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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH v.9 n.2 Rio de Janeiro dez. 2006

 

 

A psicanálise no hospital e a demanda (trans) sexual*

 

 

Valéria de Araújo Elias

 

 


RESUMO

O presente artigo trata de uma experiência clínica com transexuais femininas acompanhadas no hospital em sua demanda de alteração corporal via hormônios e cirurgias privilegiando-se os processos de subjetivação envolvidos nessa experiência.

Palavras-chave: Psicanálise, Hospital, Corpo, Identidade sexual.


ABSTRACT

The current article results from clinical experience with female transsexuals patients in the hospital, privileging the reasons for the sex-change seek and the subjectivity processes that acted in favor of the body adjustment plead.

Keywords: Psychoanalysis, Hospital, Body, Sexual identity.


 

 

Introdução

O papel desempenhado no discurso social pelo significante fálico tem sofrido modificações na história da humanidade e isso tem se repercutido na contemporaneidade através das novas configurações dos modos de ser homem e mulher.

A pretensão deste trabalho foi estudar a transexualidade à luz da psicanálise a partir de uma experiência clínica com transexuais femininas em um hospital universitário. Presenciamos um aumento na procura dessas pessoas que até pouco tempo se mantiveram invisíveis no hospital, reflexo da difusão universal da ciência e das técnicas hormono-cirúrgicas que contribuíram para que esse fenômeno – no plano imaginário - saísse da esfera individual e se tornasse um sintoma social.

A cirurgia de transgenitalização2 (agora oficialmente em algumas instituições públicas e universitárias no Brasil) é parte de um tratamento que pressupõe um autodiagnóstico e uma autoprescrição terapêutica, levando algumas pessoas que não se sentem à vontade com o seu sexo a identificarem-se com o diagnóstico de transexualidade. Fortalecidas pelos avanços da ciência, elas podem recusar o que acreditam ter sido um equívoco da natureza quanto ao seu sexo biológico, revelando que a anatomia não é suficiente para que o sujeito se posicione subjetivamente como homem ou mulher, mas, paradoxalmente, deve representar o seu "eu".

Esta oferta científica estabelece, como exigência à passagem ao ato cirúrgico, que essas candidatas enunciem um discurso endereçado inicialmente aos médicos3. Para que sejam reconhecidas em sua "verdadeira" identidade (no caso, o ser feminino), elas alienam-se sob uma figura prescrita que organiza seu discurso e sua vida a fim de obterem uma sanção social. Essa é a situação de quem espera "mudar de sexo" baseado na crença de que a identidade sexual deve ser legitimada pelo corpo. "Não há transexual, sem cirurgião e sem endocrinologista"4 , diz Millot (1992: 17).

Presenciamos nesta clínica a instável relação do sujeito com sua própria imagem, ponto de referência na construção de sua identidade subjetiva. No discurso transexual aparece o corpo e a mente rigorosamente (des) articulados em sua forma de subjetivação que, na proposição médica e psiquiátrica, haveria a saída pela cirurgia, como forma de "articulá-los" novamente. Embora seja no corpo, em descompasso com suas mensurações, que ocorrerão as modificações corporais, a Medicina levará em conta no diagnóstico a existência de uma convicção e de um desejo, fazendo com que ele tenha que ser escutado por outro campo de saber, que diz respeito à Psicanálise.

 

A psicanálise na clínica com transexuais

A Psicanálise ao ser convocada para lidar com o que vai além de um saber médico objetivável mostra que o ser humano não se restringe ao corpo biológico, afirmando o inconsciente e a linguagem como constituintes fundamentais. Assim, abordar a transexualidade, enquanto um fenômeno de nosso tempo, coloca-nos frente ao desafio de contemplar a singularidade de um sujeito através do discurso universal da ciência que o define, sem apagarmos sua subjetividade.

Pretendi buscar respostas que me permitissem avançar nas reflexões acerca dos interrogantes que a clínica com pessoas subjetivamente identificadas como pertencentes ao sexo feminino à despeito de sua anatomia masculina, mobilizaram em mim, ao ser convocada a me posicionar. Mais especificamente sobre os sentidos (enquanto significação e direção) da alteração corporal, em particular a cirurgia de transgenitalização. Algo que dissesse além da 'universalidade' do fenômeno e nos remetesse às 'singularidades' de cada sujeito em sua busca obstinada por modificar o corpo no que este se aproxima dos caracteres masculinos, o que só poderia ser feito a partir de uma escuta clínica.

É desta concepção que o presente trabalho partiu, buscando avançar nas reflexões sobre este fenômeno que mostra a sua complexidade para além das aparências. Saí da cena analítica para novamente entrar nela, a partir de uma reflexão sobre esta experiência, de modo a tentar identificar os processos de subjetivação que possivelmente contribuíram na construção dessa "identidade transexual", ao mesmo tempo tão evidente e tão obscura em uma sociedade que, por excluir a diferença, tem também uma parcela de contribuição na busca pela alteração corporal.

O Real da clínica nunca é inteiramente simbolizável o que nos leva a não pretender teorizar e criar a partir deste trabalho uma clínica especializada em transexuais, afinal um sintoma para a psicanálise é sempre polissêmico. O sintoma articula-se no campo da representação simbólica, da imagem corporal e não no campo do corpo anátomo-patológico. O que importa é como o sujeito vivencia a sua corporeidade, ou seja, de que maneira investe as diferentes partes do seu corpo e as interpreta como superfícies dotadas de significação. Esta é uma das questões que este tema nos remete diante de um fenômeno médico-social do qual enquanto praticantes da clínica psicanalítica no hospital somos convidados a nos posicionar.

Como disse anteriormente, essas pessoas não chegam ao hospital com uma demanda endereçada ao psíquico. Embora identifiquem todo um mal-estar diante de sua experiência transexual, apresentam-se já atravessadas pela imposição de "necessariamente passar pela psicologia", como uma das exigências do Conselho Federal de Medicina para alcançarem o que vêm buscar no hospital: a alteração hormono-cirúrgica. Desse modo, a questão transferencial fica inicialmente complicada.

Diante do encaminhamento que assim nos chega, é necessário um trabalho preliminar para retificar subjetivamente sua demanda. Embora seja a oportunidade do encontro, para que a paciente possa sustentar o desejo que a levou ao hospital, terá que pagar com o seu discurso, seja porque reconhece em si algo que não vai bem, algo que ela não sabe muito bem o que seja (cuja resposta por enquanto vem de "fora", do social). Essa falta de resposta pode transformar-se em um enigma, e enquanto tal necessitará de uma tradução.

Essas pessoas constroem um saber sobre si pautado na definição médica, um saber sobre suas experiências de alheamento corporal, em que elas se alienam no saber do Outro. É preciso então levá-las a se apropriar (no sentido de próprio) desses discursos, produzindo um saber sobre o que se passa com elas. As questões que aparecem são relativas à imagem e ao sexo, embora digam que 'não tem problema se a vagina não funcionar'.

Ao perder a configuração do corpo masculino, ao se auto-administrarem hormônios femininos, ficam à mercê do Outro da ciência, posição que geralmente as fazem sofrer e entram em desespero expresso por Alice quando vê em mim a possibilidade de não "autorizá-la" a completar com a cirurgia o que já iniciou. Essas pessoas nos ensinam que é necessário a presentificação de um Nome-do-pai, na ciência e/ou na religião, que a ajudem a se inserirem na cultura, no social.

Ao relatarem se sentirem ser do 'outro sexo' as pessoas ditas transexuais não retrocedem frente à oferta de modificações corporais, inventando como solução para o "problema social" da sexuação a operação que retira o que não reconhece como pertencente a si mesma (no caso o pênis), ou que não pode reconhecer. A possibilidade de produzir o efeito normatizante (sentir-se mulher em corpo de mulher) por meio da intervenção hormonocirúrgica, imaginariamente resolveria o impasse criado e expresso no discurso "uma alma feminina aprisionada em um corpo masculino" e assim serem incluídas na cultura.

O que ocupa a psicanálise não é a distinção entre a realidade e a fantasia, mas o reconhecimento de uma realidade psíquica e a percepção que o sujeito tem de si mesmo, que reflete sua tentativa de organização psíquica. No discurso das transexuais aparece a reivindicação de um corpo que possibilite a assunção de uma identidade feminina que a anatomia masculina não permite que ela emerja ante ao social. Trata-se, portanto, de uma reivindicação voltada para o corpo de algo que se inscreve no psíquico como " identidade feminina" e que a ciência define como transexual.

 

A "identidade (trans) sexual"

Não há como pensar em identidade sexual sem pensar em identificação, que se refere ao fato do sujeito idem-ficare, ou seja, ficar idêntico ao que o Outro fez dele, já que Freud reiterado por Lacan diziam: não há eu sem o Outro, ou melhor não há identidade sem alteridade.

Freud (1914/1980) destaca a importância do eu ideal e do ideal do eu para esse processo, e Lacan (1961) desenvolve o conceito de identificação de significante, que em oposição à identificação narcisista, permite situar a identidade de forma provisória. Esse reconhecimento de si enquanto o outro do espelho, portanto em uma imagem invertida, fará com que se instaure o desconhecimento de todo o ser humano quanto à verdade de seu ser e sua profunda alienação na imagem que fará de si mesmo. É a partir do reconhecimento da mãe, de sua autenticação, que a criança será incluída no registro do simbólico e, portanto, um efeito do significante que a nomeia, instaurando-a em uma identidade particular.

A clínica com transexuais permite-nos concluir que a identidade sexual permanece dependente dos efeitos do inconsciente em detrimento ao sexo anatômico. Segundo Dor (1991), se a assunção de nossa identidade sexual enquanto sujeito falante está fundamentalmente sujeita à função fálica, devemos nos curvar à evidência do caráter necessariamente secundário da especificação anatômica dos sexos na segurança que temos de nos sentir mulher ou homem, de acordo com o caso. "Mas uma segurança é uma certeza; a única certeza que não temos nunca é precisamente a da especificação anatômica". (p.153).

Para esse autor, não se pode falar de certeza de uma identidade sexual, mas no máximo de um sentimento de pertencer a um gênero, seja feminino ou masculino, no terreno de uma cartografia imaginária. Desse ponto de vista, haveria dois planos distintos: de um lado, o real de nossa anatomia e de outro lado a identidade sexual, resultante de uma elaboração psíquica a partir desse real mediado pela relação do sujeito com o falo. Essa relação é antes de tudo uma relação com o real da diferença dos sexos, isto é, o Real que suscita a vinda do próprio objeto fálico que, por ser imaginário, permite apreender a inadequação possível entre a sexuação anatômica e a identidade sexual. Fora da referência à atribuição fálica, torna-se difícil compreender os avatares determinantes das flutuações nos processos de construção da identidade sexual, dentre elas a "identidade transexual".

Somos presos desde que nascemos à necessidade incessante de reconhecimento do Outro/outro. É através do olhar que buscamos no outro a aprovação de nós mesmos, que construímos nossa noção de "eu". A tentativa de ser "mulher de verdade" das transexuais é um ato em busca de um reconhecimento que as posicione em um lugar de aceitação, abrindo-se a possibilidade de construir seu sentimento de identidade sexual, cuja afirmação imperativa sobre a certeza "do que são", remete sempre àquilo "que não são".

As respostas que a sociedade lança sobre os seres humanos em relação às suas "invenções", impõem saídas na maioria das vezes acompanhadas de muito sofrimento, levando a ciência a produções a serviço desses mal-estares, onde a transexualidade é apenas uma entre tantas outras. Refiro-me ao mal-estar como sinônimo do que Freud propôs em vários momentos: como "prova de uma perturbação do eu sob o excesso de uma estimulação libidinal" ou como "traço de uma intolerância, pelo eu, da pressão da culpa". (KAUFMANN, 1996: 317).

Estamos assim diante de uma busca interminável de afirmação sobre quem somos, lutamos todos para sermos aceitos, para sermos "nós mesmos". Às vezes, para sermos reconhecidos, tentamos forjar em nós uma identidade pessoal mascarando ou recusando nossa origem, mas não se trata mais do que um sentimento, uma ilusão, essa certeza de quem somos, pois ela é constantemente reinventada, tecida no cotidiano das relações. Trata-se de um processo permanente de reconhecer-se e de ser reconhecido.

A lógica de uma anatomia definindo a posição sexuada do sujeito, não coincide necessariamente com a lógica da sexuação fundada sobre a função fálica, trazendo conflitos para quem não segue esse pressuposto normativo. Os complexos de Édipo e castração supostamente deveriam ser os responsáveis por essa normatização sexual, porém a transexualidade nos aponta para a insuficiência deste, ou seja, a biologia não é suficiente para estabelecer a identidade e a sexuação de um sujeito. Em efeito, o sujeito se identifica a um traço significante, dando sentido a certas partes do corpo, representando a diferença entre os sexos. Mas quando isso não é suficiente, é preciso inventar outra coisa.

Ao recusarem uma escolha governada pelo Simbólico, essas pessoas se entregaram ao Imaginário (aparência). Incapazes de assumir o conflito existente entre a identidade sexual e a escolha sexuada – cujas conseqüências recusavam no que diz respeito ao gozo – contestaram a identidade sexual, ao entregar-se também ao fundamento de uma identificação com o grupo de transexuais, com o qual partilhavam a mesma reivindicação. Esse parece ter sido o mecanismo de algumas das pessoas que acompanhei no hospital. Desse ponto de vista, a cirurgia seria uma saída possível para as transexuais diante da difícil tarefa de sexuação e da ausência de lugar em uma sociedade onde só cabe ser homem ou mulher.

A busca pela alteração corporal reflete uma tentativa de fabricar um corpo que possibilite a sensação de pertencimento e reconhecimento dentro de uma estética próxima à sua posição subjetiva, no que entende que seja o feminino. Tornar-se "socialmente aceita" parece ser reproduzindo os protótipos do que é ser homem ou mulher, correspondendo assim ao outro, "adequando" seu Imaginário a ele. Isso revela o Imaginário da sociedade em que vivemos que produz o machismo, a homofobia e tem como fonte de produção o heterocentrismo fundado na biologia.

Freud (1929/1980), já pensava em um "mal estar na civilização", ao falar do sintoma social. "Tendemos a nos tornar iguais, usando as mesmas roupas, comportando-se da mesma forma...", e Frignet (2002:133) complementa, "essa uniformização de condutas é acompanhada de um declínio da subjetividade que transparece em numerosos setores de nossa vida social, como na orientação de nossos destinos individuais".

O fenômeno é observado nos grupos de transexuais na internet e a facilidade com que as informações são difundidas de modo a se criarem formas de identificação e práticas corporais. Freud (1921) em relação a isso dizia que nesses casos se diluiria o "eu individual" em favor do grupal. Quanto mais eles são somente um agrupamento (e não uma organização social), mais a força dos impulsos se sobrepõe à função da realidade das coisas, como uma espécie de contágio emocional em contraposição a uma inibição intelectual.

São fatos da contemporaneidade para os quais não temos como fechar os olhos e nos levam a repensar nossa clínica, colocando em questão a maneira limitada com que as pessoas transexuais foram sendo vistas, ao longo dos anos. Até então tínhamos a idéia de que se um ser humano não aceitasse o real do seu corpo, a realidade de seu sexo, isso só poderia se tratar de um caso de delírio, devendo ser encaixada em uma categoria nosográfica.

Entretanto, é necessário observar que, se muitas vezes as transexuais insistem em reproduzir o discurso de uma certeza de serem mulheres, é porque sabem que necessitam dessa suposta convicção para obterem o que acreditam ser a única possibilidade de se "adequarem" ao mundo ocidental. É preciso questionar se não se trata de um dogmatismo conceitual determinado por premissas morais e, nesse momento, pôr de lado o que já sabemos para escutar o novo; deixarmos de falar das pessoas transexuais para escutá-las em sua singularidade.

Ao homogeneizar a queixa transexual, anula-se o sujeito por trás da demanda, e se esquece que cada pessoa elabora um mito sobre seu padecimento, sobre aquilo que lhe acontece. Surge então a ocasião de oferecer um espaço para que essa queixa possa ser escutada de outra forma, pois como aponta Moretto (2002) se os médicos "dessem conta de tudo", não haveria razão para a entrada do psicanalista no hospital.

Mesmo que o encontro com esses sujeitos não tenha sido motivado por uma demanda dirigida ao psíquico, ao oferecer ao sujeito um espaço para que ele fale, cria-se o desejo de ser escutado. Uma escuta que levará o sujeito a se escutar, abstendo-me de buscar qualquer causalidade e sem confundi-lo com uma etiologia médica. Ou, em outras palavras, minha escuta não visa estabelecer a exatidão do que lhe causou a "transexualidade" e a única "verdade" que interessa é aquela que remete ao sentido e à função intersubjetiva tomada nesse espaço médico.

As pessoas seguem trajetórias singulares de subjetivação, que ultrapassam em muito essas questões. É certo que nesse caso em particular, a irreversibilidade das conseqüências físicas e a radicalidade das implicações psíquicas e sociais causadas pela satisfação da dita demanda devem ser consideradas. Meu objetivo não visa o desaparecimento do desejo expresso no pedido de alteração corporal, mas sim fazer com que o sujeito saiba, à medida do possível, sobre o que, inconscientemente, justificaria sua demanda.

A maioria dessas pacientes tem pressa em modificar o corpo pois não agüentam as pressões sociais para 'assumir um lado ou outro': sair da ambigüidade inadmissível em nossa cultura. Sem a cirurgia sentem-se impossibilitadas de prosseguirem a vida, seus relacionamentos, seus estudos, seu trabalho, não agüentam o preconceito que ferem profundamente seu narcisismo. Assim, a vida em suspenso enquanto aguardam a cirurgia como o processo de finalização de sua sexuação.

 

Considerações finais

Longe de apresentar respostas ou teorias, mais uma entre tantas, essa pesquisa me fez rever posições e tomar outras sobre um tema onde o que estava em jogo era como cada sujeito, em sua expressão sexual, vivenciou os processos de identificação e sexuação. A saída encontrada culminou em uma busca pela alteração corporal remetendo a uma teoria singular, cabível somente a quem a construiu. Assim, a experiência transexual torna-se única podendo ganhar novos matizes por sua capacidade transitória e sua multiplicidade de sentidos.

Minha ambição foi que as pacientes pudessem, a partir dessa experiência, ampliar suas possibilidades de significar sua queixa desalienando-se do saber do outro e buscando em si mesmas as respostas para seus enigmas, transformando a convicção transexual em uma saída possível e não em um lapso, responsabilizando-se por ela.

Temos muito a caminhar e por lugares ainda inexplorados, para darmos conta das transformações que a própria ciência e seus avanços tecnológicos (mas não só) ajudam a promover. No modo como a transexualidade é incorporada na cultura ela alcança o estatuto de um mal estar (ou mal ser) contemporâneo ao apresentar-se como uma 'ameaça ao eu'. Ao ser atravessada por diferentes discursos, aponta para a importância de continuarmos avançando na criação de conhecimentos transdisciplinares que, resguardada a especificidade de cada área, propicie a circulação de (muito mais que saberes) não-saberes. Esse posicionamento permite que se reconheçam as diferenças e limitações, cujo objetivo final não é estatístico, nem de promover a "cura", seja pela cirurgia ou pela psicanálise.

 

Referências Bibliográficas:

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* O tema do presente artigo faz parte da Dissertação de Mestrado Para além do que se vê: das transexualidades às singularidades na busca pela alteração corporal (2007), sob a orientação do Dr. Fernando Silva Teixeira Filho, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia e Sociedade da Universidade Estadual Paulista (UNESP). 1 O termo é usado aqui de acordo com o manual do Ministério da Saúde (BRASIL, 2002: 47), que define transexuais femininas as pessoas de sexo biológico masculino que desejam alterar seu corpo para aproximá-lo do gênero feminino. 2 Transgenitalização ou redesignação de sexo é o nome adotado oficialmente pela Harry Benjamin International Association para essas intervenções cirúrgicas embora também seja usual, na esfera médica e social, a expressão "mudança de sexo". 3 O Conselho Federal de Medicina criou uma Resolução em 1997, ratificada em 2002, em que exige que haja um acompanhamento dessas candidatas por uma equipe (dentre os profissionais a psicologia) durante dois anos para que então emitam um parecer indicando ou não a cirurgia de transgenitalização. Toda "candidata" deve se submeter a um acompanhamento multidisciplinar (pré e pós-cirurgia). Recomenda-se que este seja suficiente para que não pairem dúvidas na equipe quanto aos resultados. O argumento é que extirpar o pênis e os testículos de alguém e, artificialmente, criar uma vagina forjada na região apropriada, não se restringe ao simples ato cirúrgico. A pessoa deve estar "preparada" para a irreversibilidade do ato. Seguindo uma tendência internacional defendida nos documentos oficiais, neste trabalho o tempo mínimo exigido é de dois anos. No entanto, o final desse percurso, não significa que a pessoa estará automaticamente apta à cirurgia, devendo haver uma avaliação multidisciplinar que decida se a pessoa está pronta para isso. 4 Embora estas sejam as reivindicações no contexto hospitalar, sabemos que há exceções o que nos leva mais uma vez a reforçar que não estamos caracterizando a transexualidade como uma única modalidade de ser. Diferente do que poderia acontecer com outros pesquisadores, não se apresentaram, em minha clínica, pessoas que se definissem como transexuais e que não buscassem a cirurgia, afinal é o motivo que as levaram até mim.

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