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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH v.10 n.1 Rio de Janeiro jun. 2007

 

 

Mulheres com câncer e o vínculo afetivo com suas mães: compreendendo para trabalhar em psicoterapia

 

Women with cancer and the affective bond with her mothers: understanding to the psychotherapy work

 

 

Jacqueline Feltrin Quintana

Psicóloga, docente na Universidade da Região da Campanha – Urcamp/Bagé/RS
Juvêncio Lemos nº 452
Tel.: +55 53 3241-4664
E-mail: jfelrin@alternet.com.br

 

 


RESUMO

O trabalho trata das mulheres que adoeceram por câncer e o vínculo afetivo que mantiveram com suas mães na infância. O método que proporcionou chegar aos resultados foi o de Análise de Categorias dentre as encontradas foram: sentimento de abandono, vínculo afetivo, recursos compensatórios adaptativos e medo.O instrumento utilizado para chegar às categorias foi uma entrevista semi-estruturada. A conclusão sobre as mulheres que adoecem de câncer e o vínculo afetivo que mantiveram com as mães na infância, confirmaram o que foi fundamentado na teoria, ou seja, as mulheres do estudo apresentaram sentimentos de abandono, suas mães não supriram carências necessárias na infância, ocasionando vazios internos na personalidade.

Palavras-chave: Percepção, Adaptação, Sentimentos.


ABSTRACT

The paper deals with women who became sick due to cancer and the bond they kept with their mothers in the childhood. The method which led to results was the analysis of categories and among the found categories there are: abandonment feeling, affective bond, adaptive compensatory resources and fear. The instrument used to reach the categories was a semi-structured interview. The conclusion about women who become sick due to cancer and the affective bond which they had with their mothers during childhood, confirm what was the fundament in the theory, or, the women in the study presented abandonment feelings, their mothers did not fulfill necessary shortage in the childhood, causing intern blanks in their personality.

Keywords: Perception, Feelings, Adaptation.


 

 

O ser humano desde o nascimento até a morte, caracteriza-se pela necessidade do contato social com seu semelhante, Klein (1975), atenta à observação de bebês chegou a um entendimento profundo das formas pelas quais na criança e posteriormente no adulto, a vida mental é influenciada pelas emoções primitivas e fantasias inconscientes.  A hipótese de Klein (1975) é de que o bebê possui uma percepção inconsciente inata da existência da mãe.

A principal hipótese do estudo refere-se, ao adoecimento de câncer das mulheres e também sentimentos como medo, rejeição e raiva projetadas nas mães. Verificou-se também, o sofrimento psíquico sofrido pelas vivências infantis repetidas na vida adulta frente às adversidades. Os psicanalistas foram unânimes ao reconhecer, que a função do comportamento de apego é a proteção do ser indefeso contra os predadores, esta observação foi realizada com animais irracionais, constatado a veracidade desta teoria, na proteção que o animal dispensa à prole, defendendo-a dos perigos. Foi comprovado que o comportamento de apego persiste até a vida adulta, como ocorre em tantos mamíferos. A primeira relação de uma criança com a mãe é como pedra fundamental sobre a qual se edifica a personalidade. A principal função da mãe, quando a criança nasce é suprir suas necessidades fisiológicas, principalmente a alimentação indispensável à sobrevivência A presença materna junto à criança permite que suas necessidades tanto físicas como psicológicas, sejam satisfeitas sem demora. Por necessidades psicológicas entende-se calor, afago, contato físico e proteção (Ferreira, 1986).

A psicanálise se detém ao estudo do ser humano, cuja hipótese de que a sexualidade infantil influencia na relação com a mãe porque a mesma é o primeiro e principal objeto de apego, também representa alguém que vai competir com a filha o amor do pai, no complexo de Édipo. Esta hipótese foi formulada com o objetivo de explicar o comportamento de um indivíduo adulto e o modo como percebe a relação afetiva com sua mãe. As perdas atuais da vida de uma pessoa e a forma como são vivenciadas pela mesma, representa uma repetição inconsciente das perdas vividas nos primeiros anos de vida. O excesso de frustrações nas primeiras vivências infantis, fragiliza o ser humano (M. Filho, 1992).

O tema principal deste estudo, refere-se à investigação do vínculo afetivo entre mães e filhas nos primeiros anos do desenvolvimento da personalidade e sua importância na saúde física e mental. O trabalho tratará da problemática das mulheres que contraíram câncer na idade adulta.

As diferenças individuais no comportamento, nos estilos pessoais de enfrentamento dos conflitos, nos traços de personalidade, podem ocasionar diferentes características imunológicas. A depressão faz com que a imunidade fique baixa propiciando o aparecimento de doenças (Ballone, 2001).

As causas do câncer são multifatoriais, tanto de influência constitucionais como ambientais. Para que a doença (câncer) se desenvolva é necessário que haja uma falha do sistema imunológico do organismo em algum momento. O câncer é suscetível à influência de estresse e de fatores psicológicos vários, quer na sua origem ou evolução. Segundo alguns autores, os pacientes de câncer, costumam ter em comum, perdas significativas antes do desenvolvimento do tumor (Miller, 1977).

Quando o desenvolvimento do psiquismo não se cumpre plenamente, podemos ter a preponderância das características sensório-motoras, o que daria um aspecto operatório ao psiquismo, a partir daí surgiu o conceito de “pensamento operatório”, que tem como características ser consciente e não ter ligações significativas com representações afetivas.

O pensamento operatório nem sempre permite a exteriorização da agressividade e revela empobrecimento na organização do ego. O pensamento operatório limita a capacidade do indivíduo que permite a integração de tensões pulsionais, sabe-se que as tensões pulsionais quando não podem ser integradas e elaboradas, acabam por constituir na desorganização somática, contribuindo para o adoecimento físico.

Para os oncologistas de linha mais holística, pessoas com dificuldades para expressar os sentimentos, correriam mais risco de contrair câncer devido a traços de personalidade como negação das experiências traumáticas, supressão das emoções e tendência à raiva. Outra característica marcante neste tipo de personalidade é a amabilidade excessiva, não reconhecimento de conflitos, aspiração social exagerada, comportamento forçosamente harmonioso, paciência desmedida (às vezes, dissimulada), racionalidade contundente e um rígido controle da expressão emocional (Baltrush,1991).

Existem riscos, segundo o autor, que aumentam a probabilidade de contrair câncer, primeiro à perda de um vínculo importante como: pai, mãe, filho ou cônjuge e em segundo, uma grande inabilidade para expressar sentimentos hostis ou uma liberação inadequada da emoção, uma importante tensão em relação a uma figura parental, sentimentos de desamparo e desesperança.

O termo self significa uma descrição psicológica de como a pessoa se sente subjetivamente, sendo o “sentir-se real” o que a coloca no centro do sentimento do self (Winnicott, 1998), descobriu sobre as pessoas possuidoras de um falso self, que as mesmas não possuem verdadeira sensação de existir. Aparecem nos consultórios de psiquiatras e psicólogos, sendo consideradas como possuidoras de crise de identidade, narcisismo, depressão, falta de sentido na vida, somatizações variadas e vícios.

A percepção de Winnicott (1998), quando comenta sobre falso self, é de que estas pessoas teriam características como falta de espontaneidade e de um verdadeiro sentimento de serem elas mesmas. As pessoas com falso self, não possuem o sentimento de serem reais.

Para Marty (1998), os seres humanos, possuindo um organismo e uma psique, freqüentemente são submetidos a um certo número de excitações dos instintos e pulsões. Ao interagir, vivendo as pressões do dia a dia, mais ou menos importantes, atingem a afetividade e desencadeiam excitações que devem ser descarregadas ou extravasadas.

Para que as pessoas possam extravasar estas descargas, necessitam de um trabalho mental de elaboração das excitações sentidas e os comportamentos motores e sensoriais diferentemente ligados ou não ao trabalho mental. Estas excitações, quando não extravasadas, se acumulam e atingem cedo ou tarde, de forma patológica, os aparelhos somáticos.

O autor afirma que é importante à dinâmica do aparelho psíquico ao extravasar excitações, neste caso, as representações psíquicas constituem a base da vida mental de cada ser humano. Durante o dia, por exemplo, elas fornecem o que se chama de fantasias, à noite, fornecem os elementos dos sonhos. As representações permitem as associações de idéias, os pensamentos, a reflexão interior, são também utilizadas constantemente na relação direta ou indireta das pessoas umas com as outras.

A forma como as pacientes psicossomáticas, especificamente acometidas de câncer lidam com as emoções e com o pensamento, segundo estudos de autores franceses e americanos como Múzan (1983) citado por M. Filho (1992), é de pouca significação funcional para o equilíbrio psíquico. Eles chamaram esta estrutura psicológica como estrutura de pensamento operatório.

Sifneos (1973) citado por M. Filho (1992), traduz estas características como dificuldade de descrever suas emoções e mesmo de senti-las, criando assim o termo alexitimia, ou seja, a pessoa não encontra palavras para nomear as emoções.

Galeno citado por M. Filho (1992) comenta a importância das perdas como principal causa do adoecimento por câncer, isto é, a afetividade como fundamental no equilíbrio psicossomático do ser humano. As perdas citadas podem ser imaginárias, perdas sentidas no inconsciente, conflitos não resolvidos com figuras de apego muito importantes.

Sinfeos (1973) citado por M. Filho (1992) encontrou entre seus pacientes incapacidade para expressar sentimentos hostis, importante tensão em relação a uma figura parental, sentimentos de desamparo e desesperança. Afirmou ainda que estas pessoas com câncer possuem uma vida de abandono, solidão, culpa e auto-condenação.

Os estudos de Thomas e colaboradores citados por M. Filho (1992) foram semelhantes, no que se refere à história e ao perfil psicológico das pessoas que desenvolveram câncer, essas pessoas relatavam história de relacionamento emocional distante com seus pais, o que não aconteceu com os considerados normais e com os que desenvolveram coronariopatia.

Para M.Filho (1992), as pessoas que sofrem distúrbios psicossomáticos apresentam dificuldade para cuidar de si mesmas, isto se deve ao fato de na infância, viver como transgressão e sujeito a castigo, o ato de interiorizar o objeto materno com o propósito de adquirir funções protetoras e tranqüilizadoras. Segundo pesquisas realizadas pelo autor, uma paciente diz: [...] “Na minha família estava proibido estar triste, ou necessitando de qualquer coisa”. Estas pessoas ficam muito vulneráveis às situações de perda, tais como: morte dos pais, nascimento de um filho, divórcio e outras situações que ocasionem ferida narcísica.

As pessoas portadoras deste tipo de pensamento, ou seja, operatório possuem um mundo interno pobre e investem intensamente na realidade externa, da qual são dependentes ou “hiperadaptados”. As emoções são afastadas da mente e as tensões físicas não encontram caminho para o psíquico, permanecendo no campo físico. Segundo o autor a repressão dos afetos na infância, é muito importante na formação deste tipo de funcionamento psíquico, a criança não pode chorar, dizer o que pensa ou sente sem ser severamente reprimida.

Estudos realizados com pessoas que sofrem de câncer, constataram que a personalidade predisposta ao tumor maligno caracteriza-se pela repressão dos sentimentos, M.Filho (1992) afirma que estas pessoas vivem uma vida pouco estimulante, evitam experiências novas, ignoram os poucos estímulos que rompem suas defesas, mantendo tudo sob controle dos impulsos e desejos. A pessoa afetada pelo câncer não possui consciência de sua disposição depressiva latente, com dificuldade para compartilhar a vida com os outros. Os autores ainda constataram, que o surgimento de nódulos mamários nas mulheres, representa o retraimento ou repressão das emoções.

O organismo humano é a integração entre corpo e psiquismo. A psicanálise faz um elo de ligação entre ciências sociais nas questões da personalidade e adaptação ao papel e também da fisiologia na investigação das doenças psicossomáticas. Sabe-se que o equilíbrio entre o corpo e a mente, é responsável pela saúde do organismo.

O termo “homeostase” para Ackerman (1986), refere-se ao princípio vital que preserva a integridade e continuidade do organismo humano, a capacidade de manter um funcionamento coordenado, efetivo, sob condições de vida constantemente alteráveis. Na investigação da saúde e doença o princípio da homeostase é um sine qua non.

As funções da mente servem de intermediários entre o físico, intacto, vivo e seu ambiente. O termo “homeostase” significa “permanecer o mesmo”. Sugere a capacidade adaptativa de estabilização do “self” em face das exigências da vida em contínua alteração. O indivíduo está sujeito à incessante pressão dos estímulos internos e externos, a homeostase é a capacidade de resistir e modificar essa pressão a fim de manter o nível de integração que é necessário para a preservação da atividade vital e um maior desenvolvimento (Ackerman, 1986).

O mesmo autor afirma que a essência da vida é mudança, crescimento, aprendizagem, adaptação a novas condições e evolução criativa de novos níveis de intercâmbio entre pessoas e ambiente. Nestas condições, o processo de vida não pode ser seguro e estável em qualquer sentido, ele é fluido, mutável e instável. Sem essa “instabilidade”, não pode haver crescimento, adaptação, aprendizagem ou criatividade, esta instabilidade é controlada, pelo corpo e mente, permite a expansão do organismo enquanto protege sua integridade.

Para Hisada (2003), o que acima foi relatado, reforça o que se pretende estudar, ou seja, a natureza do vínculo afetivo com figuras de apego, importante no desenvolvimento de neoplasias. Além da predisposição genética a exposição longa ao estresse sem capacidade de expressar os sentimentos pode propiciar o surgimento de doenças.

A idéia principal do estudo gira em torno da importância que o vínculo afetivo com a figura materna representa para o ser humano quanto à saúde ou doença. O vínculo inicial, ao ser sentido como de rejeição ou agressão pode ocasionar doenças como afirma Rossi (1997), quando diz que a mente pode mover moléculas, este é o mais novo insightsobre a comunicação psicossomática entre mente, emoções, comportamento e a expressão de genes na saúde e na doença.

Quando o assunto é rejeição, pode-se inferir que a empatia é fundamental no vínculo entre mãe e filha, para que a mesma sinta-se compreendida e amada, isto não acontece nos casos em que a mesma não se identifica com a filha, não se coloca no lugar dela, não compreende aos seus desejos.

Estudos têm demonstrado que os bebês reagem a perturbações sentidas pelos que cuidam deles, como se estas perturbações estivessem ocorrendo com eles próprios, os bebês possuem empatia inata. A empatia não depende só da habilidade que o indivíduo tem para identificar emoções de outras pessoas, mas da capacidade da pessoa para se colocar no lugar do outro e experimentar uma resposta emocional apropriada (Ballone, 2001).

As patologias da empatia são muito negativas para as pessoas em geral, de qualquer idade, pode ser destruída na relação com pais não empáticos. A ausência de empatia interfere na vida do ser humano em muitos aspectos, na vida amorosa, na compreensão dos movimentos culturais e no próprio desenvolvimento intelectual (Quilic, 2001).

O mais grave segundo Quilic (2001), é a carência de empatia no relacionamento da mãe com o bebê, os efeitos dessa ausência durarão uma vida inteira, o bebê humano comunica-se com a mãe através das emoções.

Observa-se, segundo Bolwby (1985), que a presença de impulsos hostis, conscientes ou inconscientes dirigidos contra uma figura amada pode fazer crescer muito a angústia, esta aumenta a hostilidade, especialmente quando ligada ao fato de uma figura de apego mostrar-se inacessível ou não correspondente ao ser humano.

Farbian citado por Bowlby (1985), constatou que a raiva dirigida a uma figura de apego é ocasionada pela frustração, ou seja, é uma reação à frustração. Sabe-se que o bebê não reagirá com agressividade se não sofrer frustração, principalmente frustração de relações libidinais, o trauma de ver-se separado da mãe, seja por abandono, morte ou indiferença.

O que acima foi relatado pretende chegar à explicação de motivos que poderiam levar às pessoas adultas, ao sentirem-se rejeitadas pela mãe na infância desenvolverem tipos de personalidade suscetíveis ao adoecimento (Baltrush, 1991).

O autor comenta sobre a importância do vínculo afetivo que se estabelece entre mãe e filha, principalmente na fase pré-edípica no desenvolvimento psicossexual da mulher e conseqüentemente no desenvolvimento da personalidade e identidade feminina., considera-se que por longo tempo o Complexo de Édipo na menina nos impediu de ver esta ligação com a mãe pré-edípica, de forma tão importante que deixa como seqüelas, fixações duradouras (Kancyper, 1994).

Estas fixações duradouras adquirem eficácia psíquica posteriormente, quando a mulher assume seus papéis socialmente adultos. A fase pré-edípica na mulher alcança um significado que não havia sido atribuído até então, visto que esta fase deixa espaço para todas as fixações e repressões que conduzem a gênese das neuroses, tirando assim o caráter universal de que o Complexo de Édipo é o núcleo das neuroses (Kancyper, 1994).

A ligação afetuosa com a mãe, condição necessária para o êxito de uma identificação feminina estruturante, é substituída por uma ligação rancorosa, promovendo efeitos patogênicos no momento de assumir seu papel como mulher, como esposa e como mãe (Kancyper, 1994).

Para o autor, não se pode deixar de citar o ressentimento e a inveja, que permeiam as primeiras relações objetais e também o Complexo de Édipo mais tarde. As conseqüências psíquicas da inveja do pênis é absorvido como formação reativa do complexo de masculinidade. Ao se dar conta de sua ferida narcísica, a mulher desenvolve como cicatriz, um sentimento de inferioridade.

Nesta etapa, ligam-se os conflitos relacionados aos vínculos objetais das etapas libidinais anteriores, oral e anal, os quais configuram-se através de uma construção paranóide. A mãe é responsabilizada pelo seu sentimento de inferioridade e por sua inveja ao pênis, manifestada pela elaboração rancorosa, que não cicatriza ao longo do tempo. Forma-se assim, um vínculo mediante provocações sado masoquistas que se manifestam na dimensão intra-subjetiva, por sentimentos de inferioridade.

A psicanálise tem demonstrado especial interesse nos sentimentos de amor, medo e ódio, porque é freqüente pessoas com problemas emocionais reagirem contra a figura de apego com a combinação dos três elementos. Na tentativa de explicar as íntimas relações entre apego, medo e raiva foram formuladas as seguintes hipóteses: o componente agressivo no comportamento humano é devido à frustração sofrida, outros afirmam que a raiva expressa-se independentemente de qualquer experiência que a pessoa tenha vivido (Kancyper, 1994).

O caso Dora, paciente histérica de Freud, ilustra o significado do vínculo afetivo da mulher com a figura materna, evidenciando aspectos patológicos da relação. Neste estudo Freud enfatiza com bastante freqüência a palavra vingança, proporciona alguns dados relacionados ao vínculo de Dora com a Mãe.O problema intestinal de Dora, ocasionou-lhe um câncer de colón, tendo sido esta a causa de sua morte.

Para Freud citado por Kancyper (1994) a psicologia da mulher se baseia na inveja do pênis, onde a mãe é a figura rival que vai competir com a filha o amor do pai. O ressentimento representa, independente da inveja do pênis, um fator dinâmico de grande importância para a sexualidade feminina. A inveja é a expressão direta da pulsão de morte. Desenvolve-se sob as formas mais destrutivas da identificação projetiva com fantasias de destruição do objeto bom.

 

MÉTODO

O estudo consiste em uma abordagem qualitativa, com análises de conteúdo, participaram cinco mulheres, idades entre cinqüenta a sessenta anos com diagnóstico de câncer, entre 9 meses a 6 anos do surgimento da doença, independente do estado civil e condição sócio- econômica. Os sujeitos participavam de um grupo de auto-ajuda para pessoas com câncer, na cidade de Bagé, Rio Grande do Sul.

Após o contato com os sujeitos, que concordaram em colaborar com a pesquisa, foi apresentado o documento Livre Esclarecido, onde foi garantido o anonimato e completo sigilo sobre suas identidades.

A coleta de dados foi obtida através de entrevistas na forma semi-estruturada dirigida individualmente para cada sujeito com roteiro elaborado pela pesquisadora, foi gravada e transcrita para posterior análise das falas.

 

RESULTADOS

A análise das respostas, às perguntas semi-estruturadas, elaboradas conforme o método de análise de categorias, levou-nos às seguintes manifestações: sentimento de abandono, recursos compensatórios adaptativos , vínculo afetivo e medo.

 

 

TEMA - SENTIMENTOS E SUAS MANIFESTAÇÕES

Nesta temática estão agregadas falas, definições que demonstram sentimentos e manifestações como: sentimento de abandono, recursos compensatórios adaptativos, vínculo afetivo e medo, que emergiram das seguintes perguntas: Qual a primeira lembrança negativa que te vem à mente na infância? Como lembras da tua mãe quando eras criança? Como lembras do teu pai quando era criança? Como lembras dos teus irmãos quando eras criança? Qual a primeira lembrança positiva que te vem à mente na infância?

Sentimento de abandono

Observa-se nas falas das depoentes, o predomínio de sentimentos de ter sido abandonadas, mesmo que o abandono seja imaginado ou mesmo seja sentido como rejeição.

Este sentimento aparece na fala de [...]: “A mãe trabalhava muito, não tinha tempo para mim”. [...]: “Minha mãe morreu quando eu era criança”.

[...]: “Sou filha de mãe solteira, meu pai me abandonou”.

 [...]: “A separação da mãe aos nove anos de idade foi muito difícil”.

 [...]: “Eu com câncer e o meu marido andava com a empregada”.

Para Galeno citado por M.Filho (1992) as perdas são uma das causas do adoecimento por câncer, isto é, a afetividade é fundamental no equilíbrio psicossomático do ser humano. As perdas citadas podem ser imaginárias, sentidas no inconsciente, conflitos não resolvidos com figuras de apego muito importantes.

As mulheres experimentam sentimentos de abandono devido às perdas que tiveram na infância, estas separações, sentidas como abandono, não foram elaboradas, estão presentes de forma constante em suas vidas.

Recurso compensatório adaptativo

O recurso compensatório adaptativo é usado quando a pessoa não entra em contato com o conteúdo do sofrimento, encontrando “saídas” amenas ou defesas para fugir dos conflitos. Defesas, que dificultam a elaboração dos mesmos.

No caso dos sujeitos depoentes, as falas demonstram esta categoria quando:

[...]: “Eu ganhei uma boneca de verdade, eu só tinha bruxa de pano”.

[...]: “Eu adorava ir para o colégio, ao cinema, aos aniversários”.

[...]: “Meus pais montaram uma casa aqui em Bagé para eu morar, passava os verões na estância”.

M. Filho (1992) comenta sobre a falta de consciência e disposição depressiva latente, apresentada pelas mulheres com câncer. A típica personalidade ¨cancerígena¨ é considerada modelar. Para ela, a aparência é mais importante que o ser, não sabe dizer “não”. As mutações que ocorrem com as células deveriam ocorrer na mente da pessoa com câncer.

Outra característica marcante neste tipo de personalidade é a amabilidade excessiva, não reconhecimento de conflitos, aspiração social exagerada, comportamento forçosamente harmonioso, paciência desmedida (às vezes, dissimulada), racionalidade contundente e um rígido controle da expressão emocional (Beltrush, 1991).

O que propiciou a associação das características psíquicas das mulheres estudadas, com o que Beltrush (1991) comenta, foram as respostas que deram à pergunta: “Qual a primeira lembrança positiva que te vem à mente na infância?”. As respostas referem-se a objetos externos, materiais, como se para ser feliz fosse necessário ter coisas e não ser alguém.

Vínculo afetivo

Os depoimentos que resultaram esta categoria se devem às falas das mulheres com câncer, quando responderam às perguntas: “Como lembras da tua mãe, quando eras criança?”

[...]: “Tive carinho da minha mãe, tive muito carinho da minha mãe”.

[...]: “Eu era super apegada à minha mãe, ela era tudo pra mim...”

Segundo Mahler (1982), o vínculo afetivo é verdade universal da existência humana, a dependência emocional com a mãe, ainda que seja pouca, por toda a vida. As primeiras experiências formadoras da personalidade são derivadas da fase simbiótica da dupla mãe-bebê. A imaturidade biológica do bebê humano para manter sua vida por conta própria condiciona esta prolongada fase. Este apego aparece mais tarde, quando as depoentes foram motivadas a lembrar dos pais, fica na mente inconsciente, permanecendo por toda vida.

Medo

O sentimento “Medo” aparece no depoimento de uma das mulheres entrevistadas, da seguinte forma:

[...]: “Eu era medrosa, tinha medo de tudo...”, “A mãe era muito dos filhos homens”..., “Achava a mãe distante de mim”.

O medo é uma reação a perigos específicos, neste caso, o medo está misturado com ansiedade, que é uma reação difusa.O medo é uma resposta à ameaças reais ou imaginárias (May, 1980).

 

DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

O presente trabalho teve como um dos resultados, encontrado na maioria das respostas das mulheres entrevistadas à categoria, “sentimento de abandono”. Como afirma Bowlby (1998) ao longo do desenvolvimento, o ser humano prepara-se para enfrentar a separação. Separar-se de quem ama para a criança, representa se for ausência prolongada, sentimentos de abandono. A capacidade de amar e o sentimento de perseguição têm raízes profundas nos processos mentais primitivos

Para Bowlby (1985), os sentimentos de angústia e raiva dirigidos à figura amada, ocorrem pela frustração causada por esta. O trauma de separação seja por indiferença ou morte provoca sentimentos hostis que mais tarde surgem na vida da pessoa como representação deste afeto doloroso.

As mulheres que colaboraram com a pesquisa, relatam sentimentos de terem sido abandonadas pelas mães, este abandono é caracterizado não só pelo afastamento físico, mas principalmente pela indiferença que as mães demonstravam em relação às mesmas.

Sentir-se abandonada pela perda de alguém importante, para Galleno citado por M. Filho (1992) pode ser uma das causas do adoecimento por câncer, a afetividade é fundamental no equilíbrio psicossomático do ser humano. O sentimento de abandono marca a vida das mulheres deste estudo, quando relatam o que sentiam na infância, suas lembranças e vínculos.

Quanto à categoria “recursos compensatórios adaptativos”, verificou-se que as mulheres do estudo, apresentam como características de personalidade esta forma de manter o equilíbrio psíquico. Nos relatos às entrevistas, falam da importância de fatores externos para seu bem estar emocional. Usam defesas egóicas, segundo Kancyper (1994), responsáveis pelo atípico funcionamento do aparelho psíquico.

O autor refere que frente às perdas ou sentimentos de abandono, se a pessoa não consegue elaborar os lutos, devido à organização psíquica com características sensório-motoras, o psiquismo adquire aspecto “operatório”.

O pensamento operatório nem sempre permite a exteriorização da agressividade evidenciando o empobrecimento na organização do ego. Este tipo de pensamento não permite a integração de tensões pulsionais, que ao não serem integradas e elaboradas acabam ocasionando a desorganização somática, contribuindo para o adoecimento físico.

As mulheres do estudo, através das respostas, demonstraram pobreza no uso de defesas psicológicas como forma de resolver sentimentos de perda.

Para Ferreira (1986), a primeira relação da criança com a mãe é a pedra fundamental sobre a qual se edifica a personalidade. A psicanálise afirma que a sexualidade infantil é fortemente influenciada na relação com a mãe, principal objeto de apego, vai também competir com a filha o amor do pai, no Complexo de Édipo.

A percepção da mulher em relação à figura materna é explicada, com base na hipótese de que na infância o vínculo com os pais, bom ou mau dependendo das vivências e da forma como estes pais lidaram com os sentimentos da criança, será decisivo na formação da personalidade da pessoa (May, 1980).

As mulheres da pesquisa nas entrevistas manifestaram sentimentos de raiva dirigidos à figura materna. A raiva é um sentimento freqüente nas pessoas que sofreram perda real ou imaginária nos primeiros anos de vida. É um meio de extravasar o sentimento negativo, dirigindo-o para fora, enquanto a tristeza ataca o ego causando depressão e sofrimento psíquico (Viorst, 1988).

Considera-se que a saúde mental está de certa forma relacionada com as primeiras vivências infantis, o que em primeiro lugar está dirigido à mãe (o afeto). Mais tarde organizam a relação da pessoa com o mundo e depois permitem a relação do indivíduo consigo mesmo, por meio de um processo reflexivo pondo em contato com seu mundo interno (Kancyper, 1994).

As mulheres com câncer em estudo apresentam como fator importante no desenvolvimento de suas personalidades o vínculo afetivo com a figura materna, hora sentindo-se dependentes e apegadas, hora sentindo-se abandonadas e rejeitadas com expressão de tristeza e raiva pela situação.

Para Kancyper (1994), havendo perturbação no processo acima citado, ou seja, mães com dificuldades de aceitar a separação de seus filhos podem dificultar o desenvolvimento das representações. A criança não consegue diferenciar as suas representações das dos outros, tendo assim dificuldades na integração e reconhecimento como seus, o seu corpo, os seus pensamentos e afetos. O processo de separação individuação é importante na origem de muitas doenças psicossomáticas, dentre elas o câncer.

A pessoa com câncer possui dificuldades no reconhecimento de suas necessidades físicas e afetivas, não podendo reconhecê-las, não pode atendê-las, o que ocasiona uma pobre qualidade de vida.

O medo aparece no estudo, através de atitudes e percepções, como sentimentos de insegurança, mesclados pela raiva da rejeição e do abandono. Bolwby (1998) comenta que as reações dirigidas à figura de apego são: tendência a reprimir a raiva ou redirecioná-la (projeção), atribuindo a raiva a outros e não, a si mesmo.

Considerando que os modelos de figuras de apego e as expectativas de como se comportarão são criados na infância e tendem a permanecer inalterados, o comportamento de uma pessoa, hoje, pode ser explicável não só em termos de situação atual, mas de experiências vividas muitos anos antes.

O ressentimento representa um fator dinâmico de grande importância para a sexualidade feminina. A inveja é a expressão direta da pulsão de morte mais tarde o Complexo de Édipo toma conta dos sentimentos da mulher. Ao perceber a ferida de seu narcisismo, a mulher desenvolve como cicatriz um sentimento de inferioridade. A mãe é responsabilizada pelo seu sentimento de inferioridade e pela inveja do pênis, manifestada pela elaboração rancorosa que não cicatriza ao longo do tempo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo conclui através dos resultados obtidos com relação ao vínculo à figura materna, que as mulheres com câncer apresentam personalidade cuja formação se deu através de vínculos afetivos excessivamente dependentes com suas mães, também com sentimento de raiva e solidão pelo abandono ocasionado por este vínculo afetivo permeado de ausências, rejeição e dependência.

O trabalho permitiu entender os motivos pelos quais, aspectos psicossomáticos tomam conta da vida das mulheres com câncer. Conclui-se que sentimentos de raiva, dificuldades para individualizar-se e incapacidade para integrar sentimentos bons e maus projetados na mesma pessoa ocasionam vazios internos e angústia, dirigidos ao corpo.

A mulher não consegue adaptar-se aos conflitos que surgem na sua vida ao longo do tempo, principalmente relacionados à perda que são revividas como aquelas dos primeiros anos de vida.

Existe uma tentativa de externalizar os problemas de forma a afastá-los do mundo psíquico, fato não conseguido, e, portanto, uso de recursos compensatórios para adaptar-se ao mundo sentido como hostil. A negação e projeção dos sentimentos de tristeza e raiva distanciam a mulher de sua realidade interna, ocasionando vazios internos, falso self, sentimentos de não ser dona do próprio corpo.

O estudo das mulheres com câncer contribui para que se possa pensar numa forma de identificar problemas cuja origem estão nos vínculos afetivos, para enfrentamento de conflitos emocionais, trazendo subsídios para a identificação de conflitos inconscientes, importantes no trabalho psicoterápico de pacientes com câncer. Outra contribuição do estudo foi a conscientização sobre a importância dos cuidados com a infância, vínculos saudáveis, expressão de sentimentos que devem ser aceitos, assim cultivar a saúde mental, para que mais tarde as pessoas não venham a usar o corpo como forma de expressão emocional de conflitos.

As mulheres estudadas expressaram na maioria das respostas, tristeza e sentimento de vazio interno por terem sido abandonadas tanto na realidade como na imaginação. Ficou evidente a dificuldade empática das mães destas mulheres, quando na infância trataram as filhas com negligência e abandono.

Os recursos “compensatórios adaptativos” destas mulheres representam à forma como se adaptaram às frustrações e perdas sentidas na infância, utilizam objetos e situações externos, compensando afetos e figuras de apego.A carência de recursos subjetivos para suportar rejeição e perda, usando mecanismos primitivos como repressão dos conflitos, a organização psíquica com funcionamento operatório, com pobreza egóica.

O estudo permitiu identificar nas mulheres pesquisadas, dificuldades estruturais nas personalidades, prejudicadas pelos vínculos com figuras de apego. As mulheres com câncer, que colaboraram com o estudo, usam o corpo através da doença como expressão dos sentimentos hostis provocados pela rejeição sofrida, seja esta real ou imaginária. O papel do(a) terapeuta no tratamento psicológico às mulheres com câncer está na reconstrução interna das representações percebidas como más, que frustram e abandonam.

 

REFERÊNCIAS

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