SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.11 número1Psicanálise no hospital: algumas considerações a partir de FreudSíndrome de Burnout em trabalhadores da enfermagem de um hospital geral índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH v.11 n.1 Rio de Janeiro jun. 2008

 

 

Corpo estranho – narcisismo e desamparo no contexto hospitalar

 

Narcisism and helplessness in the hospital context

 

 

Mariangela Bento*

Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

 

 


RESUMO

Este trabalho tem por objetivo discutir o conceito de narcisismo a partir da obra freudiana. Situa o narcisismo como estruturante do sujeito psíquico e como recurso defensivo, a fim de suportar o sentimento de desamparo diante do adoecimento do corpo e da concepção da morte. A discussão teórica é ilustrada por um fragmento clínico de um caso atendido no Hospital do Servidor Público Estadual “Francisco Morato de Oliveira”.

Palavras-chave: Narcisismo, Corpo, Desamparo.


ABSTRACT

The aim of this study is to discuss the concept of narcisism from Freud's work. We set narcisism as the support of the psychic subject and the defensive resource to bear the feeling for helplessness before the aging of the body and before the idea, conception of death. The theoretical discussion is illustreted by a brief clinical case that was seen at Hospital do Servidor Público Estadual "Francisco Morato de Oliveira".

Keywords: Narcisism, Body, Helplessness.


 

 

Freud (1930/1987d), em “O mal-estar na civilização”, anuncia que o sofrimento nos ameaça a partir de três distintas direções que são, portanto, fontes do sentimento de desamparo humano. Essas fontes são:

- do mundo externo que pode voltar-se contra nós com forças de destruição, ou seja, as catástrofes da natureza – situações que não podemos controlar e nem prever;

- do sofrimento decorrente da relação com o semelhante – a alteridade do outro nos fere em nossos desejos, e

- de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência.

Neste texto vamos nos deter a respeito da terceira fonte, tentando articular o sofrimento advindo do corpo, que está explícito nos pacientes em situação de internação hospitalar, com os mecanismos de defesa psíquicos acionados em decorrência dessa experiência.

Seguindo Freud (1930/1987d), a decadência, ou adoecimento ou, em última instância, o mau funcionamento de nosso corpo é fonte de desamparo. Lembramos que o conceito de desamparo nos remete a ausência de defesas para lidar com uma angústia que nos invade. O desamparo é um estado inicial do sujeito humano, correlativo à dependência da mãe para a sobrevivência, que pode ser disparado novamente por situações extremas.

É característica de nossa espécie o fato de que, caso não haja um semelhante que cuide de nós, morremos. Portanto, podemos afirmar que é na relação intersubjetiva com nosso semelhante que nos constituímos enquanto seres humanos e como sujeitos psíquicos e é ela que nos sustenta, oferecendo um continente para o desamparo inicial que nos invade. Somos desamparados para lidar tanto com as ameaças do mundo externo – frio, fome, necessidades básicas - como com as ameaças do mundo interno – fragmentação, caos, angústia. As ferramentas para lidar com tais situações serão desenvolvidas a partir das relações que estabelecemos. Paradoxalmente, os vínculos relacionais que nos socorrem tornar-se-ão, futuramente, fonte de sofrimento tal como descrito por Freud (1930/1987d), como a segunda fonte de sofrimento humano.

Assim definidas, as situações de desamparo nos remetem a experiências nas quais nosso aparelho psíquico é invadido por uma angústia tal que não podemos dar vazão à mesma, na medida em que não há representações disponíveis para sua simbolização.

De modo geral, o corpo se faz presente em diversas expressões, tais como as somatizações, as doenças psicossomáticas e a conversão. Portanto, podemos afirmar que, quando há falha na possibilidade de representação, é grande a possibilidade de um sintoma se manifestar no corpo. Em outras palavras, quando há negatividade de pensamento, há positividade do corpo.

Corpo e psiquismo são indissolúveis e a fronteira entre ambos é móvel. Nem tudo que ocorre em nosso corpo advém do psíquico e, justamente por isso, nosso corpo pode nos deixar desamparados. Faz-se necessário reafirmar que no psiquismo eu é equivalente ao corpo e, conseqüentemente, alterações no corpo são vivenciadas como alterações no eu.

Lembramos que nossa primeira referência de um eu é corporal, ou seja, nosso corpo e as experiências decorrentes dele nos auxiliam a formar uma concepção de eu. O ego é originalmente corporal, nosso corpo é nossa primeira fonte de vivências, que serão registradas no âmbito do prazer/desprazer, desenvolvidas a partir de atividades como mamar, sugar, acariciar. O corpo aqui referido é um corpo erógeno, um corpo investido por nossa libido, um corpo com o qual temos expectativas, bem como demandas. Nosso corpo muitas vezes é o veículo que utilizamos para nomear o que vivemos ou sentimos.

Podemos referir também que nosso corpo define em parte nossa singularidade, seja por seus traços, seus caracteres, seja por ser de fato um continente nosso, único e, teoricamente, inviolável.

Qualquer manipulação em nosso corpo nos sugere uma invasão que pode ter repercussão psíquica. Nosso aparelho psíquico é, em parte, resultado de nossas primitivas experiências corporais com a mãe ou seu representante: mamar, acariciar, sugar, afagar, frio, fome, dor... são sensações que em primeiro lugar atingem nosso corpo e nele deixam sua marca.

Nosso corpo também nos oferece limites e contornos. Cedo descobrimos os limites que um corpo nos impõe. E pagamos o preço pelo corpo que temos e por como cuidamos dele. Portanto, o corpo pode ser uma fonte e como também ser um fim em si mesmo. Às vezes o utilizamos como uma válvula de escape para questões subjetivas. Nosso corpo é nossa propriedade e o modo como nos relacionamos com ele reflete algo de nós.

O corpo quando investido se torna uma fonte de prazer, esta assertiva adentra ao terreno das questões referentes ao narcisismo, ou seja, o investimento que fazemos em nós mesmos e em nossa imagem idealizada. Fase determinante da estruturação psíquica do sujeito, os movimentos narcísicos são necessários para que haja o reconhecimento do eu e, conseqüentemente, da díade eu / outro.

Podemos observar como os conceitos de eu, corpo e narcisismo vão se aproximando e tecendo um emaranhado que propicia um vasto campo de pesquisa.

Originalmente concebido por Freud (1914/1987a), o narcisismo é definido como o complemento libidinal do egoísmo da pulsão de autopreservação, que, em certa medida, pode justificavelmente ser atribuído a toda criatura viva. Este é um dos conceitos psicanalíticos mais difundidos no senso comum e, justamente por isso, por vezes confundido com manifestações egoístas. Assim, eventualmente se fala de narcisismo como se pudesse ser quantificado, como se fosse unicamente um indicativo patológico ou como se alguém pudesse estar completamente livre dele (Miguelez, 2007).

O narcisismo nos retira do estado caótico e fragmentado do auto-erotismo, na medida em que nos oferece um objeto de amor e de investimento, a saber: o eu. Assim, o narcisismo desde este ponto de vista pode ser pensado como uma defesa ao caos, tal como sua função no princípio: o narcisismo organiza as pulsões parciais, dirigindo-as ao eu.

No dia-a-dia de um hospital uma das dicotomias presente é corpo / mente. O corpo é inegavelmente presente e evidente no contexto hospitalar: corpo do paciente, corpo médico.

Um corpo que já pode não ser mais o corpo reconhecido e conhecido, aleatoriamente à revelia produz uma doença. Um corpo doente, estranho em si mesmo é um corpo que pode ser veículo de um diagnóstico que remete a uma situação de angústia insustentável, ou seja, nos remete ao abismo do desamparo.

Nas mais diferentes situações da vida podemos observar que as situações de perdas, situações que exigem um trabalho de luto pelo objeto amado, são aquelas que mais convocam com intensidade o narcisismo. Assim sendo, podemos designar as situações como limites, nas quais o eu pode inclusive sofrer uma cisão como defesa. São as conhecidas ou reconhecidas situações em que impera a máxima:

“_ Eu sei, mas mesmo assim...”

Nosso aparelho psíquico, nossa capacidade de fantasiar e de recriar a realidade muitas vezes é o que nos faz sobreviver, e assim é eventualmente frente a uma notícia como um diagnóstico que implica na possibilidade de morte.

Em nossas representações mentais, a morte está ausente e se faz presente por sua ausência, ou seja, qualquer aproximação com o representante do inominável gera para nós um profundo horror. Teoricamente apontamos que nossa vida subjetiva e nosso mundo interno são feito de ligações e, portanto, de pulsão de vida (Garcia-Roza, 1995).

O sujeito do qual falamos em um contexto hospitalar é aquele sujeito destituído de tudo que até então lhe era familiar e lhe proporcionava a ilusória sensação de proteção; e que agora se vê cruelmente diante de seu desamparo e tendo que recorrer a dar uma explicação absurda para proteger a si e ao seu corpo, objeto amado. A atitude narcísica desse ponto de vista parece ser uma atitude necessária para garantir o sujeito como tal, para garantir a vida, investir no eu e acreditar na veracidade dos pensamentos mágicos pode ser uma saída para o sujeito minimamente continuar investindo na vida, embora todos os fatos indiquem o contrário.

Narcisismo aqui não pode ser pensado como vilão da história. A exemplo do que Miguelez (2007) nos lembra, são muitos os Narcisismos e, infelizmente, tanto nos meios intelectuais como nos meios leigos, o narcisismo tem adquirido um colorido pejorativo que não nos permite compreender sua função estruturante do sujeito, ou seja, remetermo-nos a ele quando o mundo interno e externo parece estar insuportável e insustentável.

A fim de ilustrar esta discussão, utilizaremos o recorte de um material clínico.

Uma paciente foi atendida em psicoterapia de grupo no ambulatório de psicologia do Hospital do Servidor Público Estadual (HSPE-FMO) há alguns anos (1998). Este procedimento se deu até 2000 e sua procura pelo tratamento se justificava por uma significativa mudança em sua vida profissional: iniciava

as atividades práticas de uma nova carreira e isso a angustiava. Essa paciente possuía muitos recursos tanto intelectuais quanto simbólicos. Deu-se a alta e o término de seu atendimento. Eventualmente, encontrava com a terapeuta pelos corredores do hospital, sempre com boas notícias sobre o andamento de sua vida.

Em fevereiro de 2008, a enfermaria das Doenças do Aparelho Respiratório – DAR - encaminha um pedido de interconsulta à Seção de Psicologia em nome da paciente. Ela informa a terapeuta o seu diagnóstico atual: adenocarcinoma (câncer) de pulmão e comunica:

“_ Sobrou para você!”

Em seu novo processo de psicoterapia, o desprendimento de seus recursos causa espanto: a paciente não questiona os médicos, não é ativa em seu processo de tratamento, não reconhece o sintoma falta de ar como conseqüência da doença e o nomeia como cansaço – sintoma que pode ser minimamente controlado pelo sujeito. Seu corpo, à sua revelia, se manifesta. Sua ausência em seu tratamento reflete seu desejo de não saber e, enquanto não sabe, não precisa se relacionar com a angústia, ou seja, a tentativa de controlar a situação. Seu encapsulamento narcísico, tanto no tratamento quanto em suas relações pessoais, revela a inundação de angústia sofrida pelo eu.

Quando essas questões são apontadas para a paciente, ela revela:

“_ Sou a bailarina.”

“_ Do Chico Buarque?”

“_ Sim. Essa mesma.”

A título de ilustração, a letra desta música nos revela a olho nu que: “Narcisismo: procurando bem, todo mundo tem!”

Ciranda da Bailarina – Edu Lobo e Chico Buarque/1982 (Para o balé: O grande circo místico)

 

 

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Ciranda da Bailarina (Edu Lobo / Chico Buarque – 1982). Recuperado em 28 maio 2008 em: http://vagalume.uol.com.br/chico-buarque/ciranda-da-bailarina.html

Freud, S. (1914/1987a). Sobre o narcisismo: uma introdução. (Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XIV). Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

Freud, S. (1915/1987b). Os instintos e suas vicissitudes. (Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XIV). Rio de Janeiro: Imago.

Freud, S. (1917/1987c). Luto e Melancolia. (Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XIV). Rio de Janeiro: Imago.

Freud, S. (1930/1987d). O mal-estar na civilização. (Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XXI). Rio de Janeiro: Imago.

Garcia-Roza, A. L. (1995).  Introdução à metapsicologia freudiana 3. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Mattos, J. A. J. (1995). Do soma para o psíquico em busca do objeto psicanalítico. In: Junqueira Filho, L. C. U. (Org.). Corpo/Mente: uma fronteira móvel. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Miguelez, O. (2007). Narcisismos. São Paulo: Editora Escuta.

Vettorazzo Filho, H. (2007). O narcisismo pensado como condição de estruturação do Eu e da constituição dos sistemas de ideais. Boletim Formação em Psicanálise, São Paulo: Instituto Sedes Sapientiae,ano XV, nº 1, jan./dez., 2007.

 

 

* Psicanalista. Psicóloga Preceptora da Seção de Psicologia do HSPE. Membro efetivo do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Mestre em Psicologia Clínica – USP. mariangelabento@uol.com.br
- Trabalho apresentado na VII Jornada de Psicologia do Hospital Universitário/UEL; 1º Congresso Brasileiro de Psicologia Aplicada à Saúde – setembro 2008 – Londrina, Paraná.
BENTO, M. Strange body – narcisism and helplessness in the hospital context. Londrina, 2008. Paper presents in VII Jornada de psicologia do Hospital Universitário/UEL; 1º Congresso Brasileiro de psicologia aplicada à Saúde – setembro 2008 – Londrina, Paraná.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons