demonstrando angústia com a permanência cotidiana na Enfermaria. Durante a internação foi possível observar fatores de risco como: baixo peso nutricional, dificuldades de vínculo materno, ausência de acompanhamento em serviço de saúde (mãe não apresentou o cartão de vacinação do filho, alegando que o perdeu).

Apesar deste comportamento da mãe me despertar uma enorme indignação, durante uma supervisão comecei a me dar conta das minhas dificuldades de seguir o tratamento dela e do bebê devido aos sentimentos contratranferenciais que este caso estava me causando.

Durante os atendimentos psicológicos na Enfermaria, Marcos freqüentemente começava a chorar, não sendo atendido por sua mãe. A mesma parecia estar distante, absorta em seus pensamentos. Quando intervenho, dizendo que o bebê precisava de sua atenção para se acalmar, ela realiza uma gesto meio distraído (começa a dar “tapinhas” na barriga do bebê) para consolar o filho, não olhando para a criança e logo depois desistindo. A minha vontade naquele momento era pegar a criança, cantar e tentar preencher o papel de uma mãe “suficientemente boa”, no entanto este gesto tranqüilizaria o bebê apenas naquele momento, e depois? Como seria quando voltasse para casa? Outro fato que me preocupava bastante era o de que ela estava grávida novamente, sendo observado durante seus relatos que a gravidez era completamente rechaçada. Frente à ausência de acompanhamento pré-natal, agendamos (Serviço Social e Psicologia) uma consulta para avaliação do estado gestacional, porém ela se negou a ir na consulta e ainda atuou em relação ao agendamento dizendo que não foram buscá-la e que havia sido maltratada no refeitório do hospital, sendo esse último o motivo de seu “sumiço” na hora de ir à consulta.

Comecei a observar essa conduta da mãe e a levantar uma questão importante para o diagnóstico: é como se essa mãe não escutasse o seu bebê, por que ela tem dificuldades de olhar e escutar o seu filho?

Desde então, tentei me aproximar mais da mãe e entender sua história e o porque dos maus-tratos em relação ao filho. No primeiro momento ela teve dificuldades de falar sobre si mesma, parecendo não confiar em mim, mas com o tempo e a minha persistência, apesar de sua pouca receptividade, ela começou a se abrir comigo. Descobri que ela mesma tinha sido uma criança maltratada. Sua família era muito pobre e desde cedo ela trabalhava como papeleira (posteriormente foi descoberto, através do Conselho Tutelar, que Marta apresentava história de prostituição). Relatou que sempre quis sair de casa, devido às agressões físicas que sofria por parte de seu pai, que “bebia muito”. Contou que teve outro casamento, aos 15 anos, sendo que desse casamento nasceram outros dois filhos. A mesma não quis falar a respeito deles, apenas disse que a menina (de sete anos) morava com ela e que tinha mais um filho (de doze anos), que residia com a avó paterna. Quando ressaltei que devia ser muito difícil para ela sustentar uma família tão grande, a mesma relata que a avó paterna ajuda financeiramente, porém as duas “não se dão bem”.

Em intervenção com o pai, o mesmo refere que foi abandonado por sua mãe biológica quando nasceu, sendo deixado aos cuidados da tia, que chama de mãe. Demonstra grande raiva e descontentamento com sua mãe biológica, que reside no fundo da casa de sua mãe de criação. Quando pergunto como é sua relação com ela, Fernando diz que só a cumprimenta, não mantendo contato.

Juntamente com meu supervisor, resolvemos adotar um método de observações contínuas da relação mãe/bebê, com o principal objetivo de ajudar a mãe a reconhecer as necessidades e mensagens de seu bebê, apontando a repetição do seu passado no presente, na relação com seu filho.

Comecei a visitar mãe e filho diariamente, escutando e apontando as dificuldades na formação do vínculo mãe/bebê. Realizava intervenções nos momentos em que a mãe falava a respeito de suas dores, apontando que ela poderia e tinha potencial para fazer algo diferente com seu filho, não precisando repetir o que seus pais faziam com ela. Apontava que muitas vezes seus gestos em relação ao filho deveriam vir acompanhados de um olhar em relação a ele, ressaltando que era importante que a mãe se aproximasse cada vez mais de seu filho para tentar conhecer melhor seus sinais e pedidos.

Ela começou a se interessar um pouco mais por seu bebê nos momentos difíceis, como por exemplo: acompanhava-o durante o banho e nos procedimentos hospitalares, conversava com ele quando o mesmo se agitava e se sentia desprotegido, tentando acalmá-lo de sua maneira. O bebê por sua vez respondia com amor aos gestos afetuosos de sua mãe. Apesar da melhora na relação entre a mãe e o seu bebê, a mesma precisava de um atendimento regular e diário após a alta hospitalar, para que estas mudanças não se restringissem apenas a internação.

Realizando um trabalho juntamente com o Serviço Social, entramos em contato com o Conselho Tutelar da cidade, que relatou graves episódios de negligência da mãe com os filhos. De acordo com o conselheiro, Maria tinha um filho de 18 anos, que cumpria medida restritiva de liberdade por assaltos e roubos, outro de 12 anos que possui dificuldades cognitivas e a mesma não realiza acompanhamento, e por fim, uma filha de sete anos com câncer, que é cuidada por outra família (apesar de relato da mãe no hospital de cuidar desta filha, acompanhar o tratamento sistematicamente, e também informar que a mesma estaria com a avó durante o período de internação de Marcos), bem como a existência de várias aplicações de medidas do Conselho Tutelar sem o acompanhamento adequado desta. Em contato com Assistente Social do Fórum de Passo Fundo, esta reitera tais informações, destacando o comportamento da mãe, bem como suas características maltratantes em relação aos filhos. O pai comporta-se como porta-voz de alguns comportamentos negativos da esposa, expondo a relação conjugal de forma fragilizada, sem um compartilhamento adequado das tensões experenciadas durante a internação. Parece mais afetivo e preocupado com o filho, mas apresenta o mesmo comportamento confortável na Enfermaria.

Em discussão da Equipe de trabalho, foi definido que Marcos deveria ser transferido para sua cidade, devido à superlotação da enfermaria. Juntamente com meu supervisor, com o Serviço Social e com a equipe médica foi tomada a decisão de não comunicar aos pais os fatos que foram descobertos, com o objetivo de evitar maiores atuações e até uma provável fuga dos pais do hospital, ficando esta abordagem para o momento de alta.

No dia da alta hospitalar, após cinco semanas de internação, realizei uma intervenção com a mãe apontando sua melhora no relacionamento com o filho e da importância da permanência de suas atitudes positivas para o desenvolvimento sadio da criança. Após, falei a respeito das informações que o Conselho Tutelar havia passado para nossa equipe, informando que sua família continuaria sendo acompanhada pelo mesmo e pelo Fórum da cidade de origem após seu retorno. A mãe permaneceu calada a maior parte do tempo, porém enfatizava que “sabia cuidar bem de seu filho”. Sugeri que após o retorno à sua cidade seria importante que tivesse alguém para conversar, como fazia comigo, sugeri então que ela começasse um tratamento psicológico. Marta disse que tinha vontade de conversar mais tempo com alguém, aceitando o encaminhamento.

Entramos em contato com Hospital, Conselho Tutelar e Fórum da cidade com o objetivo de acompanhamento de Marcos e de sua família, avaliando na cidade, a situação de guarda da criança frente à vulnerabilidade da sua relação com os pais. É importante indicar que a criança necessitará de cuidados especiais no tratamento das lesões de queimaduras (curativos, não exposição ao sol, uso de malha na cabeça, etc.), bem como um vigilante acompanhamento dos serviços caso defina-se o retorno com os pais.

O encaminhamento para a Avaliação pelo Conselho Tutelar tem como objetivo principal a realização detalhada de investigações sobre os cuidados referentes a saúde das crianças e adolescentes sob a guarda do casal, com a função de protegê-los de futuros riscos para com a sua saúde. Entendendo a gravidade do ocorrido e os riscos de novas exposições solicitamos o acompanhamento urgente para esta família, podendo, assim, avaliar e minimizar novos ciclos de maus-tratos que se demonstram recorrentes nos filhos e também no bebê que está para nascer.

 

Considerações finais

Na situação acima descrita, qual foi a importância da presença do psicólogo ao lado desta mãe e de seu bebê?

É fundamental que se olhe a mãe e seu filho de forma clara, e muitas vezes carinhosa, amorosa, como emblema deste self. Superar a imagem rompida da mãe e conseguir escutar o que está por trás de suas atitudes em relação ao filho. Criar um holding, ser pai e mãe suficientemente bons, tanto para o bebê quanto para a mãe, se apaixonar por nossa função e por esta criança, encontrar vida num lugar rodeado de morte.

Como fazer?

Acredito que cada pessoa, com o tempo consiga encontrar o seu jeito para lidar com estas situações. Em relação à criança é fundamental que o profissional esteja disponível, conte histórias, sorria, segure a mão, dar um beijo, poder tocar, sem se amedrontar, poder brincar e criar a cada encontro. É necessário que se esteja disponível para as angústias da mãe, tentar não julgar nem rechaçar, sem ao menos conhecer a história da paciente. Ajudar até mesmo a limpar a ferida enquanto sangra no banho, acompanhar a mãe e conseguir fazer com ela também consiga enxergar e limpar suas feridas. Suportar nosso próprio sofrimento.

Marcos e sua mãe sobreviveram, com suas tristezas e cicatrizes, reencontraram em parte seu jeito, aceitando as modificações, não desistindo de viver e aprendendo a lidar com as mudanças (boas e ruins) que um acidente como este pode trazer.

Mesmo com a quebra do setting tradicional, sem a privacidade desejada, ainda assim vamos em frente, tentando criar condições, pois o que define a psicoterapia não é o ambiente em que ela é desempenhada, mas sim o encontro dos desejos de seres humanos que precisam desta interação com profissionais que se apaixonam por sua práxis e por sua particularidade. Nossa prática é a criatividade, emergida da singularidade de cada novo atendimento.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: cacamarocco@ibest.com.br

 

 

* Residente de Psicologia do Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre.
1 Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos pacientes e familiares.

Local de Origem onde foi realizado o trabalho: Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre

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