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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH v.8 n.2 Rio de Janeiro dez. 2005

 

ARTIGOS

 

Psicologia hospitalar e eutanásia

 

 

Taisa Ferraz da Silva Cruz*

Sociedade Brasileira de Psicologia Hospitalar

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo traz reflexões acerca de um tema considerado polêmico: a eutanásia. Para tanto, discute algumas leis acerca do mesmo, destacando seus aspectos éticos, e questiona o papel do psicólogo hospitalar frente a pacientes com doença em estágio terminal que possam solicitar procedimentos considerados eutanásia. Para tal questionamento não há, ainda, respostas definitivas, mas sim caminhos que, certamente, conduzem a elas.

Palavras-chave: Eutanásia, Dignidade, Ética, Psicologia Hospitalar.


ABSTRACT

This article brings up reflections about a polemic theme: the euthanasia. For this, it discusses some laws related to the theme, emphasizing their ethical sides, and argues the role of the health psychologist facing pacients with disease in terminal stage who could ask for procedures considered as euthanasia. There are yet no conclusive answers for this question, but only ways that certainly lead to them.

Keywords: Euthanasia, Dignity, Ethics, Health Psychology.


 

 

A palavra eutanásia tem origem grega e significa “boa morte”, podendo ser compreendida como morte serena e sem sofrimento, ao contrário de seu antônimo distanásia, uma morte lenta, ansiosa e com muito sofrer.

De acordo com Ferreira (1995, p.281), eutanásia é a “prática, sem amparo legal, pela qual se busca abreviar, sem dor ou sofrimento, a vida de um doente reconhecidamente incurável.”

Desde 1993, existe, na Holanda, uma lei que aceita a eutanásia em condições controladas, quais sejam, a de que o paciente em questão “é incurável, sofre dores insuportáveis e pediu reiteradamente para morrer” , segundo Sanvito (1997, p.67).

Para além de uma discussão sobre ser contra ou a favor da eutanásia, está aquela que se refere ao direito do indivíduo de exercer sua liberdade de escolha também no momento da morte e, assim, poder decidir quando e como morrer, já que sua vida lhe pertence e a morte é o ápice da mesma. A responsabilidade pela própria vida será o pressuposto básico do presente artigo, fundamentado em princípios do Existencialismo, já que um aprofundamento em outros campos teóricos extravasaria o tema central deste trabalho que tem como objetivo único o levantamento de questões promotoras de reflexão acerca de um tema ainda visto como tabu: a eutanásia.

Sendo assim, segundo o Existencialismo, o ser humano é um ser essencialmente livre e, sendo livre, é responsável por todas as suas escolhas, que estão inclusas em um universo de possibilidades.

Diante da morte, a possibilidade de escolha é reduzida a viver ou morrer. Considerando que a própria vida é de responsabilidade do ser vivente, não poderiam os seres humanos escolher como e quando querem morrer? Afinal, a morte revelaria a integridade da vida, manifestando o sentido da mesma, visto que, somente ao vivenciar sua própria finitude, o homem alcançaria a totalidade e a plenitude de sua humanidade, refere Brugger (1969). Deste modo, num momento único como a morte, não teria o homem o direito de morrer com dignidade, sendo respeitado em seu último desejo, mesmo que este envolva alguma prática considerada eutanásia, que a nada mais serviria além de evitar sofrimento desnecessário?

Segundo uma lei da América do Norte, a PSDA (The Patient Self Determination Act), o indivíduo adulto tem o direito, ante a possibilidade de entrar em fase de terminalidade (fase em que o paciente morrerá num espaço de tempo de 3 a 6 meses, independentemente de ações médicas que possam ser colocadas em prática), de empreender uma manifestação antecipada e por escrito a respeito do tipo de tratamento por ele preferido, bem como relativa à aceitação ou não de meios que prolongarão sua vida como, por exemplo, um respirador artificial. É importante notar que esta lei pode conceber, preconceituosamente, a idéia de que o paciente terminal (que poderemos melhor denominar como estando Fora de Possibilidades Terapêuticas) é, invariavelmente, incapaz de tomar decisões, fato pelo qual a escolha sobre seu tratamento deva ser tomada antecipadamente. Entretanto, a PSDA tem seu mérito centrado no respeito à autonomia do paciente. Aliás, se se detém, especificamente, ao termo paciente (aquele que é passivo), a lei americana garante que, ao menos em determinado momento de sua doença, o indivíduo terá algum controle sobre o que farão com ele no hospital, de modo que seus direitos de ser respeitado e de morrer com dignidade sejam atendidos.

Ainda de acordo com o que versa a PSDA, o médico tem a obrigação de informar ao paciente sobre seu direito de aceitar ou não o tratamento que lhe está sendo proposto. No entanto, o fato de fornecer esta informação não deve ser confundido com o ato de impor determinada decisão ao paciente, caso ele não queira decidir naquele exato momento ou não esteja emocionalmente preparado para tal. A PSDA pode ser considerada uma lei ética na medida em que considera que a decisão acerca do tratamento deve visar, primordialmente, um resultado satisfatório para o paciente, de acordo com o que ele considera melhor para si próprio. Neste instante, porém, uma questão de extrema importância deve ser levada em conta: como pode o paciente tomar uma decisão antecipada a respeito de uma situação ainda não vivenciada? Pois é claro que aquele indivíduo que escolhe, antecipadamente, seu tratamento futuro não é, existencialmente, o mesmo ser humano que, em breve, estará vivenciando seu processo de morrer. A PSDA pode, também, dar margem à idéia de eutanásia, na medida em que, ao permitir que o paciente exerça sua autonomia, optando por aceitar ou não determinado tratamento em sua fase terminal, permite, em última análise, que o mesmo opte pelo modo como deseja morrer, o que culmina no fato de poder escolher morrer serenamente, sem sofrimento, tendo uma “boa morte” (ou eutanásia, etimologicamente).

Tratando agora de Brasil, estão tramitando no Senado Federal um projeto de lei e um anteprojeto que versam sobre a questão da eutanásia. O projeto de lei 125/96 estabelece critérios para legalizar tal prática, admitindo a possibilidade de que indivíduos em grande sofrimento psíquico possam solicitar procedimentos visando sua própria morte. Já o anteprojeto legisla que, se o autor do crime (no Brasil, a eutanásia ainda é considerada homicídio e, portanto, crime) agir por compaixão, a pedido de vítima maior de idade, para lhe abreviar sofrimento físico insuportável decorrente de doença grave, a pena de reclusão é de 3 a 6 anos, conforme Art.121, parágrafo 3º. Entretanto, não considera crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, desde que a morte seja iminente e atestada por dois médicos, havendo consentimento do paciente e, caso o mesmo esteja impossibilitado, consentimento de seu ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão, segundo o artigo supracitado, parágrafo 4º.

Com tais informações em mãos, é possível que se faça um paralelo entre estes dois parágrafos do anteprojeto e os dois tipos de eutanásia conhecidos, alegando que o parágrafo 3º trata da eutanásia ativa e o parágrafo 4º, da eutanásia passiva. Sendo assim, que se verifiquem os dois tipos de eutanásia:

• Eutanásia ativa: envolve, de acordo com Sanvito (1997, p.66), “procedimento ativo do médico ou outro profissional de saúde, propiciando ou acelerando a morte do paciente”.

• Eutanásia passiva: omissão médica diante de casos considerados irrecuperáveis pelo médico. O médico opta pela omissão (a pedido do paciente ou de seu parente/cônjuge/companheiro caso o mesmo esteja impossibilitado) ao considerar que a qualidade de vida do paciente em questão será muito baixa, mesmo se houver algum grau de recuperação, ainda segundo Sanvito (1997).

Voltando a atenção, por um momento, aos médicos e à sua atividade profissional, a Medicina, é possível perceber que estes profissionais vêm de uma graduação em que apenas a cura e a vida são valorizadas. Grande parte dos médicos não sabe lidar com sua própria finitude; como lidar, então, com a morte do outro? O que fazer com a função do médico de aliviar o doente, segundo consta no Juramento de Hipócrates? Aliás, o que significa aliviar? Não é difícil imaginar o dilema por que passam alguns médicos ao terem que decidir quanto à realização ou não da eutanásia frente ao seguinte tópico do referido juramento: “A ninguém darei por comprazer nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda.” Todavia, quando se trata de eutanásia, o pressuposto médico que visa à saúde e à vida passa a ser questionado. Seria absurdo considerar que, para alguns pacientes, como, por exemplo, o que já estão fora de possibilidades terapêuticas, a morte pode ser entendida como uma espécie de cura?

Exatamente pelo sentimento de impotência diante da morte, os médicos, muitas vezes, tendem a transmitir ao psicólogo a responsabilidade de lidar com ela dentro do ambiente hospitalar já que, conforme Angerami (1997), o objetivo principal do psicólogo hospitalar é minimizar o sofrimento decorrente da hospitalização. Obviamente, uma enorme quantidade de variáveis está envolvida na hospitalização, de modo que, ao atuar no hospital, o psicólogo deve atender à demanda originária da própria patologia que ocasionou a internação (como um câncer, por exemplo), bem como, senão principalmente, àquela advinda das seqüelas emocionais decorrentes da hospitalização em si, a qual carrega em seu cerne, muito nitidamente, a possibilidade da morte.

O primeiro Princípio Fundamental do Código de Ética Profissional do Psicólogo impõe: “O Psicólogo baseará o seu trabalho no respeito à dignidade e à integridade do ser humano.” Sendo assim, qual a função do psicólogo frente a um paciente que deseja a eutanásia?

Considerando o fato de que o paciente está próximo de morte inevitável, de modo que, medicamente, nada mais há a ser feito (o que pode gerar um grau de sofrimento insuportável), cabe ao psicólogo, neste momento, a função limitada, porém de importância extremamente abrangente, de acolher os familiares e, principalmente, o paciente em sua decisão final, resguardando ao máximo sua dignidade e sua integridade como ser humano que é, respeitando, assim, o que versa o Código de Ética Profissional do Psicólogo. É importante esclarecer que, em nenhum instante, o psicólogo deve decidir pela realização da eutanásia em determinado paciente. Esta decisão cabe, única e exclusivamente, ao paciente, no exercício pleno de sua autonomia ou à família do mesmo, em caso de impossibilidade deste último. Ao psicólogo restaria, reitero o respeito incondicional ao ser humano que se encontra diante dele, vivenciando seu último ato de vida, qual seja, a morte.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Rua Bernardino de Campos, 531, ap.92 – Centro
14015-130 Ribeirão Preto - SP
E-mail: taisacruz@hotmail.com

 

 

* Psicóloga. Psicoterapeuta Existencial; especialista em Psico-Oncologia. Membro da Sociedade Brasileira de Psicologia Hospitalar

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