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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH v.8 n.1 Rio de Janeiro jun. 2005

 

ARTIGOS

 

O discurso do paciente portador de artrite reumatóide: ecos da dor1

 

 

Lenice Pimentel2

Universidade Federal de Alagoas

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente texto tem como objetivo identificar as possíveis representações da dor nos sujeitos portadores de Artrite Reumatóide a partir do discurso. Entendemos que o sujeito que fala, fala de si e, assim, revela sua dor que se estrutura no plano individual e atende, também, as características da tipologia da dor ou de predisposições particulares, além de iatrogenias diversas. O grupo “Desenhando a Vida” oferece espaço relevante para expressar os ecos dessa dor. Abordar o tema da dor na reumatologia é dever ético da Psicologia da Saúde.

Palavras-chave: Representação, Dor, Artrite reumatóide.


ABSTRACT

This current text aims to identify the possible pain representations in subjects carriers of Rheumatoid Arthritis, deriving from their speeches. We understand that the subject, who speaks, speaks of himself and, therefore, reveals his pain, which becomes structured at an individual level, and attends also to the characteristics of pain typology or of particular predispositions, besides several iatrogenies. The group “Designing Life” offers a relevant space that allows to express the echoes of that pain. To approach the subject of pain in Rheumatology is an ethic duty of Health Psychology.

Keywords: Representation, Pain, Rheumatoid arthristis.


 

 

[...] Sou mentido pela linguagem. Mas em meu corpo, exilado da linguagem, algo dói, algo sofre: Falo, e as palavras que digo são um som; Sofro, e sou eu.

Fernando Pessoa

 

Introdução

A dor está enraizada na história da humanidade e, desde sempre, a ciência tem se ocupado em extinguir os ecos desse sofrimento. O ser que sofre emite seus gemidos, olhares, expressões porque, de fato, na dor, algo fica fora da linguagem. No trabalho com pacientes crônicos, aqui, especialmente o portador de artrite reumatóide, entender a dor significa abrir espaço para a participação do sujeito, para o seu discurso. A literatura mostra que, no processo de adesão, é preciso partir do saber do paciente: qual sua percepção da doença; qual o seu percurso em busca do tratamento (Kaufmann (1988), Melo Filho (1988), Silva (1994), Paiva (1994). É preciso reconhecer esse saber único adquirido no cotidiano. Como é esse saber ainda não-sabido? Como falar da dor quando esta, ao lado do amor, é colocada como paixão da alma?3

Frente às várias questões que o tema da dor impõe à comunidade científica, pesquisadores da Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP), num lúcido artigo (1967), associam seus aspectos objetivos e subjetivos e assim definem a dor: “ é uma experiência desagradável, sensitiva e emocional, associada com lesão real ou potencial dos tecidos ou descrita em termos dessa lesão” (Merskey, 1982. Apud Mello Filho, 1992:165).

Nessa definição, além do aspecto lesional, há espaço para que o paciente possa interpretar sua dor como a dor que deveras sente. Ao ressaltar o aspecto emocional da dor, a definição da IASP traz à cena o sujeito com sua singularidade. A dor é uma experiência única e intransferível. “A dor é minha, não é de mais ninguém. [...] A dor é de quem tem.”4

Tomar conhecimento de uma doença crônica desancora o sujeito de sua rotina e o faz mergulhar no sofrimento com seus inúmeros significados simbólicos. A artrite reumatóide desenterra o fantasma de ser atingido na imagem corporal e isso pode provocar, além do sofrimento no corpo, o sofrimento psíquico que deixa o sujeito imerso no desamparo, medo, culpa, vergonha. A doença é uma ferida no narcisismo humano e o expõe na sua fragilidade e na iminência de não-ser-mais-para-o-outro.

Ângelo Papi (1965), falando sobre as doenças auto-imunes ou auto-agressivas, entre estas a artrite reumatóide, diz que quem faz uma doença do colágeno não é exatamente quem quer, mas quem pode, quem tem predisposição genética para tal. A artrite reumatóide, doença multifatorial, é influenciada por situações de estresse e por fatores psicossociais em todo seu processo. Os aspectos psicossomáticos estão fartamente presentes na literatura referente à artrite reumatóide. Solomon (SOLOMON, G.F. Psychoneuroimmunologic approaches to research on AIDS, Ann.New York Academy Sciences, n.496, p. 647, 1987.) associa o seu desencadeamento aos fatores estressógenos, às falhas dos mecanismos adaptativos nos indivíduos com distúrbios imunológicos e possíveis alterações prévias de personalidade. Devemos também ressaltar os estudos de Halliday (1942), (HALLIDAY, J. Psychological aspects of rheumatoid arthritis, Proc. Royal Soc. Méd., n. 35, p. 455, 1942) que descreveu esses pacientes como reprimidos na sua vida afetiva. A agressividade é controlada. Os sentimentos hostis inconscientes são “contidos” no nível músculo-ósteo-articular. São tímidos e quietos. Comportam-se como “pássaros domésticos” . A dor de não poder “voar” está presente no discurso desses pacientes. No retorcido das juntas, as escalas, questionários, entrevistas e exames técnicos não dão conta do total dessa dor que se alonga para o invólucro da subjetividade causando sofrimento, sentimento de inutilidade, auto-estima rebaixada, medo de não-ser confirmado pela limitação no corpo. Ecos de dor se fazem ouvir:

Sentia muitas dores. Não gosto nem de lembrar” (V. 18 anos, fem).

Parar de andar é a pior coisa do mundo” (O. 36 anos, masc).

“Isso deixa muita marca; eu tô com muita marca. Não vou comentar porque não quero voltar ao que era” (C. 45 anos, masc).

Nesses relatos percebemos que a dor não é apenas uma referência ao corpo, mas uma ameaça ao eu psíquico. Essa dor que é registrada pelo ego ameaça a integridade funcional do organismo. Freud (1950 [1895]) já dizia que a dor “deixa atrás de si rastros permanentes nos neurônios das lembranças”. Assim, cada sujeito, com suas lembranças, torna a dor pessoal, tramada com os fios peculiares de sua história, sua criação, sua etnia, sua personalidade, seu contexto, seu momento. A dor é uma inscrição única e, por isso mesmo, o sujeito que a porta deseja não apenas ser visto e examinado, mas também ser ouvido, ser entendido na sua linguagem. A dor deseja fazer-se ouvir, e o eco recebido, ou não, pelo ambiente, decifrado. A dor é um texto a ser lido. Nela temos um rascunho de uma história que grita e, ao mesmo tempo, silencia num estrondoso apelo.

Tomar o paciente em seu discurso, no seu saber é reconhecer sua subjetividade; conseqüentemente o paciente/sujeito colabora melhor com seu tratamento pois desenvolve uma postura ativa. O paciente é quem melhor sabe falar de si. Entendendo o que se passa no corpo e na alma, eles podem se responsabilizar pelo tratamento, definindo uma melhor qualidade de vida. O saber sobre a doença, sempre discutido no grupo “Desenhando a Vida”, restitui ao doente a condição de sujeito de sua própria história.

Mais uma vez ouçamos o discurso desses sujeitos para nos assegurar de que essas vozes os representam:

“A vida é o bem mais precioso que alguém pode ter. Quando tava no hospital achava que não ia mais sair da cama” (E. 21 anos, fem).

“... meu sentimento é de vida; não se curvar à doença. Enfrentar a doença e a vida; erguer a cabeça, depois da tempestade vem a alegria . (G. 55 anos, fem).

“Tinha medo de morrer” (M. 28 anos, fem).

Esses são alguns fragmentos dos numerosos relatos produzidos pelos participantes do grupo e que expressam não só a dor e o medo mas, também a esperança de construir recursos adaptativos para uma melhor forma de lidar com a doença crônica. Segundo Loduca (Apud Carvalho,1999:198), “a dor crônica afeta globalmente a vida de cada sofredor, gerando limitações e desequilíbrios no âmbito físico, emocional, familiar, social e de trabalho.” Para tanto é necessária uma abordagem multidisciplinar a esse paciente.

Dar voz ao sujeito para que fale de “sua” doença permite que este se represente, ou se apresente novamente, frente a si mesmo e ao outro, garantindo que “o ativamento das representações contemplará a realidade sendo realizado a partir de dentro é função da linguagem, se o sistema w5 fornece qualidade à percepção, a fala fornecerá qualidade ao pensar, ativando as representações.” (Freud, S. (1987:314). O grupo funciona como mola propulsora para colocar em ação esse processo.

Os ecos que se fazem ouvir no grupo não são vazios. O efeito da significação desse discurso toma forma na representação advinda da pulsão e o sujeito é aí representado. O que é representado do sujeito na doença? O que se repete no eco da dor? A esse respeito Freud (1987) acrescenta: “nossos próprios gritos conferem ao objeto seu caráter”. O eco que se faz ouvir traz algo do afetivo para o campo da dor. A doença, assim, assume uma representação singular em cada narrativa.

 

Objetivo

Identificar a(s) representação(ões) da dor nos sujeitos portadores de artrite reumatóide a partir do discurso, procurando:

• Compreender como a doença, com sua dor, é vista pelos sujeitos que participam do grupo “Desenhando a Vida”;
• Aproveitar o saber que o paciente portador de artrite reumatóide tem sobre o seu adoecer.
• Destacar o sujeito com o seu saber.

 

Metodologia

Sujeitos / Instrumento

Para a realização da pesquisa, foram entrevistados 15 sujeitos participantes do grupo “Desenhando a Vida”, grupo aberto, desenvolvido no Hospital Universitário Dr.Alberto Antunes, da Universidade Federal de Alagoas, a partir de uma entrevista semidirigida e anotações durante a ocorrência do grupo. O critério de escolha da amostragem foi a freqüência ao grupo. A amostra consta de pessoas do sexo feminino, prioritariamente, e pessoas do sexo masculino.

Procedimento para coleta de dados

O grupo “Desenhando a Vida” já funciona há quatro anos. Os pacientes portadores de artrite reumatóide têm a liberdade de freqüentar as reuniões, ocorridas uma vez por mês, como parte do atendimento ambulatorial. Os pacientes selecionados foram contactados e convidados a participar da pesquisa. Dado o consentimento, através do termo de consentimento livre e esclarecido, conforme resolução nº 196, as entrevistas foram realizadas e as anotações no decorrer das atividades no grupo prosseguiam. As entrevistas, escritas, foram analisadas qualitativamente a partir de categorias estabelecidas com base no objetivo do estudo e no conteúdo emergido das respostas. No grupo, o espaço para a fala é livre. As entrevistas e as tarefas realizadas no grupo tiveram a colaboração de estudantes de Psicologia, devidamente supervisionados. O grupo “Desenhando a Vida”conta com a colaboração da médica reumatologista, sempre presente às reuniões.

Procedimento para análise de dados

As entrevistas foram analisadas buscando aproximar o conteúdo manifesto do conteúdo latente presente no discurso. Do que era dito procuramos ouvir o que resvalava do desejo em suas metáforas e metonímias. Nas linhas e entrelinhas do discurso observamos sonhos e projetos a serem vividos.

O corpo, em seu estatuto psicanalítico, é palco de toda a história do sujeito que, ali, na instituição hospitalar, expressa sua dor para um Outro que acredita poder decifrar seu sofrimento. O grupo partilha experiências e ouve “palavras que jamais foram ditas, que ficaram no fundo dos corações (perscrute seu coração:elas estão lá); é preciso fazer com que os silêncios da história falem.6 Ouvindo o dito e o não-dito, levantamos questões importantes a respeito do modo como os portadores de artrite reumatóide falam da dor crônica que lhes pertence e que marca suas identidades.

A análise das entrevistas e das anotações advindas do grupo enfatiza a particularidade de cada sujeito sem esquecer que este se encontra remetido a uma cultura feita de palavras. Passemos às categorias encontradas:

1. O sujeito e a doença;

2. A doença crônica como ameaça ao Eu;

3. Desafio diário;

4. Limitações no corpo.

Os dados, feitos de palavras, nos remetem aos escritos de Freud (1987[1893]) sobre a histeria, na sua articulação com os fenômenos psíquicos, quando define um estatuto psicanalítico para o corpo. Esse corpo é imaginado e representado, tendo na palavra a mediação entre o somático e o psíquico. A palavra, assim, estende para o corpo o que se passa no psiquismo. É o “misterioso salto da mente para o corpo” de que falava, desde os seus primórdios, a psicanálise.

 

Resultados e discussão

Os dados foram analisados individualmente na tentativa de organizar as verbalizações produzidas pelos sujeitos na situação de entrevista e na sua expressão dentro do grupo “Desenhando a Vida”.

As categorias organizaram-se a partir do próprio conteúdo coletado e foram assim dispostas: “O sujeito e a doença”, “A dor como ameaça ao Eu”, “Desafio diário” e “Limitações no corpo”.

A dor é um evento inerente à condição humana. Pimenta (Apud Carvalho.1999:32) afirma que “a dor crônica, de modo geral, é muito desabilitadora.[...] As respostas físicas, emocionais e comportamentais advindas do quadro álgico podem ser atenuadas, acentuadas ou perpetuadas pelas variáveis socioculturais e psíquicas do indivíduo e do meio”, ou seja, a doença é uma inscrição pessoal.

1. O sujeito e a doença

O paciente reumático deseja, além da exposição do corpo para os exames, ser ouvido na sua história do adoecer. No discurso desses sujeitos aparece algo muito mais profundo do que as marcas próprias da doença: as defesas contra o aniquilamento. O paciente deseja ser ouvido, “ser entendido na sua linguagem oculta” (Calil, 1995:12). A situação de doença gera tensões psicológicas e desequilíbrios, no sujeito e na família. Freitas (1980) acrescenta: “As reações de cada paciente são ditadas pelo seu mundo interno, pela sua história psicossocial e do seu contexto familiar. Há uma série de fatores que podem determinar dinamicamente formas de estar doente.7

Apesar das diferenças individuais, as situações reais ou imaginárias permeiam a vida psíquica gerando ansiedade. Simonton (1987) diz que a doença não é só física, mas diz respeito à pessoa como um todo, às suas emoções e à mente, e que o estado emocional é fortemente relacionado à doença, influindo na sua recuperação. Na relação com a doença, o sujeito revela o seu sofrimento como vemos nestas marcas do discurso:

No começo eu não aceitava.. Sentia muitas dores nas juntas. Fiquei revoltada com a situação... Passei por momentos terríveis, desenganada eu falhei e não aceitava” (C. 36 anos, fem).

“Tive apoio em Deus. Através desse apoio foi que consegui superar” ( ML . 42 anos, fem).

“A vida é o bem mais precioso que alguém pode ter.Quando tava no hospital achava que não ia mais sair da cama” (E . 21 anos, fem).

O sujeito sofre a sua dor. No início aparece a revolta, um dos estágios emocionais pelo qual passa o sujeito doente, conforme indica os estudos de E. Kübler-Ross (1996), para depois, na singularidade do adoecer, ceder lugar ao enfrentamento. O sujeito pode, apesar da doença, fazer a opção pela vida. A artrite reumatóide, doença crônica, oferece duas opções ao sujeito: entregar-se ao luto ou refazer-se para saber lidar com as perdas impostas pelo diagnóstico. À medida em que se fala da doença, ela perde, em grande parte, seu poder ameaçador. Isso é favorecido no grupo. “O grupo dá aprendizagem; troca de experiência” (C. 36 anos, fem.); “Foi importante porque teve espaço de falar” (O. 36 anos, masc.); “No grupo eu aprendi a dizer: eu posso, eu devo, eu preciso” (G. 56 anos, fem.);”Faz bem para o ego e saio daqui renovada” (E. 21anos, fem.).

2. A doença crônica como ameaça ao Eu

A doença, com suas dores, representa um ataque ao narcisismo do sujeito. A doença, aliada de Thanatos, provoca uma certa descontinuidade na vida. O medo da morte, medo de não-ser-mais-para-alguém, é avassalador no sujeito que se sabe portador de uma doença crônica. No entanto, como já foi mencionado, a doença se apresenta diferentemente para cada sujeito. Cada pessoa traça seu próprio risco que borda e reborda com os fios de sua história, apertando os nós, ou as juntas, conforme a narrativa.

Perestrello (1982), nos ensina:

A doença não é algo que vem de fora e se superpõe ao homem, e sim um modo peculiar de a pessoa se expressar em circunstâncias adversas. É, pois, como suas outras manifestações, um modo de existir, ou de coexistir, já que o homem não existe, coexiste. E como o ser humano não é um sistema fechado, todo o seu ser se comunica com o ambiente, com o mundo, e mesmo quando, aparentemente, não existe comunicação, isto já é uma forma de comunicação, como o silêncio, às vezes, é mais eloqüente do que a palavra.” (Apud Campos, 1995:48)

A doença, assim, desestabiliza o Eu e o faz entrar em crise. Nos relatos dos sujeitos pesquisados, procuramos apreender como seria essa ameaça ao Eu, como é esse bicho-doença que faz limite no corpo e na alma. Às vezes essa representação é mais clara; outras vezes, mentido pela linguagem, algo dói, faz eco e escapa para reaparecer no desfiladeiro da linguagem que traz a marca da dor, do afeto reprimido, da dor de não-ser-mais-saudável. O que o discurso deixa escapar? Vejamos:

“Eu tinha medo de não poder mais andar...” (M.L.S. 43 anos fem.).

“Eu percebi que tinha medo de falar, de me expor. Eu só pensava em doença” (O. 36 anos, masc.).

Não estou pronta para falar dessas coisas” (V. 17 anos, fem.)

A negativa é a forma encontrada para falar do inominável. Não falando, ficando quieta, se tem a ilusão de que a doença não existe. Para ela não se olha. O medo aparece como a representação maior da ameaça ao Eu. Não poder andar, ficar tomado pela doença, não poder viver, não estar pronta para esse enfrentamento é a forma que esses sujeitos têm para expressar a dor.

3. Desafio diário

Essa categoria demonstra a luta diária desses pacientes para superarem as limitações que a doença impõe. Silva (1994), define esse paciente como sofrendo de si mesmo, especialmente as mulheres, que reprimem por demais a agressividade. Nesse sentido, o esforço para canalizar os impulsos agressivos para atividades socialmente valorizadas é um verdadeiro desafio. Muito é exigido do nível consciente. Coloquemos em cena a fala dos sujeitos:

“Tenho medo de ofender e que alguém tenha alguma coisa contra mim. Mesmo que tenha que pagar o preço. O meu escape é chorar” (C. 36 anos, fem.)

“Quero aprender a fazer coisas pra minha vida e para outras pessoas” (M. 32 anos, fem.).

Vale ressaltar que, além desses fragmentos de discurso, o grupo “Desenhando a Vida” sempre foi mencionado como de fundamental importância para essa labuta. “O grupo me ajudou a não querer desistir, a conquistar as coisas e enfrentar os desafios”(R). Ou: “O grupo é como um alimento da alma; quando não venho à reunião, perco o alimento do mês” (G).

Isso demonstra a importância do grupo com a sua forma de favorecer trocas e incentivar atitudes positivas diante da vida.

4. Limitações no corpo

Limitados pelas juntas retorcidas, pelas próteses ou pela mente, os pacientes portadores de artrite reumatóide soltam o seu “grito” na esperança de que o eco seja acolhido na sua qualidade afetiva. Os estudos de Halliday (1942-Apud. Mello Filho, 1992:142), descrevem esses pacientes como “pássaros domésticos”. Engaiolados, não podem voar. Não podem expandir os movimentos rumo à liberdade. Ficam quietos, tímidos e controlados. Vejamos os relatos:

“Queria poder ir à praia. Tenho vergonha” (V. 18 anos, fem.).

“Tinha medo de não poder mais andar” (M.J. 31 anos, fem.).

“No grupo enxerguei que existem outras pessoas com a mesma doença” (A. 24 anos, fem.).

Nos relatos observamos como as limitações no corpo produzidas pela artrite reumatóide expressam um mundo circunscrito pelo fantasma da locomoção. A imagem corporal fica comprometida e muito suscetível a se romper. Essa imagem, por ser dinâmica, pode ser reconstruída. No grupo “Desenhando a Vida”, ouvimos os ecos desse desejo: “Devemos andar pra frente” (H.); “O calor das pessoas do grupo e das doutoras me ajudam a conviver melhor com a doença. (O.); ou: “O amor é o complemento de nossa vida. Sem amor a gente seca e morre”(E.).

E assim, frente à dor, o sujeito sofre ao ver seu projeto de vida ameaçado. As perdas exigem que se reformule o conceito de vida.

 

Tecendo as considerações finais

Estar atento para a interação psiquismo/corpo remonta aos primórdios da Medicina e da Psicologia e uma das formas de entender essa interação é através da linguagem, uma vez que o ser humano é um ser simbólico. É com a linguagem que ele realiza suas intermediações com a realidade. Groddeck (1991) declara “ que o homem teria recebido a palavra para dissimular seus pensamentos.” Embasados na visão psicossomática acerca do adoecer, pudemos escutar os ecos de dor do paciente portador de artrite reumatóide atendido no grupo “Desenhando a Vida”, que descreveu seus embates entre vida e morte.O homem sempre lutou com sua doença, lutou para manter a vida, enfrentando as manifestações do adoecer próprias a cada época e cultura. Se a doença é um inimigo a ser enfrentado, a linguagem, entendemos, é um suporte para ouvir a dor que o adoecer provoca no sujeito. Introduzir a dimensão do ouvir no ambiente hospitalar é alargar os horizontes desse espaço e trazer o psiquismo do doente para se reunir com o corpo que porta o sintoma.

Abordando as categorias: “O sujeito e a doença”, “A doença crônica como ameaça ao Eu’, “Desafio diário” e “Limitações no corpo”, possibilitamos que o discurso proferido tomasse sentido e inscrevesse esse sujeito no campo pulsional. A doença é crônica, repete-se a cada dia. Já é fato. Assim, a linguagem é solicitada para juntar os conteúdos significantes de uma história de vida.

Através do discurso, nas situações de entrevista ou de vivências no grupo, o sujeito se representa e a fala, segundo Green (1976:37), “é mediação entre corpo e linguagem, mas é também representação de relações, meio de linguagem entre mundos objetivos e subjetivos.” Nessa mediação, o sujeito fala e fala de si através dos tropeços da linguagem.

Rastreando as categorias indicadas, podemos dizer que o portador de artrite reumatóide tem as tintas para desenhar sua vida.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
E-mail: lenicep@uol.com.br

 

 

1 O trabalho com o paciente de Artrite Reumatóide, desenvolvido no Hospital Universitário da Universidade Federal de Alagoas, conta com a colaboração da Dra. Heloísa Vital e dos alunos de Iniciação Científica do Curso de Psicologia.
2 Psicóloga e Professora com doutorado. Supervisora de Estágio em Psicologia Hospitalar na Universidade Federal de Alagoas.
3 A concepção da dor como uma paixão da alma é de Aristóteles.
4 Fragmentos de uma música da MPB. Autoria de Marisa Monte e Arnaldo Antunes
5 w (Ômega): Designação dada por Freud para o sistema de memória perceptiva. “Projeto para uma psicologia científica”. (1987[1950/1895]:314)
6 Michelet, Jules. Journal, 30 de janeiro de1842.
7 FREITAS, Sandra M. de S. “A criança e a doença: depoimentos de uma ex-psicóloga do hospital do câncer. Psicologia Atual.

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