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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH v.11 n.1 Rio de Janeiro jun. 2008

 

 

Psicanálise no hospital: algumas considerações a partir de Freud

 

Psychoanalysis in the hospital: some comments since Freud

 

Valéria de Araújo Elias1

Universidade Estadual  de Londrina-PR

 

 


RESUMO

O presente artigo trata das particularidades da clínica psicanalítica inserida em um hospital público privilegiando os limites e possibilidades dessa prática pautada nas contribuições de Freud sobre a técnica e a ética.

Palavras-chave: Psicanálise, Hospital, Psicologia hospitalar.


ABSTRACT

The current article deals about particularities of the psychoanalitical clinic in a public hospital privileging the limits and possibilities of this practical guided for Freud`s contributions about technique and ethic.

Keywords: Psychoanalysis, Hospital, Hospital psychology.


 

 

Repensando a clínica psicanalítica no contexto hospitalar

O tema que apresentamos aqui constitui um testemunho de uma prática permeada de muitos questionamentos sobre os limites e possibilidades da psicanálise no hospital. A psicanálise enquanto um referencial prévio de escuta na clínica se deparou durante muito tempo com o discurso de que não seria possível fazer psicanálise no hospital geral. Tínhamos então um impasse: como abrir mão de um conhecimento e de uma forma de escutar o sujeito humano, até então limitado ao espaço privado do consultório, para se arvorar em um território médico ausente de uma teoria específica. Esta idéia pensada simplesmente pela possibilidade ou impossibilidade era estéril, não abria a nada. Diante da recusa de não ceder ante ao desafio, passamos a interrogar teoria psicanalítica em seus aspectos teóricos e técnicos possibilitando fazer circular este discurso.

Seria possível escutar o sujeito em sua dimensão inconsciente em qualquer lugar? E em curto espaço de tempo?

Durante muito tempo essa idéia funcionou de forma paralisante dado que se respondida pelo sim ou pelo não, não permitia explorar as bordas de algo que efetivamente acontecia e acontece. Essa posição tem paulatinamente se modificado, à medida que tem havido muitas discussões e produções científicas que propiciaram avanços teóricos que a sustentam.

A clínica psicanalítica consagrada enquanto uma prática realizada nos consultórios tem no verbo clinicar o seu paradoxo: significa atendimento na beira do leito. Freud era médico e, ao iniciar suas primeiras experiências de investigação sobre o psiquismo com as histéricas, demonstrou o quanto o hospital pode revelar-se como um espaço fértil para se observar o sujeito humano diante do que mais o atinge: sua fragilidade psíquica acometida por um acontecimento somático que se inscreverá irremediavelmente no campo da fala e da linguagem.

Freud (1919) ao pensar sobre a necessidade da extensão da prática da psicanálise para além dos limites dos consultórios, para atender à enorme miséria neurótica existente no mundo, nos alertou da necessidade de adequar a técnica às novas condições, com o rigor que essa práxis comporta. Seguindo a sua sugestão, fomos buscar nas especificidades da psicanálise o aparato de sustentação para fundamentar nosso trabalho. Afinal, se a escuta analítica é nossa principal ferramenta de trabalho precisamos estar silenciosos em nossas urgências e seguros de nossa função para podermos escutar o inconsciente do outro.

Não se pode negar que, nesse campo de atuação, a clínica psicanalítica é permeada de impasses e não concerne ao que se conhece como enquadre referido geralmente a certas condições técnicas inerentes à prática dentro dos moldes do consultório. Porém, trata-se de uma práxis pautada em uma ética que não desconsidera essas condições e nos leva a interrogar suas vicissitudes e peculiaridades não para inviabilizá-la, mas para possibilitar que ela aconteça.

A experiência de Freud com Katharina em que sua escuta aconteceu nas montanhas, dentro de um setting bem diferente da prática convencionada em seu consultório, quer pelo espaço físico ou pela lógica temporal limitada por suas férias, não o impediu que tivesse acesso aos conteúdos inconscientes e que a paciente se beneficiasse dos resultados terapêuticos de um saber sobre seu sintoma que lhe permitiu uma mudança em sua posição subjetiva.

Providos de nosso principal instrumental de trabalho: a escuta, é necessário refletirmos sobre algumas questões que emergem dentro de um hospital geral. Composto por pessoas com demanda de tratamento orgânico, cuja existência é pautada no sofrimento, suas angústias e demandas transcendem o biológico, embora, algumas vezes, por falta de alternativa, são nomeadas no corpo e, como conseqüência natural, endereçadas ao médico. Essa clientela que acompanhamos representa ainda hoje um desafio para quem se propõe a uma prática clínica dentro desse contexto, principalmente para os voltados para o atendimento nas enfermarias.

Essa condição propicia pensarmos nas idealizações ligadas ao setting composto por seus divãs e poltronas confortáveis, livres dos ouvidos e olhos das outras áreas questionando a importância de nosso trabalho. Na prática hospitalar a ética do ato analítico pode manter sua eficácia mesmo submetendo o dispositivo analítico a transformações, tais como: freqüência das sessões, a demanda secundária (já que o que levou o paciente ao hospital foi um pedido dirigido ao corpo médico), o tempo de duração de um tratamento e mesmo a relação com o dinheiro e a transferência em relação à instituição ou ao analista. Se estes aspectos tratarem de um entrave no processo seria o caso em que uma análise poderia começar e não terminar.

É verdade que um atendimento no leito está sujeito às mais diversas interrupções desde o vizinho do leito até exames, curativos ou medicações. Atendimento atravessado ainda por vários complicadores: enfermarias lotadas, falta de privacidade, interrupções, exames, altas, etc. permeados ainda por falta de vagas até cancelamento de exames após longa espera em jejum ou mesmo cirurgias; ou seja, questões outras que não se relacionam diretamente com seu estado clínico e que vão ser vivenciadas de maneira singular pelo paciente.

Assim sendo, a própria internação pode por si só propiciar a atualização de perdas na medida em que consiste no afastamento de familiares e quebra de rotina de vida, para ingressar em um espaço estranho e desconhecido onde se encontra submetido ao saber médico, diante da espera e da possibilidade de morte. Essas condições podem desencadear o surgimento de questões acerca de si, da sua posição de sujeito, podendo se caracterizar como demanda psicanalítica.

A hospitalização caracteriza-se também como um momento de contato mais próximo com o sofrimento ou a dor e, por isso, favorece uma situação propícia para a implicação do sujeito com a sua subjetividade, possibilitando uma abertura para a escuta do inconsciente se o profissional se colocar na posição de desejar escutar, ainda que a busca principal seja da cura da enfermidade inscrita no corpo biológico.

Pensarmos ainda na inserção da psicanálise em uma instituição pública cuja clientela se compõe de camadas populares também é motivo de oposição ao exercício da prática psicanalítica. Essa presença já era considerada possível e necessária pelo pai da psicanálise que em 1919 escreveu que mais cedo ou mais tarde a sociedade se lembraria que o pobre não tem menos direito à terapia da mente quanto o que já tem em matéria de cirurgia básica. E que as neuroses “não constituem menor ameaça à saúde popular que a tuberculose e, portanto, da mesma maneira que esta, não pode ser deixada ao cuidado impotente do indivíduo pertencente às camadas populares [...]. Estes tratamentos serão gratuitos”. (Freud, 1919: 162).

Nesse mesmo trabalho, ele ressaltou a importância de prestarmos atenção a toda tendenciosidade presente na consideração de que o pobre não seria analisável por suas condições econômicas, sociais e culturais. Em suas recomendações aos psicanalistas, porém, não desconsiderou os possíveis ganhos secundários presentes em situações em que uma doença traria ao seu portador os benefícios que o levariam a uma resistência em modificar sua posição subjetiva tornando-se um impedimento, mas também um desafio ao trabalho analítico.

Freire Costa (1989:7) ao se referir ao direito de todos a ter acesso à psicanálise comenta que “trancafiar Freud em galerias privadas é dar mostras de uma timidez intelectual injustificada ou de um espírito iniciático e sectário, avesso ao livre debate de idéias”. Assim, mais uma vez não haveria razão para privar uma população de seu direito de ser escutado em sua singularidade na busca de um alívio para seu sofrimento inscrito no psiquismo.

A práxis psicanalítica em nossa instituição pode se dar desde o pronto-socorro, passando pelas unidades hospitalares seja nas enfermarias ou hospital-dia, nas salas de espera, nos procedimentos cirúrgicos (pré, peri e pós), até o ambulatório dos projetos interdisciplinares, em clínicas específicas como Aids, Cardiologia, Oncologia, Endocrinologia, UTI, Nefrologia, entre outras. Os ambulatórios de psicologia geral permitem continuar acompanhando aquele paciente cujo atendimento na unidade de internação configurou-se numa demanda analítica pós alta hospitalar.

Logicamente que, nesse contexto, não dá simplesmente para transpor os moldes da clínica tradicional. É necessária uma revisão de aspectos que deverão ser redimensionados buscando-se estratégias de articulação com a teoria para que essa prática se sustente. Pensemos um pouco a respeito de outras especificidades presentes no campo hospitalar e que supostamente seriam também considerados entraves para a prática analítica.

 

O tempo para a medicina e para a psicanálise

Um desses fatores a ser refletido diz respeito ao tempo. No atendimento clínico restrito ao consultório mesmo que não se tenha controle da assiduidade do paciente ao tratamento parte-se da idéia que haverá tempo para realizar o que objetivamos. A instituição hospitalar redimensiona esta questão visto que o tempo é delimitado por uma série de fatores externos a nós: alta do paciente, transferência para outro hospital ou unidade, óbito, interferências de diversas espécies.

A própria história da psicanálise nos ensina que não há necessidade de rigidez quando pensamos na forma como Freud instituiu os 50 minutos de uma sessão analítica. Freud precisava encontrar um horário para atender um caso encaminhado por um amigo. Retirou então 10 minutos de cada sessão as quais eram de 1 hora para que então tivesse espaço para atendê-lo.

A dimensão temporal com que trabalha se baseia no conceito freudiano sendo homóloga ao inconsciente. O tempo em termos médicos é o tempo como valor quantitativo, ligado à eficiência e à urgência, o que pode ser confundido com o imperativo de ter que responder prontamente.

Além disso, o tempo cronológico de internação ou de vida não coincide com a lógica temporal do sujeito, que não flui de forma linear e está ligada à contingência do encontro com o inconsciente que é atemporal. Trata-se de um aspecto que dificulta o trabalho se o sujeito quiser falar mais e não tiver a possibilidade de prosseguimento no ambulatório, condição oferecida em nossa instituição. O curto tempo de vida de um sujeito que se encontra na iminência da morte e quer falar nos coloca em um lugar bem diferente do desinvestimento ligado à conduta médica dedicada aos “pacientes terminais”.

Pouco tempo cronológico, portanto, não justificaria uma compreensão reduzida do psiquismo, restringindo a sua escuta ao plano consciente e aguardando que a intervenção analítica só possa acontecer fora do contexto hospitalar e tendo a ilusão da eternidade a seu favor.

 

Demanda e função do analista no hospital

Na demanda institucional aparece como exigência implícita dar resposta rápida e eficiente a situações que desde o pedido aparecem marcadas como impossíveis. Sabemos que muitas vezes essa demanda obedece à impotência da equipe na tentativa de lidar com determinada situação, muitas vezes para convencer o paciente de uma conduta em prol de seu tratamento ou daquilo que supostamente seria o “bem” para ele, sem singularizar o sujeito. Essa demanda se assim nos chega já vem embutida de uma tentativa prévia fracassada e o risco de atendermos a este chamado é em transformar uma sessão clínica em uma intervenção de emergência. E aqui nos cabe questionar: emergência para quem?

Somos tentados pelos efeitos alienantes de uma instituição hospitalar a funcionar como se espera dentro de uma posição médica. Se em troca ao chamado médico produz-se algo a interrogar, não havendo reciprocidade entre o que se solicita e o que se oferece a partir disso, o discurso deixa de permanecer limitado ao corpo e poderá começar a circular. Diferente da medicina, nosso trabalho não objetiva a eliminação do sintoma, mas possibilita um saber sobre ele que se articula com a história do sujeito.

Atender ao pedido, sem questionamento, além de nos distanciar de nossa função, movidos unicamente pela pressa de quem nos pede solução é o caminho para o fracasso. Diante do não reconhecimento de nosso lugar e de nossos limites aparecerá a impotência e o sentimento de ineficácia. Cabe a nós reconhecermos nosso lugar, pois, na ausência desse reconhecimento, passaremos a agir como assistentes de outra área, terreno propício para os acting-outs. É no lugar do não saber que devemos permanecer e que é bem diferente da ineficiência e da ignorância. Além disso, o sujeito dentro do modelo médico é objeto de cuidado ao passo que para a psicanálise trataria do sujeito do desejo, havendo diferença entre o que se quer e o que se deseja.

Esta demanda em que se tem como resposta a postergação de nossa função de analista traz implicitamente o apaziguamento das intervenções, diante da dificuldade de sustentar um lugar inespecífico no cenário médico que funcionará como resguardo imaginário da produção de uma operação analítica.

Aqui caberia pensarmos na resistência por parte do analista em promover o ato analítico cedendo em seu rigor metodológico e ficando à mercê da espera do momento supostamente ideal para que isso aconteça (trabalhar com “conteúdos mais profundos”) em busca da “minimização do sofrimento orgânico”. Espera que nada se assemelharia com a espera que os conteúdos inconscientes possam ser escutados quando o sofrimento orgânico se articula com determinantes de outra ordem. No máximo, isso impediria que uma intervenção pudesse ocorrer a partir de uma escuta atenta e receptiva em que o psicanalista, junto ao paciente, possa pensar em alternativas que impeçam que o sofrimento orgânico se entrelace desnecessariamente com questões psíquicas.

Freud tomou a responsabilidade de nos mostrar que existem doenças que falam e de nos fazer ouvir a verdade do que elas dizem. O hospital é um campo fértil para a prática psicanalítica à medida que nos deparamos com as formas contemporâneas de sintomas. Acredito ser possível produzir efeitos de análise, ou seja, intervenções e pontuações que coloquem o sujeito frente a outras formas de repetição, em que os fatores que desencadearam seu sofrimento, articulados ao seu sintoma, tendem a se tornarem fragilizados, permitindo confrontos que possibilitem outras formas menos desgastantes de lidar com suas questões e de conduzir sua vida.

A nossa práxis diária pelo espaço hospitalar atesta a viabilidade desses atendimentos principalmente se a tomarmos por sua vertente ética, ou seja, como um trabalho que ultrapassando o ideal do alívio, refere-se à construção de uma verdade singular sobre o sujeito e o desejo inconsciente de cada um. Um analista que não pode suportar a situação de não saber a qual se está exposto, não poderá se colocar psicanaliticamente em relação ao paciente, pois o que move o nosso trabalho é justamente a curiosidade ante ao insabido. O que sustenta o analista em seu lugar é a sua própria falta de poder, a sua castração e, se assim não for, como ele poderá levar o sujeito a reconhecer suas próprias faltas?

Moura (1996) define o hospital como um “Real Insuportável” ao indagar o psicanalista em sua função. Diante do insuportável somos convidados a incorporar o saber sobre o que fazer e dizer diante da dor, do sofrimento e da morte. Somos depositários de um saber de algo que não sabemos. Temos que ter clareza de que temos um lugar de saber específico e só podemos intervir na falta.

Clavreul (1983:19) coloca que por meio das etapas pelas quais se efetua o ato médico, ou seja, o diagnóstico, o prognóstico e a terapêutica, o que se configura é um discurso que exclui a diferença, único modo pelo qual a subjetividade poderia se manifestar. Com a utilização de um vocabulário que o doente não tem acesso, o discurso médico opera reduzindo o sentido dos diferentes discursos do sujeito àquilo que é passível de ser inscrito no discurso médico. A pluralidade de sentido, característica da língua é abolida para dar lugar a um código, reduzindo a queixa do paciente a um único sinal clínico para que possa ser inscrito no discurso médico. A fala do sujeito é então ouvida apenas para ser descartada.

Era com o nome de psicoterapia, diz Clavreul (1983: 14) que a Grécia cristã denominava a ação de converter os pagãos. Converter, convencer, vencer são tarefas próprias ao discurso do mestre. Já a psicanálise, sua propriedade é de não vencer, não com-vencer. Ao mesmo tempo ao cortar a palavra com-vencer (com-vaicre) isola o termo popular com, que significa bobo, babaca. Freud então deixou para trás, para a pré-história da psicanálise, a utilização da técnica hipnótica e da sugestão com a qual esta necessariamente operava, para a escuta do sujeito em sua livre associação. Associação livre, segundo o autor, também da opressão promovida pelo inquérito médico que se configura pela anamnese. Escuta por sua vez flutuante do analista, ou seja, que não valoriza a priori nenhum dos elementos do discurso do sujeito, não se utilizando o analista, desse modo, de seus pré-conceitos para ouvir.

Freud inspirado pelos ensinamentos de Charcot percebe que há algo a mais que os pacientes querem dizer e que merece ser escutado. Seu desejo é o de escutar, o que desperta no paciente o desejo de ser escutado e possibilita o aparecimento de um discurso no qual se reencontra um outro desejo encoberto pelo sintoma. Cria-se assim um espaço diferenciado no qual o paciente, que tem sempre algo a dizer, pode recuperar seu desejo articulado no sintoma. Este é o ponto de partida para a prática da psicanálise hospitalar.

Ocorre assim a passagem de um discurso a outro: da posição do médico para o psicanalista, da compreensão para a interpretação, da postura do sujeito que sabe (própria do médico) para a do suposto saber (lugar do psicanalista). Essa passagem da utilização da anamnese médica para a associação livre se diferencia da posição do saber onipotente para uma posição própria ao analista, ou seja, a da neutralidade. Nesse sentido, nossa função seria a de escutar aquilo que o paciente quiser falar desde a sua ótica, sem privilegiar nada, ou seja, nada é mais importante que nada e isso é atenção flutuante – uma das primeiras regras colocadas a nós por Freud para promover a transferência.

Enquanto o sujeito puder falar nos cabe escutar o que ele quiser dizer, oferecendo nossa escuta para acolher qualquer enunciado, respeitando as particularidades e subjetividades e apontando no discurso o que vai possibilitar a abertura de questões que o remetem à própria história fazendo com que aquela vivência seja única resgatando a sua implicação e responsabilidade com a própria doença. O inconsciente do sujeito se desenvolve para além do real do sintoma no corpo imprimindo em seu adoecer as marcas de sua história que diz respeito ao singular.

Freud (1912) em suas recomendações aos médicos psicanalistas destacou que as regras que fazem a técnica não são universais. Muitas são boas para trabalhar com os pacientes, mas não é o cumprimento dessas que garantem a análise. O psicanalista pode oferecer sua presença e sua escuta e, portanto, isso pode ser levado para qualquer lugar, nas montanhas como fez Freud com sua paciente Katharina, nas enfermarias, nos ambulatórios. Onde for possível falar e escutar, ali está o inconsciente, com seu movimento à mostra, pronto para ser capturado em seu discurso.

Não é tarefa simples ter clareza de nossos limites de trabalho ou não atuar desde outro lugar que não o de analista. Nesse espaço é necessário pensar não só sobre o desejo do paciente como sobre o desejo de analista, ou seja, sobre as determinações culturais, institucionais que podem interferir no lugar do qual sua escuta se circunscreve e seu desejo se articula.

Assim, a pré-condição para que esse trabalho aconteça no hospital partiria da identificação dos principais pontos de resistência do analista, do “lugar” onde se encontra em sua análise, as zonas de constrangimento do sujeito, ou como sugeriu Moura (1996), trataria de um desafio ético: a capacidade para o analista abrir mão de seu narcisismo para oferecer-se diante da demanda inespecífica, se pensar que o que levou o paciente ao hospital foi uma demanda dirigida à medicina.

O que mantém nossa posição diante de uma demanda secundária se ligaria à ética do desejo, condição fundamental para uma atuação eficaz e produtora do novo: o desejo de escutar que possivelmente despertará no outro o desejo de ser escutado. Fora isso, nada impediria o acolhimento de uma práxis psicanalítica no hospital.

E esse desejo se refere não a uma compreensão e sim a dessubjetivação, ou seja, o de ausentar-se enquanto pessoa para poder escutar o sujeito em sua singularidade dentro de uma cadeia de significantes que o remete à sua própria história. Compreender se corre o risco de capturar o discurso do outro dentro de um referencial já concebido por nós e assim nunca sabermos mais do que já sabemos. A curiosidade e o desprendimento para aceitar o novo devem ser a molas propulsoras de nosso trabalho.

A escuta passa a ser a única ferramenta pelo qual pode emergir a verdade do sujeito a partir da transferência permeada pelo princípio da neutralidade e da abstinência. Freud recomenda que o analista deve permanecer em posição de abstinência, não como passividade, mas no lugar de um saber ético que dirige o tratamento à medida que encaminha o sujeito até seu próprio saber sobre si e seu desejo, ao convidá-lo a produzi-lo através de associações.

Alguns se angustiam outros se deprimem outros por ansiedade fazem “altas pedidas” outros são indiferentes, mas a possibilidade de escuta os leva a questionarem e rever suas vidas imprimindo no adoecimento as marcas da singularidade. É isso que se oferece na maioria dos casos acompanhados no hospital, uma oferta de escuta analítica que pode vir ou não a se tornar uma análise. Enquanto o sujeito puder falar, escutá-lo é testemunhar que o inconsciente insiste e a história do sujeito persiste para além do corpo biológico.

A curiosidade por parte de quem escuta introduz a dimensão de um enigma, de que há uma causa para que isso funcione assim. Se desejarmos adormecer nossa curiosidade com a demonstração do saber, com teorias, diagnóstico, corre-se o risco de retirar o valor da interrogação que o sintoma tem para o analista e o valor de enigma para quem padece. E, seguindo as recomendações de Freud, não se trataria, portanto, quer no consultório ou no hospital, de educar, corrigir, aconselhar, ensinar, sugerir nem propor ao paciente um destino. Impor nossos pontos de vista, ideais, convicções, nem pretender com a arrogância do criador formar o paciente nossa imagem e semelhança. (Freud, 1912).

 

Análise terminável ou interminável?

O tratamento analítico dentro do hospital nos remete a outro impasse: começo e fim de análise. A resposta que se pode dar é que nada vai garantir nem no hospital nem no consultório particular que isso se dê; a não ser o desejo do paciente de se implicar em seu próprio discurso tentando desvendar os enigmas que se impõe, permitindo que o inconsciente se apresente como linguagem.

Começos e finais aludem a limite, borda. O limite possui a condição de delimitar, de separar uma coisa de outra, sua inexistência leva ao ilimitado. Cada pontuação que conduz o analista, como nos recomendou Freud, é como uma peça que se movimenta no xadrez em que cada movimento produz nova organização psíquica. Em efeito poderá conduzir em outro tempo, embora nada garanta que isso se dê. Se para o paciente houve um antes e um depois na singularidade de cada encontro analítico, poderíamos pensar que ali algo se concluiu e algo começou. Assim, a intervenção do analista imprime uma marca e ordena o destino do sujeito ao tratar com o real. O momento de concluir é o que possibilitará uma mudança de posição e, por conseguinte, um outro tempo.

Quanto à posição de analista diante da questão sobre o tempo de duração de uma análise e seu término, Lacan considerou que: "Uma análise não deve ser levada muito longe. Quando o analisando pensa que está feliz em viver, é o bastante" (Lacan, 1976:15). Muitas vezes o atendimento no hospital não passa de entrevistas preliminares sendo importante então propor um encaminhamento coerente ao que se concluiu tratar a demanda do paciente.

 

Conclusões

Podemos concluir que a práxis psicanalítica no hospital ganha especificidades a partir do contexto no qual se insere o que não quer dizer invalidá-lo ou criar uma “teoria hospitalar”. Significa que necessitamos reconhecer suas peculiaridades e diferenças e, a partir disso, sem abrir mão do que acreditamos, delimitar os alcances e possibilidades, para que nossos ouvidos não se tornem surdos em prol de uma idealização inatingível. Nosso dispositivo analítico opera pelo estatuto do saber inconsciente e se funda no um a um em que cada caso é único. E é isto que deve interessar ao psicanalista, não estando aí implicado nenhum imediatismo, seja de sua parte ou do paciente. Dentro dessa perspectiva é que podemos articular um lugar possível e original para a clínica psicanalítica no hospital.

 

Referências Bibliográficas

CLAVREUL, J. (1983). A Ordem Médica. São Paulo: Brasiliense.        [ Links ]

FREIRE COSTA, J. (1989).Psicanálise e contexto cultural: Imaginário psicanalítico, grupos e psicoterapias. Rio de Janeiro: Editora Campus.

FREUD, S. (1912) Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980, v.XII.

________.(1919) Linhas de progresso na terapia psicanalítica. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v. XVII.

LACAN, J. (1975). Conférences et entretiens dans des universités nord-américaines. In: Scilicet 6/7, pp. 5-63. Paris: Éditions du Seuil, 1976.

MOURA,M.D. (org.) (1996). Psicanálise no Hospital. Belo Horizonte: Revinter.

 

 

1 Mestre em Psicologia e Sociedade, especialista em Psicanálise, Psicóloga do Serviço de Psicologia do Hospital Universitário e do Ambulatório do Hospital de Clínicas da Universidade Estadual  de Londrina-PR Coordenadora do Curso de Formação em Psicologia Hospitalar HUTEC/UEL Psicóloga do Serviço de Psicologia do Hospital Universitário e do Ambulatório do Hospital de Clínicas da Universidade Estadual  de Londrina-PR. Membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Psicologia Hospitalar  2007/2009.  Trabalho apresentado na VII Jornada de Psicologia  do Hospital Universitário/UEL – I Congresso Brasileiro de Psicologia Aplicada à Saúde – setembro 2008 – Londrina, Paraná.

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