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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH v.9 n.1 Rio de Janeiro jun. 2006

 

 

O câncer como manifestação do não simbolizado

 

 

Caroline Brum de Oliveira*; Cristiane Rech Rosa**; Tatiana Bonatto***; Nair Macena de Oliveiro*****

Universidade do Vale do Rio do Sinos - UNISINOS

 

 


RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo problematizar a experiência de uma intervenção no estágio profissional em Psicologia no Hospital da Criança Conceição. Pretende-se, junto a isso, refletir sobre o fazer psicológico e suas implicações no que diz respeito à pratica no contexto clínico a partir do recorte do atendimento de um paciente com manifestação psicossomática. Utilizou-se o brincar como dispositivo para simbolização e meio de expressão. O referencial teórico norteador baseia-se na Psicanálise.

Palavras-chave: Manifestação psicossomática, Hospital, Fazer psicológico, O brincar.


ABSTRACT

This essay aims to question the experience of an intervention in the professional period of training in Psychology at Hospital da Criança Conceição, a public Children’s Hospital in Rio Grande do Sul. It also intends to reflect about the psychological work and its implications considering its practice in the context of a cut from the clinical attending of a patient with psychosomatic manifestation of a symptom. Playing-hour sessions were used as a mechanism of the patient’s symbolization and expression. The main theoretical reference is based on the psychoanalytical theory.

Keywords: Psychological practice, Hospital, Toy symbolism, Psychosomatic.


 

 

A relação com o Outro e a questão da Psicossomática

Antes de apresentar o caso, é importante iniciar falando de Psicossomática, já que o recorte clínico abordado se relaciona com essa manifestação. Os estudos da primeira infância já evidenciam essas afecções em crianças nos seus primeiros meses de vida devido à presença de um psiquismo pouco elaborado, não havendo outra alternativa de expressão a não ser pela via somática. Nessa fase, surge a necessidade da díade mãe-bebê, pois através desse sistema de interação há o contato direto do inconsciente da mãe com o do seu bebê, no qual a insuficiência psíquica da criança é compensada pela antecipação da mãe que auxilia a criança a organizar sistemas mentais muito precoces que amenizam o sofrimento. A mãe deve, através de seus cuidados, proporcionar ao bebê "ocasiões de identificação primária com os seus próprios recursos funcionais e com a própria organização de seu Ego" (Kreisler, 1997). Aqui, quanto mais um estado de tensão receber precocemente uma possibilidade de mentalização, sob qualquer forma que seja, mais essa mentalização confere possibilidades de integrar essas tensões sob uma forma psicológica (Soulé, 1997). Logo, dificuldades que surgem na relação da mãe com a criança podem provocar falhas na elaboração dos mecanismos mentais.

Percebe-se que como há falhas na constituição do simbólico, o sujeito com uma afecção psicossomática não possui recursos para integrar um traumatismo psíquico a não ser através de seu corpo; aqui há um silêncio simbólico e a falha na elaboração psíquica, onde o corpo se torna uma linguagem, ou seja, os órgãos são afetados devido a uma disfunção simbólica. O conteúdo que se encontra em excesso, ao invés de ser processado e representado psiquicamente, é descarregado no corpo. Por exemplo, a criança que somatiza possui dificuldades em nomear sentimentos, apresentando um pensamento operatório bastante concreto com pouca subjetividade e fantasia. De acordo com Mannoni (1999), em sua obra "A criança, sua doença e os outros", as manifestações psicossomáticas expressam a impossibilidade da passagem da angústia à expressão simbólica (p.133).

Durante o trabalho realizado no período de estágio curricular em Psicologia no Hospital da Criança Conceição com um paciente de seis anos de idade em acompanhamento durante suas internações, constatou-se, no que se refere a sua história pregressa, que o mesmo não foi planejado, ficando a mãe e a avó responsáveis pelos cuidados do bebê. O pai acompanhou apenas os primeiros meses de vida, indo morar em outra cidade, perdendo todo o contato com o filho. A mãe, após alguns anos, casou-se novamente concebendo outro filho. Essa expressa dificuldade nos cuidados maternos, tendo constantemente que apelar pela ajuda de sua mãe. O paciente passa o dia com a mãe, mas mora com a avó por decisão própria. Aqui, é importante refletir sobre a necessidade do desejo desse Outro para a constituição integral da criança, já que isso encontra-se empobrecido nessa mãe, não havendo uma antecipação desse filho.

abe-se que desde a concepção a criança é falada, já estando presente no discurso dos pais através de projetos e do desejo dos mesmos; essa já existe no imaginário dos pais e é antecipada, ou seja, genitores criam hipóteses à respeito de seu filho, para que esse aproprie-se dessas, afete-se e possa identificar-se com elas. Através do desejo da mãe, o bebê pode ir tomando corpo, corpo aqui tomado como orgânico e psíquico, constituindo-se enquanto sujeito, ou seja, vai constituindo-se psiquicamente. O desejo do Outro é fundamental para marcar a constituição psíquica e conseqüentemente do corpo da criança através de um discurso que produza significações e inscrições simbólicas, retirando-a da experiência puramente orgânica, produzindo posição desejante. Esse Outro será o lugar dos significantes, atravessado pela falta, fazendo o papel de suscitador de demanda através de uma postura interrogativa. A criança por meio desse Outro pode ir assumindo o próprio corpo como seu, como alteridade.

Em relação ainda ao grande Outro, Lacan no Seminário 11 (1998), refere que para se dar entrada ao inconsciente é necessária a separação do sujeito e do outro (inconsciente enquanto estruturado como uma linguagem), sendo esse o lugar onde se dará a cadeia de significantes. Aqui o Outro é a cultura, a lei, as regras da língua. Dessa forma, o sujeito é constituído pelo Outro, sendo a linguagem anterior ao sujeito, e é essa que constitui o corpo do simbólico (esse corpo que é posterior ao simbólico); ou seja, essa mãe enquanto Outro do significante, através de seu discurso, introduz a criança no universo da linguagem, antecedendo o sujeito da existência. Assim, na Psicossomática, a causa da lesão do órgão é um significante, onde o sujeito apenas tem um saber de seu corpo através desses significantes, ou seja, das palavras (o corpo é constituído pelo simbólico).

Lacan aponta que essa lesão pode decorrer da não existência de um intervalo entre S1 e S2, onde essa dupla se solidifica (se holofraseia), não podendo haver uma formação de sentido na passagem de um significante para o outro. Essa holofrase do par S1-S2 remete para um S1 gelificado que não representa o sujeito. Aqui há a prevalência do imaginário, já que se o significante se holofraseia, esse perde o seu valor simbólico para se tornar um signo. Por exemplo, quando se trabalha com pacientes psicossomáticos observam-se inúmeros casos de mimetismo que enfatizam o aspecto imaginário da doença. Aqui, para poderem se reconhecer, precisam se identificar com o outro.

Também, a mãe do paciente refere que passou por um período de depressão, onde ficou ausente nos cuidados maternos, e seu filho presenciou uma tentativa de suicídio da mesma; após aproximadamente um ano o paciente teve o diagnóstico de Leucemia. A partir deste fato, essa mãe relata que começou a melhorar de seu sofrimento psíquico e passou a se dedicar aos cuidados referentes à doença do filho, ou seja, o filho precisou ficar doente para a dedicação de sua mãe.

A partir daí, pode-se pensar na manifestação psicossomática do paciente como um pedido de socorro, um pedido de atenção. Observa-se que esse demonstra dificuldades de expressar suas angústias, onde o silêncio de sua fala acaba sobrecarregando o seu corpo, no caso, a formação de um câncer. Esse parece possuir poucos recursos simbólicos para verbalizar seus sentimentos, havendo também a queixa, por exemplo, de dores musculares, de coluna, de cabeça sem causa orgânica específica.

É visto que a doença de muitos pacientes hospitalizados surgiu após uma situação de perda, como uma morte na família, uma separação, um acidente, entre outros. Neste caso por exemplo, o linfoma surgiu poucos anos depois que presenciou a sua mãe tentando se suicidar. Aqui pode-se pensar que o sujeito diante de um trauma não consegue encontrar recursos para integrá-lo senão pela via do orgânico devido ao empobrecimento do simbólico. Jean Guir em sua obra "Psicossomática na Clínica Lacaniana" (1992) ilustra bem esse caso ao salientar que "os fenômenos psicossomáticos podem se manifestar a partir da perda de um ente querido na infância, onde essa separação mais tarde se repete ou é lembrada e a lesão aparece".

Para Mannoni (1999), o sintoma se encontra no lugar de uma palavra que está faltando; o sintoma mostrará uma palavra através da qual o sujeito aponta (de modo enigmático) a forma de se situar perante a toda a relação de sujeito. Também, para essa autora "o sintoma torna-se uma linguagem cifrada cujo segredo a criança conserva (…) diante disso, a verdade da criança é, muitas vezes, escondida na doença ou no sofrimento".

Atualmente, esse paciente não freqüenta a escola devido ao tratamento, está morando no interior com sua avó (sua mãe mora na vizinhança). Tem tido notícias do pai após seis anos, já que o genitor foi convocado para ser um possível doador de medula. O paciente vem realizando atendimento psicológico individual uma vez por semana durante suas internações no hospital.

Inicialmente, o paciente demonstrava-se bastante introspectivo, onde quase não dialogava, demonstrando-se tímido durante o acompanhamento psicológico. Aos poucos, foi demonstrando maior iniciativa, sobretudo, quando a mãe não estava presente; quando se encontrava sem a presença da mãe ficava mais desinibido ao diálogo. Aqui é importante refletir a importância da existência de uma falta (principalmente operada pela falta da mãe) para que o sujeito se sinta convocado a se movimentar, ou seja, sem haver um espaço para a falta seria difícil o menino poder se expressar mais.

Durante os atendimentos psicológicos, o paciente demonstra dificuldade em falar de sua doença; a mãe relatou que inicialmente mentiu sobre o estado de saúde dele. Na intenção de proteger o filho, falou para esse que tinha vermes na barriga ao invés de comunicá-lo que possuía um câncer. Também, o paciente não costuma questionar sua doença com sua família e essa última não oferece espaço para isso. Expressar-se verbalmente para essa família implicaria em falar de dor, da ferida narcísica de o filho não estar correspondendo aos ideais dos pais, e da chance de morte. De acordo com Mannoni (1999), "se respostas devem ser vedadas à criança, essa terá dificuldade em introduzir a sua questão de outro modo que não pela desordem de seu comportamento".

Pode-se pensar em relação a essa mãe na possibilidade da existência de sentimentos de culpa, principalmente, porque essa não teve recursos para desempenhar de forma satisfatória seu papel de função materna. O investimento nessa criança parece ter sido insuficiente desde sua concepção, problematizando a constituição psíquica e seus recursos simbólicos. É através desse investimento, desse olhar de desejo e suposição de um outro sujeito na criança que essa vai tomando corpo. Aí já estaria em ação algo da função paterna atuando através da mãe, porque se a mãe consegue supor na criança um outro sujeito, indica que a castração operou nela.

Também, o paciente possui dificuldades com limites. Se não conquista o que quer, entra em fúria. Seguidamente, quando tinha que internar entrava em pânico, tentava fugir, machucava quem tentasse o conter ou se auto-agredia, como por exemplo, batia em sua barriga até formar hematomas ou dizia que iria furar o olho no intuito de se matar.

Com base nisso, pensou-se na questão do transitivismo desenvolvido por Bergés e Balbo (2002), e na possibilidade de uma falha da mãe nessa questão. De acordo com esses autores, o transitivismo é instaurado pela possibilidade de a mãe supor uma hipótese em seu filho que pode circular e retornar em forma de demanda - processo que vai inserindo a criança no simbólico. Sabe-se que se a mãe consegue em seu discurso operar o ato de transitivar, a agressividade pode ser trabalhada, uma vez que a atitude da mãe acompanhada de sua fala produz marcas psíquicas na criança que a permitem proteger seu corpo. Esse ato se dá quando a mãe em sua fala nomeia as mais variadas situações para a criança, e essa última pode se identificar com tal discurso, podendo assim teorizar, construir significações e ter acesso ao simbólico. Essa criança tem a possibilidade de construir um saber diante de uma experiência. Para que essa mãe possa transitivar, precisa fazer hipóteses de um saber em seu filho, supondo nele uma demanda – fato que está falho, na relação mãe-filho, no paciente em questão. A situação de auto-agressão pode ser pensada como uma não operação do transitivismo, onde a criança desloca para o seu corpo o que não está conseguindo elaborar psiquicamente; há a busca de um limite externo ao seu corpo, de um olhar mais contingente dessa mãe. E no que diz respeito à ameaça de se matar, essa pode ser uma identificação com o ato da própria mãe de tentar se matar. Parece que nesse momento o trauma não elaborado retorna. Logo, furar o olho pode remeter a não querer ver algo, talvez não ver a cena da mãe tentando se matar.

A mãe também relata a sua dificuldade em dizer não ao filho, sente-se culpada em castigá-lo devido a sua doença - fato que impede que esse seja ativo no seu tratamento, já que é visto como um doente que não pode ser frustrado. A avó também cede aos pedidos do paciente uma vez que, mesmo com dificuldades financeiras, comprava tudo o que o menino visse pela frente. É importante refletir que o sofrimento faz parte da existência e, tentar poupar a criança dessas vivências, é prejudicá-la no enfrentamento da vida, é não produzir uma falta que possibilite que ela deseje, se movimente para a realização de seus projetos. Somente por meio dessas vivências a criança pode formar um aparelho psíquico mais fortalecido. Aqui é válido refletir também sobre o olhar da família para esse paciente, um olhar que serve de espelho, ou seja, se não há uma aposta que esse possa lidar com a frustração e assim se tornar ativo, será difícil o paciente conseguir trilhar outro caminho que não o da fragilidade emocional e da doença. Também, se essa mãe não consegue dizer não ao filho, não consegue, portanto, sair de uma posição de completude, já que essa proibição serve para ela também, tendo dificuldades em admitir que não é total.

A equipe da Unidade Onco-Hematologia fica bastante mobilizada com tais atitudes de agressividade desse paciente. Seguidamente essa traz relatos do comportamento desse menino na reunião de técnicos de Enfermagem que o Serviço de Psicologia coordena. Expressa a angústia de não saber lidar com tal situação, critica a mãe do paciente por não colocar limites e opta pela medicalização do paciente com calmantes em momentos mais conturbados – fato que é mais benéfico para a equipe ( não observando o problema, sentem-se menos angustiados) do que para o paciente.

No que diz respeito as suas produções em terapia, o paciente não apresenta muita satisfação em desenhar, preferindo jogos como video-game, cartas ou assistir filmes; seus desenhos demonstram-se empobrecidos para sua faixa etária, apresentando nesses pouca inscrição de sua imagem corporal.

Com base nisso, pode-se pensar que o corpo constitui-se através do imaginário e esse se dá através do olhar de desejo da mãe ao seu filho. Já no Estádio do Espelho, formulado por Lacan, a criança vai percebendo o seu corpo como alteridade em relação ao do Outro; a tomada de corpo surge através do discurso da mãe com o qual a criança se identifica.

Por outro lado, quando a mãe não consegue falar seu corpo a seu filho ou esse corpo não consegue experimentar um afeto, surgem doenças que significam um apelo dirigido ao outro para uma integração do corpo através de um discurso. Para Lacan, é a partir da estrutura da linguagem que o sujeito se apossa de seu corpo e o assume como seu. Na lesão psicossomática, há um nome do pai real que inscreve uma marca de gozo em um corpo não subjetivado. Logo, a incidência do gozo sobre o corpo sem a mediação da metáfora paterna de forma repetitiva inscreve uma marca de gozo, um S1 isolado que se coloca sem um sentido para o sujeito.

Com relação aos limites, vem se trabalhando com a criança (nos jogos sobretudo) e com a família; essa última está conseguindo atuar mais nesse sentido, está respeitando mais a mãe, compreendendo mais suas internações, além de ter passado a dormir no seu próprio quarto, pois antes dormia na cama da avó. Também vem se buscando resgatar uma maior aproximação da criança com sua mãe no sentido de o paciente poder voltar a morar com ela sem se sentir culpado de ter abandonado a avó. Quem sabe com a ajuda do acompanhamento, essa mãe consiga resgatar algo de sua função.

 

O brincar como possibilidade de mudanças

Nos atendimentos, o recurso que vem sendo utilizado é a atividade lúdica como dispositivo para expressão desse paciente. Aqui o brincar é uma estratégia para que se possa transpor à barreira da linguagem; é possível a criança expressar suas fantasias, seus desejos e experiências de um modo simbólico, fazendo uso do brinquedo e do jogo.

Já as primeiras atividades lúdicas têm função primordial, já que o brincar entra como um terceiro objeto na tentativa de elaborar a ausência da mãe. Por meio da brincadeira, a criança assume um papel ativo, deixando de ser dominada pela situação, ou seja, pela experiência de desaparecimento da mãe (Fort Da). Essa se retira da posição passiva frente, por exemplo, a uma doença, podendo, dessa forma, de modo imaginário, controlar o ambiente.

A autora Mannoni em sua obra "Amor, Ódio e Separação: reencontro com a linguagem esquecida da infância" (1995) refere que "dar às crianças a possibilidade de pintar, de inventar um mundo segundo suas idéias, é ainda mais importante pelo fato de elas poderem assim (…) colocar numa linguagem sem palavras o que as mortificou, mesmo que ignorem aquilo que insiste em suas garatujas. O essencial é que sua solidão, seu desamparo e sua "loucura" possam encontrar meios de se exprimir sem que o adulto procure dar-lhes sentido de imediato (…) ".

Ainda em relação ao brincar, Dolto e Nasio (1991, p.28) afirmam que "o desenho é uma estrutura do corpo que a criança projeta e com a qual ela articula sua relação com o mundo (…), um desenho é mais que o equivalente de um sonho, é em si mesmo um sonho, ou até mesmo um fantasma tornado vivo. Também, "o desenho não é nem uma palavra nem uma leitura, mas a colocação em uma cena de um fantasma referido à imagem inconsciente do corpo tal como se a define, isto é, síntese vivante das experiências emocionais ligadas ao sujeito, ligadas à história do sujeito e articuladas à linguagem própria do vivido relacional e sensorial da criança" (p. 27).

Durante o tratamento, o paciente é suscitado a brincar, de forma livre, de acordo com suas necessidades, permitindo com que ele elabore seus conflitos e desenvolva-se através da interpretação do conteúdo de seus jogos. Aqui essa criança tem o prazer de adaptar a realidade ao seu gosto; essa pode recriar e transformar a sua realidade, buscando elaborar situações angustiantes que a doença lhe gera. Além disso, é necessário disponibilizar um espaço potencial para que esses pacientes possam construir ressignificações através do lúdico, além de apropriar-se de seu corpo, de seu brincar e seu desenvolvimento.

Através do brincar na psicoterapia, é facilitada a entrada do terapeuta no mundo da criança; aqui há a preocupação em estabelecer uma comunicação efetiva entre a criança e o terapeuta, onde esse último deve se retirar do mundo intelectualizado do adulto para ficar próximo ao mundo lúdico infantil e todo o seu simbolismo.

No trabalho realizado com esse paciente e também com outras crianças com câncer, percebe-se o desenho como dispositivo para que o paciente possa, através do mesmo, desenhar seu corpo, falar de sua doença e do momento singular que está experimentando. Através do pintar, a criança é suscitada a tentar compreender o que se passa em seu corpo, ou seja, apontar no desenho em que parte está doente, como pode ter surgido sua doença, como acha que a quimioterapia pode atuar, entre outras questões. Muitas vezes, quando se solicita um desenho ao paciente, percebe-se importantes dificuldades do mesmo em relação a sua imagem corporal. Observa-se na clínica que a qualidade da relação da criança com seus pais (investimento, desejo, demanda) influencia a imagem que a criança tem de seu próprio corpo.

Com isso, pode-se pensar que o corpo constitui-se através do imaginário, e esse se dá através do olhar de desejo da mãe ao seu filho. Quando a mãe não consegue falar seu corpo a seu filho ou esse corpo não consegue experimentar um afeto, surgem doenças que significam um apelo dirigido ao outro para uma integração do corpo através de um discurso. Diante disso, busca-se trabalhar a construção dessa imagem corporal com a criança. O terapeuta pode ajudar a criança em suas produções (desenhos), apontando as faltas e, ao mesmo tempo, constituindo uma imagem do corpo junto ao paciente através de um olhar que unifique a noção inicial de um corpo esfacelado.

Junto a isso, é importante pensar um processo de ensino-aprendizagem desse paciente, onde esse, mesmo não estando na escola, através de seu tratamento vem aprendendo sobre sua doença, fazendo trocas importantes com outros pacientes, obtendo uma melhor comunicação com sua família, além de estar podendo se colocar um uma posição mais ativa e interrogativa no seu processo de adoecimento.

Por último, percebe-se que nessa família existe a predominância de figuras femininas (da avó e da mãe), e ambas posicionam-se no sentido de corresponder a tudo para o menino, impossibilitando um corte, uma falta que permitisse a ele a construção de limites. Quem desempenharia nesse caso a função paterna, indispensável à estruturação psíquica? É importante questionar então qual seria o papel do pai nesses casos. Aqui parece que a figura masculina participa da relação somente como fornecedor de um sêmen, ou seja, pelo seu aspecto biológico. Tanto que esse pai foi convocado somente mais tarde para uma possível contribuição biológica: a de doar sua medula para o filho. Aqui, a função simbólica paterna fica marginalizada para esse paciente, sendo necessário que essa mãe possa convocar o pai (quem sabe autorizá-lo) para exercer uma função paterna, dando lugar para esse. Se essa mãe não está conseguindo oportunizar espaço para isso, é porque provavelmente seu próprio pai não operou essa função.

 

Conclusões

A realização deste trabalho nos remete a diversos questionamentos sobre a clínica em Psicologia tais como: Qual o papel do terapeuta? Qual o limite do fazer psicológico? O que é esperado de um terapeuta infantil?

Algumas dessas questões vem sendo respondidas no decorrer do percurso do estágio. Essas inicialmente eram nebulosas e angustiantes, mas com o passar da prática vêm se esclarecendo. Aqui é importante poder propiciar espaço para a reflexão, questionando constantemente a nossa atuação no sentido de uma reciclagem e descristalização de idéias e ações.

Também pensamos o quanto o trabalho com a clínica infantil nos exige um maior movimento e maleabilidade para poder se adaptar à realidade da criança e ter acesso a essa e ao seu mundo. Há a necessidade de uma postura de não julgamento e aberta para a escuta, onde o processo não seja prejudicado pelos preconceitos do terapeuta. Segundo Mannoni (1980), " o psicanalista não dá razão nem retira; sem emitir juízo, escuta".

Além disso, como a criança depende de seus genitores e seu sintoma muitas vezes é reflexo dessas relações, o terapeuta atua paralelamente com seus pais, onde esses podem passar a se questionar e contribuir para o progresso do tratamento.

Por fim, ainda em relação à clínica, "o analista ali está para permitir, através do reexame de uma situação, que a criança enverede por um caminho que lhe deve pertencer a título exclusivo" (…) o terapeuta " não tem a preocupação de dar uma ordem ou desejar um sucesso. O seu papel é permitir que o verbo se faça" (1980).

 

Referências bibliográfica

Balbo, G.; Bergés, J. Jogo de Posições da Mãe e da Criança: ensaio sobre o transitivismo. Porto Alegre: CMC Editora, 2002.         [ Links ]

Dolto, F.; Nasio, J. A Criança do Espelho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.         [ Links ]

Guir, Jean. A Psicossomática na Clínica Lacaniana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.         [ Links ]

Kreisler, L. Fain, M; Soulé, M; A criança e seu corpo: psicossomática da primeira infância. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.         [ Links ]

Lacan, J.O Seminário – livro 11: os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.         [ Links ]

Mannoni, M. A Criança, sua doença e os Outros. São Paulo: Via Lettera Editora e Livraria, 1999 (cap. V).         [ Links ]

Mannoni, M. Amor, Ódio, Separação: o reencontro com a linguagem esquecida da infância. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.         [ Links ]

Mannoni, M. A Primeira Entrevista em Psicanálise. Rio de Janeiro: Campus, 1980.         [ Links ]

 

 

* Aluna do 10º Período de Psicologia (UNISINOS) ; Estagiária do Serviço de Psicologia Clínica do Hospital da Criança Conceição
** Aluna do 10º Período de Psicologia (UNISINOS) ; Estagiária do Serviço de Psicologia Clínica do Hospital da Criança Conceição
*** Aluna do 10º Período de Psicologia (UNISINOS) ; Estagiária do Serviço de Psicologia Clínica do Hospital da Criança Conceição
**** Psicóloga Clínica do Serviço de Psicologia do Hospital da Criança Conceição

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