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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH v.11 n.1 Rio de Janeiro jun. 2008

 

 

O hospital, o sujeito, a Psicanálie: questões desenvolvidas a partir de uma experiência de dezoito anos no NESA/UERJ

 

Sonia Alberti1

Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro

 

 


RESUMO

Iniciando com o exame da experiência de construção de um dos setores de Saúde Mental no Hospital Universitário Pedro Ernesto, identifico a inserção da psicanálise nessa construção em três tempos: o instante de ver, o tempo de compreender e o momento de concluir. Isso me leva ao axioma de que a psicanálise não só tem uma grande contribuição a dar para fazer valer um lugar específico no hospital, como também precisa instrumentalizar-se, cada vez mais, para poder sustentar tal contribuição. Parto da hipótese de que ela se instrumentaliza quando se sustenta em um aprofundamento teórico cada vez maior, única forma de fazer frente à fragmentação do sujeito baseada na idéia de um indivíduo cerebral, idéia que foraclui aquele, colocando em cheque tudo o que já foi possível pensar quanto à relação médico-paciente.

Palavras-chave: NESA/UERJ, Saúde mental e psicanálise, Sujeito e hospital, Relação médico-paciente.


ABSTRACT

Begining with the construction of one of the mental health sections in the Pedro Ernesto University Hospital, I identify the presence of psychoanalysis in this construction process through three moments: the instant of Glance, the time of understanding and the moment of conclusion. This drives me to the axiom that psychoanalysis not only has a hudge contribution to sustain a particular place in the hospital, but that it also has do get always better instrumentalized in order to optimize this sustenance. I therefore depart from the hypothesis that psychoanalysis gets this sustenance by increasing theoretical studies, only way to stop the fragmentation of the subject based on the idea of a cerebral individual, idea that forcloses the subject, threatening all possible medical-patient relationship.

Keywords: NESA/UERJ, Mental health and psychoanalysis, Subject and hospital, Medical-patient relationship.


 

 

O HOSPITAL, O SUJEITO, A PSICANÁLISE

Questões desenvolvidas a partir de uma experiência de dezoito anos no NESA/UERJ2

Desenvolvo meu trabalho a partir de uma experiência de mais de trinta anos mas que, nos últimos dezoito, se centra no trabalho que desenvolvo no NESA/HUPE/UERJ. Por esta razão, a primeira parte desse trabalho dedica-se ao relato dessa experiência.

 

 

1. Na Unidade Clínica de Adolescentes – resumo histórico.

O Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente é produto de um trabalho de vinte anos, iniciado na Enfermaria Aloysio Amâncio do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) – da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Criada em 1974, a Enfermaria Aloysio Amâncio era, na realidade, um ambicioso projeto para uma Unidade Clínica de Adolescentes (UCA), iniciativa totalmente inédita no país e na américa latina e que objetivava o atendimento clínico a adolescentes, dentro de um hospital geral, respeitando as particularidades da adolescência – nem simples pediatria, nem tampouco ainda uma clínica geral.

Desde o projeto a idéia incluía a presença da Psicologia e é interessante notar que foram necessários anos de trabalho para que a aposta num intercâmbio entre Medicina e Psicologia apresentasse seus primeiros frutos. Com o artigo “Relatos sobre o nascimentod e uma prática” (Alberti e Pereira, 2005) podemos levantar a hipótese de que tal necessidade articula a história da instituição da Psicologia no hospital com os três tempos para a elaboração, formulados por Lacan (1945). Pudemos identificar o primeiro tempo, “entre psicologia e psicanálise – um ideal?” com o instante de ver; o segundo tempo, “da psicologia à psicanálise – que articulação?” com o tempo de compreender; o terceiro tempo, “um modelo clínico” com o momento de concluir. Três tempos lógicos da nossa inserção no hospital geral, referidos aqui aos três tempos observados por Lacan quanto ao que ocorre num tratamento psicanalítico. De meados da década de 1970 até hoje passaram-se trinta anos, período necessário para podermos afirmar a possibilidade de se fazer psicanálise no hospital, mesmo se ainda há quem o duvide. Os três tempos lógicos só puderam ser aqui identificados no a posteriori: quando ingressamos no hospital em meados da década de 1970 tínhamos uma vaga idéia de que seria possível trabalhar com a psicanálise num hospital geral; ou melhor, não era bem uma idéia, era uma tímida impressão que não sabíamos ainda como articular, nem como justificar frente a nossos pares. Era como se algo do desejo de fazer valer a psicanálise no hospital se apresentasse sob a forma que Freud descreve muito bem com sua metáfora do iceberg: uma pequena parte se apresenta, algo se entrevia, como colocá-lo todo à mostra? Muitos anos de formação e de experiências, de elaboração de falhas e retrocessos, idas e vindas, nos subsidiaram para compreender o que realmente tínhamos nas mãos. Concomitantemente, pudemos articular o que compreendíamos com a teoria psicanalítica na qual nos aprofundávamos. Finalmente, fizemos um corte: a psicanálise pode integrar o trabalho da saúde mental. Ela não o faz necessariamente, mas é possível.

No NESA, em 1976, a fim de regulamentar a presença da Psicologia, procurou-se constituir um vínculo com o Serviço de Psicologia Aplicada do Instituto de Psicologia da UERJ, mas esse relacionamento foi difícil e, das três psicólogas iniciais somente uma permaneceu com carga horária cedida à UCA. Desavenças internas, devido à cessão da carga horária, acabaram por determinar também a partida desta.

Na falta de psicólogos e por alguns anos, o atendimento psicológico de pacientes da UCA foi sustentado pelo Setor de Psiquiatria no próprio Hospital. Interessado pelo trabalho da UCA, o Setor de Psiquiatria assumiu, às vezes sem qualquer projeto oficial de colaboração, a assistência psiquiátrica dos pacientes da UCA e, até mesmo, a assistência à equipe da UCA, quando demandada. Por exemplo, coordenando, no início dos anos 1980, um grupo operativo com pacientes da Enfermaria Aloysio Amâncio. Além disso, a parte prática do Curso de Extensão de Psiquiatria da Infância e da Adolescência do Setor de Psiquiatria – que sustentava estrita orientação psicanalítica –, também sustentava esporádica assistência aos pacientes e técnicos da UCA.

Em 1987, foi feita uma segunda tentativa formal visando a contratação, pelo HUPE,  tanto de um psicólogo vinculado diretamente à Unidade quanto de um psiquiatra. Se a psicóloga terminou por partir um ano depois, acompanhando o marido ao exterior, a psiquiatra então contratada ficou! Na época ela já fazia sua formação psicanalítica e até hoje permanece no cargo. Mas faltava ainda fazer alguma coisa para fortalecer a permanência da Psicologia na UCA! Transferências de vínculos empregatícios e a abertura de vaga para bolsistas temporários finalmente deixavam transparecer uma luz no fim do túnel.

Em suma, até 1987, por maiores que tivessem sido os interesses em desenvolver um trabalho na UCA, nenhuma vinculação formal sustentava a continuidade do trabalho. Em 1987 isso passou a ser possível no que tange a única psiquiatra contratada. Quanto à psicóloga, ela só permaneceu um ano, e como as outras psicólogas eram contratadas temporariamente, não havia a segurança suficiente para efetivamente se instituir um trabalho bem articulado.

Na época, o Setor de Psicologia tinha um excesso de atribuições e demandas: atendimento às questões internas da equipe multidisciplinar, a grupos de pacientes, a vários programas específicos desenvolvidos pela equipe multidisciplinar na UCA (grupo de gestantes, de risco, enfermaria, ambulatório, ambulatório avançado etc.). Cada um desses grupos queria um psicólogo encarregado de atender seus casos clínicos específicos...

A conseqüência foi uma constante instabilidade, de um lado devido à alta rotatividade das psicólogas (treinandas ou bolsistas), por outro lado, devido à própria dificuldade dr a equipe multidisciplinar discernir o que seria a atribuição do psicólogo, diante de psicologias diferentes. Quando uma psicóloga saía, logo outra entrava e ia retomando esse excesso de demandas desde o início, não sabendo, por falta de experiência na própria instituição, como marcar limites, ou não tendo tempo para tal, pois no momento em que a experiência adquirida poderia permitir um melhor discernimento, já era hora de partir. Percebendo as dificuldades, as reuniões da equipe de psicólogos tentavam discutir os impasses e identificar possíveis linhas de trabalho. No entanto e apesar disso, na ausência de um projeto próprio, as psicólogas se vinculavam aos projetos gerais da UCA, sem saber exatamente com o que contar, nem como dirigir uma atuação. A falta de experiência em pesquisa e em trabalhos acadêmicos fez também com que essas profissionais, muitas vezes com uma atuação assistencial excelente, não soubessem como articular um projeto de trabalho. Além disso, a mobilidade e a consequente insegurança com relação ao vínculo institucional aumentavam ainda mais esse problema.

 

2. A contribuição da articulação entre assistência, ensino e pesquisa.

A avaliação da situação ao longo do ano de 1990 me permitiu redigir um projeto que passou a ser financiado pela FAPERJ, para constituir um trabalho da psicologia em articulação com a equipe multidisciplinar, levando em conta todo esforço que já fora feito nesse sentido nos anos anteriores e, ao mesmo tempo, visando a sua formalização. A primeira preocupação foi a de verificar a articulação entre prática, ensino e pesquisa, já que estávamos em uma instituição universitária, ao mesmo tempo que nos ocupávamos de questões de ponta da assistência. Todos (inclusive a psiquiatra) faziam ou haviam feito uma formação psicanalítica o que trouxe a fortuna de se poder determinar, com certa segurança, a orientação teórica que lastrearia o trabalho. Em função do projeto financiado pela FAPERJ se quis incrementar uma relação com a Universidade na tentativa de sustentar uma articulação teórico-prática que subsidiasse possíveis pesquisas e aprofundamentos e, em última instância, uma nova abordagem da demanda institucional.

Esse movimento permitiu que, pela primeira vez, o Setor de Psicologia construísse um discurso que articulasse as questões assistenciais, as demandas institucionais e uma planificação de trabalho a partir de uma referência comum. Se até então a marca do Setor de Psicologia da UCA era a fragilidade, a partir do momento em que se esboçava uma identidade de referencial teórico e um vínculo acadêmico, foi possível antecipar a idéia da legitimação de uma estrutura. A esta altura já se verificava também uma clínica sustentada na psicanálise na UCA ainda que, sob o auspício da consagrada expressão de Ana Cristina Figueiredo (1997), a dos “atendimentos imperfeitos”. Imperfeitos mas possíveis, os atendimentos sustentados na relação com a causa freudiana formaram a base de um trabalho que não mais identificava a psicanálise como ideal extra institucional.

Após alguns anos de luta pela autonomia do serviço para adolescentes no HUPE, finalmente foi aprovada, em setembro de 1995, a mudança da UCA para o Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (NESA)3 .  Tal mudança foi concomitante à aprovação, junto ao Conselho Universitário, do Curso de Residência em Psicologia Clínica Institucional, cuja primeira turma data de 1994, e do qual o NESA fez parte desde o início.

O Setor de Saúde Mental do NESA, no qual hoje desenvolvem-se as atividades da Residência em Psicologia Clínica no HUPE no que diz respeito à adolescência, mantém suas atividades e estrutura-se cada vez mais para melhor responder às diversas demandas que lhe são encaminhadas. Ele possui hoje um quadro de técnicos altamente qualificados para o trabalho clínico mas sempre em articulação com a orientação teórica. Todos são ou mestres ou doutores, a saber: a coordenadora do Setor de Saúde Mental do NESA, quatro psicólogas concursadas no HUPE, uma professora diretamente vinculada ao Instituto de Psicologia e preceptora da Residência em Psicologia, e uma Psiquiatra – na instituição desde 1987.

 

3. Introdução às questões do relacionamento com a equipe, nessa experiência.

O intercâmbio com as equipes multidisciplinares se dá tanto no cotidiano da clínica, ou seja, no dia a dia do trabalho, quanto em encontros científicos organizados, encontros semanais de discussão de casos e na participação mensal das sessões clínicas, prática bastante comum entre os médicos. A presença, desde 1994, de Residentes em Psicologia certamente incrementa muito todo intercâmbio com a equipe multidisciplinar.

O que foi possível perceber a partir do trabalho cotidiano?

Que o impasse que existe quanto às diferentes ancoragens éticas e discursivas que transitam dentro de uma mesma equipe multidisciplinar é de tal forma consistente que muitas vezes sua dialetização só é possível pontualmente, conforme realmente exista um trabalho. Ou seja, é muito difícil, por melhor que seja o diálogo entre psicanalistas que integram o Setor de Saúde Mental e os demais membros da equipe, é muito difícil, repito, transmitir a ética e as conseqüências do discurso do psicanalista, na grande maioria dos casos4 .

O NESA é um serviço bastante progressista, sem dúvida, ou seja, os profissionais que nele trabalham se interessam muito pela aquisição de novos conhecimentos, práticas e políticas da saúde, mas mesmo assim é uma equipe dividida em dois grandes grupos: 1) aqueles que verdadeiramente são capazes de centrar suas intervenções – tanto práticas, quanto de ensino – no sujeito, privilegiando uma clínica do sujeito sem, no entanto, sabê-lo sempre por falta de um instrumental teórico que lhes permita essa referência, na medida em que são médicos, fisioterapeutas, e enfermeiros, ocupados em estudar outras coisas, e 2) aqueles que não têm o menor interesse em privilegiar uma clínica do sujeito e que, às vezes, até mesmo a consideram da ordem de um incômodo em função das subversões que necessariamente promove no regulamento de um hospital. Este segundo grupo, nem por isso é menos preocupado com cada paciente que atende, somente dirige sua preocupação considerando seu paciente como parte de um grupo – dos adolescentes que usam camisinha, dos que não usam, dos que participam dos programas de sala de espera, dos que não participam, dos que seguem corretamente um tratamento, dos que não o fazem, além dos grupos de pacientes de clínicas específicas: os diabéticos, os com doenças crônicas, os com doenças renais etc. O adolescente para estes não é um sujeito como a psicanálise considera um sujeito, mas um membro num grupo que tem certos comportamentos, ou num grupo que apresenta certas reações semelhantes, ou ainda num grupo de maior ou menor risco por tais e tais fatores. Com esses membros da equipe multidisciplinar, somente é possível uma intervenção muito pontual na dialetização da ética e do discurso. Até hoje não foi possível operar minimamente algum giro de discurso junto a esses profissionais. A coisa é bastante diferente quando lidamos com os outros membros da equipe multidisciplinar, aqueles que verdadeiramente levam em conta o sujeito como é postulado pela psicanálise. Então, o que se observa junto a esse grupo? Que na medida que nosso trabalho, que sempre procura sustentar o discurso do analista e sua ética, se desenvolve, é esse segundo grupo aquele que se fortalece em relação ao primeiro, ou seja, os membros da equipe multidisciplinar que levam em conta o sujeito encontram, em nosso trabalho, subsídios para melhor se representarem no seio de toda a equipe.

Ao contrário do que é pensado habitualmente, não se deve recuar diante dos impasses e especificidades que a instituição hospitalar nos apresenta. Coadunar trabalho psi e trabalho médico visando uma prática transdisciplinar produz um espaço de trocas que acabam de exigir da psicologia um novo (re)posicionamento, seja diante de antigas questões, seja diante de questões de outras bases. Por conseguinte, o hospital não pode ser pensado como um lugar de impossibilidade apenas pelos atravessamentos que ali espocam, precisa ser pensado como um espaço inequivocadamente necessário, apesar das exigências e peculiaridades que cria.

A dificuldade do trabalho psicológico em hospital geral se dá, em certo sentido, pela dificuldade que o próprio psicólogo encontra em precisar seu trabalho, seja por encontrar impasses de natureza epistemológica, teórica e ética, que fazem com que responda de maneiras pouco produtivas as demandas que lhe chegam, seja pela própria situação hospitalar, a qual não reproduz a díade encontrada nos atendimentos que acontecem em consultórios e que são caracterizados pela manutenção de um cenário reservado e, praticamente, constante.

 

4. O sujeito no hospital.

Preocupada com o lugar do sujeito na prática da saúde mental, e acreditando que a psicanálise não só tem uma grande contribuição a dar para fazer valer esse lugar como também precisa se instrumentalizar cada vez mais para poder sustentar tal contribuição, parto da hipótese de que a psicanálise só contribui genuinamente para a prática no campo da saúde mental quando, diante de cada problema colocado para nós psicanalistas nesse campo que é também o das conexões da psicanálise – tal como definido por Lacan em “O ato de fundação da Escola”, de 1964 –, sustentamos nossas intervenções e propostas a partir de um aprofundamento cada vez maior da teoria psicanalítica. Tal hipótese traz consigo uma outra, a de que existe uma relação intrínseca da psicanálise com a ciência, de tal maneira que o que é teoria psicanalítica equivale ao estatuto da teoria em toda ciência. Trata-se de hipóteses, a serem verificadas, mas verificadas também na articulação com a incidência discursiva da psicanálise na prática: a clínica, a hospitalar, a de pesquisa no campo da saúde mental. E isso por algumas razões, dentre as quais listo:

1) Nas Vastas confusões e atendimentos imperfeitos, título do livro de Ana Cristina Figueiredo (1997) sobre o tema e que parafraseia o de Rubens Fonseca, nos vemos imersos no entrecruzamento de vários discursos que, muitas vezes se ancoram em séculos de história – como é o caso do discurso médico – e, por isso, são de difícil questionamento. Para fazê-lo, a teoria é fundamental, ou seja, no campo da psicanálise não há prática sem teoria que, por sua vez, advém da prática. Dito de outra forma, se é verdade que a psicanálise é o instrumento que possibilita um giro discursivo na prática institucional (Alberti, 2000), para fazê-lo é preciso identificar os furos nos discursos a partir dos quais tal giro pode ser alavancado e tal identificação só poderá ocorrer quando o analista intervém apoiado no discurso construído por Freud. Esse apoio é, antes de mais nada, teórico, porque é a teoria psicanalítica que justifica o ato psicanalítico e inclusive o fato de que não há analista que não seja produto de sua própria análise. É advertido de sua própria análise que o analista pode alavancar o giro discursivo que irá dialetizar as posições muitas vezes fixadas na dinâmica de uma instituição.

2) O trabalho no campo da saúde mental é fundamentalmente um trabalho clínico e não há clínica psicanalítica que não se fundamente na teoria da clínica. Suas bases já se encontram nos textos técnicos e nos casos clínicos de Freud e, ao longo dos últimos cem anos, a maior parte dos autores, das mais diferentes escolas psicanalíticas, contribuiu para o debate da teoria da clínica.

Por outro lado, é preciso levar em conta o fato de que a “psicanálise pensa o sujeito, em sua raiz mesma, como social, como tendo sua constituição articulada ao plano social” (Elia, 2004:38), e que “o faz de modo positivo, ou seja, de modo a manter a positividade de sua concepção de sujeito do inconsciente, sem o que deixaria de ser psicanálise e se diluiria em meio à polifonia da orquestra das concepções culturalistas de uma construção social do sujeito, que o destitui precisamente de sua positividade como sujeito do inconsciente” (idem), porque é só levando isso em conta que, então, por conseqüência lógica, estamos verdadeiramente sustentados nos fundamentos da teoria psicanalítica e, ao mesmo tempo, demonstrando a importância da psicanálise como instrumento de intervenção no campo assistencial. Como observa por exemplo Sueli Minatti (2004) quando relata seu trabalho numa instituição que acolhe pessoas com doenças graves, preferencialmente crianças (idem): no trabalho na instituição “está a psicanálise, representada, nesse contexto, pela psicanalista presente na instituição e, sobretudo, pela teoria psicanalítica, que possibilita um movimento dialético entre o fato e o relato do fato” (:22). Como psicanalista “representando” a psicanálise na instituição “e, sobretudo, pela teoria psicanalítica”, deve-se então nesse campo fazer valer o que há de mais genuíno no cidadão: sua própria subjetividade, determinada como é pelas leis da linguagem, pelo inconsciente, pela divisão subjetiva.

Por outro lado, assistimos hoje ao desenvolvimento da idéia de um indivíduo cerebral, que reduz o sujeito às determinações cerebrais, neurais e neuronais, da mesma forma como o sujeito pode ser reduzido na década de 1930-40, a um conjunto de glândulas (cf. o estudo de Cristiana Facchinetti, 2006, sobre a redução do sujeito a uma questão de glândulas, na medicina nazista, e trazido ao Brasil por um fisiologista do Estado Novo, Renato Kehl). É impressionante a quantidade de artigos publicados no atual contexto do sujeito cerebral, tanto em revistas especializadas quanto em jornais para o grande público, sempre levando a crer que é o cérebro que produz o que há de mais genuíno, independente do corpo e independente do sujeito enquanto efeito de linguagem – como o ser falante é definido pela psicanálise de Freud com Lacan. Assim, como concluía Facchinetti (2006), apesar da queda, com a do nazismo bárbaro, da eugenia dos anos 1930-40, a questão continua hoje com esse novo envelope de cientismo – o cerebral –, não pouco capaz de interessar a história da medicina e suas ações biopolíticas (sic).

O corpo, hoje, pode ser na realidade o efeito de séculos de discursos sobre ele, é hoje um corpo como texto, híbrido (Andrieu, 2006). Um complexo psicossomático na sociedade, produto da desintegração provinda da intersecção híbrida da biotecnologia, da nanotecnologia, da arte, da moda, dos discursos biológicos e da saúde em geral, que dispersam o corpo que, no fim das contas, tal como a ciência da informação, se presentifica em redes autônomas entre si. Utopicamente, estas então poderiam ser lideradas por alguma coisa que gestaltizasse novamente o que foi dispersado, através da “idéia de uma biosubjetividade autoreflexa do cérebro sobre o corpo”5 . Surge o “indivíduo cerebral” – conceito que “é resultado da crença de que o cérebro é a parte do corpo na qual se encontra a essência do ser humano”6 .

Esse indivíduo cerebral é, no fundo, um desafio à psicanálise (Costa, 2006), como também já pudemos observar em um trabalho sobre o lugar da psicanálise na saúde mental frente aos avanços das neurociências (Alberti, S. e Fulco, A.P.L., 2005). O movimento que se observou inicialmente esporádico, da segragação do sujeito do campo científico e, não poucas vezes, clínico, hoje associado às propostas de um indivíduo cerebral, não é sem relação com o movimento discursivo que incluiu, cada vez mais, o discurso do capitalista. Mas não só: há outro discurso que se firmou nos últimos cem anos e, podemos dizer, proporcionalmente com a mesma força: o discurso do psicanalista. Em seu texto Televisão (1974), Lacan observa que o psicanalista, com seu discurso, pode fazer frente ao discurso do capitalista, e é provável que a contemporaneidade de ambos tenha alguma determinação nisso. É preciso que a psicanálise saiba, cada vez melhor, dizer a que veio, no entrecruzamento dos discursos e no campo interdisciplinar da clínica cotidiana até porque seria essa a única maneira de reinserir sempre novamente o sujeito como ela o define e cuja foraclusão – em razão dos entrecruzamentos discursivos – é constante ameaça.

 

5. A Psicanálise enquanto última flor da medicina.

As observações pinceladas acima derivam de mais de trinta anos de trabalho em hospitais gerais e psiquiátricos, e me levaram à redação, em 2000, do artigo “Psicanálise, a última flor da medicina”. Esse título deriva de uma conversa de Lacan com estudantes da Universidade de Yale, em 1975. Dizia ele: “Aconteceu que num certo momento da história, a medicina observou que ela não podia tratar tudo, que ela tinha diante de si algo novo” (Lacan, 1975, p. 18). E identificou a psicanálise como o lugar onde a medicina “pode encontrar refúgio, pois em outros ares ela se tornou científica, coisa que menos interessa as pessoas” (idem). O científico aqui, referido por Lacan, não diz respeito ao que classicamente se identifica como ciência, como herança do legado cartesiano, mas, justamente a sua contemporânea intersecção com o discurso do capitalista, a tecnologia a promover uma “transformação que fez da sociedade o campo apropriado para o desdobramento do complexo nuclear (que) atrelou o gozo às leis e à lógica do mercado” (Cabas, 1998), o que o sujeito paga com sua exclusão do laço social - a segregação. Em troca disso, Lacan concluiu em Yale que

“Freud pensava que ele fazia ciência. Ele não fazia ciência, ele estava produzindo uma certa prática que pode ser caracterizada como a última flor da medicina. Essa última flor encontrou refúgio aqui porque a medicina tinha tantos meios de operar, inteiramente repertoriados de saída, regrados, que ela teve que se encontrar com o fato de que havia sintomas que não tinham nada que ver com o corpo, mas somente com o fato de que o ser humano é afligido, se eu posso dizer, pela linguagem. Através dessa linguagem pela qual ele é afligido, ele elabora a suplência do que é absolutamente incontornável: não há relação sexual no ser humano” (Lacan, 1975,grifo meu).

Há algo que a medicina corre o risco de perder na intersecção com o discurso capitalista, algo que lhe é intrinsecamente original, a verdade do sujeito que a procura por estar aflito, esse algo que também está na origem da psicanálise que pode servir à medicina para que reencontre sempre e ainda o que corre o risco de perder. Então, o que a psicanálise tem a oferecer à medicina é o espelho do que, no fundo, a medicina é: a flor de que falava Lacan (Alberti, 2000:49-50).

Nosso trabalho propõe a articulação de dois conjuntos, a medicina e a psicanálise, cada um deles regido por leis próprias e internas e que, em determinadas circunstâncias – onde prime o respeito mútuo – sofrem uniões e intersecções. Razão de estudar a relação desses dois conjuntos, igualmente consistentes, para a qual as leis da união e da intersecção da teoria dos conjuntos talvez deixem perceber uma luz no fim do túnel ainda tão obscuro das relações entre a medicina e a psicanálise.

A história da clínica moderna partiu da utilização dos pacientes para se saber alguma coisa do ponto de vista teórico e técnico. Mas isso só foi possível porque, originalmente, o próprio médico foi um sujeito irrequieto querendo saber. No início então, o paciente é um objeto de experimentação e verificação de um saber e o clínico é o sujeito – aquele que quer saber alguma coisa, sujeito que quer conhecer. Durante muito tempo foi isso o que aconteceu: se perguntava ao paciente tudo o que sentia, tudo o que sabia sobre si, o clínico armazenava esse saber e dele se apoderava, para finalmente declarar o doente como ignorante do mal de que se queixava. Deixado na posição de ignorante, o doente cada vez mais alijado do saber, passou a existir como objeto: objeto de estudo, objeto de experimentos, objeto de influenciar. A tal ponto que isso começou a incomodar e provocar uma reviravolta dialética: o doente não é um ignorante, ele sabe alguma coisa. E tampouco o clínico é um poço de saber, ele sempre precisa aprender mais alguma coisa. Dois sujeitos então: de um lado o doente, de outro o clínico, ambos em relação, depois batizada de relação médico-paciente, relação intersubjetiva a fazer frente e a resistir à objetivação do paciente. Apesar de contemporâneo ao nascimento da psicanálise, esse movimento do século XX não foi adotado por Freud. Na realidade, Freud logo observou que há dois tipos de saber totalmente diferentes em jogo: o saber acumulado pelo clínico a partir da teoria e da experiência, e o saber do caso clínico. Este último é absolutamente singular, a ponto de Freud sugerir aos psicanalistas: a cada novo paciente esqueçam tudo o que aprenderam até ali, cada caso é um novo caso e traz consigo o dantes jamais visto. Na relação médico-paciente só há um sujeito que tem a possibilidade de saber: é o paciente. O analista, como diria Lacan anos mais tarde, é mero objeto a causar o desejo de saber alguma coisa sobre si do seu paciente. Segunda reviravolta dialética então: o analista é objeto –  chamado a – e o paciente é o único sujeito na relação analítica, já que o sujeito se define, em psicanálise, como sujeito da fala, e quem fala em análise é o paciente, associando livremente de forma a produzir os significantes que o determinam. O espantoso é que, de certa forma, essa posição já se encontra na proposta hipocrática, por exemplo, no que tange a finalidade da arte médica por ela determinada: "A medicina é, então, por excelência, a arte da abnegação e do devotamento, o prático se apaga diante do interesse do doente" (Hipócrates, L`Art de la médécine:52-3).

O discurso analítico – que não professa a abnegação mas o desejo do analista –  funciona de tal maneira que o agente do discurso – o analista que dirige o tratamento – se dirige a um outro elevado à categoria de sujeito e é justamente essa a primeira contribuição do analista no trabalho no hospital: a de lembrar à medicina que os pacientes ali não são objeto de intervenção clínica mas sujeitos – com toda divisão que este termo comporta em psicanálise.

Se antes de tudo o paciente é um sujeito, é porque tem uma história que envolve os traços que foram marcando sua vida, desde a mais tenra infância, e que lhe são absolutamente singulares, assim como podemos dizer que as digitais são singulares do ponto de vista da medicina legal. Para se ter acesso a esse sujeito é preciso que ele fale, única maneira de conhecê-lo, única maneira dele mesmo se conhecer, a ponto de podermos definir o sujeito enquanto aquele que fala. Como dizia recentemente um adolescente com um ano e meio de análise: "No início, eu não entendia como vir ao analista poderia me ajudar, eu poderia muito bem ficar pensando sobre meus problemas em meu próprio quarto. Agora eu sei que é muito diferente ficar pensando no quarto sobre os problemas e falar disso. Ao falar, levo mais tempo e preciso explicar o raciocínio que, pensando, eu não me dava conta de quanta coisa ficava inexplicada. Ao pensar sozinho, eu deixava de perceber uma porção de coisas que eu pensava porque o pensamento era rápido demais. Ao falar ao analista, eu descubro a minha maneira de pensar que eu não percebia antes".

É fundamentalmente em seu texto “Psicanálise e medicina” (1966) que Lacan irá nortear o encontro desses dois saberes em seu ensino, o que ele deixa claro quando esclarece aí a função do psicanalista junto ao médico: a de acompanhá-lo na luta contra sua subserviência à capitalização de seu saber e de sua prática, fazendo aí resistência. Lacan se refere aqui ao discurso do capitalista como variante do discurso do mestre: “O que o médico poderá opor aos imperativos que fariam dele o empregado desta empresa universal da produtividade? Não há outro terreno a não ser a relação através da qual ele é médico, ou seja, a demanda do doente” (Lacan, 1966, p. 454). Assim, não é só o psicanalista que ganha terreno quando se insere no hospital, mas é também o médico que poderá vir a encontrar no psicanalista – submetido a um outro discurso, o do psicanalista – um sustento para fazer frente à atual febre de subsumir o saber da medicina e o ato médico nos contratos empresariais e nos indivíduos cerebrais diante dos quais a clínica é, ela própria, subsumida pelos exames laboratoriais.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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LACAN, J. (1945) “Le temps logique et l`assertion de certitude anticipée” in Écrits. Paris, Seuil, 1966.

_________ (1964) “Acte de fondation” in Autres écrits. Paris, Seuil, 2001.

_________ (1966) “Psychanalyse et médécine” in “Petits écrits et conférences – 1945-1981”. Inédito.

_________ (1974) Télévision. Paris, Seuil.

_________ (1975) “Entretien avec des étudiants - Yale University, 24 novembre 1975” in Scilicet, Paris, Seuil. Vv. 6/7.

MINATTI, S.P. “A criação do campo psicanalítico na instituição” in Revista Latinoamericana de psicopatologia fundamental. Vol. VII, no. 1, março de 2004.

 

 

1 Professora Adjunta do Instituto de Psicologia (IP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Procientista da UERJ e Pesquisadora do CNPq. Coordenadora da Residência em Psicologia Clínica Institucional do IP/UERJ no Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE). Doutora pela Universidade de Paris X – Nanterre e Pós-doutora pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Psicanalista Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Endereço: Rua João Afonso, 60 casa 22. 22261-040 Rio de Janeiro/RJ. Tel./Fax: (21) 2527 3154.E-mail: ssonia.alberti@pesquisador.cnpq.br
- Trabalho  apresentado na VII Jornada de Psicologia do Hospital Universitário/UEL – I Congresso Brasileiro de Psicologia Aplicada à Saúde  – setembro 2008 – Londrina, Paraná.
2Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ele funciona em uma Enfermaria (atenção terciária) e um Ambulatório (atenção secundária) no Hospital Universitário Pedro Ernesto (UERJ), além do trabalho da atenção primária que desenvolve a assistência fora do Hospital.

3 Agora diretamente filiado à Faculdade de Medicina conforme decisão da Reitoria e do Conselho Universitário (Resolução 007/95, de 14 de setembro de 1995).
4 Inúmeros casos clínicos, a maioria publicada na revista da Residência pelos residentes que passaram e passam pelo NESA nos últimos 14 anos, além dos casos que se tornaram objeto de monografias dos Residentes, observam a importância do trabalho com a equipe multidisciplinar.
5 No folder do Congresso Internacional Neurociências e Sociedade Contemporânea, realizado pelo IMS/UERJ, em agosto de 2006.
6 Idem.

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