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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH v.11 n.1 Rio de Janeiro jun. 2008

 

 

Desamparo diante da perda do filho1

 

Helplessness in face of a child´s loss

 

 

Denise Regina Disaró Carlesso2

Universidade Estadual  de Londrina

 

 


RESUMO

O presente artigo objetiva descrever o desamparo dos pais causado pela morte do filho, através do estudo de um caso no qual o sofrimento e a angústia de aniquilamento vividos foram tão intensos, que provocaram níveis extremados de desorganização egóica.

Palavras chave: Desamparo, Angústia de aniquilamento, Desorganização egóica.


ABSTRACT

The present study aims at describing the parent’s helplessness caused by a child's death, by means of a case study in which suffering and annihilation anguish experienced were so intense that they provoked extreme levels of ego disorganization.

Keywords: Helplessness, Annihilation anguish, Ego disorganization.


 

 

O presente trabalho tem por objetivo descrever o desamparo dos pais causado pela morte de um filho ou de uma filha. Esta é uma questão que permeia meu trabalho de 14 anos na pediatria e UTI Pediátrica do Hospital Universitário / UEL, mas durante esse período, sempre que redigi um artigo ou apresentei uma palestra, escolhi falar sobre as crianças.

Trata-se de uma opção consciente e tomada mais por identificação com os pequeninos do que por furores anti-maternos ou anti-paternos. Explico melhor: nada tenho contra os pais, mas identifico-me com a possibilidade de expressão das crianças. Expressão de seus desejos, idéias e afetos, que surge sempre que alguém se disponha a escutar. Assim, me coloco nesta posição.

Entretanto, nos últimos tempos atendi uma jovem mãe cujo sofrimento ao perder a filha foi tão extremado, que me fez desejar não apenas refletir, mas também escrever sobre ele. E enquanto escrevo, elaboro. Vou apresentá-lo sucintamente, utilizando nomes fictícios.

Roberta, 05 anos de idade, foi internada na UTI Pediátrica, transferida por outro serviço em que permaneceu por 16 dias, sem conclusão do diagnóstico. No atual hospital, ficou internada por aproximadamente 70 dias. Muitos exames foram realizados, descartaram-se as principais hipóteses e após 12 dias diagnosticou-se leucemia. Seu estado geral era muito delicado e os riscos de ser submetida à quimioterapia eram intensos, entretanto, não havia alternativa, pois era o único e imprescindível tratamento.

Com a anuência da mãe, Roberta iniciou o tratamento e reagia bem às sessões. Ainda no respirador, a sedação foi suspendida gradativamente e ela passou a interagir com a mãe.

Rita, que na época morava e trabalhava na Europa, foi avisada sobre a hospitalização da filha pela tia materna, que ficara responsável pelas crianças. Ela voltou imediatamente. Sempre presente, conversava com Roberta e constantemente lhe solicitava que demonstrasse algum tipo de reação, mesmo quando estava sedada. Esta atitude se fortalecia nos períodos em que percebia que a medicação perdia o efeito. Foi preciso que o médico dissesse para não fazê-lo, explicando-lhe que era uma exigência difícil de ser atendida pela criança, ainda que pudesse ouvir-lhe.

Depois disso, a mãe optou por manter-se do lado de fora da UTI, entrando ocasionalmente, até mesmo quando Roberta começou chamá-la. Durante os atendimentos falava do medo que sentia em perdê-la e que não queria “prejudicá-la”. Questionava-se sobre o que poderia ter feito para evitar a doença da filha, evidenciando parte da culpa que sentia por não estar presente quando esta se iniciou e permitindo dar vazão aos seus sentimentos.

Aos poucos adquiriu equilíbrio que lhe permitiu permanecer como acompanhante e ter sintonia com as necessidades da filha. Quando Roberta foi transferida para o isolamento, uma das tias maternas revezava com a mãe para acompanhar a sobrinha, enquanto Rita cuidava da filha caçula, que perguntava constantemente sobre a irmã.

O tratamento transcorria sempre permeado de muitos riscos, que se tornavam visíveis na debilidade física de Roberta. Entretanto, ela reagia com relativa serenidade: comunicava-se, sorria freqüentemente e assistia os desenhos que a mãe cuidadosamente escolhia. A mãe que desejava vê-la bem, por vezes se defendia, a princípio dissociando e cindindo e depois simultaneamente negava a parte doente e idealizava a parte sadia. Isto é, ao vê-la reagindo de forma semelhante à de sempre, “esquecia-se” que Roberta continuava na UTI, cheia de aparelhos e estimulava cada vez mais estas reações, principalmente com os desenhos que passaram a ocupar quase todo o tempo das duas.

Nesse momento, as maciças identificações projetivas de Roberta, atingiam Rita com êxito. Esta ficava tão identificada com a filha, que novamente não lhe era possível separar suas próprias necessidades emocionais das necessidades de Roberta, que começou a morder os lábios até sangrarem. Quanto mais fazia isso, mais a mãe se desorganizava emocionalmente, dificultando a realização de um holding adequado (WINNICOTT, 2001).

Através do atendimento psicológico Rita expunha suas próprias necessidades e permitia “ser cuidada”. Isto a auxiliava no cumprimento da função materna, já que retomava gradativamente a capacidade de ser uma mãe suficientemente boa (WINNICOTT, 2002). Estava sempre disposta a refletir sobre suas ações e sobre as possibilidades de reparação do que considerava seus “erros” (impotência, “fraqueza”, ausência no início da doença, etc). Nesses momentos, ao sentir continência materna, Roberta reagia com tranqüilidade.

Um dia após submeter-se a mais uma sessão de quimioterapia, Roberta teve hemorragia interna e seu estado geral agravou-se. Teve duas paradas cardíacas, sendo que na segunda não foi possível ser reanimada e faleceu.

A mãe, que aguardava comigo, sentiu-se desamparada ao perder a filha. Abraçava e acariciava a menina, enquanto chorando, cantava suas canções de ninar preferidas. Após a despedida, que durou cerca de uma hora, enquanto Rita aguardava seus familiares, ela se embalava e ainda chorando cantava para si própria tal como havia feito para a filha.

Completamente identificada com Roberta, parecia que Rita sofria mais do que uma ferida narcísica, na qual se perde uma parte importante de si. Parecia ter perdido a si própria. Como é possível se não há representação da morte?

Antes de refletir sobre essa questão que pode nos conduzir ao meu objetivo, penso que é importante situar duas questões elucidativas e outra referente à representação do filho através do narcisismo, a qual é imprescindível para estabelecer conjecturas sobre a perda. Comecemos com as de caráter informativo.

Trata-se de um atendimento no contexto hospitalar, mais propriamente em UTI Pediátrica, o que implica em lidar com momentos de sofrimento intenso, e situações freqüentemente traumáticas. Ele dura apenas o tempo equivalente à internação e não raramente as pessoas tendem a falar somente sobre o que as angustia, tal como Freud afirma em seu artigo Análise Terminável e Interminável:

Em estado de crise aguda a análise é para todos os intentos e propósitos inservível. O interesse total do ego é tomado pela dolorosa realidade e se retira da análise, que tenta ir além da superfície e descobrir as influências do passado. (FREUD, 1980 [1937]:265).

Rita pouco falou de sua vida. Restringia-se a falar das questões que envolviam a doença, a internação da filha e um pouco sobre sua estadia fora do Brasil, principalmente no que se referia aos fatos que motivaram sua decisão, demonstrando dificuldade em lidar com essa escolha. Tal fato me permite mostrar apenas um recorte de sua vida e sendo assim, não pretendo esgotar a compreensão desse caso, mas apresentar-lhes o objeto de trabalho peculiar, específico e exclusivo da psicologia hospitalar.

A segunda questão relaciona-se com as características das reações traumáticas. Entre todas, desejo destacar que a reação ao trauma, por si só, sem o contexto de vida da pessoa, não pode ser tomada como representativa da estrutura de personalidade nem tampouco utilizada para identificar qualquer psicopatologia. A reação inicial de aniquilamento, diante de um prejuízo irreparável como a morte, principalmente quando permeada por culpas, pode ser tão extremada, quanto às encontradas no “enlouquecimento”. Todavia somente o tempo de reorganização psíquica (se houver) pode nos oferecer um diagnóstico.

Quanto à representação de um filho, Freud em Uma Introdução ao Narcisismo, diz que ele é a revivescência do narcisismo dos pais. Na tentativa de recuperar o narcisismo perdido, estes desejam e agem de forma a proporcionar-lhe todas as experiências consideradas positivas, como tentativa de garantia de felicidade e completude.

Os pais sentem-se inclinados a suspender, em favor da criança, o funcionamento de todas as aquisições culturais que seu próprio narcisismo foi forçado a respeitar, e a renovar em nome dela, as reivindicações aos privilégios de há muito por eles próprios abandonados. A criança terá mais divertimentos que seus pais; ela não ficará sujeita às necessidades que eles reconheceram como supremas na vida. A doença, a morte, a renúncia ao prazer, restrições à sua vontade própria não a atingirão. (FREUD, 1980 [1914]:107-108, grifo meu).

Neste percurso, os filhos podem ser tomados simbólica ou concretamente como a satisfação dos desejos não realizados. Quando simbolicamente, os pais são capazes de tolerar os desvios de percurso ou até mesmo as escolhas diferentes que os filhos fazem para si próprios, embora afete seu narcisismo. Entretanto, quando os pais tentam concretamente realizar seus desejos através dos filhos, todo e qualquer desvio disso, provoca uma ferida narcísica capaz de levar a pessoa ao estado de desamparo, com conseqüente desorganização psíquica.

Frente a tal sentimento, a doença expôs e denunciou a total falta de garantias e a impotência de Rita, quando se deparou com a realidade que se impunha à perda desta ilusão. E a dor que sentia ao sentir-se incapaz de corresponder às necessidades da filha gravemente adoecida tornou-se insuportável.

É neste estado de impotência e desamparo, tal como seu protótipo o desamparo motor, caracterizado pela total dependência do bebê ao nascer, que a mãe, cuja relação com a filha predominava o amor e a culpa ficou ao perder concretamente a menina.

Tal perda continha indubitavelmente um excesso de estímulo externo, já que a morte sequer possui representação, mas evidenciavam-se também fortes indícios de culpa em Rita, como por exemplo, através das fantasias onipotentes de evitação da doença da filha, com sua presença; da compreensão distorcida relativa à orientação médica (uma pessoa sedada não pode responder, mesmo que receba e processe estímulos, uma vez que a capacidade de expressão fica comprometida); da conseqüente decisão de manter-se no hospital, mas não prejudicar Roberta; do sentimento de falhar enquanto mãe, por dar vazão aos seus sentimentos, o que era compreendido como fraqueza.

Ela deparava-se com fatos que lhe despertavam intensos sentimentos de culpa, tal como a experiência traumática, composta por excitações de “origem externa ou interna, decorrentes de um único acontecimento muito violento ou de um acúmulo de excitações, cada uma das quais, se considerada isoladamente seria intolerável” (CARLESSO, 2005:64).

A partir daí sua relação com a filha foi determinada essencialmente pela qualidade de sua condição psíquica: desorganização egóica, característica do estado de desamparo.

O determinante fundamental de uma ansiedade automática é a ocorrência de uma situação traumática; e a essência dessa é uma experiência de desamparo por parte do ego, diante de um acúmulo de excitação. (FREUD, 1980 [1926]:168, grifo meu).

Cada fato provocava-lhe angústia que era expressa em níveis diferentes de sofrimento, desamparo e desorganização egóica. Assim, podemos identificar três momentos intoleráveis nos quais apresentava desorganização. Quando reagiu à ferida narcísica que sua mente lhe impôs ao perceber que não somente não era capaz de evitar toda a dor da filha, mas principalmente ao acreditar que era responsável por causar-lhe mal. Defesas primitivas, tais como dissociação, introjeção e projeção foram acionadas e sua atitude se transformou, indo de um extremo (ficar todo o tempo ao lado da filha) ao outro: o estado de vigília em relação ao tratamento, à espera de notícias positivas, sem aproximar-se dela.

Mais tarde, ao se deparar com a debilidade física, que o próprio tratamento impunha à criança, e com a iminência da morte, sofria intensamente e defendia-se (como já descrito anteriormente) e regredida, não apenas fazia companhia à filha ao assistir desenhos, mas apreciava-os.

Entretanto, as reações traumáticas causadas por culpa quando o prejuízo é irreparável (por excelência: a morte) podem atingir o nível máximo, como aconteceu com Rita ao vivenciar e demonstrar angústia de aniquilamento ao se identificar com a filha morta.

Voltemos à questão inicial: como é possível identificar-se com o desconhecido? Penso que o que aconteceu neste caso é que a angústia de aniquilamento dessa mãe era tão intensa, que se traduzia na expressão pura, intensa e ruidosa (aqui não mais silenciosa) da pulsão de morte. A mesma pulsão que silenciosamente esteve presente em cada um dos momentos traumáticos e que proporcionou desorganização egóica.

Decidimos presumir a existência de apenas duas pulsões básicas, Eros e a pulsão destrutiva3 . (...) O objetivo da primeira dessas pulsões básicas é estabelecer unidades cada vez maiores e assim preservá-las – em resumo, unir; o objetivo da segunda, pelo contrário, é desfazer conexões e, assim, destruir coisas. No caso da pulsão destrutiva, podemos supor que seu objetivo é levar o que é vivo a um estado inorgânico. (FREUD, 1980 [1938]:173).

Assim, a morte de Roberta era vivenciada por sua mãe não como a perda de uma parte de si presente na ferida narcísica, mas como a perda de si própria, isto é, a angústia sentida por ela era de aniquilamento. E era este estado que permitia a identificação com a filha morta.

Minhas observações analíticas demonstram que existe no inconsciente um medo de aniquilamento da vida. Se propusermos a existência de um instinto de morte, teremos igualmente de supor que, nas mais profundas camadas da mente, existe uma reação a esse instinto, na forma de medo de aniquilamento da vida. O perigo resultante da atividade interior do instinto de morte é a primeira causa de ansiedade. Como a luta entre os instintos de vida e de morte persiste ao longo da vida, essa fonte de ansiedade nunca é eliminada e participa como fator perpétuo em todas as situações de ansiedade. (KLEIN, 1991 [1948]:50, grifo meu).

Trata-se de uma questão paradoxal, já que a pulsão de morte tende à homeostase, mas coloca o ser humano em estado de desamparo. A desorganização psíquica que Rita viveu após a morte da filha foi representativa, pois continha a agitação motora característica: movimento constante e pouco eficaz – embalar-se enquanto chorava e cantava simultaneamente – que expressava sua impotência. Tal paradoxo ocorre porque as pulsões têm ações mutuamente opostas, se imbricam e dão origem a todos os fenômenos da vida. A pulsão de vida mantinha-a em movimento, na tentativa de fazê-la recuperar seu equilíbrio.

Tudo o que eu pude fazer neste momento foi me oferecer como continente para este conteúdo (BION, 1994). E pude sentir contra-transferencialmente, uma angústia, que apesar de intensa, acredito que era apenas uma parte do que Rita vivia, pois por muito tempo senti identificada com ela, enquanto a idéia e o afeto que acompanhavam tal identificação eram reprimidos.

Entretanto, protegida por dissociação, eu negava minha condição de mãe e ficava ao lado dela. Minha presença e minha continência pareciam ter o efeito de mantê-la, ainda que de forma tênue, do lado sadio, impedindo-a de “enlouquecer francamente”. Percebi que minha presença era substituível quando suas irmãs chegaram e ela se “aninhou” no colo de uma delas, transferindo para sua família, a tarefa de lhe proporcionar o holding que necessitava.

Rita não me procurou, mas tinha notícias dela através de outra mãe que se tornou sua amiga e lhe visitava freqüentemente. Ela continuava sofrendo, mas aos poucos se reorganizava, sua dor tornava-se suportável e suas ações mais eficazes.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BION, W. R. (1994). Estudos psicanalíticos revisados: secound thoughts. Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

CARLESSO, D. R. D. (2005). Aspectos psíquicos da criança internada em Unidade de Tratamento intensivo (UTI) pediátrica: estudo de caso. Assis. Dissertação de mestrado.

FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução. [1914]. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v. 14, p. 89-119.

______. Inibição, sintoma e angústia. [1926]. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v. 20, p. 107-180.

______. Análise terminável e interminável. [1937]. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v. 23, p. 247-287.

______. Esboço de psicanálise. [1938]. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v. 23, p. 169-198.

KLEIN, M. Sobre a Teoria da Ansiedade e Culpa. [1948]. In: inveja e Gratidão: e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1991. P. 85-118. (Obras Completas de Melanie Klein; v. 3).

WINNICOTT, D. W. (2001). Holding e Interpretação. São Paulo: Martins Fontes.

______. Os Bebês e suas Mães. (2002). São Paulo: Martins Fontes, 2002.

 

 

1 Artigo apresentado na VII JORNADA DE PSICOLOGIA DO HU/UEL e I CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICOLOGIA APLICADA À SAÚDE – setembro 2008 – Londrina, Paraná.
2 Presidente do evento; Chefe do Serviço de Psicologia do HU / UEL; Psicóloga das unidades de Pediatria e UTI Pediátrica.
3 Também chamadas pulsão de vida e pulsão de morte, respectivamente.

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