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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH v.10 n.2 Rio de Janeiro dez. 2007

 

 

Desafios atuais no trabalho multiprofissional em saúde

 

 

Paula Costa Mosca Macedo*

Hospital São Paulo

 

 


RESUMO

O presente artigo apresenta o tema do Trabalho Multiprofissional, como sendo uma importante ferramenta na abordagem aos pacientes e seus familiares, devido à complexidade cada vez maior dos cuidados em saúde. Porém, sinaliza e reflete sobre as dificuldades intrínsecas a esta prática. As relações interpessoais em saúde e as micropolíticas do poder estabelecidas neste contexto, frequentemente prejudicam os processos de mudança da cultura institucional em busca da humanização da assistência. Os profissionais de saúde muitas vezes se acomodam em suas tarefas, reproduzindo “automatismos do fazer”, sem dar a devida atenção à si mesmos e aos outros. O desafio atual do trabalho multiprofissional é produzir um novo saber, oriundo dos processos de reflexão a respeito da difícil tarefa assistencial, motivando seus atores ao protagonismo tão necessário para a qualificação do atendimento oferecido e o aprimoramento desta ferrramenta indispensável, que é o trabalho em equipe.


ABSTRACT

This article addresses the multidisciplinary or multi-professional assistance as an important approach to treat patients and help their family members, as the knowledge acquired in the field of the health sciences increases every day, in volume and complexity. It also reports and discusses aspects that are in opposition to the effective practice of the multi-professional health care. Inter-personal relationship between health professionals, as well as their fight for power in microenvironments, often hinders the shift of institutional policy towards more humane heath assistance. Furthermore, many times, health professionals show a mechanical behavior in their daily tasks without paying the due attention to others and even to themselves. The challenge that the multi-professional heath care faces today is to derive a kind of new knowledge from the reflection into the complex field of health assistance and impart it to health professionals as a means of having them involved and committed to the improvement of team work, a tool of essential importance to the quality of health assistance.


 

 

São inúmeras as possibilidades para discutirmos as questões mais problemáticas relacionadas ao trabalho multiprofissional na área de saúde e dos trabalhadores envolvidos nesta tarefa de cuidar.

Avançamos quanto ao formato do trabalho em saúde ser preferencialmente multiprofissional, porém esbarramos nas limitações intrínsecas a esta proposta.

Os temas relacionados ao desgaste emocional da tarefa de cuidar de pessoas doentes tem sido amplamente discutidos por toda a literatura, com inúmeros trabalhos produzidos em diversas áreas de atuação, como residência médica, enfermagem, e demais trabalhadores envolvidos nos serviços de saúde.

O grau de satisfação com que um profissional realiza suas atividades diariamente e a maneira como lida com as vicissitudes do seu trabalho, são elementos importantes na avaliação que ele faz da sua qualidade de vida.

Este fenômeno sinaliza aspectos interessantes, quando se trata de discutir as melhorias das condições de trabalho na área, por diversas razões. Entre elas, podemos levantar que há muito tempo já se tem percepção de que a melhor forma de abordagem dos pacientes é o formato multiprofissional, em virtude da complexidade cada vez maior dos cuidados, pela possibilidade de se alcançar maior eficiência na abordagem à pessoa doente, pela fragmentação de tarefas na assistência, pela potência terapêutica que esses profissionais juntos podem alcançar.

Porém este modelo traz consigo uma enorme idiossincrasia, uma vez que este formato de trabalho é produtor de tensões e conflitos, relacionados ao poder e aos interesses em jogo, podendo também vir a produzir desgaste e alienação nos processos de trabalho, bem como problemas de comunicação e relacionamento, que acabam tendo como depositários, os usuários dos serviços de saúde.

Além disto, com freqüência, os profissionais de saúde se deparam com relações profissional-paciente-família bastante complexas do ponto de vista psicológico, para as quais habitualmente considera não ter sido preparado adequadamente durante seu treinamento. A difícil administração destas situações, que envolvem muitas vezes, manifestações de desespero e revolta por parte dos pacientes e familiares, geram no profissional, reações que se expressam sob a forma de desânimo, fadiga, pessimismo, ceticismo, perda de capacidade em sentir prazer, afastamento social, irritabilidade e descuido consigo próprio.

Ressalta-se um outro aspecto deste grande emaranhado que são as relações em saúde; o usuário que precisa utilizar os serviços públicos, carrega consigo uma grande carga simbólica de violências sofridas ao longo de uma historia social, pois são em sua maioria, indivíduos desprivilegiados, carentes, constantemente violentados em seus direitos, também básicos de acesso a saúde, discriminados, e que no encontro com os profissionais de saúde, muitas vezes transferem parte desta violência recebida cotidianamente, nas relações com os profissionais. Propõem muitas vezes um tipo de relação completamente contaminada pelas vivências de sofrimento e agressões sofridas durante o percurso de procura por assistência médica, uma vez que frequentemente encontra filas para atendimento, serviços mal equipados, falta de medicamentos, atendimento desumanizado, profissionais desatentos e alienados, e o descaso permanente das autoridades.

Reflete-se aí uma violência estrutural, reproduzida e institucionalizada no hospital público, reforçada pela desigualdade social e pela ideologia da classe dominante. São elementos que impregnam o processo de trabalho e a conduta dos seus profissionais, em particular, os de sua figura central, o médico. A assimetria social entre este e os pacientes é visível. A violência institucional e ordenada está oculta nas práticas de cuidados sobre o corpo que sofre e a aceita passivamente, por força das circunstâncias.

O panorama não é nada animador, uma vez que, temos profissionais debilitados, sobrecarregados, distanciados e indiferentes ao sofrimento humano, pois eles próprios sentem-se vítimas do sistema público de saúde, constantemente desassistidos em suas necessidades básicas de trabalho, respeito e dignidade, envolvidos em suas próprias tramas de poder, sem condições dignas de trabalho, mal remunerados, e vendo em seus  pacientes, potenciais  agentes estressores. Desse processo de exacerbação do individualismo e de empobrecimento moral que envolve os servidores da saúde, sobra medo, ceticismo, rancor e preconceito contagiantes.

Talvez os profissionais sintam-se também limitados para lidar com problemas sociais  graves e com raízes tão profundas, e que naquele momento do atendimento estão  representados,  o que pode vir a transformar-se, ao longo do tempo, em forte sentimento de acomodação e tendência ao automatismo no lidar com o outro.

Porém, todos são atores nesse sistema, não há vítima nem vilão da história, mas sim uma rede complexa de relações humanas, permeadas por interesses, poder e necessidades. A violência estrutural e de classe é permanente. Termina por ser regulamentada, admitida, consentida, institucionalizada e absorvida como natural.

No que tange à tentativas de mudança deste panorama, está a adoção de políticas de gestão participativa em saúde, e dessa forma, algumas estratégias têm sido adotadas em diversos segmentos da saúde.

Vários hospitais, entre eles o Hospital São Paulo, da UNIFESP, têm adotado algumas medidas nesta direção, talvez ainda de uma forma pouco articulada, em termos de uma real política de promoção de saúde, mas que demonstram seu valor, como processo desencadeador de mudança social.

Uma estratégia é o investimento cada vez maior, em programas de capacitação para os profissionais de saúde, onde há o reconhecimento da necessidade de se cuidar melhor dos trabalhadores, oferecendo informações de utilidade prática no dia-a-dia. Esses incentivos, a priori teriam o sentido de melhorar a auto-estima dos trabalhadores, ofertando conhecimento técnico e atualizações, como forma de instrumentalizá-los para a prática, promovendo uma melhor relação interprofissional, desenvolvendo atividades psicoeducacionais, isto é, revendo conceitos sobre a relação do profissional de saúde com o paciente e familiares, além de abordar, de forma geral e preventiva as dificuldades da tarefa assistencial, dificuldades emocionais do grupo profissional em lidar com situações adversas (óbito, pacientes sem prognóstico, agressividade e hostilidade, famílias ansiosas, etc.) e oferecer treinamento em técnicas de fácil aplicação que capacitem o profissional a aliviar as tensões resultantes da atividade profissional.

Os programas de humanização que se desnvolvem nas instituições visa desenvolver e implementar ações de humanização na assistência aos pacientes e nas relações com e entre os servidores, além de reconhecer, valorizar e divulgar outras iniciativas, já implementadas ou em desenvolvimento na instituição, e estão em consonância com a PNH – Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde, porém muitas vezes sem o devido respaldo institucional, portanto, com potencial reduzido.

Vejamos o que está escrito no projeto original da PNH:

”Considera-se que humanizar a assistência significa agregar, à eficiência técnica e científica, valores éticos, além de respeito e solidariedade ao ser humano. O planejamento da assistência deve sempre valorizar a vida humana e a cidadania, considerando, assim, as circunstâncias sociais, étnicas, educacionais e psíquicas que envolvem cada indivíduo. Deve ser pautada no contato humano, de forma acolhedora e sem juízo de valores e contemplar a integralidade do ser humano. A Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde entende por humanização a valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde e enfatiza a autonomia e o protagonismo desses sujeitos, a co-responsabilidade entre eles, o estabelecimento de vínculos solidários e a participação coletiva no processo de gestão. Pressupõe mudanças no modelo de atenção e, portanto, no modelo de gestão. Assim, essa tarefa nos convoca a todos: gestores, trabalhadores e usuários.”

Porém o questionamento que se faz é: como transformar estes preceitos em prática diária, em compromisso moral, e com a necessária aderência dos atores envolvidos?

O desafio torna-se ainda maior, uma vez que, o cenário com o qual nos deparamos, objeto da necessária transformação, é permeado por  conflitos de interesse e tramas de poder.

O problema está colocado, quando se observa que para a efetivação da política de humanização, é preciso comprometer os profissionais de saúde, estreitar as relações entre os profissionais e a relação destes com os usuários, sendo necessária a aproximação crítica em relação à forma como os profissionais se organizam, necessariamente esbarra-se em hierarquias, hegemonias e premissas de liberdade e autonomia do médico, que são “bens inegociáveis”. Portanto são muitos os desafios para a efetivação dessa política, ainda mais se ela não significar simplesmente uma vitrine para o alcance da acreditação, o que de fato vemos acontecer em várias instituições, mas sim representar uma proposta honesta e comprometida com seus ideais.

Vemos que os projetos de humanização tendem a sensibilizar os profissionais para uma mudança de atitude, mas também são exigentes quanto à sua forma de organização e estruturação, com a adoção de protocolos e métodos de trabalho que tendem a ser controlistas e, portanto, também tendem a gerar resistência.

Neste sentido vemos a importância da constituição e manutenção de espaços estimulados pelos gestores, com objetivo de se realizar constante “diálise dos processos de trabalho”, pois a geração de conflitos é permanente e há necessidade de se criar mecanismos para abordagem dos mesmos. Esse enfrentamento permanente das dificuldades e problemas do cotidiano parecem ser a força motriz para a produção de cuidados em saúde. Ou seja, o auto-cuidado e o cuidado com os outros acontecendo permanentemente e incessantemente.

Este mecanismo, inclusive, dá um sentido ampliado para o trabalho multiprofissional, pois a articulação dos membros de uma equipe para perceber e focalizar mínimos desvios e dificuldades no trabalho pode ser um meio eficiente para o alivio de tensões. Porém uma equipe de trabalho é um organismo vivo, e mesmo funcionando dentro de parâmetros mais democráticos e com perfil mais participativo, sempre existirá algum nível de distribuição de poder entre os participantes, mecanismos auto-reguladores, linhas hierárquicas bem definidas, disputa e conflitos de interesses e, portanto, níveis de tensão. Humanizar verdadeiramente os serviços de saúde é também esbarrar em estruturas vivas de poder e controle dentro da instituição.

O modelo de trabalho multiprofissional por si só, já é produtor de conflitos. A autonomia é característica do trabalho médico, enquanto os demais trabalhadores permanecem em configurações de trabalho mais hierarquizadas, como a enfermagem, o serviço social, a psicologia, a fisioterapia e a nutrição. Isto de certa forma se traduz em relações de poder, pois as diferenças estão dadas, pressupõe níveis de subordinação e então surgem as insatisfações. Porém como adentrar nesse campo, como questionar algo que já é tão intrínseco a prática médica, e ainda conquistando a simpatia dos médicos, sujeitos envolvidos, privilegiados e imprescindíveis a esta mudança?

Como negociar com a equipe de enfermagem, formas de horizontalizar as relações e diminuir o controle sobre os trabalhadores, como diminuir a alienação destes nos processos de trabalho, se apesar de serem submetidos ao poder médico e dele reclamar, acabam reproduzindo esse sistema fortemente hierarquizante dentro do próprio grupo?

 E quanto aos demais profissionais que cuidam de especificidades e não gerenciarem diretamente as ações de cuidado e tratamento, muitas vezes são vistos como “artigos de luxo na assistência”, portanto facilmente descartáveis, que poder efetivo para negociação estes têm?

E quanto à participação dos usuários, ferramentas importantes para a mudança, uma vez que é em função destes que os serviços se articulam, e seriam capazes de sinalizar as falhas dos processos de cuidado em saúde, mas como facilitar este acesso e conquistar sua efetiva participação, visto que o exercício participativo dos cidadãos em espaços formais e institucionais não é prática usual e instrumental  em nossa sociedade.

Um questionamento sempre muito valioso é de como estabelecer estratégias de mudança da vida organizacional, melhorar as condições de trabalho e a assistência prestada, desejar que os trabalhadores estejam mais satisfeitos, sem que uma profunda mudança nos processos de trabalho e na micropolítica destes, dentro das organizações sociais que são as equipes de saúde seja implementada.

Mudança só se faz às custas de processos; processos só são possíveis com indivíduos motivados e direcionados para as mudanças.

 

Bibliografia Recomendada

- CARAPINHEIRO, G - Saberes e poderes no hospital: uma sociologia dos serviços hospitalares. Porto: Edições Afrontamento, 3ª edição, 1998.         [ Links ]

- CECILIO, LCO (org). Inventando a mudança na saúde. São Paulo: Hucitec, 1994.

- CECILIO, LCO - “Autonomia versus controle dos trabalhadores: a ‘gestão’ do poder do poder no hospital”. Rio de Janeiro: ABRASCO. Ciência & Saúde Coletiva., 4 (2):315-329,1999.

FAGNANI NETO R, OBARA CS, MACEDO PCM, CÍTERO VA, NOGUEIRA-MARTINS LA- Clinical and demografic profile of users of a mental health system for medical residents and other health professionals undergoing training at the Federal University of Sao Paulo. Sao Paulo Med J.;122(4):152-57,2004.

- MACEDO, PCM.- O Trabalho em equipe multiprofissional, in A Face Humana da Medicina, De Marco, MA (org),. São Paulo, Ed. Casa do Psicólogo; 2003.

- MERHY, EE. Saúde: A cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Huictec, 2002.

-MINAYO, M.C.S. A violência social sob a perspectiva da Saúde Pública. Rio de Janeiro: Cadernos de Saúde Pública,MS-Ensp- Fiocruz,, -Sup.(1), 05-06: 7-18, 1994.

- MINISTÉRIO DA SAÚDE - cartilhas da PNH.

 

 

* Psicóloga do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP e Coordenadora do Programa de Capacitação e Assessoria ao Profissional de Saúde do SAPIS/ Hospital São Paulo

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